segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Recapitulações: o quadro - IV (o sentido obtuso ou terceiro sentido)


Fotogramas 1 (o de cima) e 2 (o de baixo), retirados de O Couraçado de Potemkine, do realizador Sergei Eisenstein, e comentados por Roland Barthes, em O Óbvio e o Obtuso.

Como é que a ambivalência se inscreve no quadro? Será possível situarmos, no «quadro», a sua forma clivada (a do sujeito/a da obra), uma forma que releve também do inconsciente? Haverá nele alguma margem de reflexividade - ou de opacidade reflexiva - em que possamos dar-nos conta de um significante que se comporta exactamente como as forças do inconsciente, tal como são descritas por Freud (ver «Fragmentos de leitura 2 - Walter Benjamin e a teoria do «choque»» aqui no blogue), isto é, que não reconheça o princípio da não-contradição?

Viu-se já (Recapitulações: o quadro III (a recordação de cobertura)) que Roland Barthes generaliza a noção de «quadro», estendendo-a ao teatro (de Brecht: a ele iremos), à escrita, à pintura, ao cinema. Todos eles supondo uma découpage, um recorte/selecção-combinação de elementos, todos eles supõem, também, o «quadro» como operador espácio-temporal. O exemplo de um sentido - a que Barthes chamará de «obtuso»: o que é obtuso é rombo, redondo, fechado sobre si próprio, rebelde à nossa vontade, resistente a um direccionamento exclusivo, etc. - que se comportaria como as forças próprias do inconsciente, será possível observá-lo? Vejamos, primeiro, a definição que Barthes nos dá dele. Comecemos por contrastá-lo com aquilo de que ele difere, no quadro, isto é, com o sentido óbvio. Em que consistem o sentido óbvio e o sentido obtuso?

«Obvius quer dizer: que vem à frente, e é bem o caso deste sentido [informativo ou mesmo simbólico], que vem ao meu encontro: em teologia, dizem-nos, o sentido óbvio é aquele «que se apresenta muito naturalmente ao espírito» [...]. Quanto ao outro sentido, o terceiro, aquele que vem «a mais», como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, ao mesmo tempo teimoso e fugidio, liso e esquivo, proponho chamar-lhe o sentido obtuso. [...] Obtusus quer dizer: que é rombo, de forma arredondada; [...] abre o sentido totalmente, isto é infinitamente; aceito até, para este sentido obtuso, a conotação pejorativa: o sentido obtuso parece estender-se para lá da cultura, do saber, da informação; [...]» (BARTHES, Roland, «O Terceiro Sentido», O Óbvio e o Obtuso, trad. de Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 45)

O óbvio é o que se põe à frente, que entra pelos olhos dentro... O obtuso é, pelo contrário, aquele que é rebelde a essa frontalidade, a essa presença óbvia, à obviedade do «que se apresenta muito naturalmente» e se retira dessa espécie de obscenidade do sentido óbvio. Para a sua exemplificação, Roland Barthes escolhe uma série de fotogramas de um filme de Eisenstein. Deles apenas nos ocuparemos aqui de dois, visto que as observações feitas para os restantes são formuladas sempre sobre os mesmos pressupostos, e dois bastam para exemplificar. O primeiro fotograma (o fotograma 1, em cima) é aquele que mostra uma mulher a chorar: é a imagem que Barthes numera como «imagem V» no seu texto. E a sua observação é a seguinte:

«Quanto à convicção do sentido obtuso, tive-a pela primeira vez em frente da imagem V. Uma questão impunha-se-me: o que é que, nesta velha mulher a chorar, me põe a questão do significante? [...] Compreendi, então, que a espécie de escândalo, de suplemento ou de deriva imposta a esta representação clássica da dor provinha muito precisamente de uma relação ténue [...] entre a baixeza da linha toucante, anormalmente puxada até às sobrancelhas como nesses disfarces em que se quer dar um ar bobo e tolo, o declive circunflexo das sobrancelhas desbotadas, extintas, velhas, a curva excessiva das pálpebras baixas mas juntas como se fossem vesgas e a barra da boca entreaberta, respondendo à barra da touca e à das sobrancelhas, ao estilo metafórico [do] «como um peixe fora da água» [...] formam um dialogismo tão ténue que não podemos garantir a sua intencionalidade». (BARTHES, Roland, «O Terceiro Sentido», op. cit., pp. 47-48).

O que a imagem mostra é, obviamente, uma mulher a chorar. É esse o seu sentido óbvio. E prescindiremos aqui do sentido simbólico (referencial, eisensteiniano, histórico, que situaria a imagem numa relação de interpretação com o contexto do filme e um certo contexto da História e, em particular, da História da cultura e da História do cinema) dado que nos interessa, antes de mais, não do ponto de vista da história, mas antes da semiologia, aqui perceber esse sentido não-intencional (ou não exclusivamente intencional) a que Roland Barthes chama o «terceiro sentido»: o sentido obtuso. Assim, nessa figura da mulher que chora há qualquer coisa que salta para fora, exorbita desse sentido óbvio do seu choro (que agrega um sentido informativo a um sentido simbólico, de que não tratamos aqui). Essa qualquer coisa é a seguinte.


No seu rosto, como observa o autor, alguns dos seus traços correspondem-se entre si, numa «relação ténue». Nessa correspondência, ou nessa aproximação em rima («interna» como se diz em poesia), nessa con-formação ou consonância, que atravessa alguns elementos de uma série (descentende ou ascendente) de arcos alinhados, nesse acorde, enfim, de traços que emerge da imagem... Há isto: a) a linha curva da touca, puxada excessivamente para baixo; b) acompanha o declive circunflexo das sobrancelhas; c) segue a curva excessiva das pálpebras e; d) ecoa na barra semicircular da boca entreaberta pela dor. São na figura, esquematicamente, quatro arcos - (((( - que se colocam uns por baixo dos outros... numa relação «tão ténue que deixamos de poder garantir a sua intencionalidade».

O que haveria seria, então, uma espécie de acordo gráfico interno, na relação entre cada um desses elementos, numa espécie de com-posição excessivamente alinhada, entre as feições do rosto que lhe dão expressão, e a linha da touca. Aí o sentido deixa de ser óbvio. Aí se insinua a vertiginosa abertura de uma espécie de «anti-linguagem», no sentido em que a significação deixa de ser unívoca. Porquê? Porque a expressão da dor se volve assim, na margem aberta por esse excesso (o da com-posição aspectual da personagem, na sua expressão da dor) a partir de dentro desse fotograma, na possibilidade do seu contrário, visto que o excesso da composição é irmão do disfarce. Sendo a linha da boca já um pouco como a da pálpebra, a da sobrancelha, e a linha da touca – numa palavra, gerando-se o efeito de uma estilização mais própria da máscarao efeito de espontaneidade representativa, dramática ou expressiva, da «dor» reverte-se, de súbito, na possibilidade do seu contrário e o sentido abre-se aí em duas direcções contraditórias: o da dor e o da máscara (da dor). É o que nos diz Barthes:

«Sentia que o traço penetrante, inquietante como um convidado que se obstina em ficar sem dizer nada, lá onde não têm necessidade dele, devia situar-se na região da testa: a touca, o lenço toucado estava lá para alguma coisa [... esse traço] confundir[ia] o limite que separa a expressão do disfarce, mas também dar[ia] essa oscilação de uma maneira sucinta: uma ênfase elíptica, se assim se pode dizer, disposição complexa, muito retorcida [...visto que] esta obtusidade ultrapassa a anedota, torna-se o embotamento do sentido, a sua deriva.» (BARTHES, Roland, op. cit., p. 47-48; 50).

Para encontrarmos uma expressão mais exactamente coincidente com o que acabamos de dizer, acerca do sentido obtuso como não-intencional, (que começámos por situar na margem da reflexividade ou da opacidade reflexiva do quadro, a comportar-se exactamente como as forças o inconsciente), podemos ver um segundo exemplo, o do segundo fotograma aqui representado, que mostra uma mulher de punho erguido. No entanto, alguma coisa nessa imagem funciona dispersivamente, em relação ao que seria o seu sentido intencional (o de militância, etc). Na imagem, destacam-se duas massas isomorfas (cuja forma é igual ou se repete) em correspondência entre si: a do punho erguido e a do carrapito no cabelo. Elas instauram uma espécie de rima interna que nos coloca de novo sobre a linha ténue em que as formas ou as figuras, os seus traços, se respondem dialogicamente e perdem ou transgridem a sua diferença absoluta (a diferença em que A se colocaria vs não-A). O punho passa a responder ao carrapito e este ao punho, parcialmente se anulando como signos exclusivos, no movimento da enunciação, (que se reconstrói a partir do enunciado, na leitura). Observa o autor:

«Todo o sentido obtuso (a sua força de desordem) se representa na massa excessiva dos cabelos; vejamos um outro carrapito (o da mulher IX [precisamente a do segundo fotograma que mostramos acima]): contradiz o pequeno punho erguido, atrofia-o, sem que esta redução tenha o menor valor simbólico (intelectual [com efeito, o carrapito relativiza, «humaniza» o valor simbólico do punho erguido, fá-lo acomanhar-se de uma nota de sensibilidade, diminui-lhe a ênfase, etc.]): prolongado em caracol, dando ao rosto um modelo ovino, ele confere à mulher algo de comovente (como o pode ser uma certa idiotice generosa), ou ainda sensível; estas palavras desusadas, pouco políticas, pouco revolucionárias, mesmo que mistificadas, devem ser, contudo, assumidas; inserida no disfarce, esta emoção nunca é pegajosa: é uma emoção que apenas designa aquilo que se ama, aquilo que se quer defender; é uma emoção-valor, uma avaliação.» (BARTHES, Roland, op.cit., p. 50).


O que Barthes encontra em Eisenstein é, portanto, uma cinematografia que acentua esta reversibilidade do significante. Ela corresponde a uma arte que não se esquece de assinalar a humanidade de todas essas personagens, que não são simplesmente representantes ou fantoches de uma ideia, de uma ideia de que a temporalidade se dissociasse por completo, mas antes, precisamente, momentos de uma historicidade e de temporalidade possível, que a nossa existência humana põe sempre em jogo. Há na arte de Eiseinstein uma experiência da oscilação e do desenraizamento do sentido (ver o que diz Gianni Vattimo, em A Sociedade Transparente, a respeito da «oscilação» e o «desenraizamento»: cf. «Fragmentos de leitura 2 - Walter Benjamin e a teoria do «choque»» aqui no blogue), que a dissocia da pobreza de qualquer univocidade hermenêutica, e dos efeitos castrantes próprios do catecismo, da repetição na cultura de massas e, de uma forma geral, de toda a monotonia ideológica. Aquilo em que o sentido obtuso (que rola como uma esfera, sem que seja posível segurá-lo numa só posição, numa só intenção) se parece com a dinâmica das forças do inconsciente é precisamente isto: ele contradiz(-se), como diz Barthes (ver aqui a última citação), a propósito da segunda das imagens que abordámos. Ora, seria preciso lembrar que a estratégia de Sócrates era, em Platão, sempre a de levar os seus adversários até à contradição ?

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