Ticiano, Vénus de Urbino, 1538.
I - Em «A Vénus de Urbino - uma erótica da pintura clássica», tinha-se antecipado aqui a possibilidade de uma relação de apropriação dinâmica entre a pintura de Ticiano e a de Manet. Num certo sentido, a leitura proposta por Daniel Arasse (ver Recapitulações XIII: A Vénus de Urbino - uma erótica da pintura clássica, aqui no blogue) é já motivada por essa construção retroprojectiva, na pintura de Manet, de uma relação transformadora (embora no post anterior, dela não tivéssemos dado conta), de apropriação e deslocação da pintura de Ticiano.
Poderíamos agora avançar que, sendo uma erótica da pintura clássica o que nesse quadro de Ticiano se poderia também ler, isso significava igualmente, na mesma medida, que Manet tivesse ali visto uma espécie de prenúncio daquela redução do espaço em profundidade, que viria a verificar-se na sua pintura e que, de outros modos, por via da relação de confronto com a fotografia, vimos já na pintura de Monet.
Redução de um espaço em profundidade cuja imitação constituira a intenção da pintura clássica até ao século XIX (sob a ilusão da objectividade, do efeito de real que vai de par com invisibilidade do sujeito que vê a si próprio, do sujeito moderno enquanto voyeur, ou enquanto aquele que vê supondo ver sem ser visto, como dizia Wajcman), ao princípio de que a sua representação era antropomórfica.
A sugestão da Vénus de Urbino passava, lembremo-lo, segundo a leitura de Daniel Arasse, pela correlação entre o ponto de fuga no espaço e o sexo no corpo despido (aberto ou exposto ao nosso olhar e em plena consciência desse facto, um vez que a sua personagem central no-lo indica explicitamente, com o gesto da sua mão esquerda): «na Vénus de Urbino, o ponto de fuga é situado na vertical de prumo da mão esquerda da «Vénus» e à altura do seu olho esquerdo» (ARASSE, Daniel, On y voit rien, Paris, Denoël, 2000, p. 148). O que reinscrevia, indirecta e subtilmente, mas inequivocamente, a presença do observador no espaço representado.
Frisando que esse gesto de Ticiano ficaria, na sua obra, como gesto de representação absolutamente isolado (em nenhum quadro posterior o gesto dessa Vénus seria retomado), Daniel Arasse observa: «de qualquer forma não podeis banalizar esse gesto. Ele é de facto excepcional, mesmo no século XVI. Ticiano não o retomou nunca e nenhum outro pintor o fez também. Mesmo em 1538, ele devia ter parecido um pouco ousado, no limite do pornográfico» (ibidem, p. 131).
E Manet «viu ali qualquer coisa que o interessou suficientemente para que ele fizesse a sua Olympia e mesmo para que ele fizesse, alguns anos antes, uma pequena cópia da Vénus de Urbino» (ibidem, p. 136). O que é tão importante quanto o facto de que a sua Olympia contribuiu para o nascimento da modernidade em pintura - é M. Fried, lido por Arasse, quem o diz. O que Manet teria visto no quadro de Ticiano é ali pensado, com efeito, por Daniel Arasse, em função do M. Fried escreve sobre o primeiro - Manet.
«Segundo Fried, nos anos 1860, Manet trabalha sobre a «convenção primordial» da pintura: um quadro é feito para ser olhado. [...] O que diz Fried é que Manet vai transformar o teatro da pintura. Ele renuncia à teatralidade clássica, fundada sobre a colocação em cena da perspectiva e [sobre] o assunto/sujeito [le sujet] literário. Ele procura uma teatralidade fundada somente pela pintura. Segundo Fried, Manet procura fazer quadros que se contentem em apresentar-se ao espectador, em olhá-lo. Ele esforça-se, cito Fried, por fazer de maneira que cada porção da superfície olhe o espectador de frente. É o que ele chama a (ou o) facingness da pintura de Manet. [...] E esse facingness, esse face a face da pintura com os seus espectadores, é a nascença da modernidade. [...] Fried estima também que essa busca encontra um suporte particularmente adaptado no nú erótico clássico. Porque esse nú supõe um sujeito que se oferece, mais ostensivamente que qualquer outro, como objecto para um público masculino.» (ibidem, pp. 162-163).
E acrescenta Arasse:
«Fried não fala dela [da Vénus de Urbino]. Mas, depois do que se acaba de dizer sobre a Vénus de Urbino, ele permite-nos compreender o que Manet pôde ver no quadro e, ao mesmo tempo, compreender melhor o trabalho de Ticiano. [...] Como diz aproximadamente Fried, sem pensar em Ticiano, mas [pensando] em Manet, ela [Olympia] coloca-nos sob o império do olhar, um olhar fixo e dominador. Eis o que Manet viu [na Vénus de Ticiano]. E eis o que ele transformou. Nele [no quadro Olympia] é toda a superfície que olha o espectador de frente: a criada vem para a frente sobre um fundo opaco, o cão adormecido tornou-se num gato. [...] Manet anulou toda a perspectiva. O quadro não tem nenhuma profundidade. Todo ele é superfície, e essa opção é confirmada por uma minúscula transformação. Minúscula e decisiva. Manet desfez cuidadosamente a relação directa que Ticiano havia instalado, entre a posição do nosso olhar, o sexo da mulher e a profundidade. Manet desfez essa condensação» (ibidem, pp. 166-167).
Manet, Olympia, 1863.
Na verdade, Manet pinta igualmente uma superfície vertical, como divisória de fundo, mas desloca-a da vertical do sexo da sua Olympia ligeiramente para a direita, deixando ela, assim, de o «indicar». Ao mesmo tempo, o sentido do seu gesto, que é já outro, em Olympia, modifica-se. Ele tapa, interpõe-se, veda o sexo e, por contraste com a sugestão de Ticiano, esconde, obtura, mura o abismo, fecha o alçapão da pirâmide de projecção do espaço perspéctico, recobre-o com a forma rasa de uma mão que tapa, da mesma forma que o quadro se desdobra todo sobre uma superfície que nele se estende a toda a largura do seu fundo.
A vertical de fundo - irónica e ilusoriamente suposta, por Panofsky, como divisória arquitectónica (no quadro de Ticiano) - age aqui no mesmo sentido descentrador que a sua mão. Essa dupla indicação contrastiva reenvia-nos agora, não para um ponto de fuga corpóreo, mas para a sua própria impossibilidade, para a impossibilidade da sua visibilidade ou da sua captação. Manet:
«desdobrou na superfície [do seu quadro] o que Ticiano havia condensado na articulação entre superfície e profundidade. Ele rebateu a profundidade na superfície. É toda a pintura que nos olha de frente. Não é já a posição do nosso olhar [teoricamente inscrita, como notava Arasse, a propósito do quadro de Ticiano, na sua ordenação compositiva: veja-se «Recapitulações XIII»] que a estrutura interna do quadro determina e a nossa relação com ele. Fried tem razão. Uma forma da modernidade tinha nascido.» E além disso, a mão «[...] já não acaricia o sexo; ela está deposta sobre ele, firmemente, face ao espectador. Olympia olha-nos mas ela não se toca» (ibidem, pp. 167-169).
Eis, portanto, que o gesto da sua mão é, diferentemente do gesto da Vénus de Urbino, o de uma interposição que nos indica, por contraste, sobre o fundo constituído pela memória do quadro de Ticiano - de que Manet executara uma cópia anteriormente - como vedando o acesso ao interior do corpo/espaço em profundidade, a um espaço-corpo em profundidade. Ora, se quiséssemos dar aqui conta das observações de Michel Foucault - embora a sua visão difira, na sua orientação, da de M. Fried - a propósito do que a pintura de Manet traz de novo à pintura, que características poderíamos começar por salientar? É o que veremos a seguir.
domingo, 31 de maio de 2009
Recapitulações XIV: A Vénus de Urbino II - «o que Manet viu», na obra de Ticiano (D. Arasse; M. Foucault)
sexta-feira, 22 de maio de 2009
Recapitulações XIII: A Vénus de Urbino - uma erótica da pintura clássica (D. Arasse; Louis Marin; E. Panofsky; R. Goffen; M. Foucault; R. Krauss)
Ticiano, Vénus de Urbino, 1538.
I - Que nos diz Daniel Arasse, a propósito de Ticiano, e em particular da Vénus de Urbino? Em primeiro lugar que, ao contrário do que se passara com a Vénus Adormecida de Giorgione, que data de 1510 (Giorgione foi mestre de Ticiano; é Ticiano, de resto, quem virá a acabar o quadro, que o mestre deixara, com a sua morte, por concluir) a Vénus de Urbino está bem acordada. E que isso confere à disposição da sua mão esquerda um sentido completamente outro.
Giorgione, Vénus Adormecida, 1510.
«Em Giorgione ela dorme. O seu gesto é inconsciente. Ela sonha talvez. Aqui ela está bem desperta; ela sabe o que faz e olha-nos.» (ARASSE, Daniel, On y voit rien, Paris, Denoël, 2000, p. 160). «[...] Giorgione tinha pintado a sua mulher adormecida numa paisagem; um quarto de século mais tarde, Ticiano moderniza-a despertando a figura (como outros antes dele) e colocando-a na cama de um palácio veneziano. Do mesmo passo, a definição da figura torna-se incerta. Em Giorgione, é evidentemente uma ninfa ou Vénus - apenas os deuses, as ninfas e os sátiros estão nus na natureza. Em Ticiano pelo contrário, não há já meio de saber se essa mulher nua é [uma] Vénus ou uma cortesã. [...] Foi talvez essa ambiguidade que reteve Manet: apesar da sua beleza perfeita, ela não é uma mulher ideal.» (ibidem, p. 138)
O que teria suscitado em Mark Twain uma reacção absolutamente inusitada - e, talvez hoje mais que ontem, para nós estranha - nos seus Travellogues, escritos por ocasião das suas viagens pela Europa. Recordando-o, diz-nos Arasse:
«Mesmo Mark Twain acha que é um quadro abominável, o mais «vil» que ele tinha visto. Por uma vez faltou-lhe humor». De resto, mesmo os estudiosos do pintor (Crowe e Cavalcaselle) «na sua grande obra sobre Ticiano, não se mostram chocados pela mão esquerda. E pour cause: dela nada dizem. Descrevem o braço direito, a mão direita e o seu bouquet de rosas, mas nem uma palavra sobre a mão esquerda. Como se a Vénus de Urbino fosse maneta» (Ibidem, pp. 130-131).
Dito isto, trata-se, para Daniel Arasse, não de nos cingirmos a uma leitura iconográfica, frustre na maioria das vezes, quanto à questionação e à compreensão do que no espaço plástico da inscrição se coloca em jogo, mas de observar o quadro para compreender «o modo como ele funciona». O pressuposto da leitura de Arasse situar-se-á, portanto, no cruzamento, por um lado, dos dados da história e, por outro, da semiologia pictural. E observar o modo como ele funciona significa nela, num primeiro instante, procurar discernir, no percurso do nosso olhar, o que nos é ditado pelas disposições que, da sua construção espacial e da sua organização figural, nos impõem, ao mesmo tempo, uma necessária reflexão sobre suas implicações de sentido.
Ora, desse percurso, diríamos que Arasse retém três pontos nodais de incidência, que hão-de funcionar ali como outras tantas interrogações, susceptíveis de abrir o seu próprio questionamento à ponderação das implicações de sentido que projectarão, sobre o quadro, uma compreensão menos estreita do que aquela que ele vinha suscitando, do lado da história da arte.
II - O primeiro desses pontos nodais seria, por exemplo, este: a) a «dama ignuda», de quem Guidobaldo della Rovere encomenda o quadro (um retrato e um nú; o retrato caberia aqui, provavelmente, na classificação de Omar Calabrese, como «retrato travestido»), interpela, com o seu olhar, o espectador, ao mesmo tempo que a posição da mão esquerda lhe dirige a atenção para o seu sexo. Ora, acerca dessa mão esquerda, do lado da crítica e da história de arte, um pesado silêncio se fora adensando: a questão seria, portanto, aqui a das razões susceptíveis de explicar essa espécie de interdito. Um segundo desses pontos nodais b) teria que ver com a compreensão mais atenta da inscrição, no quadro, daquela repartição dos espaços que nele se representam. E a questão levantar-se-ia, aqui, ao nível do que seria, por um lado, a realidade arquitectónica própria dos interiores palacianos de Veneza, no século XVI.
Ora, a constatação de que partirá Arasse é a de que a divisória que se inscreve no quadro, entre o plano mais próximo, em que a Vénus surge deitada, e o interior do salão que se vê na parte superior direita, não possui nenhuma correspondência com a realidade arquitectónica própria da época. Como justificá-la então, exclusivamente, em função do princípio da «imitação» (ou da ilusão referencial) que presidiria a uma pintura toda ela condicionada, desde a sua incorporação da perspectiva, pelo princípio da representação de um «espaço em profundidade»? Ora, Daniel Arasse virá a descobrir aí um processo pictórico de dissociação simbólica de espaços distintos, rastreável em outros quadros de Ticiano:
Ticiano, Madona e Menino, com Stª Catarina e Sº Domenico e um doador, 1512-1516.
«Em 1512, numa Santa Conversação com a Virgem e o Menino e um doador, Ticiano tinha já usado este dispositivo para apresentar a Virgem e distinguir o seu lugar daquele do doador que se recorta diante de uma paisagem. [...] Em 1538, vinte anos mais tarde, Ticiano retoma esse dispositivo para apresentar a sua dama ignuda. [...] Ticiano sugere uma sacralização, uma divinização do corpo feminino. (ARASSE, op. cit., pp. 144-145). Aquilo não é uma cortina, aquilo não é uma parede. Não corresponde a nada de conhecido, a nada de repertoriável na realidade. Aquilo não representa nada. A mesma coisa para o «bordo de pavimento». De facto, Panofsky fala de bordo de cortina e de bordo de pavimento porque isso lhe permite ver no quadro a representação coerente de uma divisão de palácio. Mas o quadro é incorente... (ARASSE, op. cit., p. 143). [...] essa zona negra não é uma cortina como queria Panofsky, que vê no seu recorte vertical um «bordo de cortina»; e a linha acastanhada não é também o «bordo do pavimento». Aparentemente Panofsky o velho tinha-se esquecido do que escrevera Panofsky o novo. [...] Para Panofsky, em 1932 [...] «reportar qualquer coisa que representa a qualquer coisa que é representada, um dado formal, plurívoco de um ponto de vista espacial, a um conteúdo conceptual que é, ele, sem equívoco possível, tridimensional» [...] é impossível na prática.» (ARASSE, op. cit., pp. 139-140).
Tratar-se-ia, portanto, para Daniel Arasse, do que, também para Louis Marin (cf. deste último, por exemplo a antologia de textos reunidos em De la représentation) caberia ao nível do «pré-iconográfico» (no sistema iconológico de Panofsky), como sendo da ordem do que designa sob a fórmula de um «informe em instância de figurabilidade», enquanto inscrição, plástica e visual, daquilo em que Marin vê a dimensão do «infra-/pré-iconográfico».
Dizer que «não» se trata do bordo de uma cortina, nem de um «bordo de pavimento» é aqui o mesmo que chamar a atenção para a ambivalência de sentido dessas duas linhas limítrofes graças às quais o espaço do quadro, tal como ele ali se desdobra, se cinde em dois. O que interpretamos como divisória arquitectónica entra ali em jogo com aquilo que, ao mesmo tempo, em outros quadros de Ticiano, resulta como procedimento dissociativo, como incisão visual e signo plástico de uma dissimetria fundamental, entre dois espaços hierarquicamente distintos.
E a sugestão de Arasse há-de ser, como veremos, um pouco mais adiante, a de que a figura da Vénus se constitui, no quadro do plano que mais se aproxima do observador, a partir da projecção exterior e imaginária do que uma das criadas, aquela que ali aparece ajoelhada, nessa espécie de écrã que se vê do lado direito, vê no interior do baú. A Vénus que ali vemos sai inteirinha do cofre, onde permanecia acautelada dos olhares do mundo, para vir a ocupar aquele espaço de intimidade que mais se lhe adequa, pela sua pretendida sugestão.
Para Arasse - como de resto para toda a gente, hoje em dia: veja-se por exemplo, a análise extremamente arguta que W. J. T. Mitchel faz do modelo iconológico de Panofsky, em «The Pictorial Turn», Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representatation, Chicago UP, 1995, em correlação com o pensamento de Althusser, acerca do conceito de «ideologia» - no modelo de Panofsky há um elemento que representa o seu calcanhar de Aquiles, e que diz respeito à forma injustificada como, ao nível ainda do que nele se designa como «pré-iconográfico» se desliza, de modo redutor e sem solução de continuidade, para o «iconográfico». O que nesse passo se suprime é precisamente um certo inconsciente da «significação expressiva», uma certa suspensão da intecionalidade da «significação factual» presente na inscrição e no seu jogo correlacional, naquilo que eles supõem de abertura móvel e grafemática a sentidos que não seriam, necessariamente, compatíveis entre si. É precisamente o que acontece no quadro de Ticiano.
Deslizamos aí, se nos colocarmos exclusivamente na senda da interpretação de Panofsky, sem nenhuma espécie de articulação teórica consistente, (movidos pelo nosso horror ao vazio e pela nossa precipitação no preenchimento dessa abertura, ou na redução dessa ambivalência da forma) para um «significado» que a realidade histórica e arquitectónica da época se encarregaria de contrariar. Ver ali uma parede ou um bastidor, ou aqui o rebordo de um chão é fazer interferir, na nossa interpretação, um dado com que Ticiano não poderia contar, na arquitectura da época. E a relação estabelecida entre a Vénus de Urbino e outros quadros do mesmo autor seria já suficiente para interrogar a pertinência dessa leitura.
Conheceis compartimentos venezianos [desta época] cortados a meio por uma parede ou por uma divisória móvel? Eu não... (ibidem, p. 143)
Por outro lado, seria justamente nessa medida que o quadro de Ticiano seria, para Daniel Arasse, «incoerente». Incoerente até num sentido, ele próprio, de certo modo, perverso, porque a palavra abre para dois sentidos inesperadamente reversos: a) «incoerente», por um lado, bem entendido, porque atravessado por essa espécie de cisão, ou de cesura interna entre dois espaços não-contínuos entre si, fazendo aparecer, na Vénus de Urbino, um segundo quadro embutido no primeiro. Mas «incoerente» b) também no sentido em que o prefixo «in-» da palavra nos pode igualmente indicar, não apenas que se trata de uma «negação», mas também de uma «interioridade», enquanto atributo dessa sua eventual coerência. Posto que a sua incoerência só poderia verificar-se ao nível da relação referencial, seria então precisar indagar acerca dela, num outro plano: precisamente o da consistência interna do «funcionamento» quadro, pensado como estrutura clivada.
Se o quadro de Ticiano é, num outro sentido, «in-coerente», uma sua eventual «coerência» não poderia ser aqui senão «interna»; ela não poderia senão situar-se ao nível da correlação simbólica (e plástica) entre os espaços descontínuos cuja cesura ali se inscreve. Aquele segundo quadro que nele aparece como que embutido no primeiro, há-de funcionar, por isso, como operador de legibilidade, como suplemento de leitura do retrato da cortesã da qual Francesco Maria della Rovere, pai de Guidobaldo della Rovere, possuía já um retrato. Guidobaldo insistirá, no entanto que, diferentemente do que acontece com o retrato que o pai possui, a quer nua.
Ticiano, La Bella, (anterior retrato da mesma mulher, em posse, à data em que Guidobaldo della Rovere encomenda a sua dama ignuda, de Francesco Maria, seu pai)
III - Além desses dois pontos nodais que orientam a sua leitura, a que acabámos de nos referir haveria, para Daniel Arasse, um terceiro: c) Daniel Arasse sugere-nos que se trata de um quadro feito a pensar num contexto matrimonial. À data em que o quadro se dá por concluído (1538), a mulher de Guidobaldo della Rovere, Giulia Varano (que com ele casa aos dez anos (!!)), tem já quatorze anos. A questão começa, portanto, por ser a seguinte: o que teria levado o Duque de Urbino, já casado, a encomendá-lo? «Guidobaldo della Rovere tinha certamente outros meios de satisfazer as suas vontades» (ibidem, p. 128).
A ideia de que o quadro se destinasse à satisfação dos seus desejos eróticos é, para Arasse, simplesmente absurda. Com a sua riqueza e o seu poder, o Duque jamais precisaria, como a certa altura chegou a ser corrente dizer-se, de «chamar a mão em socorro do espírito»... O quadro de Ticiano não pode, como Arasse sugere, ser lido como a história de arte habitualmente o lia: como a ilustração precursora, em pintura, do que viriam a ser, séculos mais tarde, (graças ao desenvolvimento da técnica fotográfica e das técnicas de impressão, no período da guerra do Vietname), as «pin-up». E aqui, a leitura de Arasse socorre-se de estudos feitos sobre a época, para salientar:
«[...] Rona Goffen mostrou perfeitamente como, no século XVI, a masturbação feminina era, num contexto preciso, aceite e mesmo recomendada. Dizendo a ciência que as mulheres não podiam ser fertilizadas a não ser no momento da sua fruição, os médicos sugeriam às mulheres casadas que se preparassem manualmente para a união sexual para gerarem um filho. [...] Os padres também recomendavam a masturbação porque, como não podeis deixar de saber, para os homens da Igreja, a única sexualidade autorizada era no casamento e ela devia visar exclusivamente a reprodução. Portanto, no casamento, a mulher podia, quase devia, «preparar-se» para a união sexual para se assegurar da sua intervenção e para não se arriscar a cometer, ou a fazer cometer sobretudo a seu marido, o pecado de uma copulação sem progenitura, apenas por prazer. Portanto, no século XVI, esse gesto [o da Vénus de Urbino] não podia ser concebido nem percebido como o de uma pin-up a preparar-se para uma união ilícita. Rona Goffen indica mesmo que a pose dessa mulher, apoiada sobre o seu lado direito, correspondia a recomendações do mesmo género. Dito de outro modo, se não é um tableau de mariage, é um quadro imaginado num contexto de casamento.» (ARASSE, op. cit., pp. 132-133).
Ora, é aqui que começa a tornar-se possível uma primeira conexão produtiva do primeiro com o segundo quadro, o quadro nele embutido, do lado superior direito, o quadro no quadro maior que o inscreve. Que se vê ali? A figura do que seriam duas criadas, uma delas ajoelhada, a espreitar para dentro de um dos baús. Daniel Arasse lembra que, segundo uma certa tradição florentina, era frequente, nessa altura - trata-se aqui do século XVI, mas segundo uma prática que vem já de trás, do século XV - que as noivas trouxessem, como parte do seu dote, baús ou cofres como esse, onde guardariam o seu enxoval, destinado à noite de núpcias.
E a particularidade desses «cassone», - era o nome que se lhes dava, - consistia em que, já no século anterior, pelo menos em Florença, sobre o fundo dos seus tampos traziam precisamente imagens de nus femininos. Em Veneza, um tipo semelhante de baús ou de cofres designava-se «cofres sarcófagos» [«coffres en sarcophage»]. A ideia de Arasse é a de que o quadro que aparece em primeiro plano - o da Vénus propriamente dita - é explicado pelo quadro nele embutido. A figura da Vénus é o que a criada vê, no interior do cofre. O quadro de Ticiano cruzaria, pois, duas referências:
«Ticiano vai procurar, esta mulher nua, ali onde ela se encontra. Primeiro, a pose geral da figura, ele toma-a do quadro de Giorgione que ele acabou perto de trinta anos antes. Em seguida, uma vez que ele faz uma Vénus citadina deitando-a sobre a sua cama que dá o ar de estar num palácio, ele vai procurá-la ao interior dos cofres de casamento e põe-a, à sua mulher nua, em primeiro plano. [...] É no quadro que isso se passa. Esses cofres, horizontais, com as suas curvas convexas, ecoam as curvas do corpo feminino deitado na cama. E estão-lhe associados também porque eles contêm as vestes da figura nua em primeiro plano. Diga-se de passagem: não se deveria dizer que a Vénus de Urbino está «nua» - ela está «despida»...» (ARASSE, op. cit., pp. 156-57).
Ora, nesse sistema de ecos ou réplicas formais, de isotopias figurativas que constroem nexos metafóricos ou de correspondência semântica entre os dois quadros, entra também uma outra correlação: aquela que se estabelece entre a posição do espectador que, interpelado pelo olhar da Vénus, é posicionado, no quadro de Ticiano, necessariamente de joelhos, à sua frente, assim entrando em correlação com a posição da criada que, ao fundo, no outro quadro, se debruça sobre o baú, e faz dela uma figura delegada do espectador-contemplador.
IV - Ter-se-ia assim uma dupla relação: a) entre o corpo da Vénus e o baú (ou cofre), cujas formas convexas o reinscrevem no outro quadro; b) entre a nossa posição, tal como ela é inscrita pelo olhar da figura da Vénus - deveríamos estar de joelhos, para poder ter o nosso olhar à altura do seu - e a nossa posição, tal como ela surge reinscrita, no segundo quadro, na figura da criada.
O que digo simplesmente é que a construção do quadro nos dá teoricamente - sublinho: teoricamente - uma posição em relação à Vénus equivalente à da criada em relação ao cofre: muito perto da figura, e de joelhos diante dela. Sei bem que de facto nós estamos de pé e a alguma distância. Essa posição, é um efeito produzido pelo dispositivo do quadro.
A posição teórica do lugar que o quadro nos reserva é, portanto, um dado compositivo e formal que é interno à sua organização espacial e figural e independente do nosso comportamento. Situado na linha do horizonte e interpelado pelo olhar da Vénus, o nosso olhar há-de impor-se-nos ali a uma certa altura, em relação à superfície do quadro (precisamente a altura do olhar da Vénus, situado exactamente à mesma altura que o olhar da criada ajoelhada ao fundo).
E esta rede de correspondências mais se acentua se imaginarmos, como propõe Daniel Arasse, que o quadro de Ticiano, encomendado por Guidobaldo della Rovere, se destinava, não ao Duque de Urbino propriamente dito (que era suficientemente rico para não precisar, para satisfazer os seus desejos, de se socorrer de um quadro) mas antes a Giulia Varano, sua mulher, que à data teria quatorze anos, segundo um desígnio de lembrança e de recomendação acerca do que se deveria fazer para uma boa preparação para a união sexual sem o cometimento do pecado do prazer dissociado da procriação.
[Parêntesis: da interrelação entre a) - relação metafórica entre o corpo feminino e o cofre, (a lembrar-nos aqui o «Nossa Senhora era uma mala», de Alberto Caeiro - e b) - relação metafórico-metonímica de mediação do espectador-contemplador do quadro, pela figura da criada - estabelecer-se-ia um elo de passagem, ou de comunicação. Olhando a Vénus, olhamos simultaneamente, para o corpo, não apenas que a contempla, no lugar da criada, mas também no qual uma relação metonímico-metafórica se estabelece, entre os seus olhos e o seu sexo, como lugares da sua abertura].
V - Ora, dessa rede de correspondências seria ainda preciso notar que ela não resume a àquelas duas correlações notadas acima. Uma terceira correspondência c) nos mostraria: 1. que o ponto de convergência das linhas do quadriculado do tapete, que indica o ponto de fuga no segundo quadro, situado do lado direito e acima do primeiro, se situa exactamente na linha vertical que desce até ao sexo da Vénus; 2. que assim se estabeleceria, não apenas uma relação de correspondência entre dois pontos ordenadores da nossa atenção, mas também uma correlação metafórica entre o corpo, o baú e o quadro (o quadro como caixa cenográfica aberta; o corpo como abertura e, simultaneamente, ocultação; o baú como lugar do mistério e, ao mesmo tempo, da imagem: da figura e da representação), entre a abertura do espaço da perspectiva e a abertura do corpo. Diz Arasse:
«O importante, o que faz da Vénus de Urbino um quadro excepcional, é que ele põe em cena o que constituiu a própria erótica da pintura clássica. [...] passar do tocar ao ver, substituir o ver ao tocar, fazer do ver um quase-tocar mas, para ver, não tocar. Ver, apenas ver. [...] Na Vénus de Urbino, a cama de Vénus representa essa superfície de pintura de onde surge, muito próxima, a mulher nua e de onde ela nos olha. E aí penso em Benjamin e na sua definição de aura, «aparição única de um longínquo»... [...] A mulher olha-nos da superfície do quadro e encara-nos: ou que sejais, ou que estejais sob o seu olhar.» (ARASSE, op. cit., pp. 162-166).
Ou, por outras palavras, o corpo da Vénus seria aqui, tal como o corpo da pintura (assente na ou suportado pela tela) - o corpo de uma pintura que acabara de incorporar a perspectiva e, com ela, o desdobramento de um espaço em profundidade - todo ele centrado naquele elemento ordenador que, longe de ser um ponto simplesmente geométrico - o ponto de fuga - seria ele próprio uma espécie de enigma (bio-lógico) da representação, de impensado corpóreo: o ponto-origem da vida no corpo, o ponto que diria respeito à «origem do mundo» (tal como Courbet o designará), se imaginarmos que esse mundo avança, no espaço e no tempo, em direcção ao nosso olhar, há medida que por ele caminhamos. Ver o corpo amado (o corpo do nosso desejo), supõe, paradoxalmente, a necessidade de o não alcançarmos, de dele nos afastarmos de cada vez que dele nos aproximamos, de nele não tocar: e neste sentido, «ver» seria já o «tocar» possível do voyeur, o tocar possível sem o perder de vista.
Assim, o gesto da Vénus seria, ele mesmo, também o gesto que designaria ou indicaria, pela sua mão esquerda, uma espécie de vórtice e móbil central, de lugar de voragem e mistério, de fluxo de energia a que seria preciso remeter a própria ciência, a própria comprensão óptica e geométrica da representação, enquanto elementos concorrentes nos processos de imitação de um espaço em profundidade.
«A «Vénus» ocupa um lugar preciso, aquele da cama, situado entre dois espaços claramente definidos e conjuntos: o espaço ficcional da sala das criadas e o espaço real da sala de onde olhamos o quadro. Mas o lugar da cama escapa a esses dois espaços. Ele ocupa um «entre dois espaços»... [...] Digamos o lugar da cama, mas eu poderia também dizer a cama como lugar (do corpo nú) encontra-se entre dois espaços... [...] e esse lugar, essa cama, nada mais são que a superfície da tela [...]. Em Ticiano, a perspectiva colocava o nosso olhar na vertical exacta da mão que acaricia o sexo, e essa posição era sublinhada pela linha vertical indicando o bordo da superfície escura que se recorta sobre a profundidade da sala.» (ibidem pp. 165- 167)
VI - A sugestão é, pois, aqui, por um lado, a de que o espaço aberto pela perspectiva participa, simultaneamente, de uma erótica e de um processo de fetichização. Por outro lado, a de que, nela, a pintura coloca o nosso olhar numa relação projectiva e imaginária, produtiva e «criadora», fecunda e genesíaca com «a carne do mundo». A cama ou a tela são aqui, para Daniel Arasse, o lugar-suporte do corpo-pintura que, no seu espaço em profundidade, nos interpela e incita, a partir dos seus buracos negros e dos seus vórtices de energia. E a pintura é, pois, uma produção do olhar como acontecimento. Não apenas uma produção do olhar, mas uma produção do lugar olhado do corpo, num mundo vital em movimento, que não poderia deixar de ser antropomorfo, tal como ele é visto, ou penetrado pela visão, isto é, sentido como abertura de um espaço em profundidade no qual avançamos, «penetramos» (pelo olhar), e no qual estamos já lançados ou situados.
(Sabe-se como Marcel Duchamp inverterá o sentido deste pressuposto da representação. A dissociação entre o observador e o representado, o espaço intervalar de uma sua penetração pelo olhar, funciona ironicamente, em Duchamp, também no sentido inverso. Os nossos olhos não são apenas o órgão de uma «penetração» do mundo-corpo exterior. São também o órgão que nos expõe, a nós mesmos, à penetração do mundo-corpo exterior (cf. a leitura de Jean-François Lyotard, a propósito de Étants donnés, de Marcel Duchamp). Observará Rosalind Krauss, a propósito de Étant Donnés:
«O espectáculo por detrás da porta é, entretanto, moldado de forma a articular esta carnalização do observador. Replicando de forma exacta o modelo da perspectiva renascentista, a mise-en-scène apresenta o seu nú por detrás da rompida abertura de uma parede de tijolos numa paródia da noção de Alberti de que o plano através do qual nós olhamos, numa construção perspéctica, é como uma janela.» (KRAUSS, Rosalind; FOSTER, Hal; BOIS, Yves-Alan; BUCHLOH, Benjamin, Art since 1900: modernism, antimodernism, postmodernism II: - 1945 to the present, New York, Thames & Hudson, 2007, p. 498).
De facto, no próprio gesto de espreitar pelos ralos da porta para o interior sobre o qual ela abre, nessa sua abertura, e onde se vê o que a imagem seguinte mostra, o espectador é apanhado a olhar. Ele é apanhado pela imagem que polariza o espectáculo que ele contempla e que o fascina. Os ralos da porta são portanto posicionadores de uma certa relação de simetria e de comutação, entre o lugar da abertura do olhar e o da abertura do corpo olhado. É precisamente isso que Krauss nos diz:
«Além disso, orquestrando as geometrias da perspectiva através das quais o cone da visão (convergindo num ponto situado no olho do observador - o ponto de vista) é o espelho exacto da pirâmide de projecção (convergindo pontualmente no «infinito» - o ponto de fuga) os ralos [peepholes] de Duchamp estabelecem o ponto de vista como reflexo do buraco que lhe é directamente oposto, nomeadamente, o ponto entre as pernas do nú [...]. Escrevendo acerca dos sistemas transformacionais de Duchamp, o filósofo francês Jean-François Lyotard captou este colapso bipolar dos pontos de vista e de fuga nos orifícios [assim especularmente geminados] do corpo [o sexo feminino e o olho do observador] no trocadilho «con celui qui voit» [...].» (ibidem).
I - Que nos diz Daniel Arasse, a propósito de Ticiano, e em particular da Vénus de Urbino? Em primeiro lugar que, ao contrário do que se passara com a Vénus Adormecida de Giorgione, que data de 1510 (Giorgione foi mestre de Ticiano; é Ticiano, de resto, quem virá a acabar o quadro, que o mestre deixara, com a sua morte, por concluir) a Vénus de Urbino está bem acordada. E que isso confere à disposição da sua mão esquerda um sentido completamente outro.
Giorgione, Vénus Adormecida, 1510.
«Em Giorgione ela dorme. O seu gesto é inconsciente. Ela sonha talvez. Aqui ela está bem desperta; ela sabe o que faz e olha-nos.» (ARASSE, Daniel, On y voit rien, Paris, Denoël, 2000, p. 160). «[...] Giorgione tinha pintado a sua mulher adormecida numa paisagem; um quarto de século mais tarde, Ticiano moderniza-a despertando a figura (como outros antes dele) e colocando-a na cama de um palácio veneziano. Do mesmo passo, a definição da figura torna-se incerta. Em Giorgione, é evidentemente uma ninfa ou Vénus - apenas os deuses, as ninfas e os sátiros estão nus na natureza. Em Ticiano pelo contrário, não há já meio de saber se essa mulher nua é [uma] Vénus ou uma cortesã. [...] Foi talvez essa ambiguidade que reteve Manet: apesar da sua beleza perfeita, ela não é uma mulher ideal.» (ibidem, p. 138)
O que teria suscitado em Mark Twain uma reacção absolutamente inusitada - e, talvez hoje mais que ontem, para nós estranha - nos seus Travellogues, escritos por ocasião das suas viagens pela Europa. Recordando-o, diz-nos Arasse:
«Mesmo Mark Twain acha que é um quadro abominável, o mais «vil» que ele tinha visto. Por uma vez faltou-lhe humor». De resto, mesmo os estudiosos do pintor (Crowe e Cavalcaselle) «na sua grande obra sobre Ticiano, não se mostram chocados pela mão esquerda. E pour cause: dela nada dizem. Descrevem o braço direito, a mão direita e o seu bouquet de rosas, mas nem uma palavra sobre a mão esquerda. Como se a Vénus de Urbino fosse maneta» (Ibidem, pp. 130-131).
Dito isto, trata-se, para Daniel Arasse, não de nos cingirmos a uma leitura iconográfica, frustre na maioria das vezes, quanto à questionação e à compreensão do que no espaço plástico da inscrição se coloca em jogo, mas de observar o quadro para compreender «o modo como ele funciona». O pressuposto da leitura de Arasse situar-se-á, portanto, no cruzamento, por um lado, dos dados da história e, por outro, da semiologia pictural. E observar o modo como ele funciona significa nela, num primeiro instante, procurar discernir, no percurso do nosso olhar, o que nos é ditado pelas disposições que, da sua construção espacial e da sua organização figural, nos impõem, ao mesmo tempo, uma necessária reflexão sobre suas implicações de sentido.
Ora, desse percurso, diríamos que Arasse retém três pontos nodais de incidência, que hão-de funcionar ali como outras tantas interrogações, susceptíveis de abrir o seu próprio questionamento à ponderação das implicações de sentido que projectarão, sobre o quadro, uma compreensão menos estreita do que aquela que ele vinha suscitando, do lado da história da arte.
II - O primeiro desses pontos nodais seria, por exemplo, este: a) a «dama ignuda», de quem Guidobaldo della Rovere encomenda o quadro (um retrato e um nú; o retrato caberia aqui, provavelmente, na classificação de Omar Calabrese, como «retrato travestido»), interpela, com o seu olhar, o espectador, ao mesmo tempo que a posição da mão esquerda lhe dirige a atenção para o seu sexo. Ora, acerca dessa mão esquerda, do lado da crítica e da história de arte, um pesado silêncio se fora adensando: a questão seria, portanto, aqui a das razões susceptíveis de explicar essa espécie de interdito. Um segundo desses pontos nodais b) teria que ver com a compreensão mais atenta da inscrição, no quadro, daquela repartição dos espaços que nele se representam. E a questão levantar-se-ia, aqui, ao nível do que seria, por um lado, a realidade arquitectónica própria dos interiores palacianos de Veneza, no século XVI.
Ora, a constatação de que partirá Arasse é a de que a divisória que se inscreve no quadro, entre o plano mais próximo, em que a Vénus surge deitada, e o interior do salão que se vê na parte superior direita, não possui nenhuma correspondência com a realidade arquitectónica própria da época. Como justificá-la então, exclusivamente, em função do princípio da «imitação» (ou da ilusão referencial) que presidiria a uma pintura toda ela condicionada, desde a sua incorporação da perspectiva, pelo princípio da representação de um «espaço em profundidade»? Ora, Daniel Arasse virá a descobrir aí um processo pictórico de dissociação simbólica de espaços distintos, rastreável em outros quadros de Ticiano:
Ticiano, Madona e Menino, com Stª Catarina e Sº Domenico e um doador, 1512-1516.
«Em 1512, numa Santa Conversação com a Virgem e o Menino e um doador, Ticiano tinha já usado este dispositivo para apresentar a Virgem e distinguir o seu lugar daquele do doador que se recorta diante de uma paisagem. [...] Em 1538, vinte anos mais tarde, Ticiano retoma esse dispositivo para apresentar a sua dama ignuda. [...] Ticiano sugere uma sacralização, uma divinização do corpo feminino. (ARASSE, op. cit., pp. 144-145). Aquilo não é uma cortina, aquilo não é uma parede. Não corresponde a nada de conhecido, a nada de repertoriável na realidade. Aquilo não representa nada. A mesma coisa para o «bordo de pavimento». De facto, Panofsky fala de bordo de cortina e de bordo de pavimento porque isso lhe permite ver no quadro a representação coerente de uma divisão de palácio. Mas o quadro é incorente... (ARASSE, op. cit., p. 143). [...] essa zona negra não é uma cortina como queria Panofsky, que vê no seu recorte vertical um «bordo de cortina»; e a linha acastanhada não é também o «bordo do pavimento». Aparentemente Panofsky o velho tinha-se esquecido do que escrevera Panofsky o novo. [...] Para Panofsky, em 1932 [...] «reportar qualquer coisa que representa a qualquer coisa que é representada, um dado formal, plurívoco de um ponto de vista espacial, a um conteúdo conceptual que é, ele, sem equívoco possível, tridimensional» [...] é impossível na prática.» (ARASSE, op. cit., pp. 139-140).
Tratar-se-ia, portanto, para Daniel Arasse, do que, também para Louis Marin (cf. deste último, por exemplo a antologia de textos reunidos em De la représentation) caberia ao nível do «pré-iconográfico» (no sistema iconológico de Panofsky), como sendo da ordem do que designa sob a fórmula de um «informe em instância de figurabilidade», enquanto inscrição, plástica e visual, daquilo em que Marin vê a dimensão do «infra-/pré-iconográfico».
Dizer que «não» se trata do bordo de uma cortina, nem de um «bordo de pavimento» é aqui o mesmo que chamar a atenção para a ambivalência de sentido dessas duas linhas limítrofes graças às quais o espaço do quadro, tal como ele ali se desdobra, se cinde em dois. O que interpretamos como divisória arquitectónica entra ali em jogo com aquilo que, ao mesmo tempo, em outros quadros de Ticiano, resulta como procedimento dissociativo, como incisão visual e signo plástico de uma dissimetria fundamental, entre dois espaços hierarquicamente distintos.
E a sugestão de Arasse há-de ser, como veremos, um pouco mais adiante, a de que a figura da Vénus se constitui, no quadro do plano que mais se aproxima do observador, a partir da projecção exterior e imaginária do que uma das criadas, aquela que ali aparece ajoelhada, nessa espécie de écrã que se vê do lado direito, vê no interior do baú. A Vénus que ali vemos sai inteirinha do cofre, onde permanecia acautelada dos olhares do mundo, para vir a ocupar aquele espaço de intimidade que mais se lhe adequa, pela sua pretendida sugestão.
Para Arasse - como de resto para toda a gente, hoje em dia: veja-se por exemplo, a análise extremamente arguta que W. J. T. Mitchel faz do modelo iconológico de Panofsky, em «The Pictorial Turn», Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representatation, Chicago UP, 1995, em correlação com o pensamento de Althusser, acerca do conceito de «ideologia» - no modelo de Panofsky há um elemento que representa o seu calcanhar de Aquiles, e que diz respeito à forma injustificada como, ao nível ainda do que nele se designa como «pré-iconográfico» se desliza, de modo redutor e sem solução de continuidade, para o «iconográfico». O que nesse passo se suprime é precisamente um certo inconsciente da «significação expressiva», uma certa suspensão da intecionalidade da «significação factual» presente na inscrição e no seu jogo correlacional, naquilo que eles supõem de abertura móvel e grafemática a sentidos que não seriam, necessariamente, compatíveis entre si. É precisamente o que acontece no quadro de Ticiano.
Deslizamos aí, se nos colocarmos exclusivamente na senda da interpretação de Panofsky, sem nenhuma espécie de articulação teórica consistente, (movidos pelo nosso horror ao vazio e pela nossa precipitação no preenchimento dessa abertura, ou na redução dessa ambivalência da forma) para um «significado» que a realidade histórica e arquitectónica da época se encarregaria de contrariar. Ver ali uma parede ou um bastidor, ou aqui o rebordo de um chão é fazer interferir, na nossa interpretação, um dado com que Ticiano não poderia contar, na arquitectura da época. E a relação estabelecida entre a Vénus de Urbino e outros quadros do mesmo autor seria já suficiente para interrogar a pertinência dessa leitura.
Conheceis compartimentos venezianos [desta época] cortados a meio por uma parede ou por uma divisória móvel? Eu não... (ibidem, p. 143)
Por outro lado, seria justamente nessa medida que o quadro de Ticiano seria, para Daniel Arasse, «incoerente». Incoerente até num sentido, ele próprio, de certo modo, perverso, porque a palavra abre para dois sentidos inesperadamente reversos: a) «incoerente», por um lado, bem entendido, porque atravessado por essa espécie de cisão, ou de cesura interna entre dois espaços não-contínuos entre si, fazendo aparecer, na Vénus de Urbino, um segundo quadro embutido no primeiro. Mas «incoerente» b) também no sentido em que o prefixo «in-» da palavra nos pode igualmente indicar, não apenas que se trata de uma «negação», mas também de uma «interioridade», enquanto atributo dessa sua eventual coerência. Posto que a sua incoerência só poderia verificar-se ao nível da relação referencial, seria então precisar indagar acerca dela, num outro plano: precisamente o da consistência interna do «funcionamento» quadro, pensado como estrutura clivada.
Se o quadro de Ticiano é, num outro sentido, «in-coerente», uma sua eventual «coerência» não poderia ser aqui senão «interna»; ela não poderia senão situar-se ao nível da correlação simbólica (e plástica) entre os espaços descontínuos cuja cesura ali se inscreve. Aquele segundo quadro que nele aparece como que embutido no primeiro, há-de funcionar, por isso, como operador de legibilidade, como suplemento de leitura do retrato da cortesã da qual Francesco Maria della Rovere, pai de Guidobaldo della Rovere, possuía já um retrato. Guidobaldo insistirá, no entanto que, diferentemente do que acontece com o retrato que o pai possui, a quer nua.
Ticiano, La Bella, (anterior retrato da mesma mulher, em posse, à data em que Guidobaldo della Rovere encomenda a sua dama ignuda, de Francesco Maria, seu pai)
III - Além desses dois pontos nodais que orientam a sua leitura, a que acabámos de nos referir haveria, para Daniel Arasse, um terceiro: c) Daniel Arasse sugere-nos que se trata de um quadro feito a pensar num contexto matrimonial. À data em que o quadro se dá por concluído (1538), a mulher de Guidobaldo della Rovere, Giulia Varano (que com ele casa aos dez anos (!!)), tem já quatorze anos. A questão começa, portanto, por ser a seguinte: o que teria levado o Duque de Urbino, já casado, a encomendá-lo? «Guidobaldo della Rovere tinha certamente outros meios de satisfazer as suas vontades» (ibidem, p. 128).
A ideia de que o quadro se destinasse à satisfação dos seus desejos eróticos é, para Arasse, simplesmente absurda. Com a sua riqueza e o seu poder, o Duque jamais precisaria, como a certa altura chegou a ser corrente dizer-se, de «chamar a mão em socorro do espírito»... O quadro de Ticiano não pode, como Arasse sugere, ser lido como a história de arte habitualmente o lia: como a ilustração precursora, em pintura, do que viriam a ser, séculos mais tarde, (graças ao desenvolvimento da técnica fotográfica e das técnicas de impressão, no período da guerra do Vietname), as «pin-up». E aqui, a leitura de Arasse socorre-se de estudos feitos sobre a época, para salientar:
«[...] Rona Goffen mostrou perfeitamente como, no século XVI, a masturbação feminina era, num contexto preciso, aceite e mesmo recomendada. Dizendo a ciência que as mulheres não podiam ser fertilizadas a não ser no momento da sua fruição, os médicos sugeriam às mulheres casadas que se preparassem manualmente para a união sexual para gerarem um filho. [...] Os padres também recomendavam a masturbação porque, como não podeis deixar de saber, para os homens da Igreja, a única sexualidade autorizada era no casamento e ela devia visar exclusivamente a reprodução. Portanto, no casamento, a mulher podia, quase devia, «preparar-se» para a união sexual para se assegurar da sua intervenção e para não se arriscar a cometer, ou a fazer cometer sobretudo a seu marido, o pecado de uma copulação sem progenitura, apenas por prazer. Portanto, no século XVI, esse gesto [o da Vénus de Urbino] não podia ser concebido nem percebido como o de uma pin-up a preparar-se para uma união ilícita. Rona Goffen indica mesmo que a pose dessa mulher, apoiada sobre o seu lado direito, correspondia a recomendações do mesmo género. Dito de outro modo, se não é um tableau de mariage, é um quadro imaginado num contexto de casamento.» (ARASSE, op. cit., pp. 132-133).
Ora, é aqui que começa a tornar-se possível uma primeira conexão produtiva do primeiro com o segundo quadro, o quadro nele embutido, do lado superior direito, o quadro no quadro maior que o inscreve. Que se vê ali? A figura do que seriam duas criadas, uma delas ajoelhada, a espreitar para dentro de um dos baús. Daniel Arasse lembra que, segundo uma certa tradição florentina, era frequente, nessa altura - trata-se aqui do século XVI, mas segundo uma prática que vem já de trás, do século XV - que as noivas trouxessem, como parte do seu dote, baús ou cofres como esse, onde guardariam o seu enxoval, destinado à noite de núpcias.
E a particularidade desses «cassone», - era o nome que se lhes dava, - consistia em que, já no século anterior, pelo menos em Florença, sobre o fundo dos seus tampos traziam precisamente imagens de nus femininos. Em Veneza, um tipo semelhante de baús ou de cofres designava-se «cofres sarcófagos» [«coffres en sarcophage»]. A ideia de Arasse é a de que o quadro que aparece em primeiro plano - o da Vénus propriamente dita - é explicado pelo quadro nele embutido. A figura da Vénus é o que a criada vê, no interior do cofre. O quadro de Ticiano cruzaria, pois, duas referências:
«Ticiano vai procurar, esta mulher nua, ali onde ela se encontra. Primeiro, a pose geral da figura, ele toma-a do quadro de Giorgione que ele acabou perto de trinta anos antes. Em seguida, uma vez que ele faz uma Vénus citadina deitando-a sobre a sua cama que dá o ar de estar num palácio, ele vai procurá-la ao interior dos cofres de casamento e põe-a, à sua mulher nua, em primeiro plano. [...] É no quadro que isso se passa. Esses cofres, horizontais, com as suas curvas convexas, ecoam as curvas do corpo feminino deitado na cama. E estão-lhe associados também porque eles contêm as vestes da figura nua em primeiro plano. Diga-se de passagem: não se deveria dizer que a Vénus de Urbino está «nua» - ela está «despida»...» (ARASSE, op. cit., pp. 156-57).
Ora, nesse sistema de ecos ou réplicas formais, de isotopias figurativas que constroem nexos metafóricos ou de correspondência semântica entre os dois quadros, entra também uma outra correlação: aquela que se estabelece entre a posição do espectador que, interpelado pelo olhar da Vénus, é posicionado, no quadro de Ticiano, necessariamente de joelhos, à sua frente, assim entrando em correlação com a posição da criada que, ao fundo, no outro quadro, se debruça sobre o baú, e faz dela uma figura delegada do espectador-contemplador.
IV - Ter-se-ia assim uma dupla relação: a) entre o corpo da Vénus e o baú (ou cofre), cujas formas convexas o reinscrevem no outro quadro; b) entre a nossa posição, tal como ela é inscrita pelo olhar da figura da Vénus - deveríamos estar de joelhos, para poder ter o nosso olhar à altura do seu - e a nossa posição, tal como ela surge reinscrita, no segundo quadro, na figura da criada.
O que digo simplesmente é que a construção do quadro nos dá teoricamente - sublinho: teoricamente - uma posição em relação à Vénus equivalente à da criada em relação ao cofre: muito perto da figura, e de joelhos diante dela. Sei bem que de facto nós estamos de pé e a alguma distância. Essa posição, é um efeito produzido pelo dispositivo do quadro.
A posição teórica do lugar que o quadro nos reserva é, portanto, um dado compositivo e formal que é interno à sua organização espacial e figural e independente do nosso comportamento. Situado na linha do horizonte e interpelado pelo olhar da Vénus, o nosso olhar há-de impor-se-nos ali a uma certa altura, em relação à superfície do quadro (precisamente a altura do olhar da Vénus, situado exactamente à mesma altura que o olhar da criada ajoelhada ao fundo).
E esta rede de correspondências mais se acentua se imaginarmos, como propõe Daniel Arasse, que o quadro de Ticiano, encomendado por Guidobaldo della Rovere, se destinava, não ao Duque de Urbino propriamente dito (que era suficientemente rico para não precisar, para satisfazer os seus desejos, de se socorrer de um quadro) mas antes a Giulia Varano, sua mulher, que à data teria quatorze anos, segundo um desígnio de lembrança e de recomendação acerca do que se deveria fazer para uma boa preparação para a união sexual sem o cometimento do pecado do prazer dissociado da procriação.
[Parêntesis: da interrelação entre a) - relação metafórica entre o corpo feminino e o cofre, (a lembrar-nos aqui o «Nossa Senhora era uma mala», de Alberto Caeiro - e b) - relação metafórico-metonímica de mediação do espectador-contemplador do quadro, pela figura da criada - estabelecer-se-ia um elo de passagem, ou de comunicação. Olhando a Vénus, olhamos simultaneamente, para o corpo, não apenas que a contempla, no lugar da criada, mas também no qual uma relação metonímico-metafórica se estabelece, entre os seus olhos e o seu sexo, como lugares da sua abertura].
V - Ora, dessa rede de correspondências seria ainda preciso notar que ela não resume a àquelas duas correlações notadas acima. Uma terceira correspondência c) nos mostraria: 1. que o ponto de convergência das linhas do quadriculado do tapete, que indica o ponto de fuga no segundo quadro, situado do lado direito e acima do primeiro, se situa exactamente na linha vertical que desce até ao sexo da Vénus; 2. que assim se estabeleceria, não apenas uma relação de correspondência entre dois pontos ordenadores da nossa atenção, mas também uma correlação metafórica entre o corpo, o baú e o quadro (o quadro como caixa cenográfica aberta; o corpo como abertura e, simultaneamente, ocultação; o baú como lugar do mistério e, ao mesmo tempo, da imagem: da figura e da representação), entre a abertura do espaço da perspectiva e a abertura do corpo. Diz Arasse:
«O importante, o que faz da Vénus de Urbino um quadro excepcional, é que ele põe em cena o que constituiu a própria erótica da pintura clássica. [...] passar do tocar ao ver, substituir o ver ao tocar, fazer do ver um quase-tocar mas, para ver, não tocar. Ver, apenas ver. [...] Na Vénus de Urbino, a cama de Vénus representa essa superfície de pintura de onde surge, muito próxima, a mulher nua e de onde ela nos olha. E aí penso em Benjamin e na sua definição de aura, «aparição única de um longínquo»... [...] A mulher olha-nos da superfície do quadro e encara-nos: ou que sejais, ou que estejais sob o seu olhar.» (ARASSE, op. cit., pp. 162-166).
Ou, por outras palavras, o corpo da Vénus seria aqui, tal como o corpo da pintura (assente na ou suportado pela tela) - o corpo de uma pintura que acabara de incorporar a perspectiva e, com ela, o desdobramento de um espaço em profundidade - todo ele centrado naquele elemento ordenador que, longe de ser um ponto simplesmente geométrico - o ponto de fuga - seria ele próprio uma espécie de enigma (bio-lógico) da representação, de impensado corpóreo: o ponto-origem da vida no corpo, o ponto que diria respeito à «origem do mundo» (tal como Courbet o designará), se imaginarmos que esse mundo avança, no espaço e no tempo, em direcção ao nosso olhar, há medida que por ele caminhamos. Ver o corpo amado (o corpo do nosso desejo), supõe, paradoxalmente, a necessidade de o não alcançarmos, de dele nos afastarmos de cada vez que dele nos aproximamos, de nele não tocar: e neste sentido, «ver» seria já o «tocar» possível do voyeur, o tocar possível sem o perder de vista.
Assim, o gesto da Vénus seria, ele mesmo, também o gesto que designaria ou indicaria, pela sua mão esquerda, uma espécie de vórtice e móbil central, de lugar de voragem e mistério, de fluxo de energia a que seria preciso remeter a própria ciência, a própria comprensão óptica e geométrica da representação, enquanto elementos concorrentes nos processos de imitação de um espaço em profundidade.
«A «Vénus» ocupa um lugar preciso, aquele da cama, situado entre dois espaços claramente definidos e conjuntos: o espaço ficcional da sala das criadas e o espaço real da sala de onde olhamos o quadro. Mas o lugar da cama escapa a esses dois espaços. Ele ocupa um «entre dois espaços»... [...] Digamos o lugar da cama, mas eu poderia também dizer a cama como lugar (do corpo nú) encontra-se entre dois espaços... [...] e esse lugar, essa cama, nada mais são que a superfície da tela [...]. Em Ticiano, a perspectiva colocava o nosso olhar na vertical exacta da mão que acaricia o sexo, e essa posição era sublinhada pela linha vertical indicando o bordo da superfície escura que se recorta sobre a profundidade da sala.» (ibidem pp. 165- 167)
VI - A sugestão é, pois, aqui, por um lado, a de que o espaço aberto pela perspectiva participa, simultaneamente, de uma erótica e de um processo de fetichização. Por outro lado, a de que, nela, a pintura coloca o nosso olhar numa relação projectiva e imaginária, produtiva e «criadora», fecunda e genesíaca com «a carne do mundo». A cama ou a tela são aqui, para Daniel Arasse, o lugar-suporte do corpo-pintura que, no seu espaço em profundidade, nos interpela e incita, a partir dos seus buracos negros e dos seus vórtices de energia. E a pintura é, pois, uma produção do olhar como acontecimento. Não apenas uma produção do olhar, mas uma produção do lugar olhado do corpo, num mundo vital em movimento, que não poderia deixar de ser antropomorfo, tal como ele é visto, ou penetrado pela visão, isto é, sentido como abertura de um espaço em profundidade no qual avançamos, «penetramos» (pelo olhar), e no qual estamos já lançados ou situados.
(Sabe-se como Marcel Duchamp inverterá o sentido deste pressuposto da representação. A dissociação entre o observador e o representado, o espaço intervalar de uma sua penetração pelo olhar, funciona ironicamente, em Duchamp, também no sentido inverso. Os nossos olhos não são apenas o órgão de uma «penetração» do mundo-corpo exterior. São também o órgão que nos expõe, a nós mesmos, à penetração do mundo-corpo exterior (cf. a leitura de Jean-François Lyotard, a propósito de Étants donnés, de Marcel Duchamp). Observará Rosalind Krauss, a propósito de Étant Donnés:
«O espectáculo por detrás da porta é, entretanto, moldado de forma a articular esta carnalização do observador. Replicando de forma exacta o modelo da perspectiva renascentista, a mise-en-scène apresenta o seu nú por detrás da rompida abertura de uma parede de tijolos numa paródia da noção de Alberti de que o plano através do qual nós olhamos, numa construção perspéctica, é como uma janela.» (KRAUSS, Rosalind; FOSTER, Hal; BOIS, Yves-Alan; BUCHLOH, Benjamin, Art since 1900: modernism, antimodernism, postmodernism II: - 1945 to the present, New York, Thames & Hudson, 2007, p. 498).
De facto, no próprio gesto de espreitar pelos ralos da porta para o interior sobre o qual ela abre, nessa sua abertura, e onde se vê o que a imagem seguinte mostra, o espectador é apanhado a olhar. Ele é apanhado pela imagem que polariza o espectáculo que ele contempla e que o fascina. Os ralos da porta são portanto posicionadores de uma certa relação de simetria e de comutação, entre o lugar da abertura do olhar e o da abertura do corpo olhado. É precisamente isso que Krauss nos diz:
«Além disso, orquestrando as geometrias da perspectiva através das quais o cone da visão (convergindo num ponto situado no olho do observador - o ponto de vista) é o espelho exacto da pirâmide de projecção (convergindo pontualmente no «infinito» - o ponto de fuga) os ralos [peepholes] de Duchamp estabelecem o ponto de vista como reflexo do buraco que lhe é directamente oposto, nomeadamente, o ponto entre as pernas do nú [...]. Escrevendo acerca dos sistemas transformacionais de Duchamp, o filósofo francês Jean-François Lyotard captou este colapso bipolar dos pontos de vista e de fuga nos orifícios [assim especularmente geminados] do corpo [o sexo feminino e o olho do observador] no trocadilho «con celui qui voit» [...].» (ibidem).
A pintura ou o quadro como janela - a palavra «janela» é de criação portuguesa, a partir do latim «Janus», designação dada ao deus bifronte - é também o lugar em que o voyeur é possuído pela imagem que o fascina, e que ele julga controlar à distância da sua própria invisibilidade. Veja-se a este propósito, aqui no blogue, os posts referentes à leitura que Rosalind Krauss produz, a propósito de Cindy Sherman, e em discussão das teses de Laura Mulvey: Fragmentos de Leitura 8, 9 e 10 (sobretudo os dois últimos)).
Poder-se-ia agora perguntar que tem tudo isto a ver com Manet? Qual seria, então, a relação entre o quadro de Ticiano e a pintura de Manet? Que terá visto Manet, no quadro de Ticiano que inspirou a sua Olympie? É o que reservaremos para um outro post. Partindo das sugestões de Daniel Arasse (que leu Michel Fried, acerca de Manet), tentaremos não perder de vista o que nos diz, por outro lado, Michel Foucault, na conferência sobre «La peinture de Manet», que profere em 1971, durante a sua digressão pela Tunísia.
Poder-se-ia agora perguntar que tem tudo isto a ver com Manet? Qual seria, então, a relação entre o quadro de Ticiano e a pintura de Manet? Que terá visto Manet, no quadro de Ticiano que inspirou a sua Olympie? É o que reservaremos para um outro post. Partindo das sugestões de Daniel Arasse (que leu Michel Fried, acerca de Manet), tentaremos não perder de vista o que nos diz, por outro lado, Michel Foucault, na conferência sobre «La peinture de Manet», que profere em 1971, durante a sua digressão pela Tunísia.
sexta-feira, 8 de maio de 2009
Recapitulações - o quadro VII: Os ascendentes da instalação
The Crossing, 1996 - Bill Viola.
(Dada a oportunidade do tema, devida ao facto de, a propósito do auto-retrato, passarmos agora em revista o texto de Michel Foucault, aqui fica a reactualização de um post antigo, anteriormente dedicado dedicado a problemas que, versando a noção de «instalação», haveria de incluir um trecho sobre o quadro de Velázquez, Las meninas. Importante é, por exemplo, o que Florence Mèredieu e Daniel Arasse dele nos dizem - ver mais abaixo - a primeira sobre a abertura e o movimento do quadro em direcção do espectador, a partir da instância do espelho, o segundo sobre o carácter pós-kantiano das implicações do que nele estará em jogo. E Bernardo Pinto de Almeida chama-nos a atenção para o facto de os pressupostos da perspetiva ali se alterarem, abrindo ela, já não para a noção de uma janela aberta sobre a natureza, mas para um espaço «interior», pensado na ordem do «como se». Aqui fica, portanto).
1. Num livro publicado sob o título Histoire matérielle et immatérielle de l'art moderne et contemporain (Paris, Larousse, 2004) Florence Mèredieu abre uma secção intitulada «Habitar a imagem: pré-história da noção de instalação», onde nos diz:
«A frontalidade pintada (a «parede pintada») foi durante muito tempo associada à noção de distância. A imersão mergulha-nos hoje no próprio volume da instalação. O espectador é por ela envolvido. [...] Se quiséssemos retraçar, em arte, as fontes e as raízes profundas do que hoje se recobre pela designação de instalação seria preciso remontar a muito longe. Até, por exemplo, aos presépios e aos «tableaux vivants» das nossas igrejas que, sem cessar de «fazer quadro» e continuando a oferecer-se ao espectador no quadro de uma visão frontal, tendem já a sair do quadro e a penetrar no espaço envolvente. Tudo o que, em seguida, releva de uma teatralização das artes plásticas terá contribuído, no decurso do século XX, para a colocação de elementos que se reenconram hoje sob o nome de instalação. Esta apresenta-se, em todos os casos como uma câmara sensorial, como um espaço (mais ou menos fechado), no seio do qual o espectador penetra para fazer uma experiência estética original.» (MÈREDIEU, Florence, Histoire matérielle et immatérielle de l'art moderne et contemporain, Paris, Larousse, 2004, p. 598).
Pelo meio, no entanto, se inscrevem os casos de uma pintura que, como Las Meninas, de Diego Velázquez, absorve o espectador pela projecção imaginária, para a frente da tela, do espaço que ela representa, móvel na linha corrediça dos olhares trocados - os de algumas personagens, a começar pela do pintor que, ao pintar, esteve na posição do espectador, ao espelho do quadro. Comentário de Mèredieu:
«Confrontada com a bidimensionalidade da pintura e a tridimensionalidade da escultura, a situação da instalação é, vêmo-lo, muito particular. Ela aproxima-se finalmente da arquitectura (e dos seus habitáculos) ou do teatro (encarado como um cubo ou uma caixa aberta). Aqui se situa o que seria preciso chamar o corpo da instalação, aparecendo esta originariamente como uma espécie de quadro [tableau] que se prolongaria para lá de si mesmo, ou como uma escultura, a tornar-se meio envolvente, juntando-se à dimensão do habitáculo. À maneira do Jardin d'hiver de Dubuffet (1968-1970). Mas poder-se-ia fazer remontar muito mais longe no tempo, até às Meninas pintadas por Velazquez, [...]. Esse quadro prolonga-se para a frente da tela, circunscrevendo (num contexto certamente muito diferente do nosso) alguma coisa que é já da ordem da «instalação». Esta última, com efeito, rompe com o processo exclusivo da «representação» e tende a incluir fisicamente o espectador no seio da obra». (ibidem, p. 601).
Ainda a propósito dessa teatralidade, aqui invocada por Florence Mèredieu como antecedente pictórico da instalação, Bernardo Pinto de Almeida lembra também Las Meninas de Velázquez, pelas mesmas razões, no capítulo «O Teatro do Mundo», no seu O Plano de Imagem:
«Depois da construção renascentista da perspectiva artificialis que Panofsky estudou nas suas diversas implicações e nomeadamente no plano das formas simbólicas, a noção de espaço do quadro só voltou a sofrer substanciais modificações com o surgimento da obra de Velázquez Las Meninas, mesmo se ocorreram na pintura flamenga do século XVII alguns sensíveis movimentos, sobretudo nas obras que representam interiores das casas burguesas. Mas é de facto na obra de Velázquez, e muito em particular, nesse quadro, que a questão do espaço do quadro é pela primeira vez posta em imagem com consequências que foram já analisadas por inúmeros autores, mas que, naquilo que nos interessa, poderemos definir do seguinte modo: a re-definição do espaço do quadro já não como uma janela aberta sobre a natureza, em que a perspectiva funcionaria como uma metáfora plástica da ideologia renascentista da profundidade de campo a perder de vista, mas antes como uma referência directa a um espaço restricto da representação em que a cena se organiza como uma representação teatral. [...] Ao mundo espontâneo da crença em valores universais sucedia um outro, de contornos trágicos, em que os homens procediam como se. [...] Época trágica em que o homem começava a duvidar de si e, duvidando de si, dvidava também das razões e [do] sentido da sua presença no mundo, das promessas salvíficas da religião e até mesmo da História. [...] Las Meninas é o mais nítido manifesto desta zeitgeist. (ALMEIDA, Bernardo Pinto, O Plano de Imagem: espaço da representação e o lugar do espectador, Lisboa, Assírio e & Alvim, 1996, pp. 59-61)
2. Ouçamos agora Bill Viola, que nos conta uma história da imagem e das artes visuais, no Ocidente. A sua primeira referência vai para uma espécie de reviravolta, de inversão do (neo)platonismo (como propunha Gilles Deleuze, em La Logique du sens) a que hoje se assiste, uma vez postos os nossos tempos em paralelo com esses. Essa história - pacientemente contada - começa ali, na arte sacra (antiga e) medieval. E isso serve-lhe para assinalar a inversão dos valores e posições em que o mundo interior e o exterior trocam de papéis na contemporaneidade, em relação aos que então tinham tido:
«A arte sacra na tradição ocidental evoca as imagens dos painéis a folha dourada da Idade Média, um tempo em que a arte da Ásia e da Europa partilhavam um terreno comum. Uma das coisas mais notórias acerca da arte religiosa medieval é que a paisagem [landscape] (para nós a materia prima; o elemento físico, duro, «real» do mundo) aparece como um elemento insignificante, num recuo subordinado à visão religiosa ou epifania. O espaço é um radioso dourado e é substancialmente menos real do que a realidade espiritual (cena ou acontecimentos) descrita. Do nosso ponto de vista, o mundo interior e exterior reverteram os seus papéis. Superior à noção de imagem como objecto sagrado é o ícone [icon], uma forma encontrada quer na tradição oriental quer ocidental. O termo ícone (grego antigo para «imagem») como é habitualmente entendido refere-se mais a um processo ou a uma condição do que a quaisquer características de um objecto. Um ícone pode ser uma imagem que tenha adquirido poder através do seu uso como objecto de culto. De facto, o estatuto do ícone era a finalidade e mesmo a medida do sucesso da grande maioria das obras de arte visuais criadas nas grandes tradições do Cristianismo, Budismo e Hinduísmo antigos. Não se exigia a presença de críticos de arte uma vez que os devotos sabiam imediatamente a um primeiro olhar se a obra em questão era qualificada. (VIOLA, Bill, «Video Black - The Morality of the Image», cit. in SELZ, Peter; STILES, Kristine (eds.), Theories and Documents of Contemporary Art: A Source Book of Artists Writings, 1996, pp. 446-447).
3. O segundo momento na história contada por Bill Viola é o de Brunelleschi, que abre para uma questão: «a retina de Quem?». Ouçamo-lo, de novo, um pouco mais adiante:
«[...] O que Brunelleschi realizou foi uma personificação da imagem, a criação de um «ponto de vista» e a sua identificação com um lugar no espaço real. Fazendo-o, ele elevou a posição do indivíduo espectador a [tornar-se] uma parte da imagem, codificando a sua presença como a fonte inversa, in absentia, da convergência das linhas perspécticas convergentes. A imagem tornou-se o espelho opaco para o contemplador e, o contemplador, por seu turno, tornou-se a corporização do pintor, completando a imagem, como os historiadores gostam de dizer, com os dois pontos de vista a misturarem-se num único ponto físico. [...] Consequentemente, o plano da imagem e o da retina tornaram-se o mesmo plano. É claro, a retina de Quem? era a pergunta-chave, à medida em que a manipulação do contemplador, uma primeira forma de behaviourismo, se somou à lista das técnicas artísticas» (ibidem, pp. 447-448).
4. Ora, a menção de Florence Mèredieu, de Las Meninas de Velázquez, encaixa-se aqui na perfeição. Observava Michel Foucault, em As Palavras e as Coisas:
«O lugar onde o rei impera com sua esposa é também o do artista e o do espectador: no fundo do espelho poderiam aparecer - deveriam aparecer - o rosto anónimo do passante e o de Velázquez. [...] Talvez, nesse quadro de Velázquez, haja a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Mas nessa dispersão que ela guarda e exibe ao mesmo tempo, um vazio essencial é imperiosamente indicado em todas as partes: a desaparição necessária do que a funda - daquele a quem ela se assemelha e daquele aos olhos de quem ela não passa de semelhança. Este próprio sujeito - que é o Mesmo - foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode dar-se como pura representação». (FOUCAULT, Michel, «As Damas de Companhia», in BARROS, Manoel (org.), Michel Foucault - Ditos e Escritos III: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema, 2ª ed., trad. de Inês Autran, Rio de janeiro, Forense Universitária, 2006, pp. 208-209).
5. A retina de quem, portanto? Mesmo ressalvadas as observações de Daniel Arasse, que nos mostra que a leitura de Foucault se engana pelo menos num ponto - o de que o olhar do rei se cruze com o nosso, embora ambos se situem sobre a mesma linha do horizonte: «ninguém partilha o olhar do rei, o seu horizonte. Ninguém, a não ser nós, espectadores. Mas colocados como nós estamos, face ao cotovelo do Velázquez bis [o irmão de Velázquez, ao fundo, recortado a contraluz, na porta dos fundos] não cruzamos esse olhar»; «como tu dizias, Foucault democratiza Las Meninas. Mas ele estava a isso autorizado, no fim de contas, porque elas se tinham democratizado elas próprias» - uma pergunta permanece: «Ao mesmo tempo, pelo facto de que tu não rejeitas a interpretação de Foucault [«tu» significa Daniel Arasse, ele mesmo] e os outros, uma pergunta te atormenta e é preciso que tu lhe respondas: Como é que acontece que um quadro cortesão que queria exaltar discretamente o rei como «sujeito absoluto» tenha podido, afinal, ser percebido como suscitando uma «elisão do sujeito» [é o termo de Michel Foucault]?» (ibidem, 199)
5. A retina de quem, portanto? Mesmo ressalvadas as observações de Daniel Arasse, que nos mostra que a leitura de Foucault se engana pelo menos num ponto - o de que o olhar do rei se cruze com o nosso, embora ambos se situem sobre a mesma linha do horizonte: «ninguém partilha o olhar do rei, o seu horizonte. Ninguém, a não ser nós, espectadores. Mas colocados como nós estamos, face ao cotovelo do Velázquez bis [o irmão de Velázquez, ao fundo, recortado a contraluz, na porta dos fundos] não cruzamos esse olhar»; «como tu dizias, Foucault democratiza Las Meninas. Mas ele estava a isso autorizado, no fim de contas, porque elas se tinham democratizado elas próprias» - uma pergunta permanece: «Ao mesmo tempo, pelo facto de que tu não rejeitas a interpretação de Foucault [«tu» significa Daniel Arasse, ele mesmo] e os outros, uma pergunta te atormenta e é preciso que tu lhe respondas: Como é que acontece que um quadro cortesão que queria exaltar discretamente o rei como «sujeito absoluto» tenha podido, afinal, ser percebido como suscitando uma «elisão do sujeito» [é o termo de Michel Foucault]?» (ibidem, 199)
A resposta de Daniel Arasse é ainda encontrada no texto de Foucault:
«Releste Foucault, uma vez mais, e constataste que ele deixa entender quando ele escrevia que «de todos os elementos que são destinados a oferecer representações, ele (o espelho) é o único que funciona com toda a honestidade e que dá a ver o que ele deve mostrar»; e depois, uma página mais adiante, ele escreve que «ele (o espelho) não reflecte nada do que se encontra no mesmo espaço que ele [...]. Não é o visível que ele mira». Assim, o que ele mostra, esse espelho, o que ele «deve mostrar», não é o visível, não é o que se pode ver nesse lugar nesse momento, hic et nunc. O espelho demonstra «honestamente» [é o termo de Foucault] que a presença do rei e da rainha é impossível de certificar. Tanto, portanto, quanto o sujeito (que Foucault sobretudo retém) é o objecto da representação que é, como ele diz «elidido». [...] Tu podias assim dizer que o rei é o «númeno» do quadro: qualquer coisa que não é objecto da nossa intuição sensível - isso é o «fenómeno» - mas que é o objecto de uma intuição não sensível, alguma coisa que se pode pensar, mas não conhecer. Sem ter lido Kant, Velázquez podia bem mostrar, no seu quadro, o que constituía há já muito tempo, quase um lugar comum do mistério do rei e do prestígio do real» (ARASSE,Daniel, On y voit rien, p. 204)
6. Desse poder, cuja realidade é, na nossa intuição, apenas a realidade virtual de um reflexo do que se pode conceber mas não se pode ver o que Las Meninas sublinha é, portanto, nessa «dissimetria» de olhares, a relação entre eles instaurada pelo facto de se situarem na mesma linha de horizonte e serem, apenas enquanto tal, niveladamente comutáveis... O rei não vê o espectador que Ele Mesmo deveria realmente ser. Poderia? O que vemos não é, ali, no reflexo do espelho de fundo, o que poderíamos ver «em pessoa», mas apenas «em reflexo» de alguém (Quem? pergunta Bill Viola) não sensivelmente intuível. O rei é, portanto, apenas um produto do nosso imaginário, pensa o quadro de Velázquez, segundo o que nos diz Daniel Arasse. Ele é, para usar a expressão de Panofsky, uma «forma simbólica» do nosso próprio imaginário dada como tal, corporizado a partir da nossa impossibilidade de estar no lugar em que se encontra, efectivamente, fixado o olhar do rei.
7. Assim, nós estamos apenas no lugar real em que esse lugar imaginário teve lugar. Assim, o «lugar comum do mistério do rei e do prestígio real» casa-se, para Daniel Arasse, com a nossa impossibilidade de uma certificação da sua presença (a partir do e no nosso lugar) precisamente naquele lugar que ocupamos - «democraticamente» - frente ao quadro. O que somos é essa impossibilidade real do sujeito absoluto, omnividente, etc., tanto quanto a possível necessidade imaginária dele. Nisso, o quadro seria já uma antecipação do que hoje se constata, aos olhos da arte contemporânea: que não temos nem histórias, nem memórias para contar, na época da falência das grandes narrativas. Desaprendemos os grandes modelos, os grandes padrões e estruturas da história, e com eles o sujeito absoluto. Dito de outro modo: foi a própria história que os desaprendeu. Razão pela qual a leitura «democrática» de Foucault não estaria, afinal, errada, no que dizia respeito à «elisão do sujeito», à qual Daniel Arasse junta, no entanto, a «elisão do objecto».
A pergunta de Bill Viola ecoa aqui... Tudo isto se passa na linha de horizonte da nossa retina. Mas: «a retina de Quem?» - pergunta Bill Viola. Essa pergunta é o que lhe parece que a descoberta de Brunelleschi arrastara consigo. Até à contemporaneidade:
«Contudo, este observador perpétuo não tem [hoje] histórias para contar, nenhuma reserva de sabedoria, nenhum conhecimento dos grandes modelos [no knowledge of the grand patterns]. Fechado num grande e imutável Agora, ele não tem nenhum sentido de passado ou de futuro. Sem uma memória para lhe dar uma vida, os acontecimentos tremeluzem através da superfície da sua imagem, apenas com uma fracção de segundo a pairar como pós-imagens, desaparecendo sem deixar rasto. Hoje será calado [ou fechado, shut off], acabando abruptamente o mundo num corte arbitrário como todos os fins são, e um novo modelo de câmara será instalado. Numa outra sociedade, esta câmara, com a sua acumulada existência, seria promovida [graduated to] a objecto de poder a ser venerado e reciprocado. Pelo menos, os «tubes» das velhas câmaras como esta deviam ser instalados num santuário com a esperança de que um dia, alguma futura tecnologia pudesse atrair da sua superfície o subtil resíduo da experiência de uma vida. O acontecimento de hoje passará quase sem notícia». (ibidem, p. 446)
7. Na esteira das observações de Walter Benjamin, acerca da degradação da experiência na Modernidade, ler-se-iam hoje, depois do diagnóstico de Jean-François Lyotard, coisas como esta, de Jean-Luc Nancy, que parecem igualmente ressoar nas palavras de Bill Viola:
«Primeiro que tudo, a história está suspensa, ou mesmo acabada, enquanto sentido, como a rota direccional e teleológica que tem sido considerada desde o começo do pensamento moderno. A História não tem já uma finalidade ou um propósito, e portanto, a história não é já determinada pelo indivíduo (o indivíduo geral ou genérico) ou a pessoa autónoma que Marx frequentemente criticou no modo de pensamento especulativo pós-hegeliano. Isto também significa consequentemente que a história não pode já ser apresentada como - para usar os termos de Lyotard - uma «grande narrativa», a narrativa de algum grande e colectivo destino da espécie humana (da Humanidade, da Liberdade, etc.), uma narrativa que era grande porque era grandiosa e que era grandiosa porque a sua destinação última era considerada boa. O nosso tempo é o tempo, ou um tempo, em que a história pelo menos foi suspensa: [...] sem qualquer possibilidade do trabalho dialéctico do negativo». (NANCY, Jean-Luc, «Finite History», CARROLL, David (ed.), The States of Theory: History, Art, and Critical Discourse, Stanford UP, 1994, p. 150).
8. Ou esta, bastante anterior, de Theodor W. Adorno, datada de 6/09/1936, numa carta endereçada a Walter Benjamin, a propósito de «O Narrador»:
«Não quero esperar que nos encontremos, para ao menos vos fazer algumas observações sobre o trabalho que haveis consagrado ao narrador. Tenho antes de mais a assegurar-vos do meu mais completo acordo com a tese de filosofia da história que ele contém: a tese segundo a qual não será já possível contar [raconter]. É para mim uma ideia familiar e uma ideia que me era evidente bem antes das alusões da Teoria do Romance [de Geörg Lukacs, 1920], já há anos, antes mesmo que eu pudesse avançar razões teóricas para a sustentar.» (ADORNO, Theodor W., Sur Walter Benjamin, trad. de Christophe David, Paris, Folio, 1999, p. 177).
quarta-feira, 6 de maio de 2009
«Elementos para uma semiologia pictural» 5 - de Louis Marin
OS CÓDIGOS PICTURAIS
Em primeiro lugar o problema dos códigos picturais: se ler um quadro consiste, não apenas em percorrê-lo com o olhar, mas em decifrá-lo, se à extensão da leitura se articula em profundidade um espaço de leitura, a interpretação implica um ou mais códigos de interpretação, para dele reconhecer ou compreender o sentido. A perspectiva representativa dispõe de um primeiro código, o código perceptivo, tanto mais profundo quanto a sua colocação em funcionamento é tanto mais imediata e mais inconsciente, quanto parece não aparecer nunca como código. Klee fazia-o notar justamente, mesmo para uma pintura dita «não figurativa»:
À medida que a obra se enche, acontece facilmente que uma associação de ideias aí se inscreva – [não é o reconhecimento da série paradigmática?] – aprestando-se a pôr em jogo os demónios da interpretação figurativa. Porque, com um pouco de imaginação, todo o agenciamento um pouco estendido se presta a uma comparação com realidades conhecidas da natureza. Uma vez interpretada e nomeada, semelhante obra não responde já inteiramente ao querer do artista [pelo menos não ao mais intenso desse querer] e as suas propriedades associativas são a origem de mal-entendidos apaixonados entre o artista e o público.
Esse código analógico, representativo, fundado sobre a percepção não é inocente. Não apenas nos seus fundamentos – o quadro representa um homem, uma mulher, um pássaro – mas ainda na sua própria existência, o código implica uma certa dependência cultural marcada essencialmente pela familiaridade com a noção de representação que é um traço de cultura notório. Ao nível da legibilidade primária do quadro, é o código de decifração e esse unicamente que é utilizado, utilização garantida – parece – pela imediatidade analógica da representação. É nesse sentido que a leitura do quadro é a mais próxima de uma grafia na sua banalidade.
O signo gráfico, ou antes o significante é atravessado em direcção ao sentido, sem ser percebido por ele mesmo. Do mesmo modo, o quadro é atravessado como representação do mundo. Ele é percepcionado como o mundo é percepcionado. Ele não é lido, decifrado. O quadro é apreendido como analogon do mundo ou da coisa. Dito de outro modo, a leitura do quadro bloqueia-se e fixa-se no que não é ainda uma junção [assemblage] de figuras articuladas, mas uma simples sucessão de figuras. Pierre Bourdieu nos seus Élements por une sociologie de la perception artistique estudou bem esse ponto, a título de uma sociologia da arte.
A utilização do código perceptivo, quaisquer que sejam as suas implicações culturais, põe um importante problema à semiologia, aquele sobre o qual Frege, num texto célebre, chamava, no começo do século, a atenção: a distinção do sentido e da referência, distinção que a analogia icónica mascara tornando particularmente difícil a leitura do quadro fundada nesse código. É interessante notar que Frege ilustra a distinção do sentido e da referência por um exemplo tirado da substância visual, aquele bem conhcido da lua e do telescópio:
A referência de um nome próprio é o objecto ele próprio que nós designamos pelos seus meios; a ideia que nós temos nesse caso é inteiramente subjectiva; entre ambos está o sentido que é, na verdade, já não subjectivo como a ideia, mas ainda não é o próprio objecto... Alguém observa a lua através de um telescópio. Eu comparo a lua ela própria à referência; é o objecto de observação mediado pela imagem real projectada pelo objecto vidro no interior do telescópio e pela imagem retiniana do observador. Ao primeiro comparo-o como sentido, o último é como a ideia ou a experiência. A imagem óptica no telescópio é na verdade unilateral, e dependente do ponto de vista da observação: mas é ainda objectiva na medida em que pode ser usada por vários observadores.
Do mesmo modo, logo que percepciono, sobre um quadro, uma árvore ou um homem, o homem ou a árvore, como o objecto do mundo, é a referência ou o designado do quadro. A imagem sobre o quadro, a imagem «unilateral» - plana [à plat] – é o sentido e a experiência que eu tenho dessa imagem é ela mesma diferente do sentido: ela constitui a ideia subjectiva – no sentido de Frege – que nós temos de um homem ou uma árvore. O signo, diz ainda Frege, exprime o seu sentido e designa a sua referência. Há assim uma dupla função de expressão e de designação: é um designante cujo designado se encontra à distância como objecto do mundo e é uma expressão cujo expresso é o sentido.
Do mesmo modo que, na linguagem, pode exprimir-se sentido, sem designar referência, também uma das contribuições – que não é o mais negligenciável – da pintura dita «abstracta» é o de fazer aparecer a possibilidade de exprimir sentido sem referência e é essa possibilidade que a pintura fundada sobre obre o código analógico da representação dissimula. Assim poderíamos nós dizer, na terminologia de Frege, que a semiologia pictural é a ciência do sentido. Mas o que é esse expresso que a imagem pictural exprime? Qual é o conteúdo dssa noção muito ambígua de expressão à qual os trabalhos de Dufrenne, por exemplo, tentaram dar um estatuto metafísico?
Em primeiro lugar o problema dos códigos picturais: se ler um quadro consiste, não apenas em percorrê-lo com o olhar, mas em decifrá-lo, se à extensão da leitura se articula em profundidade um espaço de leitura, a interpretação implica um ou mais códigos de interpretação, para dele reconhecer ou compreender o sentido. A perspectiva representativa dispõe de um primeiro código, o código perceptivo, tanto mais profundo quanto a sua colocação em funcionamento é tanto mais imediata e mais inconsciente, quanto parece não aparecer nunca como código. Klee fazia-o notar justamente, mesmo para uma pintura dita «não figurativa»:
À medida que a obra se enche, acontece facilmente que uma associação de ideias aí se inscreva – [não é o reconhecimento da série paradigmática?] – aprestando-se a pôr em jogo os demónios da interpretação figurativa. Porque, com um pouco de imaginação, todo o agenciamento um pouco estendido se presta a uma comparação com realidades conhecidas da natureza. Uma vez interpretada e nomeada, semelhante obra não responde já inteiramente ao querer do artista [pelo menos não ao mais intenso desse querer] e as suas propriedades associativas são a origem de mal-entendidos apaixonados entre o artista e o público.
Esse código analógico, representativo, fundado sobre a percepção não é inocente. Não apenas nos seus fundamentos – o quadro representa um homem, uma mulher, um pássaro – mas ainda na sua própria existência, o código implica uma certa dependência cultural marcada essencialmente pela familiaridade com a noção de representação que é um traço de cultura notório. Ao nível da legibilidade primária do quadro, é o código de decifração e esse unicamente que é utilizado, utilização garantida – parece – pela imediatidade analógica da representação. É nesse sentido que a leitura do quadro é a mais próxima de uma grafia na sua banalidade.
O signo gráfico, ou antes o significante é atravessado em direcção ao sentido, sem ser percebido por ele mesmo. Do mesmo modo, o quadro é atravessado como representação do mundo. Ele é percepcionado como o mundo é percepcionado. Ele não é lido, decifrado. O quadro é apreendido como analogon do mundo ou da coisa. Dito de outro modo, a leitura do quadro bloqueia-se e fixa-se no que não é ainda uma junção [assemblage] de figuras articuladas, mas uma simples sucessão de figuras. Pierre Bourdieu nos seus Élements por une sociologie de la perception artistique estudou bem esse ponto, a título de uma sociologia da arte.
A utilização do código perceptivo, quaisquer que sejam as suas implicações culturais, põe um importante problema à semiologia, aquele sobre o qual Frege, num texto célebre, chamava, no começo do século, a atenção: a distinção do sentido e da referência, distinção que a analogia icónica mascara tornando particularmente difícil a leitura do quadro fundada nesse código. É interessante notar que Frege ilustra a distinção do sentido e da referência por um exemplo tirado da substância visual, aquele bem conhcido da lua e do telescópio:
A referência de um nome próprio é o objecto ele próprio que nós designamos pelos seus meios; a ideia que nós temos nesse caso é inteiramente subjectiva; entre ambos está o sentido que é, na verdade, já não subjectivo como a ideia, mas ainda não é o próprio objecto... Alguém observa a lua através de um telescópio. Eu comparo a lua ela própria à referência; é o objecto de observação mediado pela imagem real projectada pelo objecto vidro no interior do telescópio e pela imagem retiniana do observador. Ao primeiro comparo-o como sentido, o último é como a ideia ou a experiência. A imagem óptica no telescópio é na verdade unilateral, e dependente do ponto de vista da observação: mas é ainda objectiva na medida em que pode ser usada por vários observadores.
Do mesmo modo, logo que percepciono, sobre um quadro, uma árvore ou um homem, o homem ou a árvore, como o objecto do mundo, é a referência ou o designado do quadro. A imagem sobre o quadro, a imagem «unilateral» - plana [à plat] – é o sentido e a experiência que eu tenho dessa imagem é ela mesma diferente do sentido: ela constitui a ideia subjectiva – no sentido de Frege – que nós temos de um homem ou uma árvore. O signo, diz ainda Frege, exprime o seu sentido e designa a sua referência. Há assim uma dupla função de expressão e de designação: é um designante cujo designado se encontra à distância como objecto do mundo e é uma expressão cujo expresso é o sentido.
Do mesmo modo que, na linguagem, pode exprimir-se sentido, sem designar referência, também uma das contribuições – que não é o mais negligenciável – da pintura dita «abstracta» é o de fazer aparecer a possibilidade de exprimir sentido sem referência e é essa possibilidade que a pintura fundada sobre obre o código analógico da representação dissimula. Assim poderíamos nós dizer, na terminologia de Frege, que a semiologia pictural é a ciência do sentido. Mas o que é esse expresso que a imagem pictural exprime? Qual é o conteúdo dssa noção muito ambígua de expressão à qual os trabalhos de Dufrenne, por exemplo, tentaram dar um estatuto metafísico?
segunda-feira, 4 de maio de 2009
«Elementos para uma semiologia pictural» 4 - de Louis Marin
PARADIGMÁTICA PICTURAL
As possibilidades de articulação de primeiro nível abertas pela mediação ou pela redundância linguística da substância visível no sintagma do quadro conduzem a interrogarmo-nos sobre a constituição de uma paradigmática pictural. Esta questão é sempre aquela do sentido: será que um segmento relativamente autónomo do sintagma toma seu sentido em relação aos outros segmentos que teriam podido aparecer no mesmo ponto do sintagma? Ou dito de outro modo, pode-se praticar sobre o quadro, a prova da comutação? A oposição do sintagma e do paradigma foi feita – sabe-se-o – por Saussure
No discurso as palavras contraem entre elas, em virtude do seu encadeamento, relaçãoes fundadas no carácter linear da língua... essas combinações têm, por suporte, a extensão e podem ser chamadas de sintagmas... Colocado num sintagma um termo não adquire o seu valor senão porque ele se opõe ao que o precede ou o que o segue, ou a ambos. Por outro lado, fora do discurso, as palavras que oferecem alguma coisa de comum associam-se na memória e forma-se assim grupos no seio dos quais reinam relações muitos diversas... Essas coordenações não têm por suporte a extensão... elas fazem parte desse tesouro interior que constitui a língua em cada indivíduo. Nós as chamaremos relações associativas. A relação sintagmática é in praesentia... ao contrário a relação associativa une termos in absentia numa série mnemónica virtual.
E Saussure faz seguir esta definição da famosa comparação da coluna que tem, para o nosso propósito, esta assinalável vantagem de ser escolhida na subtância visível não linguística de uma arte, uma arquitectura. À relação real de contiguidade descoberta no sintagma, opõe-se ou articula-se uma relação virtual de substituição; a primeira é da ordem da fala, a segunda releva da língua como sistema. A leitura do quadro põe em funcionamento as categorias essenciais da sintagmática: percepção, realidade, presença, segmentação em sequências de leitura ou figuras ligadas por contiguidade no sintagma do quadro.
Mas a leitura do quadro é – vimo-lo – um sistema de percurso: cada figura que o percurso de leitura analítica faz aparecer chama, na memória, uma classe de figuras associadas «in absentia» - diríamos nós, em linguagem saussureana – em série virtual. Na extensão da leitura que define o nível de legibilidade primário do quadro, articula-se um espaço de leitura ou nível de legibilidade secundária no qual se abrem as séries substitutivas de figuras, espaço metafórico onde se descobre a terceira dimensão dos códigos picturais, e que, nessa mesma medida, se constitue como espaço de cultura, de leitura erudita que não implica necessariamente a consciência pessoal de um saber, tanto no pintor quanto no contenplador.
Esta possibilidade de constituir uma paradigmática pictural convoca algumas observações: a primeira diz respeito à abertura do sistema pictural, a segunda, a dupla orientação dos sentidos paradigmáticos possíveis. Com efeito, se as nossas indicações são retidas, é interessante notar que por oposição ao fechamento do sistema linguístico, que permite assim formar economicamente, por combinatória, portanto por recorrência de signos redundantes, a infinidade das mensagens linguísticas ao nível da fala, o sistema pictural é aberto. Ele não obedece, parece, ao princípio da economia que faz da língua, «esse tesouro interior», um instrumento notavelmente eficaz e adaptado à sua função.
Todavia, no que diz respeito às relações associativas, Saussure nota que «os termos de uma família associativa não se representam nem num número definido, nem numa ordem definida...» Um termo dado é como que o centro de uma constelação, o ponto onde convergem os outros termos coordenados cuja soma é indefinida. O mesmo vale para as séries paradigmáticas em pintura. Convém ainda precisar os graus de abertura do sistema. Tomemos na pintura de Poussin o exemplo de uma figura secundária, a ponte. O Möise trouvé de 1638 apresenta no plano mais recuado, uma ponte por detrás de um grupo de figuras centrais: a obra do pintor faz aparecer a mesma figura secundária em L’Ordre de 1647 e em Orphée et Eurydice.
Assim, uma leitura de Möise trouvé pode, a partir desta figura, unidade paradigmática desse quadro, abrir uma série paradigmática virtual, mnemónica, associativa com a ponte de L’Ordre e aquela de Orphée et Eurydice. Esta figura fornece ao quadro três elementos «funcionais»; aquele de uma passagem entre as regiões baixas da cena representativa, aquele de um ritmo de espaço de fundo graças aos pilares da ponte, aquele, enfim, de uma abertura-clausura do espaço, uma vez que o tabuleiro da ponte e os pilares dele realizam a ocultação enquanto os arcos permitem a escapada do olhar para o horizonte.
A figura da ponte nos três quadros de Poussin põe, por outro lado, um problema de sintaxe figurativa no interior do espaço do quadro, pela posição que ela aí ocupa: nos três casos, a ponte é uma figura de fundo paralela ao plano do quadro, mas cuja importância relativa em relação ao conjunto varia de Möise a Orphée. A variação deste último elemento nos três quadros, a constância dos dois outros provocam, de um sintagma a outro, uma articulação diferente das unidades sintagmáticas. A recordação da Ordre e de Orphée et Eurydice acerca de um elemento da sequência figurativa, pela leitura analítica de Möise trouvé, é portanto bem uma espécie de prova de substituição de um elemento «in absentia», mas no interior do sistema fechado constituído pela obra de Poussin.
Todavia, essa prova pode prosseguir-se no interior desse sistema, substituição por similaridade de sentido de outras figuras que, em relação à ponte, possuirão um ou dois elementos funcionais semelhantes e outros diferentes. Assim as colunas do templo que se encontram frequentemente no plano mais recuado dos quadros de Poussin possuirão o elemento rítmico e aquele de abertura-fechamento, mas não o elemento de passagem: elas ritmam o espaço, abrem-no e fecham-no simultaneamente, mas não permitem, de modo evidente, passar do plano baixo ao outro plano da tela. Em contrapartida, o caminho, a escada ou o pórtico apresentarão o elemento rítmico, o elemento de passagem, mas não aquele da abertura-fechamento.
Através disso e no interior do sistema pictural subjacente, a série classificatória alonga-se: ela pode estender-se à pintura contemporânea da obra de Poussin (Dois exemplos a título de ilustração: a gravura de Marc Antoine do Massacre des Innocents de Raphäel e o quadro de A. Carrache, o Concert etc....) e, mais geralmente, à pintura. Assim a ponte na paisagem de Cézanne, a Montagne de Ste-Victoire (Courtauld) etc... Nessa perspectiva, a série permanece aberta e a leitura no seu espaço paradigmático torna-se intertextual.
Sabe-se que Saussure distinguia dois tipos de relações associativas, segundo o som ou segundo o sentido; assim, o termo enseignement pode abrir as séries paradigmáticas: armement, changement, ou justement etc., que se determinam por associação sonora, ou as séries: aprendizagem, educação, instrução, etc... No exemplo tomado acima, temos uma paradigmática formal. Poderá haver uma paradigmática por analogia dos significados? Um belo exemplo de uma pesquisa desse género seria dado pelo livro de Edgar Wind Pagan Mysteries in Renaissance Art no qual o autor estuda na pintura, na gravura, na escultura da Renascença, o paradigma das três Graças segundos as semelhanças e as diferenças do significado, em particular nas variações estóica, epicurista e platónica desta figura onde o significado «dar-aceitar-tornar» reenvia àquele da castidade, do amor e da voluptuosidade, ou da inteligência, do coração, do desejo, etc.
Também nós poderíamos inferir desses trabalhos que uma dupla orientação paradigmática é possível, uma estilística, outra temática: é à primeira que R. Barthes faz alusão, a propósito da arquitectura quando opõe, a uma sintagmática cujo objecto seria o encadeamento dos detalhes ao nível do conjunto do edifício, uma paradigmática estilística que estuda as variações de estilo de um mesmo elemento do edifício, diferentes formas de cobertura, de balcões, de entradas, etc. A constituição dessas duas paradigmáticas põe um certo número de problemas: como se pode passar, de modo rigoroso, do nível de legibilidade primário de um quadro a uma paradigmática estilística ou temática?
Impressiona constatar que no domínio linguístico, Saussure observava que a indeterminação de ordem de uma série paradigmática era o seu carácter constante e sempre verificado, não sendo a regra de aparição dos termos fornecida a não ser por sugestões da memória, as associações de ideias. A passagem da expressão «relação associativa» ao termo «paradigma» indica uma vontade de rigor que a análise da noção de código pictural se esforça por pôr em funcionamento. Por outro lado, sublinhámos que o quadro não oferece uma leitura, mas um sistema de leituras. O percurso do olhar, obedecendo a certos condicionamentos – aqueles de uma «gramática pictural» - permanece aleatório.
De uma leitura a outra, aparecem diferenças na articulação do sintagma e por via disso na determinação das unidades sintagmáticas. Donde a introdução da noção de «matriz figurativa» que permite conceber a figura como um elemento gerador, como «forma simbólica» da qual cada figura, ao nível de uma leitura, é o produto. Esta ideia parece-nos essencial, porque ela deve permitir ultrapassar o que a própria noção de découpage implica: a figura é esse núcleo ou essa forma generativa, produtora no sistema de leitura. O aprofundamento das nossas primeiras análises deve fazer-se nesta dupla direcção.
As possibilidades de articulação de primeiro nível abertas pela mediação ou pela redundância linguística da substância visível no sintagma do quadro conduzem a interrogarmo-nos sobre a constituição de uma paradigmática pictural. Esta questão é sempre aquela do sentido: será que um segmento relativamente autónomo do sintagma toma seu sentido em relação aos outros segmentos que teriam podido aparecer no mesmo ponto do sintagma? Ou dito de outro modo, pode-se praticar sobre o quadro, a prova da comutação? A oposição do sintagma e do paradigma foi feita – sabe-se-o – por Saussure
No discurso as palavras contraem entre elas, em virtude do seu encadeamento, relaçãoes fundadas no carácter linear da língua... essas combinações têm, por suporte, a extensão e podem ser chamadas de sintagmas... Colocado num sintagma um termo não adquire o seu valor senão porque ele se opõe ao que o precede ou o que o segue, ou a ambos. Por outro lado, fora do discurso, as palavras que oferecem alguma coisa de comum associam-se na memória e forma-se assim grupos no seio dos quais reinam relações muitos diversas... Essas coordenações não têm por suporte a extensão... elas fazem parte desse tesouro interior que constitui a língua em cada indivíduo. Nós as chamaremos relações associativas. A relação sintagmática é in praesentia... ao contrário a relação associativa une termos in absentia numa série mnemónica virtual.
E Saussure faz seguir esta definição da famosa comparação da coluna que tem, para o nosso propósito, esta assinalável vantagem de ser escolhida na subtância visível não linguística de uma arte, uma arquitectura. À relação real de contiguidade descoberta no sintagma, opõe-se ou articula-se uma relação virtual de substituição; a primeira é da ordem da fala, a segunda releva da língua como sistema. A leitura do quadro põe em funcionamento as categorias essenciais da sintagmática: percepção, realidade, presença, segmentação em sequências de leitura ou figuras ligadas por contiguidade no sintagma do quadro.
Mas a leitura do quadro é – vimo-lo – um sistema de percurso: cada figura que o percurso de leitura analítica faz aparecer chama, na memória, uma classe de figuras associadas «in absentia» - diríamos nós, em linguagem saussureana – em série virtual. Na extensão da leitura que define o nível de legibilidade primário do quadro, articula-se um espaço de leitura ou nível de legibilidade secundária no qual se abrem as séries substitutivas de figuras, espaço metafórico onde se descobre a terceira dimensão dos códigos picturais, e que, nessa mesma medida, se constitue como espaço de cultura, de leitura erudita que não implica necessariamente a consciência pessoal de um saber, tanto no pintor quanto no contenplador.
Esta possibilidade de constituir uma paradigmática pictural convoca algumas observações: a primeira diz respeito à abertura do sistema pictural, a segunda, a dupla orientação dos sentidos paradigmáticos possíveis. Com efeito, se as nossas indicações são retidas, é interessante notar que por oposição ao fechamento do sistema linguístico, que permite assim formar economicamente, por combinatória, portanto por recorrência de signos redundantes, a infinidade das mensagens linguísticas ao nível da fala, o sistema pictural é aberto. Ele não obedece, parece, ao princípio da economia que faz da língua, «esse tesouro interior», um instrumento notavelmente eficaz e adaptado à sua função.
Todavia, no que diz respeito às relações associativas, Saussure nota que «os termos de uma família associativa não se representam nem num número definido, nem numa ordem definida...» Um termo dado é como que o centro de uma constelação, o ponto onde convergem os outros termos coordenados cuja soma é indefinida. O mesmo vale para as séries paradigmáticas em pintura. Convém ainda precisar os graus de abertura do sistema. Tomemos na pintura de Poussin o exemplo de uma figura secundária, a ponte. O Möise trouvé de 1638 apresenta no plano mais recuado, uma ponte por detrás de um grupo de figuras centrais: a obra do pintor faz aparecer a mesma figura secundária em L’Ordre de 1647 e em Orphée et Eurydice.
Assim, uma leitura de Möise trouvé pode, a partir desta figura, unidade paradigmática desse quadro, abrir uma série paradigmática virtual, mnemónica, associativa com a ponte de L’Ordre e aquela de Orphée et Eurydice. Esta figura fornece ao quadro três elementos «funcionais»; aquele de uma passagem entre as regiões baixas da cena representativa, aquele de um ritmo de espaço de fundo graças aos pilares da ponte, aquele, enfim, de uma abertura-clausura do espaço, uma vez que o tabuleiro da ponte e os pilares dele realizam a ocultação enquanto os arcos permitem a escapada do olhar para o horizonte.
A figura da ponte nos três quadros de Poussin põe, por outro lado, um problema de sintaxe figurativa no interior do espaço do quadro, pela posição que ela aí ocupa: nos três casos, a ponte é uma figura de fundo paralela ao plano do quadro, mas cuja importância relativa em relação ao conjunto varia de Möise a Orphée. A variação deste último elemento nos três quadros, a constância dos dois outros provocam, de um sintagma a outro, uma articulação diferente das unidades sintagmáticas. A recordação da Ordre e de Orphée et Eurydice acerca de um elemento da sequência figurativa, pela leitura analítica de Möise trouvé, é portanto bem uma espécie de prova de substituição de um elemento «in absentia», mas no interior do sistema fechado constituído pela obra de Poussin.
Todavia, essa prova pode prosseguir-se no interior desse sistema, substituição por similaridade de sentido de outras figuras que, em relação à ponte, possuirão um ou dois elementos funcionais semelhantes e outros diferentes. Assim as colunas do templo que se encontram frequentemente no plano mais recuado dos quadros de Poussin possuirão o elemento rítmico e aquele de abertura-fechamento, mas não o elemento de passagem: elas ritmam o espaço, abrem-no e fecham-no simultaneamente, mas não permitem, de modo evidente, passar do plano baixo ao outro plano da tela. Em contrapartida, o caminho, a escada ou o pórtico apresentarão o elemento rítmico, o elemento de passagem, mas não aquele da abertura-fechamento.
Através disso e no interior do sistema pictural subjacente, a série classificatória alonga-se: ela pode estender-se à pintura contemporânea da obra de Poussin (Dois exemplos a título de ilustração: a gravura de Marc Antoine do Massacre des Innocents de Raphäel e o quadro de A. Carrache, o Concert etc....) e, mais geralmente, à pintura. Assim a ponte na paisagem de Cézanne, a Montagne de Ste-Victoire (Courtauld) etc... Nessa perspectiva, a série permanece aberta e a leitura no seu espaço paradigmático torna-se intertextual.
Sabe-se que Saussure distinguia dois tipos de relações associativas, segundo o som ou segundo o sentido; assim, o termo enseignement pode abrir as séries paradigmáticas: armement, changement, ou justement etc., que se determinam por associação sonora, ou as séries: aprendizagem, educação, instrução, etc... No exemplo tomado acima, temos uma paradigmática formal. Poderá haver uma paradigmática por analogia dos significados? Um belo exemplo de uma pesquisa desse género seria dado pelo livro de Edgar Wind Pagan Mysteries in Renaissance Art no qual o autor estuda na pintura, na gravura, na escultura da Renascença, o paradigma das três Graças segundos as semelhanças e as diferenças do significado, em particular nas variações estóica, epicurista e platónica desta figura onde o significado «dar-aceitar-tornar» reenvia àquele da castidade, do amor e da voluptuosidade, ou da inteligência, do coração, do desejo, etc.
Também nós poderíamos inferir desses trabalhos que uma dupla orientação paradigmática é possível, uma estilística, outra temática: é à primeira que R. Barthes faz alusão, a propósito da arquitectura quando opõe, a uma sintagmática cujo objecto seria o encadeamento dos detalhes ao nível do conjunto do edifício, uma paradigmática estilística que estuda as variações de estilo de um mesmo elemento do edifício, diferentes formas de cobertura, de balcões, de entradas, etc. A constituição dessas duas paradigmáticas põe um certo número de problemas: como se pode passar, de modo rigoroso, do nível de legibilidade primário de um quadro a uma paradigmática estilística ou temática?
Impressiona constatar que no domínio linguístico, Saussure observava que a indeterminação de ordem de uma série paradigmática era o seu carácter constante e sempre verificado, não sendo a regra de aparição dos termos fornecida a não ser por sugestões da memória, as associações de ideias. A passagem da expressão «relação associativa» ao termo «paradigma» indica uma vontade de rigor que a análise da noção de código pictural se esforça por pôr em funcionamento. Por outro lado, sublinhámos que o quadro não oferece uma leitura, mas um sistema de leituras. O percurso do olhar, obedecendo a certos condicionamentos – aqueles de uma «gramática pictural» - permanece aleatório.
De uma leitura a outra, aparecem diferenças na articulação do sintagma e por via disso na determinação das unidades sintagmáticas. Donde a introdução da noção de «matriz figurativa» que permite conceber a figura como um elemento gerador, como «forma simbólica» da qual cada figura, ao nível de uma leitura, é o produto. Esta ideia parece-nos essencial, porque ela deve permitir ultrapassar o que a própria noção de découpage implica: a figura é esse núcleo ou essa forma generativa, produtora no sistema de leitura. O aprofundamento das nossas primeiras análises deve fazer-se nesta dupla direcção.
«Elementos para uma semiologia pictural» 3 - de Louis Marin
SINTAGMÁTICA PICTURAL
O exame da noção de percurso do olhar conduziu-nos a considerar o quadro como totalidade encadeada ou ligada. Como é que essa totalidade pode ser decifrada? Como é que um sentido – e comunicável – poderá ele aparecer por ela e nela? A significação, vimo-lo, não pode nascer senão de uma articulação, de uma découpage. O grande sintagma do quadro poderá ele ser montado [découpé] ou articulado em sintagmas secundários ou unidades sintagmáticas relativamente autónomas? Como passar da totalidade contínua do quadro a unidades discretas – Para o fazer, é preciso lembrar o que nós indicaríamos in limine como a condição fundamental de toda a semiologia pictural: a indissociabilidade do visível e do nomeável como fonte de sentido:
Não há sentido senão nomeado e o mundo dos significados não é outro senão aquele da linguagem. Perceber o que essa outra substância significa, é fatalmente recorrer à découpage da língua.
Assim, o grande sintagma pictural pode ser mediado pela linguagem, permitindo essa mediação a sua articulação e a sua constituição em conjunto significativo. O assunto do quadro, o seu título podem, na grande pintura de história, reenviar a um texto referencial cuja análise no quadro permite a sua articulação. Por exemplo, num estudo feito noutro lugar, pudemos mostrar, a propósito do quadro de Poussin le Frappement du Rocher (Érmitage) qu a análise do sintagma narrativo bíblico se reencontrava em toda a sua clareza no sintagma icónico que, através disso mesmo, era articulado de maneira significativa.
Os significantes do relato literário, os «contadores» se tornam então nos significados do relato pictural, graças a esta propriedade que toda narrativa possui de ser, na sua substância de sentido, independente das modalidades particulares pelas quais ele é relatado. As unidades sintagmáticas picturais ou figuras assim articuladas pelos significados da narrativa constituem as unidades de sentido do quadro. Certamente que, isolada do seu contexto sintagmático, a figura é polissémica. É inútil lembrar aqui a famosa experiência de Koulechov no domínio cinematográfico. Assim no Möise exposé de Poussin (Ashmolean Museum), a figura isolada da serva e do pequeno Moisés na sua cesta não permite dizer se ele é exposto ou recolhido.
Mas a integração da figura no texto figurativo permite reduzir a ambiguidade polissémica e o desígnio do sentido aparece. Assim – no caso da pintura de história e sem pretender através dela esgotar o sentido do quadro – as unidades de sentido são determináveis, graças à análise da estrutura narrativa e a figura apresenta-se no sintagma figurativo como o equivalente do que o semiótico da narrativa chama uma função, no seu estatuto assertivo de presentificação de um analogon no quadro. Esse tipo de análise que liga a estrutura temporal da narrativa, o sistema de expressão e a articulação figurativa parece-nos aplicável em numerosos casos e autoriza a constituição de tipologias complexas segundo as modalidades de articulação das figuras. Assim se podem comparar de modo significativo, do ponto de vista as estruturas narrativas, por exemplo os martírios de St. Blaise e de St. Laurent de Berzé-la-Ville, a famosa predela da Profanação da Hóstia de Ucello a Urbino, a série dos Moisés de Poussin, etc. Claro, a comparação foi frequentemente praticada, e pelo próprio pintor – como vimos a propósito de Poussin. Mas a teoria dessa prática merece alguma atenção na medida em que ela poderia permitir fundar em rigor o que muitas vezes permanece intuitivo ou se encontra traduzido num vocabulário marcado pelas representações ideológicas.
Passando ao quadro «sem história» como a paisagem ou a natureza morta, o problema que nos preocupa não faz senão deslocar-se. Se não temos aqui possibilidade de análise estrutural da narrativa para tentar o recorte do sintagma pictural, aí então dispomos para articular a substância visual, do que é nomeável no quadro, árvores, ribeiro, ponte, nuvem, vidro de cristal ou guitarra, e a repartição desses elementos nomeáveis em zonas da superfície plástica que representarão assim mais ou menos densidade informativa. O sintagma do quadro organizar-se-á em zonas informativas diferenciais articuladas entre elas, no e pelo sintagma.
Por exemplo, seria interessante fazer a teoria da pintura de natureza morta a partir de uma análise da sintaxe figurativa dos quadros, quer dizer da articulação dos objectos entre eles e da articulação das zonas de alta densidade informativa e de baixa densidade. Um estudo do tipo do que tentou J. R. Demoris sobre Chardin permite alcançar diferenciações finas e significativas da natureza morta flamenga e da de Chardin. Através dela apareceria – e isso seria verdadeiro igualmente para o retrato – a possibilidade de estender a análise do sintagma do quadro, para lá das figuras, até a um recorte de sub-unidades e à sua articulação sintáctica na figura que constitui assim a unidade de integração e de sentido desses signos figurativos.
Eles podem é claro ter uma significação própria mas perdem-na na sua integração na figura. O isolamento do signo figurativo, fora do contexto da figura, que o promove de algum modo à dignidade de figura, faz aparecer um «efeito de sentido» sobre o qual se debruçam numerosos livros de arte; como se a extracção do signo, para fora da figura, lhe desse um outro sentido ou uma significação nova por uma espécie de virtualidade polissémica cujo poder evocador e sugestivo é inegável. O pintor pode utilizá-la na apresentação sobre a tela, um contexto ausente, quer dizer uma unidade sintagmática vazia ou neutra. Os mesmos procedimentos analíticos podem ser aplicados na integração de um signo figurativo isolado num texto literário, numa grafia para constituir um novo objecto «texto-figura» cuja ilustração constitui um domínio particular.
A grafia desempenha então o papel de figura pela sua repartição tipográfica sobre a página, sem, nessa medida, deixar de veicular, por um outro recorte propriamente linguístico, um sentido que lhe é próprio. Estes tranferts ou estes «efeitos de sentido» que têm uma grande importância teórica podem igualmente ser estudados nos emblemas ou nas medalhas nas quais se prende uma relação nova entre a legenda que é simultaneamente signo figurativo e sintagma e a figura que é, por seu lado, signo figurativo e unidade sintagmática. Tentámos noutro lado um estudo desse género sobre a famosa medalha de Alberti cujo processo de articulação se interpreta pelo jogo duplo da metáfora e da metonímia do significante e do significado.
O exame da noção de percurso do olhar conduziu-nos a considerar o quadro como totalidade encadeada ou ligada. Como é que essa totalidade pode ser decifrada? Como é que um sentido – e comunicável – poderá ele aparecer por ela e nela? A significação, vimo-lo, não pode nascer senão de uma articulação, de uma découpage. O grande sintagma do quadro poderá ele ser montado [découpé] ou articulado em sintagmas secundários ou unidades sintagmáticas relativamente autónomas? Como passar da totalidade contínua do quadro a unidades discretas – Para o fazer, é preciso lembrar o que nós indicaríamos in limine como a condição fundamental de toda a semiologia pictural: a indissociabilidade do visível e do nomeável como fonte de sentido:
Não há sentido senão nomeado e o mundo dos significados não é outro senão aquele da linguagem. Perceber o que essa outra substância significa, é fatalmente recorrer à découpage da língua.
Assim, o grande sintagma pictural pode ser mediado pela linguagem, permitindo essa mediação a sua articulação e a sua constituição em conjunto significativo. O assunto do quadro, o seu título podem, na grande pintura de história, reenviar a um texto referencial cuja análise no quadro permite a sua articulação. Por exemplo, num estudo feito noutro lugar, pudemos mostrar, a propósito do quadro de Poussin le Frappement du Rocher (Érmitage) qu a análise do sintagma narrativo bíblico se reencontrava em toda a sua clareza no sintagma icónico que, através disso mesmo, era articulado de maneira significativa.
Os significantes do relato literário, os «contadores» se tornam então nos significados do relato pictural, graças a esta propriedade que toda narrativa possui de ser, na sua substância de sentido, independente das modalidades particulares pelas quais ele é relatado. As unidades sintagmáticas picturais ou figuras assim articuladas pelos significados da narrativa constituem as unidades de sentido do quadro. Certamente que, isolada do seu contexto sintagmático, a figura é polissémica. É inútil lembrar aqui a famosa experiência de Koulechov no domínio cinematográfico. Assim no Möise exposé de Poussin (Ashmolean Museum), a figura isolada da serva e do pequeno Moisés na sua cesta não permite dizer se ele é exposto ou recolhido.
Mas a integração da figura no texto figurativo permite reduzir a ambiguidade polissémica e o desígnio do sentido aparece. Assim – no caso da pintura de história e sem pretender através dela esgotar o sentido do quadro – as unidades de sentido são determináveis, graças à análise da estrutura narrativa e a figura apresenta-se no sintagma figurativo como o equivalente do que o semiótico da narrativa chama uma função, no seu estatuto assertivo de presentificação de um analogon no quadro. Esse tipo de análise que liga a estrutura temporal da narrativa, o sistema de expressão e a articulação figurativa parece-nos aplicável em numerosos casos e autoriza a constituição de tipologias complexas segundo as modalidades de articulação das figuras. Assim se podem comparar de modo significativo, do ponto de vista as estruturas narrativas, por exemplo os martírios de St. Blaise e de St. Laurent de Berzé-la-Ville, a famosa predela da Profanação da Hóstia de Ucello a Urbino, a série dos Moisés de Poussin, etc. Claro, a comparação foi frequentemente praticada, e pelo próprio pintor – como vimos a propósito de Poussin. Mas a teoria dessa prática merece alguma atenção na medida em que ela poderia permitir fundar em rigor o que muitas vezes permanece intuitivo ou se encontra traduzido num vocabulário marcado pelas representações ideológicas.
Passando ao quadro «sem história» como a paisagem ou a natureza morta, o problema que nos preocupa não faz senão deslocar-se. Se não temos aqui possibilidade de análise estrutural da narrativa para tentar o recorte do sintagma pictural, aí então dispomos para articular a substância visual, do que é nomeável no quadro, árvores, ribeiro, ponte, nuvem, vidro de cristal ou guitarra, e a repartição desses elementos nomeáveis em zonas da superfície plástica que representarão assim mais ou menos densidade informativa. O sintagma do quadro organizar-se-á em zonas informativas diferenciais articuladas entre elas, no e pelo sintagma.
Por exemplo, seria interessante fazer a teoria da pintura de natureza morta a partir de uma análise da sintaxe figurativa dos quadros, quer dizer da articulação dos objectos entre eles e da articulação das zonas de alta densidade informativa e de baixa densidade. Um estudo do tipo do que tentou J. R. Demoris sobre Chardin permite alcançar diferenciações finas e significativas da natureza morta flamenga e da de Chardin. Através dela apareceria – e isso seria verdadeiro igualmente para o retrato – a possibilidade de estender a análise do sintagma do quadro, para lá das figuras, até a um recorte de sub-unidades e à sua articulação sintáctica na figura que constitui assim a unidade de integração e de sentido desses signos figurativos.
Eles podem é claro ter uma significação própria mas perdem-na na sua integração na figura. O isolamento do signo figurativo, fora do contexto da figura, que o promove de algum modo à dignidade de figura, faz aparecer um «efeito de sentido» sobre o qual se debruçam numerosos livros de arte; como se a extracção do signo, para fora da figura, lhe desse um outro sentido ou uma significação nova por uma espécie de virtualidade polissémica cujo poder evocador e sugestivo é inegável. O pintor pode utilizá-la na apresentação sobre a tela, um contexto ausente, quer dizer uma unidade sintagmática vazia ou neutra. Os mesmos procedimentos analíticos podem ser aplicados na integração de um signo figurativo isolado num texto literário, numa grafia para constituir um novo objecto «texto-figura» cuja ilustração constitui um domínio particular.
A grafia desempenha então o papel de figura pela sua repartição tipográfica sobre a página, sem, nessa medida, deixar de veicular, por um outro recorte propriamente linguístico, um sentido que lhe é próprio. Estes tranferts ou estes «efeitos de sentido» que têm uma grande importância teórica podem igualmente ser estudados nos emblemas ou nas medalhas nas quais se prende uma relação nova entre a legenda que é simultaneamente signo figurativo e sintagma e a figura que é, por seu lado, signo figurativo e unidade sintagmática. Tentámos noutro lado um estudo desse género sobre a famosa medalha de Alberti cujo processo de articulação se interpreta pelo jogo duplo da metáfora e da metonímia do significante e do significado.
Subscrever:
Mensagens (Atom)