domingo, 23 de novembro de 2008

Recapitulações - O quadro III: A recordação de cobertura

Pablo Picasso, Natureza Morta com Jarro e Maçãs

Ainda acerca do quadro, no que diz respeito à pintura, há outros factores a considerar. Em «Diderot, Brecht, Eisenstein», Roland Barthes estende a observação de Louis Marin, acerca do quadro enquanto operador de corte, à totalidade das artes dióptricas:

«A cena, o quadro [tableau], o plano, o rectângulo recortado, eis a condição que permite pensar o teatro, a pintura, o cinema, a literatura, quer dizer todas as artes excepto a música e que se poderia chamar de artes dióptricas. [...] O quadro (pictural, teatral, literário) é um recorte [découpage] puro, de bordos nítidos, irreversível, incorruptível, que recalca [refoule] no nada tudo o que o cerca, inominado, e promove à essência, à luz, à vista, tudo aquilo que faz entrar no seu campo; esta discriminação demiúrgica implica um pensamento elevado: o quadro é intelectual, ele quer dizer alguma coisa (de moral, de social) mas ele diz também como é preciso lê-lo; ele é simultaneamente significativo e propedêutico, impressivo e reflexivo, comovente e consciente das vias da emoção». (BARTHES, Roland, «Diderot, Brecht, Eisenstein», in MARTY, Éric (org.), Roland Barthes: oeuvres complètes IV: 1972-1976, Paris, Seuil, p. 339).

A dióptrica é a parte da física que estuda os fenómenos de refracção. As artes dióptricas serão artes de refracção, em que um fenómeno de desvio se produz, e em que ele pode ser assinalado no confronto com o seu exterior. O teatro supõe uma encenação, tal como a pintura supõe uma representação, a literatura uma escrita, o cinema uma determinada relação take/montagem, e todos eles uma determinada forma de refracção dos temas e dos elementos da nossa percepção, enquanto seres no mundo. Ora, afirma Roland Barthes, não há forma de pensar essas artes dióptricas a não ser a partir dessa découpage. O que significa que o quadro, enquanto corte/selecção-combinação de elementos supõe um processo de desvio ou de refracção.

A nossa nota de leitura vai aqui para o termo que Roland Barthes usa para descrever o movimento de inclusão-exclusão que o quadro, enquanto operador de corte, implica: é o termo «refoule», no original francês - do verbo refouler e do substantivo refoulement - que é exactamente o mesmo que é usado em psicanálise para descrever o recalcamento. É ele que nos levanta aqui a questão da compreensão do que pode significar o quadro, no que ele supõe de refracção.

Vimos já, a propósito de Walter Benjamin, e da sua leitura de Marx e de Freud, que a mutação das condições da experiência que afectam, a partir do século XIX e de forma crescente, a vida social, traz consigo uma aceleração e um desligamento, uma sobre-estimulação e uma acentuada vulnerabilidade do sujeito, patentes na temporalidade que afecta toda a sua vida de relação. Elas implicam, na experiência, a recorrência da sua exposição ao choque. E vimos, também, que esse choque supõe, ou a não vivenciação consciente do que ele inscreve como não-consciente (é a descrição que Benjamin faz da memória das partes do corpo em Proust) ou o seu recalcamento.

A pergunta será, então, a seguinte: se essa operação de inclusão-exclusão supõe o recalcamento no nada e, também, a contrario, a promoção à luz do que está sediado na mémoire involontaire, o que é que de um e de outro (recalcamento e exposição) estará em jogo, no quadro? É que, seguindo-se a definição de Roland Barthes ficar-se-ia a pensar naquilo em que poderá consistir o recalcamento de que aí se fala. O que seria oportuno sublinhar aqui seria, antes de mais, que, enquanto operação de «recalcamento no nada» (a tradução portuguesa dir-nos-ia: «rechaça para o nada», o que perde por completo a sugestão psicanalítica), o quadro supõe uma refracção, um desvio. Enquanto operação de corte, o quadro implica, diz-nos Barthes, um «pensamento elevado», visto que ele selecciona, promovendo-o à luz e à visibilidade, tudo o que faz entrar no seu campo, dissociando-o do que, precisamente, é preciso rejeitar. Mas de onde vem o que aí é promovido à luz?


Ora, o poema de Baudelaire, «À une passante», comentado por Walter Benjamin em «Sobre Alguns Motivos na Obra de Baudelaire», faz entrar no seu campo precisamente aquilo que constitui a experiência do choque. O que ele recalca (quer dizer, ignora) é tudo o resto: tudo o que, na experiência, poderia ainda ser facilmente assimilado pela consciência. Digamos, portanto, que ele promove à luz, à essência, à visibilidade, tudo aquilo que não é susceptível de ser ligado na experiência, e se desprende da multidão como se dela saltasse à sua vista. Bastará isto, para se compreender o que aí se passa? Em outros termos, o que entra no campo do poema é, precisamente o que não entraria no campo (das formas mais comuns) da consciência. O poeta é, aqui, um sujeito da excepção. Aquilo que ele capta é precisamente o exterior ao que é do domínio mais geral da consciência comum. A palavra excepção significa, segundo o seu étimo ex-capere «captação do exterior». O que todavia faz a sua excepção, não é a experiência do choque em si mesma, mas antes o uso que ele faz dela, abrindo-a ao seu devir consciente e assim o dissipando. Será correcta, em síntese, esta interpretação? A sua excepção reside, por conseguinte, na visibilidade que ele lhe dá. O que levará Benjamin a falar de traumatofilia, a propósito de Baudelaire:


«A psiquiatria conhece os tipos traumatófilos. Baudelaire decidiu-se a aparar os choques, de onde quer que viessem, com o seu ser espiritual e físico. A imagem desta defesa em relação ao choque é a da esgrima. Quando fala do seu amigo Constantin Guys, visita-o a horas em que Paris dorme, e escreve: «ali estava ele, curvado sobre a mesa, fixando a folha de papel com a mesma agudeza com que de dia olhava para as coisas à sua volta; esgrimindo com o lápis, a pena, o pincel, fazendo a água do copo salpicar o tecto, limpando a pena à camisa; perseguindo o trabalho, lesto e persistente, como se temesse que as imagens lhe escapassem. Assim, ainda que só, entra numa luta, aparando, os seus próprios golpes»». (BENJAMIN, Walter, «Sobre Alguns Motivos na Obra de Baudelaire», A Modernidade: Obras Escolhidas de Walter Benjamin, trad. de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 114).


Ora, Walter Benjamin encontra, no poema «O Sol», Baudelaire em pleno trabalho poético:

«Pelo velho arrabalde, onde em cada tugúrio
As persianas abrigam secretas luxúrias,
Quando o sol mais cruel bate com os raios vivos,
Em cidades e campos, telhados e trigos,
Exercito sozinho esta absurda esgrima,
Farejando em cada canto os acasos da rima,
Tropeçando em palavras como na calçada,
Dando às vezes com versos há muito sonhados.»

O seu gesto dá-nos conta do facto de o poeta (o sujeito de enunciação) se colocar num ponto de vista diferente, que constitui justamente o que é correspondente ao que nele é a sua singularidade, a sua excepção. O seu ponto de vista, o seu espaço é o de um limite. Pois, não apenas o espaço do «velho arrabalde» é o da escrita, em que «tropeça em palavras», farejando «em cada canto» o «acaso das rimas»: é também um espaço repartido entre o choque e o prazer - cruelmente batido pelos «raios vivos» do sol, por fora dos tugúrios, que no entanto, com as persianas, abrigam «secretas luxúrias». É um espaço periférico, entre cidades e campos, juncado de fragmentos de linguagem, representações diversamente investidas, quer de desejo, quer de dor, quer de luxúria, quer de crueldade: o espaço limítrofe da margem em que ele dá com «versos há muito sonhados»...

Por virtude da mudança entretanto operada nas condições da experiência, a sua excepção passara a ser, não tanto a de um sujeito experienciador do choque, mas a daquele que o inscreve no poema, que o «põe em forma», como dizia Gianni Vattimo. O espaço-tempo da escrita é esse espaço-tempo repartido, entre a crueldade e a luxúria (que entre si se opõem), juncado de fragmentos que emergem de dois lados, da memória involuntária e da sua percepção: imagens (telhados, trigos, cidades, campos, sol, penumbra), sons, palavras, rimas, versos há muito sonhados... a que se diria que falta a ligação que o poema lhes traz. O que torna Baudelaire singular é, no texto de Benjamin, essa sua fulgurante intuição: a de que a experiência moderna se caracteriza por uma generalizada repetição da experiência do choque, da descontinuidade: o moderno é o contingente, o fugitivo, etc. Aquilo que irrompe nela de fragmentário, de correlação veloz, de relâmpago ou fulguração. Se a transposição dessa experiência pela escrita supõe, como diz Roland Barthes, uma refracção, em que consistirá, no entanto, o seu processo? O último verso poderia fornecer-nos uma pista...

A operação do quadro é, simultaneamente, a de um deslocamento e de uma condensação desencadeados e desencadeadores da selecção e da combinação de formas (verbais, visuais, etc.). Ora, o que se inclui no espaço do poema é o fragmento do há muito sonhado. É sobre ele que aí se caminha, é nele que se tropeça, é ele que aí se fareja, em todos os cantos. Esse material onírico de «há muito», ao qual só no limite ou na periferia se acede, é promovido à luz e à visibilidade a partir de onde permanecera como que invisível. No quadro do poema, da página ou da tela, bem como do écrã, tudo o que no seu espaço entra tem essa qualidade do fragmentário, do separado, do desligado, daquilo que se diria ser constituir por uma estrutura segmental e modular, antes de no todo do quadro se vir a integrar.


Esse seu movimento de reunião é o de um deslocamento a partir de cada canto, de cada chão, destinado a vir ali a condensar algum sentido. Ele corresponde a um movimento que vai da experiência fragmentária do real intuído a partir da memória, para a sua re-(a)presentação. E esse real do «arrabalde» - ambivalente, cruel e luxuriento - é o real do «há muito sonhado» e que permanecera na sua «memória involuntária», buscando agrupar-se. A dificuldade estaria aqui na compreensão da definição de Barthes, segundo a qual o quadro «recalca» no nada tudo o que o rodeia. É aqui que cabe uma curiosa observação de Freud, que nos parece oportuna. Diz-nos ele, em «Recordações da infância, recordações de cobertura» (ou, em francês, souvenirs-écran):

«Esquecemos que até uma criança de quatro anos é capaz de um trabalho intelectual muito intenso e de uma vida afectiva muito complicada, e deveríamos antes admirar-nos por verificarmos que todos estes processos psíquicos tenham deixado tão poucos traços na memória. [...] Em relação às recordações de infância, observamos, por assim dizer, a mesma regressão que se verifica em relação aos sonhos: estas recordações adquirem um carácter plasticamente visual, mesmo nas pessoas cujas recordações ulteriores são desprovidas de qualquer elemento visual. É por isso que as recordações visuais se aproximam das recordações infantis. No que me diz respeito, todas as recordações da infância têm unicamente carácter visual: são cenas plasticamente elaboradas, que só posso comparar aos quadros de uma peça de teatro.» (FREUD, Sigmund, Psicopatologia da Vida Quotidiana, trad. de José Marinho, Lisboa, Estúdios Cor, 1969, pp. 58-59).

A recordação de cobertura é, segundo Freud, a que se põe em cena, no lugar de uma outra impressão, deslocada ou recalcada:


«Como sabemos que a nossa memória realiza uma escolha entre as impressões que se lhe oferecem, [... e essas impressões escolhidas] devem a existência a um processo de deslocamento, constituindo a produção supletiva de outras impressões realmente importantes e de que a análise psíquica revela a existência, mas cuja reprodução directa encontra uma resistência. Ora como devem a conservação não ao seu próprio conteúdo, mas a uma associação existente entre esse conteúdo e um outro, recalcado, justificam o nome de «recordações de cobertura» com que as designei» (ibidem, p. 55).


A «recordação de cobertura» pode ser, no texto de Freud, anterior, posterior ou contemporânea da recordação deslocada ou recalcada que ela encobre (ibidem). Ela supõe, portanto, um deslocamento, um desvio, uma metonímia a que a censura sobre o inconsciente obriga. As relações que assim se estabelecem entre ambas são as mesmas das que são próprias dos sonhos: as de deslocamento e de condensação. Porque a «recordação de cobertura» condensa então os traços que lhe vêm da recordação encoberta e os traços que lhe são próprios, formando uma metáfora. O material que acede à consciência não poderia nunca ser o de um inconsciente em estado bruto. O inconsciente é-o sempre em relação ao qualquer coisa que supõe a possibilidade da sua diferença.


A marca do inconsciente é, para a psicanálise, a da falta de ligação, o intervalo e a mobilidade associativa de uma sintaxe que se diria lacunar. A interpretação analítica centra-se sempre nos lapsos de memória, nas descontinuidades (pausas, reticências) do discurso reportado aos sonhos, para os tomar como ponto de interrogação, de questionação. É quando aí falta alguma coisa que se pressente o trabalho do recalcamento e começa o trabalho analítico que estabelece, então hipóteses. A escolha pressuposta pelo trabalho de selecção dos elementos que o quadro combina deve ser determinada pelo princípio que estabelece o seu valor: assim como nas recordações de cobertura, uma forma representa outra, que permanece latente, também na representação artística as formas remetem para outras que permanecem, todavia, «implícitas». Diria Louis Marin:


«O que o quadro representa não é o que ele figura: [...]. Ele é o representante dessa representação e é-o enquanto sua efectuação. Nesta medida, a representação que o quadro é, não é a sua figuração. As figuras do quadro são, de certo modo, à sua superfície, os índices dessa representação: para nós, espectadores, elas designam o mundo, mas ao mesmo tempo reenviam para o espaço epistemológico configurado de que o quadro é o representante. Neste plano, as figuras explícitas do quadro organizam-se num nível simbólico. [...] Parecendo, nas suas imagens, designar o mundo - aí reside o logro da figura como imagem das coisas - o quadro não é outra coisa senão o espaço de representação em que os diversos sistemas que o constituem [nele] se implicitam. O engodo da figura como imagem dissimula o saber que no quadro se representa». (MARIN, Louis, «Le discours de la figure», Études sémiologiques: écritures, peintures, cit in PEREIRA, José Paulo, Uma Cartografia Transtornada: A Guernica de Carlos de Oliveira, Braga, Angelus Novus, 1999, p. 70)


Enquanto «indício» de uma re-presentação, as figuras estão no quadro a marcar uma relação implícita, num nível simbólico. Mas não se trata aqui do significado intrínseco de Panofsky. Reenviando-nos para o espaço simbólico em que essa relação tem lugar, não apenas as figuras, mas também o quadro em que elas entram, mantêm o seu carácter indicial. O espaço de um discurso do «saber» a partir do qual essa relação de representação se estabelece é sempre dissimulado, implicitado, pela con-figuração ou com-posição, pelo corte-selecção/combinação a que chamamos quadro. O movimento de promoção-exclusão das figuras/formas ou elementos plásticos é o de um gesto que supõe «um pensamento «elevado»», quer dizer, um pensamento que encobre o que sob ele se esconde ou recalca. Porquê esse recalcamento?


1. Porque a arte não se presta à definição, não acredita em fórmulas sagradas. Porque ela supõe precisamente a questionação do pensamento, no que ele supõe, aos seus olhos, quer de conceito, quer de acabado e eterno, de imutável. Porque enfim, a sua exigência crítica suspende o momento da formulação explícita de verdades definitivas. Para Baudelaire, havia no seu tempo, de um lado, o fugitivo e o contingente, em que a Modernidade se marcava, e de outro lado, o eterno e o imutável. Pensamento que, no caso de Baudelaire, aos olhos de Walter Benjamin, representa, de uma forma geral, a sua fulgurante intuição de uma profunda mutação nas condições da experiência, caracterizadora, para o autor de «Sobre Alguns Motivos da Obra de Baudelaire», tanto quanto para o de «À une passante», da Modernidade: precisamente aquela mutação que levara a que a poesia tivesse deixado de ser o que fora ainda com Victor Hugo ou com Lamartine, e o poeta houvesse deixado de ser o «bardo» que o romantismo nele consagrara.

O que é assinalado na arte (tardo-)moderna será, portanto, essa noção de uma voz isolada e fragmentária, desligada da sua própria unidade e, por conseguinte, também da possibilidade de falar em nome de um colectivo. «Se – como diz Benjamin, vimo-lo em «Walter Benjamin e a teoria do choque» – chamarmos aura às imagens que, sediadas na mémoire involontaire, buscam agrupar-se em volta de um objecto da intuição, então essa aura em torno de um objecto da intuição corresponde à experiência que deixou marcas de uma prática num objecto de uso». O que significa que essa «busca de agrupamento em redor de um objecto da intuição» supõe uma espécie de magnetismo associativo, de mobilidade de investimento. Ele implicará, de facto, um desvio, um deslocamento e uma alteração da relação sintáctica que, no poema como no quadro, se desliga dos princípios da convenientia, no movimento de recontextualização pelo qual a representação de qualquer objecto da nossa intuição muda de valor e se torna signo das imagens que se lhe associam. Essa «aura» haveria de prender-se com o que, enquanto memória visual não surge, no entanto, explicitamente figurado, mas apenas refractado. Porque a ligação entre as figuras/formas/elementos plásticos e o que eles arrastam consigo não é inteiramente desdobrável ou desdobrada. Não poderia sê-lo. Eis um exemplo: Picasso, aborrecido com as perguntas que lhe faziam acerca dos sentidos possíveis das figuras de Guernica respondeu um dia:

«O mural corresponde à expressão definida e à solução de um problema e esta é a razão pela qual me servi do simbolismo. [...] É claro, os símbolos... Mas é necessário que o pintor os não crie, aos símbolos, caso contrário valeria mais a pena escrever de uma forma clara o que se pretende dizer, em lugar de o pintar. [...] Um quadro vem de muito longe: quem poderá dizer de quão longe eu o pressenti, vi, pintei; e todavia no dia seguinte eu não consigo já ver o que eu próprio fiz. Como pode alguém entrar nos meus sonhos, nos meus instintos, nos meus desejos, nos meus pensamentos que levaram muito tempo a amadurecer e a vir à luz do dia, e sobretudo captar deles o que eu estive em vias de fazer – talvez contra minha vontade?» (ZERVOS, Christian, «Conversation with Picasso» e «LARREA, Juan, Pablo, Picasso – Guernica, Madrid, Edicusa, 1977, cit. in PEREIRA, José Paulo, Uma Cartografia Transtornada: A Guernica de Carlos de Oliveira, Porto, Angelus Novus, 1999, pp. 112-113).

O pintor (ou o poeta) não é, portanto, um «criador de símbolos», no momento em que os desloca para a cena da sua representação. Um objecto da intuição pode ser investido de uma série de associações com imagens sediadas na mémoire involontaire. E qualquer símbolo partilhado pode ser um objecto da intuição. No quadro de Picasso há um «touro», um «cavalo», etc. Mas o transporte que os faz entrar no quadro e aí associarem-se entre si de determinada maneira implica um desvio da sua relação segundo as leis da convenientia, no real, como dizia Louis Marin. Essas leis são também as da consciência. Enquanto selecção e combinação entre si, a sua articulação no quadro é coisa que vem de longe, diz-nos aqui Picasso. E não é possível «alguém entrar nos meus sonhos, nos meus instintos, nos meus desejos, nos meus pensamentos que levaram muito tempo a amadurecer e a vir à luz do dia, e sobretudo captar deles o que eu estive em vias de fazer – talvez contra minha vontade». Que significa, então, a operação refractora pressuposta pelo quadro, enquanto elemento indispensável nas artes dióptricas? Em primeiro lugar a abertura de uma certa margem de opacidade reflexiva e de inconsciente, aquela que Barthes nos diz que é móvel, vazia, apta a tomar quaisquer contornos e que nos faz entrar na experiência da «oscilação» e do «desenraizamento», como diria Gianni Vattimo, leitor de Heidegger e de Benjamin. Em segundo lugar, que é nela que o símbolo é deslocado do seu sentido partilhado e se abre às suas correspondências mais subterrâneas.


2. Porque nem o sujeito, nem a arte que ele produz poderiam ser da ordem da «confissão», uma vez que são clivados, abrindo duas margens: a da sua legibilidade e a da sua reflexividade. Visto que a nem própria «confissão» - forma de um discurso que para Michel Foucault seria paradigmática da pastoral moderna e do biopoder - que supõe uma relação de absoluta transitividade entre o discurso de quem fala e o de quem ouve é possível, a partir do momento em que é repetida, em eco, em (re)iteração, por quem a recebe. Todo o sujeito é dividido, clivado.

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