quarta-feira, 29 de julho de 2009

Avulsos 13: Chinua Achebe, Mia Couto e Homi Bhabha













Homi Bhaha, à esquerda; Chinua Achebe, à direita.

Chinua Achebe:

«The story is so different from what I had read as a child; I knew I couldn't write like Dickens or Conrad. My story would not accept that. So you had to make an English that was new. Whether it was going to work or not, I couldn't tell.» (ACHEBE, Chinua , sobre a sua obra prima, Things Fall Apart).
















Mia Couto:

«Falta-nos, muitas vezes a coragem para procurar os nossos demónios dentro de casa. [...] Os meus antepassados estão enterrados em outro lugar distante, algures no Norte de Portugal. Eu não partilho de sua intimidade e, mais grave ainda, eles me desconhecem inteiramente. [...] Na maior parte das línguas bantus, não há tradução para dizer «cultura», como não há tradução para dizer «natureza», para dizer «sociedade». Esta ausência de equivalência não deriva de alguma menoridade das nossas línguas. Resulta sim, de um outro ponto de partida filosófico, de uma outra visão do mundo. Para a maioria dos moçambicanos rurais não existe essa fronteira entre aquilo que é «cultural» e «natural». Existe sim um mundo interligado, que só pode ser entendido e designado de uma forma única». (in Pensatempos)

Homi Bhabha:

«There is a damaging and self-defeating assumption that theory is necessarily the elite language of the socially and culturally privileged. It is said that the place of the academic critic is inevitably within the Eurocentric archives of an imperialist or neo-colonial West. The Olympian realms of what is mistakenly labelled 'pure theory' are assumed to be eternally insulated from the historical exigencies and tragedies of the wretched of the earth. Must we always polarize in order to polemicize? Are we trapped in a politics of struggle where the representation of social antagonisms and historical contradictions can take no other form than a binarism, of theory vs politics? Can the aim of freedom of knowledge be the simple inversion of the relation of oppressor and oppressed, centre and periphery, negative image and positive image? Is our only way out of such dualism the espousal of an implacable oppositionality or the invention of an originary counter-myth of radical purity? Must the project of our liberationist aesthetics be forever part of a totalizing Utopian vision of Being and History that seeks to transcend the contradictions and ambivalences that constitute the very structure of human subjectivity and its systems of cultural representation?» (BHABHA, Homi, The Commitment to Theory).

terça-feira, 28 de julho de 2009

Digressões I: O corpo-a-corpo e a instalação (James Turrell; Hal Foster; Rosalind Krauss; Roland Barthes; Jacques Derrida; Freud; Jacques Lacan)





James Turrell, Milk Run III, 2002.

I - 1. Começamos esta nota com um pequeno exercício do nosso olhar. A instalação de James Turrell induz-nos a uma interrogação. Que vemos ali? Por um lado, uma abertura quadrangular, vista obliquamente, pela qual jorra a luz ígnea de uma espécie de bojo de fogo.

Sobre ela, ou dela se deslocando, na nossa direcção, uma espécie de porta de vidro transparente se abriria... Ela deslocar-se-ia, assim, para cá dessa abertura de fogo. E avançaria em direcção a nós, como que nos franqueando o acesso àquilo que à sua transparência vemos...

Mas também poderíamos ver, pelo contrário, no lugar dessa «porta de vidro», que se desloca sobre e para cá dessa abertura de fogo, desta vez uma abertura para lá da qual se abre uma porta cujo reflexo incandescente nos indicaria alguma espécie de inferno oculto, lateralmente percebido.

Essa segunda abertura de porta (ou janela), distinta da primeira, tem o seu batente situado em sentido contrário, num movimento que abre para lá (e já não para cá) dela, colhendo, sobre a sua superfície, o reflexo de um fogo ou de algum inferno interior que não vemos, então, senão como reflectido. Essa oscilação, entre uma e outra percepção, em nenhum momento se deixa reduzir.

Eis talvez aquilo em que consiste o nosso inferno: que, de cada vez que o vejamos, ele se desvie do que vemos. E que ele nos não seja visível senão através de algum vidro que dele nos defenda, e no-lo deforme. O franqueamento da sua abertura o dissipa de imediato, transpondo-o para uma espécie de latência que o faz desaparecer do nosso olhar, para o colocar num fora de campo que se estende até ao lugar em que estamos. «Não há inferno senão invisível». Eis o que a instalação de James Turrell nos insinua, ou nos dá a ver... Ele não está nunca «no seu lugar», uma vez que resiste...

Porque entre uma e outra dessas percepções, nem a porta, nem a abertura, nem finalmente aquilo que nos parece, um tanto indistintamente, ser o que chamamos «fogo», ocupam a mesma posição. Eles mudam incessantemente de posição. Ora vemos esse fogo «directamente», através da abertura oblíqua, e da porta de vidro transparente que sobre ela se abre e suspende, ora ele desaparece, lateralmente, para não nos ser acessível senão na sua forma de reflexo, sobre o batente da porta que se abre para lá de uma outra abertura, esta mais próxima de nós, exactamente no sítio da anterior «porta de vidro». A proximação distancia. E a distância, por isso mesmo, aproxima. Coloca em estado de iminência diferida, em estado de diferimento iminente, aquilo que ao nosso olhar nos oculta.

O título da instalação - Milk Run III - diz-nos, por um lado, pela numeração em que termina, que se trata de uma série de obras do autor, das quais esta se pode ler de forma mais ou menos independente, mas nunca completamente dissociada das restantes. A ideia de um jorro de leite - do movimento do leite, do seu fluxo, associado às imagens de James Turrell - é, então, para nós, a de um imaginário no qual se afirma uma indecidibilidade irredutível. Esse imaginário é anterior ao conceito, ou ao simbólico, assim como à auto-referência, e permanece no seu limite. Ele permanece, assim, no limite de todo o limite. Mas «Milk Run» lembra-nos ainda, também, uma das asserções de Roland Barthes, em A Câmara Clara: «as fotos são signos que se alteram como leite». E o que haveria de «latente», na instalação, seria também o que haveria de «lactente» no sujeito, numa fase em que o seu imaginário, sendo condição de possibilidade de divisão ou separação pelo simbólico, seria também aquilo que, irredutivlemente, o ameaça.

A sugestão que colhemos dessa observação de Barthes tem, mais ou menos, a seguinte leitura: 1.) qualquer coisa nas fotos, as faz oscilar entre o seu «studium» e o seu «punctum», entre o que delas toma parte no reconhecimento (o studium) e o que, pelo contrário, nele se não contém e me «salta à vista» (o punctum); 2. acontece que essa oscilação (entre a cultura e o desejo) é histórica e temporal.

O que significa, de entre outras coisas, que «Milk Run» supõe também a possibilidade de que as suas instalações nos falem, quer da experiência de uma temporalidade irredutível, quer do que, no sujeito, corresponde a uma certa experiência do imaginário. Não a de um imaginário estanque, como vimos - isto é, fechado sobre si mesmo, aferrolhado pelo simbólico, - mas de um imaginário em que os objectos se clivam, se movimentam... Nessa sua clivagem, eles acederiam a uma espécie de estado ambivalente e indecidível do neutro.

Em Art since 1900: modernism, antimodernism, postmodernism, de autoria colectiva (FOSTER, Hal; KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yves-Alain; BUCHLOH, Benjamin H. D.), lê-se a seguinte indicação, a propósito de Milk Run III: «[...] outras práticas - Performance, video, e a arte da instalação em particular - continuaram a abertura do corpo e dos seus espaços inaugurada pelo Minimalismo, assim elaborando sobre as suas preocupações fenomenológicas. A Performance e o video comprometiam o espectador directamente, mas restrições de colocação em cena [of staging] na primeira e a dependência de monitores na segunda mantêm frequentemente o espectador à distância. Foi a instalação que atirou tudo para a experiência do espectador, e em nenhuma parte de forma mais clara que na obra de James Turrell (nascido em 1943), que estabelece enormes campos de luz colorida. Frequentemente estes campos são produzidos através de uma leve abertura numa parede de galeria acompanhada, por detrás dela, [backed] por um plano oblíquo que é brilhantemente iluminado mas cuja localização exacta é quase impossível de determinar por essa mesma razão. Uma instalação de James Turrell parece existir como pós-imagem, aparecendo como uma forma fantasma projectada pela nossa própria actividade retiniana e sistema nervoso mais do que um objecto fixo de seu pleno direito. Em vez dos espectadores que reflectem e dos espaços delineados do Minimalismo, tal arte tende a efectuar uma espécie de experiência do sublime na qual o espectador é cumulado por uma aparição que ele ou ela parecem projectar no ser». (FOSTER, Hal; KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yves-Alain; BUCHLOH, Benjamin H. D., Art since 1900: modernism, antimodernism, postmodernism, London, Thames & Hudson, 2004, p. 654).

2. No domínio da imagem (ou da percepção), essa alteração funciona como indicador de uma reversibilidade que não é possível suspender. Ora, o jogo entre percepções, que a instalação nos suscita é, ele mesmo, a experiência de uma forma de irredutível temporalização do espaço. Por um lado vemos e, por outro, o fogo que vemos não é senão o seu reflexo, no batente de uma abertura que permanece indecidível.

Ou ainda, se quisermos localizar essa abertura oblíqua que resulta da projecção desses campos de cor sobre a parede da galeria, verificamos que se trata de um espaço impossível de determinar, uma vez situado para lá do que, nessa parede, por outro lado o delimita. Porque se trata aqui de pensar o «quadro» como um dispositivo que põe em questão essa espécie de oscilação significante, começaremos aqui por lembrar o que escrevia Roland Barthes, em «Diderot, Brecht, Eisenstein»:

«O Organon da Representação (que se torna agora possível escrever porque outra coisa se advinha) […] terá por duplo fundamento a soberania do recorte e a unidade do sujeito que recorta» (BARTHES, Roland, «Diderot, Brecht, Eisenstein», O Óbvio e o Obtuso, trad. de Isabel Pascoal, Edições 70, 1984, p. 81. Usaremos a versão portuguesa apenas em confronto com o francês). E acrescentava:

«a cena, o quadro, o plano, o rectângulo recortado, eis a condição que permite pensar o teatro, a pintura, o cinema, a literatura, quer dizer, todas as artes além da música e a que poderíamos chamar: artes dióptricas» (ibidem).

Observemos, por um lado: a) o modo como o quadro, a cena, o plano cinematográfico, o rectângulo cortado serão, não só o exemplo de um espaço que em nós – num sujeito espectador, leitor ou autor que é, simultaneamente, menos e mais que um – o Tempo sempre teria encontrado, como sua própria (sobrevinda e sobrevivente) denegação, mas também, enquanto condição do pensamento das «artes dióptricas»: 1. o lugar de onde esse Tempo se não poderia já retirar, simplesmente, dominar, ou fazer desaparecer e: 2. o modo como a historicidade aí se marca, numa história que foge, assim, do seu próprio interior. Por outro lado e, em simultâneo: b) que outra coisa «hoje» se adivinha, no momento em que se descreve o Organon da representação.

3. Começaremos, assim, por procurar pensar o que se joga na relação entre, não só o que, do lado do sujeito, na sua unidade, nos parece que, «hoje», se recorta, mas também o que, do lado do quadro, nas suas linhas‑limite, as que nele materializam o lugar da soberania do olhar que o traça, se indecide (o que não equivale a dizer que se indetermina) e oscila.

O que, em ambos os casos estará em jogo, nesse duplo fundamento da representação, é uma articulação entre arte e poder que nos interessará observar. Para procurar aproximar-nos dessa articulação vamos seguir aqui uma espécie de desvio. Há um texto de Jacques Derrida em que nos parece que ela se nos torna visível, pensada na relação entre sujeitos e, em particular, na relação «analítica». Não é um texto sobre arte, mas estamos em querer que nos ajuda a pensar no que acontece, na relação de imersão, hoje muito recorrente, do sujeito-espectador no espaço de instalação, se seguirmos aqui os critérios de definição de «instalação» de Florence Mèredieu, já mencionado noutros lugares do blog.

O texto de Derrida de que aqui nos lembramos é sobre Freud e a noção psicanalítica de «resistência». Em que consiste ela? Quais são as suas implicações? Derrida relê, nesse texto, uma nota de Freud que é muito interessante, para aquilo de que aqui se trata, porque constitui um exemplo e um testemunho de que a resistência não pode ser pensada, exclusivamente, de um dos lados da relação analítica, como ela se costuma pensar. Com efeito, parece-nos que nem a «soberania do recorte», nem a «unidade do sujeito que recorta» se poderiam hoje, tranquilamente, dissociar dessa condensação do político e do erótico – do polemos e do eros de que nos fala Jacques Derrida, em Résistances: de la psychanalyse, ao analisar, a partir de «O Sonho da Injecção de Irma», aquela irredutível relação de forças que toda a resistência pressupõe. Observemos o que Derrida nos diz acerca da nota de Freud, antes de a começarmos a ler:

«Freud dá-nos assim o exemplo de uma lei. Que lei? Aquela que manda em geral que se interprete como resistência à análise, à solução, à resolução (Lösung), a reserva de alguém que não aceite a vossa solução. (Uma tal lei, seja dito entre parêntesis, reinscreve toda a análise numa relação de forças, e toda a interpretação na política de um polemos e de um eros, na sedução, arrisquemos esta palavra, de um poleros irredutível. Analisar o que quer que seja, a quem quer que seja, para quem quer que seja isso quereria dizer ao outro: escolhe a minha solução, prefere a minha solução, toma a minha solução, ama a minha solução. […] para evitar demasiada precipitação eu diria numa palavra que o único limite desse poleros, dessa condensação do político e do eros é o suspense[le suspense] dessa sedução analítica, é um outro conceito de resistência ou antes de restância [restance], restanálise [une restanalyse] (DERRIDA, Jacques, Résistances: de la psychanalyse, Paris, Galilée, 1996, p. 22; só o último itálico é nosso)

A lei que Freud nos dá é uma lei da «unidade do sujeito», constituído na «soberania do seu recorte». Descrever, analisar é já, ao mesmo tempo: a) operar um (re)corte, sem que ele suponha, aos nossos olhos, a perda de soberania do olhar que recorta; pelo contrário: trata-se, como se sabe, em qualquer análise, de uma descrição que, simultaneamente, produz o que é analisado, segundo o movimento do discurso que analisa; soretudo se «produzir» for aqui compreendido como pôr em presença, avançar com alguma coisa que é trazida à luz; b) e em situação de interacção, descrever (o outro) é também procurar persuadir, quanto à bondade ou à eficácia de um sentido soberano, posto em jogo na descrição, e que deve conter a unidade do sujeito que aí olha. Ora, é nesse plano da persuasão do outro - de confronto com o outro - que as coisas começam a oscilar, e que essa «soberania do olhar» que recorta pode vir a encontrar os seus limites.

Uma vez que a fórmula de Roland Barthes inclui a página, ela inclui também a relação da «leitura». Mas na medida em que um texto supõe sempre mais que um sujeito - neste caso pelo menos dois - essa leitura não deve ser pensada unilateralmente. Uma leitura unilateral é uma não-leitura. Ora, na cena que vai seguir-se, Derrida cita-nos Freud numa passagem em que o seu leitor [o de Freud] se vê colocado na posição transferencial de uma espécie de confidente. Freud confessa aí um sentimento ou um pressentimento:

«Freud confessa um sentimento, um pressentimento, (ich abne, diz ele). A confissão tem o seu lugar numa nota acrescentada com algum atraso. Ele toma o leitor como testemunha, como nos dirigimos a um confessor ou a algum destinatário transferencial, quer dizer, certas pessoas diriam como a um analista, supondo-se que um leitor não o seria sempre» (DERRIDA, Jacques, op. cit., 16).

Que diz Freud, nessa nota? Eis o que ele diz:

««Eu tinha portanto comparado a minha paciente Irma com duas outras pessoas que manifestaram ambas resistência ao tratamento. Porque é que no meu sonho lhe susbtituí eu a sua amiga? Sem dúvida porque eu teria preferido esta substituição: a outra suscita uma simpatia mais forte em mim e eu tenho uma mais elevada opinião da sua inteligência. Tenho com efeito Irma por tola [sotte], uma vez que [desde que, dès lors] que ela não aceitou a minha solução (meine Lösung nicht akzeptiert). A outra teria sido mais inteligente, ela teria portanto cedido mais cedo [subentendido aos meus conselhos, à minha demanda – ou aos meus avanços]»» DERRIDA, Jacques, op. cit., pp. 21-22; o último parêntesis recto é de Derrida, que aí lê o enunciado de Freud).

Freud sonha, mas não com Irma. Melhor: ele sonha com Irma menos tola, mais inteligente, mais dócil e receptiva à sua «solução». É pelo menos isso que ele sente ou pressente. O que no sonho se «mascara» é a resistência de Irma, sob a sua forma substituta, a de uma resistência atenuada. Freud, censurando Irma, pouco inteligente e bastante tola - tola o bastante para resistir à sua solução - auto-censura-se, ele próprio, por não conseguir convencê-la da sua solução. E o seu sonho seria disso testemunho, arrastando, no movimento de deslocamento pressuposto por essa substituição, a sua verdade, aos olhos da psicanálise.

Essa substituição só é possível por algum traço de identificação. Ora, a identificação é aqui apoiada no traço da maior ou menor resistência. Há três pacientes suas que manifestam resistência ao processo de transferência. No entanto, essa resistência é em graus distintos. O que o sonho de Freud mostra é a substituição de Irma - que resiste mais à sua «solução» - por outra que considera menos «tola», que é menos resistente, que «teria cedido mais cedo». O que torna o deslocamento entre ambas as figuras possível... Mas essa substituição metafórica mantém-se como indicador de uma presença outra, de um deslocamento, de uma metonímia. Sob a sua amiga, é ainda de Irma que se trata. A boca (de Irma «substituída») abrir-se-ia então bem:

«ela ter-me-ia dito (contado, erzählen) mais do que Irma» (ibidem).

O que o sonho de Freud mostra é, pois, que há também uma resistência do lado psicanalítico. Não apenas do lado da paciente, mas também do de Freud, nessa sua resistência à resistência de Irma. Neste sentido, a resistência é, aqui e paradoxalmente, um traço de união, entre analista e analisanda. Não é apenas em Irma que a resistência aparece. É também no discurso do analista, que sintomaticamente «sonha» com a sua anulação. Nessa relação há pois um «polemos» que se manifesta pela dupla manifestação de resistência. E o que ela põe em relevo, na análise desse confronto, é que ele envolve negação da mesma uma pulsão erótica que lhe substitui uma outra personagem, mais dócil e incorporativa, mais aberta à sua solução.

E esse traço da resistência que em ambos se manifesta será, como dirá Derrida, «pré-tético» (anterior a qualquer tese) e «pré-judicativo» (anterior a qualquer juízo), não apenas visto que ele emerge, também, do sonho, mas também porque ele (o juízo de Freud) se limita a uma avaliação pouco sustentada, ou a um juízo de valor que em nada se ficaria a dever ao exercício da psicanálise: um juízo acerca da sua inteligência, movido por uma comparação com as restantes pacientes.

O discurso psicanalítico seria, assim, também ele, um discurso de um certo inconsciente, de um certo impensado. Um discurso em que emerge um outro discurso. Um discurso (pré-judicativo) a inscrever-se em outro discurso (judicativo). O que significaria ou induziria à noção de que não seria possível desvincular um do outro. E se a resistência é neste caso aquilo que, na dissociação pressuposta pela impossibilidade do processo transferencial que afasta ambas as personagens (Freud e Irma), ela é, também, o que permite sobrepô-las, juntá-las, reuni-las, pôr a descoberto um traço de semelhança entre ambas.

Aquilo com que se sonha é, num dos sentidos do sonho, com a superação da resistência... de Irma, que ali aparece sob a forma de uma sua amiga. Essa relação de substituição sugere o desejo de uma posição de poder, por parte do analista e de uma incorporação, por parte da analisanda, uma espécie de introjecção do discurso do Outro. Eis, portanto, um exemplo de lei e de lei da resistência – à e da psicanálise, tal como à e da análise em geral – que a nota de Freud nos dá e sobre que se debruça Derrida, acrescentando:

«não se pode contestar a inelutável verdade desta cena, eventualmente em nome da verdade, a não ser na denegação: não se lhe pode opor senão a denegação; mas uma denegação em nome da verdade não é uma denegação qualquer, de onde o abismo – e é esse o problema todo» (ibidem, pp. 21-22).

4. O sonho mostra, portanto, o que o discurso (anterior) de Freud não faz senão denegar, em nome de uma verdade que é, também, a verdade da psicanálise. O problema todo reside - diz-nos Derrida - aí. Como se poderia, então, equacioná-lo aqui de um ponto de vista que interessasse, a partir do que ele supõe na representação, à arte?

Recordemo-nos da primeira afirmação de Jacques Derrida: «Analisar o que quer que seja, a quem quer que seja, para quem quer que seja isso quereria dizer ao outro: escolhe a minha solução [...]». Escolher uma outra solução é incorporá-la, aceitá-la como nossa. Ora essa aceitação supõe sempre uma questão e uma relação de soberania. Aceita-se o que não se pode deixar de aceitar, vindo daquilo que nos cerca, e que nos confronta com a inadequação da nossa solução. A incorporação do discurso do Outro é portanto o gesto de uma submissão.

Ora, vistas assim as coisas, aquilo a que aqui se chama «resistência» começa a ganhar, paradoxalmente, os contornos de uma não-resistência, de uma resistência não-resistente, e se situa por isso no lugar, não exclusivamente da clausura, mas também da abertura. Entre Irma e Freud há pelo menos uma semelhança que os aproxima, e que poderia substituí-los, um pelo outro. Há «um resto de análise» que ali permanece, insistentemente, e que resiste sob a forma de uma «restância», isto é, sob a forma de uma certa irredutibilidade que afecta toda a análise. O que aí acolhe o discurso da análise é, também, afinal, o que o cinde – «numa ordem pré-tética e pré-judicativa o traço é bem uma ligação» (ibidem, p. 42). É de resto aí que a (psic)análise apela a uma restanálise e esta se articula no movimento de uma descontrução:

«O que é a desconstrução da presença senão a experiência dessa dissociação hiperanalítica do simples e do originário? O traço, e escrita, a marca isso está no coração do presente, um movimento de reenvio ao outro, a outro» (ibidem, p. 42)

De que forma, então, essa restance se inscreve, irredutível e necessariamente, no horizonte da relação analítica? Para a tentar compreender melhor, regressemos a ela e observemo-la um pouco mais de perto. Poderíamos descrevê-la assim: na boca como abertura – ou na abertura da boca, tal como na abertura da cena, (à boca da qual estariam, também, o palco, a página ou ainda o quadro, para Roland Barthes) – a resistência que aqui se retraça é, em simultâneo, um movimento ténue, um certo e lábil movimento, um movimento pelo qual os lábios se afastam – e se abrem bem à passagem do outro, enquanto lugar da (não-)solução, para dele e nele inscreverem uma incorporação dissociativa - ou se juntam, num retraimento - para nele e dele inscreverem uma dissociação incorporativa. Eles são um limite: o de um corpo que é, simultaneamente, na relação analítica, o que diríamos dever ser pensado numa dupla dimensão, uma relação quiasmática.

Por um lado, aquela relação em que se trata de pensar uma relação dialógica - e não apenas de diálogo, o que é diferente - em que dizer é já inscrever outro no seu discurso e, portanto, também «mencioná-lo», «citá-lo», etc: «ela ter-me-ia dito mais», diz Freud, visto que (e/ou também por isso…) ele [Freud] possui «uma mais elevada opinião da sua inteligência», significando-se, com isso, não apenas que ela teria sido mais inteligível e inteligente, na medida em que consonante com o que digo, mas também que ela, no seu dizer, teria dito coisas que poderiam ser minhas, ter-me-ia dito, antes e depois de mim e da minha fala. Por outro lado, a relação de uma não-«relação», a relação de uma impossibilidade de um contar ou de um dizer-me, na sua tolice, na sua falta de inteligência.

4. Este conjunto de observações lembra-nos um outro tipo de considerações, que podemos encontrar, desta vez, em Lacan, a propósito do sujeito. Nelas a relação intersubjectiva desloca -se para a posição da situação edipiana e procura pensar-se, de igual modo, no plano da relação de soberania, tal como ela se inscreve, na doutrina cristã. Lacan tem a seguinte observação, em Mais, ainda. Sirvo-me aqui da versão brasileira. Vejamo-la, por partes:

«Vou-lhes colocar uma questão - que importância pode haver [i. e., que imortância pode ter], na doutrina cristã, o facto de Cristo ter uma alma? Essa doutrina não fala senão da encarnação de Deus num corpo, e supõe mesmo que a paixão sofrida por essa pessoa tenha constituído o gozo de outra. Mas não há nada que falte ali, notadamente nenhuma alma. Cristo, mesmo ressucitado, vale pelo seu corpo, e seu corpo é o turgimão pelo qual a comunicação com a sua presença é incorporação - pulsão oral - com a qual a esposa de Cristo, Igreja como a chamam, se contenta muito bem, não tendo nada a esperar da cópula. [...] Quase chegando à cópula. Se ela não se apresenta, não é para inglês ver. Ela está [aí] tão por fora quanto na realidade humana [trata-se aqui do «humano» que há em nós, somente], a qual entretanto, ela sustenta com as fantasias de que é constituída. Em parte alguma, em nenhuma área cultural, essa exclusão [da cópula] se confessou de maneira tão nua. (LACAN, Jacques, Mais, ainda: o seminário - livro 20 1972-1973, trad. de M. D. Magno, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 154).


Eis o problema, em redor do qual se formula a questão de Lacan: se Cristo é a encarnação de Deus, como pensar uma alma que seja sua? Ora, a leitura de Lacan é a seguinte: essa sua «alma» não é senão o lugar de uma incorporação do Outro (pulsão oral). De resto, Cristo vale pelo seu corpo e não pela sua alma. O seu corpo é o lugar do discurso do Pai. Digamos que, por analogia com a cena anterior, entre o analista e a analisanda, Cristo seria aí o exemplo de um grau zero da resistência. Ele situar-se-ia aí do lado da paciente menos resistente.

Pois nenhuma resistência aí se manifesta, no lugar suposto da sua alma: Cristo é, simplesmente, Deus encarnado. O filho é a imagem do Pai, descido à terra - de outro modo invisível, na sua transcendência. O que é «transcendente» vem aqui ao que é um «ente» que lhe oferece um invólucro exterior, um corpo. O sujeito pressupõe, portanto, um «furo». Se se lhe atribui uma alma é para sublinhar que se trata, no cristianismo, de incorporar o discurso do Outro.

Vê-se o interesse do exemplo. Do ponto de vista da psicanálise lacaniana, o «pai real» é apenas, no Édipo, o agente de embraiamento de uma operação que se espera realizada no filho: a de introjecção-sublimação. O que se espera é que o filho igualmente incorpore ou introjecte o discurso do Outro. É pelo exemplo de respeito pelo simbólico fornecido pelo pai que a criança chega, tomando-o como ideal, à introjecção-sublimação que supõe a «resolução» do complexo. É exactamente o que se dirá em LACAN, Jacques, Le séminaire - livre IV: La rélation d'objet (1956-1957), Paris, Seuil, pp. 209-210. Veja-se, a este propósito, o que é dito em PEREIRA, José Paulo, O Exercício da Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007, p. 50. Nesse sentido, a alma de Cristo - Nosso Senhor - é simplesmente o lugar transferencial de um discurso do Outro, do «tout autre» como dirá Derrida, em Donner la mort.


6. Analisemos agora mais de perto o que Lacan nos diz. Um «turgimão» é (diz-nos o dicionário, vocábulo vindo do árabe tarjumãn, «intérprete», sinónimo de drogomano: «var. de turgimão» «intérprete das legações e consulados do Oriente; dragomano, trugimão ou turgimão»; cf. AA VV, Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 1728 e p. 612, respectivamente) um «intérprete». Mas o que é um interprete? O intérprete não é apenas o que pensa e traduz o significado mais ou menos «profundo» das coisas, ditas ou acontecidas. É também o executante, o que desempenha um papel, o que se identifica com e se substitui por outrém, o que se põe na posição de.

Nesse sentido (que poderia ser também usado em teatro: «interpretar» o papel de significa «fazer o papel de» ou, mais simplesmente, «fazer», imaginemos, o Brutus, na peça de Shakespeare, por exemplo) o intérprete é também aquele que é o lugar de alguém. Ora, o corpo de Cristo, lugar de incorporação da Voz do Outro, invocação da sua presença, é um exemplo, o melhor dos exemplos, da e para a sua esposa, a Igreja: nele se realiza essa incorporação (pulsão oral) do discurso do Outro que a/o «constrói» como tal (e dele afasta a possibilidade da cópula). Dirá Lacan: «Aí há um furo, e esse furo se chama o Outro». (ibidem, p. 155). Cristo «vale apenas pelo seu corpo», portanto, e Lacan encadeia:

«Eu diria mais [...] eu chegaria mesmo a lhes dizer que em parte nenhuma como no cristianismo, a obra de arte como tal se verifica de maneira mais patente como aquilo que ela é desde sempre e por toda a parte: obscenidade. A diz-mansão da obscenidade, aí está por onde o cristianismo reaviva a religião dos homens». (ibidem, p. 155).

6. Notemos, primeiro - antes de abordar aqui esse sentido do neologismo «diz-mansão», que veremos aqui um pouco mais adiante - que o «obsceno» é o que está em cena diante dos nossos olhos. É esse o sentido do étimo da palavra, antes e por fora dos valores depreciativos que entretanto ela ganhou. O prefixo «ob-» supõe isso mesmo, tal como em «objecto», que Heidegger lembrará ser «o que é lançado para diante». O que de nós se põe diante, portanto: o corpo.

E nesse sentido, a arte supõe a obscenidade, o nosso estar diante do seu corpo, morada de um segredo sem fundo, de um sujeito/objecto que é Outro, e do «furo» que necessariamente ele é. Tal como acontece com o corpo de Cristo, o corpo da arte supõe «o furo» (pulsão oral) por onde ressoa um Outro discurso, cuja instância de origem é precisamente o que não se manifesta «em si mesmo», ou aquele cuja manifestação passa necessariamente por uma alteridade irredutível. A interpretação de Lacan segue aqui um pressuposto segundo o qual a arte é históricamente (e pós-kantianamente) dotada de uma função «ontológica».

7. Desde Kant que a metafísica, enquanto ontologia, deixa de ter acesso ao ser «em si mesmo». A «fenomenologia» distingue-se, por aí, de uma forma elementar, de toda «ontologia» anterior. Ela representa, como sublinha Manuel Maria Carrilho, um primeiro momento de suspeita. Esse pressuposto «ontológico» (em A Origem da Obra de Arte, por exemplo, a arte é dada como o «pôr em obra da verdade», que é verdade do ser) não seria, em Lacan, pensado a propósito da arte, simplesmente dogmático. (De resto, Lacan é um leitor atento de Heidegger, como bem se sabe).

Esse pressuposto poderia ser apoiado também numa leitura que percorresse, mais recente e transversalmente, tudo o que se pensou, a propósito da arte, desde Kant e, a partir dele, tudo o que é explicitamente assumido por vários autores. Jean-Marie Schaeffer dirá, em L'Art à l'age moderne: l'esthétique et la philosphie de l'art du XVIII siècle à nos jours, que lê o que durante esse período se foi escrevendo (Hegel, Schopenhaur, Schlegel, Schelling, Novalis, Nietzsche, Heidegger, para não mencionar os artistas e, em particular, os do século XX):

«A pesquisa dos constituintes fundamentais ou últimos da arte não é no entanto senão um aspecto - aliás activo sobretudo nas artes plásticas - da resposta à questão: «Que é a arte?» De modo mais fundamental pensou-se encontrar a sua essência num estatuto cognitivo que, não apenas lhe seria específico, mas sobretudo dela faria simultaneamente o saber fundamental e o saber dos fundamentos: a arte, dizem-nos, é um conhecimento extático, a revelação de verdades últimas, inacessíveis às actividades cognitivas profanas; ou: ela é uma experiência transcendental que funda o ser-no-mundo do homem; ou: a apresentação do irrepresentável; - e assim por diante. A tese, sob todas as suas formas e formulações, das mais profundas às mais triviais, implica uma sacralização da arte, oposta, enquanto saber de ordem ontológica, às outras outras actividades humanas consideradas como alienadas, deficientes ou inautênticas (SCHAEFFER, Jean-Louis, L'art de l'âge moderne: l'esthétique et de la philosophie de l'art du XVIII siècle à nous jours, Paris, Gallimard, 1992, p. 17).

A leitura de Schaeffer assenta na seguinte posição: o que está hoje em crise é, antes de mais, o discurso sobre a arte - na medida em que, depois de Kant, se tornou a ontologia inviável e se procurou compensar essa recaída numa ontologia estética (e já não filosófica) - e não tanto ela mesma. Ora, essa transferência da ontologia para o estético é ainda uma extensão do mesmo discurso que Kant pôs em crise.

Ela agora recorre, desta vez por intermédio de uma apropriação da doutrina kantiana do sublime, que apenas se pode situar ao nível da natureza, e já não do juízo do gosto. O que, ao mesmo tempo, decretará, para Schaeffer, um fim da «estética». Numa linha de pensamento afim, embora desconstrutivamente crítico da ontologia, e uma vez salvaguardadas as diferenças, a arte é para Jacques Derrida um lugar de heteronomia e de segredo sem fundo:

«Na dobra [pli] desse momento abraâmico ou ibraímico redobrado pelo Evangelho entre as duas outras «religiões do livro», na redobra [ou no recolhimento, repli] desse segredo sem fundo [o de Abrãao e Isaac, pensado por Kierkgaard em Temor e Tremor e relido por Jacques Derrida] anunciar-se-ia a possibilidade da ficção sobrenomeada literatura. A sua possibilidade e não o acontecimento da sua instituição, o seu alojamento estrutural mas nunca ainda o que a põe no Estado [la met en l'État], conferindo-lhe um estatuto sob esse nome - sequência moderna ou velha de apenas alguns séculos. Contrariamente às aparências frequentemente alegadas, a origem identificável desta jovem instituiçãoa literatura» como tal, i. e., pelo modo como hoje a pensamos, enquanto instituição, não é anterior ao século XVIII], como aquela [instituição] de uma figura moderna do Estado democrático, seríamos tentados a tê-la por mais abraâmica do que grega [...]. Se a literatura, a coisa moderna que porta legitimamente esse seu nome, «dessacraliza» ou «seculariza» as Escrituras, a Escritura santa ou sagrada, ela repete, então, pondo-o a nu e no mundo, trazendo-o ao mundo, o sacrifício de Isaac» (DERRIDA, Jacques, Donner la mort, Paris, Galilée, 1999, pp. 149-150; pp. 203-204; cf. uma vez mais PEREIRA, José Paulo, O Exercício da Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007, p. 99; p. 100)

O pressuposto seria, pois, o de que a situação de divisão, ou de irredutível confronto, entre duas leis, situação que é também a de Abrãao - obrigado pela lei de Deus (Ele ordena-lhe que sacrifique Isaac) a violar a lei dos homens e, por esta última, a desobedecer à de Deus - fornece a estrutura lógica (e agonística) do segredo (ou do segredo do segredo) que nos permitira compreender o incomensurável recolhimento da obra sobre o seu próprio sentido, o afastamento do seu sentido para longe do «si próprio», i. e., sem que essa sua exteriorização possa ser convertível por nenhuma espécie de mensuração.

A «autonomia», pela qual ela se afasta da lei que lhe confere um limite seria, assim, o lugar de uma «heteronomia», de uma outra lei, de um direito ao direito que, sendo-lhe próprio e reconhecido, se não reduz, nunca a uma fórmula. Aproximamo-nos aqui da posição de Irma e da resistência a um discurso tutor que lhe fosse imposto a partir de fora. Um direito consagrador de um direito ao direito, eis a aporia de um direito que contém em si o sedimento da relação com o «todo outro», mas também a sua excepcional condição de possibilidade no tempo.

8. Regressemos, fechada esta curta interpolação, ao dito de Lacan, citado acima. O que o corpo de Cristo representa é, para Lacan, a «diz-mansão» (dit-mension, é o que está no original francês; cf. LACAN, Jacques, Encore 1972-1973: le séminaire - livre XX, Paris, Seuil, 1975, p. 144) da obscenidade, quer dizer, a «diz-mansão» do que está diante, enquanto lugar do Outro. Ora o termo dit-mension, que vemos no original francês reenvia, na mesma língua, simultaneamente, por ressonância paronomástica, não apenas para mansion («mansão»), que se pronuncia da mesma maneira, mas também para mention (menção), igualmente homófono (de que, a nosso ver, a tradução brasileira não se dá conta).

O discurso de Cristo seria então, exemplarmente, não apenas a «mansão» do Outro, mas também um bom exemplo do que não é possível de separar, de forma estanque, entre constativo e performativo, na dimensão do discurso. Ele seria, portanto, o caso (do «intérprete»: como se diz de um músico, ou de um actor) de um discurso onde o «uso» e a «menção» (do «dito») não são dissociáveis. A «diz-mansão» do discurso supõe nele o mesmo «furo» que no sujeito: o que nele fala é já a Voz de Outro. Essa «diz-mansão» é portanto uma dimensão (performativa) do dizer da qual não se pode separar a dimensão constativa da «menção». Vistas as coisas um pouco mais prosaicamente:

O discurso é, no sujeito, «a mansão do Outro», o seu alojamento, o lugar do seu acolhimento.
A casa do seu Ser. A sua «dit-mension» é, simultaneamente, uma «diz-mansão» e uma «diz-menção». O corpo é esse lugar em que a «menção» e a «mansão» da Voz do Outro se inscrevem. A Voz de um ser que atravessa uma mediação infinita, sempre deslocada e deslocadora, e nisso se seculariza... Porque, precisamente, o que nele ressoa só ali, no seu corpo - porque a voz supõe, não apenas uma vibração das cordas vocais, mas também uma pulsionalidade e uma Lei sem a qual não chegaria a haver sequer o que se chama «voz» e que não se reduz ao som, como é sabido - ressoa, no registo indissociável do uso e da menção, por palavras... palavras de quem?

9. Eis uma dupla e irredutível pertença: o seu discurso é exemplarmente de outro, e não apenas um outro discurso que é de Outro. Se regressarmos agora à cena descrita por Jacques Derrida, que nos lê o escrito de Freud, perceber-se-á melhor a injunção e a disjunção do discurso de Freud (as forças que o impelem). O que se sonha é com o outro enquanto (furo, abertura bocal, lugar-do-«dito-mansão»/«menção»), espaço de hospitalidade ou de acolhimento, da incorporação ou da introjecção da sua solução ou resolução, evidentemente.

Mas também se sonha com o seu próprio abismo, a emergir na resistência do outro, à qual o seu discurso de analista, por sua vez, resiste e, no entanto, o seu sonho cede. Ora, Freud nota-o, como acabámos de ver (atitude que fará dele, a par de Heidegger e de Marx, para Derrida, as figuras mais importantes deste século, confome ele diz, nos «Envois» de La carte postale e em Spectres de Marx: cf. PEREIRA, José Paulo, O Exercício da Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007).

Trata-se na relação analítica, tal como, portanto, em toda a leitura, da dimensão da (boa ou má) abertura que é aí o espaço de um trânsito e de um acolhimento, de uma incorporação do discurso do outro, da aceitação e da apropriação, da incorporação de uma solução. Não há leitura neutra. Na deslocação pressuposta por esse movimento, o corpo-a-corpo é, neste caso, não apenas limite, mas dissolução do limite entre analista e analisanda: ela teria cedido mais cedo à solução analítica porque, afinal, é no seu discurso que o discurso analítico, do lado da sua mais elevada inteligência [a dela, segundo ele] ou do seu pré-conceito, se pré-inscreve mais facilmente.

Não se verificando isso, continua a ser claro que há, do lado do psicanalista, uma proximidade do que se lhe opõe e que igualmente o reinscreve no discurso do seu outro, como recusa. Trata-se, então, de um limite do limite e, nele, de um resto ou de uma restância, que apela à (rest)análise. É, precisamente, onde isso fala (no sonho ou no discurso comum, no discurso da análise ou da «ciência», quer dizer, ainda no corpo), na sua moção pulsional ou na sua mobilidade, na sua «abertura» e no seu deslocamento posicional, que a fala é já fruição, perda de consistência do ego, tomado na sua compleição ou nos seus limites. É o que diria também Lacan: «aí onde isso fala, isso goza» (LACAN, Jacques, op. cit., p. 156). Porque «onde isso fala», fala também «o Outro» que vem ao seu apelo e o procura regular, e que ressoa através do sujeito enquanto furo.





Lawrence Weiner – Statements, 1968.

II. - 1. Se, na cena analítica, essa dissociação (entre Freud e a sua paciente, Irma) se reinscreve num e noutro dos respectivos sujeitos é porque a boca é, ao mesmo tempo, não apenas um limite, mas também a abertura na qualum no outro, nele e, ao mesmo tempo, sem eleos sujeitos ou a sujeição se «instalam», como se poderia dizer, no que toca à linguagem da arte, do que aconteceria no corpo de uma instalação (ver aqui no blogue Recapitulações – o quadro VII: os ascendentes da instalação, a propósito do que nos diz Florence Mèredieu da instalação).

O «corpo» da instalação – aquele que se aproxima do teatro visto como a caixa aberta de um cubo cenográfico ou câmara sensorial é precisamente, em primeiro lugar, o de uma espécie de boca, ou de embocadura que envolve o espectador e o incorpora. Mesmo na sua resistência: uma espécie de quadro que se prolongaria para lá de si mesmo, o de uma escultura côncava que se tornasse no espaço de um habitat e/ou de um habitáculo. Mas também o mesmo se passa na experiência do espectador: o seu corpo abre-se, prolongado pela vista, a um discurso cuja alteridade nele supõe alguma margem de resistência e de indecidibilidade.

O corpo‑instalação – chamemos-lhe assim, para sublinhar a sua abertura e a sua indissociabilidade do seu outro, mesmo na sua resistência – é, não apenas o lugar em que se inscreve essa condensação «polerótica» (palavra construída com polemos e eros) de que nos fala Derrida, mas também o que atravessa toda a leitura e toda a interpretação, toda a representação e toda a «análise». Numa publicação colectiva recente, em Art Since 1900: modernism, antimodernism and postmodernism, Hal Foster, Rosalind Krauss, Yve‑Alain Bois e Benjamin Buchloh lembravam que:

«Se a arte Minimalista reconheceu as condições quer do espaço ambiente quer do sujeito que vê, fê-lo estritamente em termos físicos e perceptuais. Por esta razão a sua base fenomenológica foi posta em questão nos anos setenta e oitenta por alguns artistas e críticos que defenderam que o espaço da arte não é nunca tão neutro e que o sujeito que vê [the viewer] considerado de um modo abstractamente fenomenológico é tendencialmente masculino, branco, e heterossexual. Os praticantes informados pelas teorias feministas, pós-coloniais e queer mobilizaram-se para rebater [pôr a nu a sua insustentação, undercut] esses pressupostos e estabelecer outras formas de espectador [of spectatorship]; este trabalho sobre a representação vis-à-vis a identidade tomou frequentemente a forma da manipulação crítica de imagens dadas, habitualmente fotografias. Todavia, outras práticas – Performance, Video e arte de instalação em particular – continuaram a abertura do corpo e dos seus espaços inaugurada pelo Minimalismo […]. Foi a instalação que atirou tudo para a experiência do espectador, […]». (FOSTER, Hal; KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yves-Alain; BUCHLOH, Benjamin H., «The Art of Suture», Art Since 1900: modernism, antimodernism and postmodernism, London, Thames & Hudson, 2004, p. 654 (sublinhados nossos)).



















quinta-feira, 16 de julho de 2009

A fala dos escritores 1: Mia Couto


















Mia Couto, na Biblioteca de Faro


Ouvindo há poucos dias Mia Couto na Biblioteca Municipal de Faro, na sessão de lançamento do seuJesusalém, questionado acerca da intenção da sua reinvenção vocabular por um dos presentes, não pude deixar de sorrir. Mas não fui apenas eu. Sorrimos todos, da sua irónica e maliciosa esquiva. Eis a sua resposta: «não, não é para chatear os linguistas, como você diz. Nada tenho contra eles. É que eu ouço mal, sabe?»...

Talvez esteja tudo aqui, nesta bela fórmula: a de uma certa, atenta e deslocadora surdez à língua vinda do outro... Ou então a de uma sua escuta que se diria hipermnésica. O que acontece, em Mia Couto, pelas mais diversas vias: a da relação paronomástica, por exemplo, como parece imediatamente perceptível em «pensatempos» ou «jesusalém», etc., onde uma letra cai par dar lugar a outra, desencadeando associações inesperadas: a ideia de um pensamento enraizado no tempo, um pensamento que contém o tempo e, dele grávido e impotente para lhe escapar, a ele permanece preso, pela necessidade que lhe dita ou traz o seu enigma; ou a ideia de um lugar outro, de um espaço inaugural, no qual a relação com o transcendente é, simultaneamente, uma relação com a irredutibilidade da sua distância e onde nada, afinal, se inaugura, porque o começo é uma ideia da história, como não poderia deixar de ser. Mas, em ambos os casos, uma escuta hipermnésica da língua, guiada pelas ressonâncias que a percorrem transversalmente.

Não era Barthes que dizia, em O Prazer do Texto: «A linguagem que falo em mim mesmo não é do meu tempo; está exposta, por natureza, à suspeição ideológica; é pois com ela que tenho de lutar. Escrevo porque não quero as palavras que encontro: por subtracção» (BARTHES, Roland, O Prazer do Texto, trad. de Margarida Barahona, Lisboa, Ed. 70, 1988, p. 82)? Ou Derrida, em O Monolinguismo do Outro: «uma estrutura imanente de promessa ou de desejo, uma espera sem horizonte de espera informa toda a palavra» (DERRIDA, Jacques, O Monolingismo do Outro ou a Prótese da Origem, trad. de Fernanda Bernardo, Porto, Campo das Letras, 2001, p. 35)?

A escrita põe então em jogo o sentido de que não há presentemente uma língua, como nos diz Derrida em O Monolinguismo do Outro, não ser a que, ao escritor, chega vinda do outro. A recusa do escritor situa-se, pois, nesse seu enclave clivado, que é o da impropriedade do dizer comum. A língua não é de ninguém e, ao mesmo tempo, o seu domínio sobre nós, enquanto seus falantes, só passa por nós no momento da sua transformação escrita. Para que esse domínio por nós passe é necessário, no entanto, que nos encontremos, como diz Derrida, sobre o seu limite «inencontrável». O pressentimento da co-extensividade ao outro desse nosso não-domínio da língua que falamos, mas que é a língua que também nos fala, e o apelo que nos vem de uma sua fundamental estruturalidade, a cada instante, põem em jogo a sua subversão pela escrita.

A subversão protagonizada pela escrita supõe nela a afirmação, quer de uma irredutível impropriedade da língua que lhe chega, quer de uma despossessão que é condição constitutiva do sentido, visto ser no processo da sua (re)apropriação que a linguagem e o sujeito se oferecem ao seu devir. Ela só pode ganhar-se a partir de dentro da língua, sobre os limites em que o simbólico se afirma nas coisas, no sujeito e no mundo, e as suas linhas de fronteira se deslocam e (re)cortam.

Eis, portanto, o que nos diria Derrida: que o sujeito que somos se situa, sempre, sobre «o limite inencontrável da língua», que a língua não faz um consigo mesma, e que há o que designa por «monolíngua» - mesmo aqueles que falam diversas línguas são, no fundo, monolingues - mas que, ao mesmo tempo, essa monolíngua não «existe», isto é, não se pode tomá-la de fora. E o escritor percebe-o como ninguém, na singularidade da sua impessoalidade, no momento em que escreve. Pois ele se descobre nem dentro nem fora, mas sobre o seu «limite inencontrável».

Sobre esse limite inencontrável da lei da língua - porque para falar dele era preciso que nele estivéssemos e, na verdade, estar nele é não o encontrar, ou não poder encontrá-lo: tal como estar fora dele: não se pode falar dele a não ser nele - ele apercebe-se, não só de que essa inexistência damonolíngua supõe, não apenas a impossibilidade de a dar como sua, mas também a intuição de que, na verdade, todo o sujeito se articula na historicidade de um movimento pelo qual, na sua escuta, a língua se desdobra num espaço que se descentra de si mesmo.

A sua relação com a língua só pode então ser, quer de inevitável pertença, quer de inevitável excesso. Se ela assume a forma de uma lei, de uma língua da lei, assim como também de uma lei da língua - com os traços ameaçantes da hegemonia colonial: visto que, no interior de qualquer cultura, a sua aprendizagem decorre sempre de uma imposição simbólica, e da colonialidade que a informa - a verdade é que a emancipação parte do seu interior e segue um movimento que a arrasta para fora-de-si.

Nesse aspecto, pressupondo a sua historicidade, a escrita supõe sempre a promessa e o desejo de uma anteprimeira língua, de uma língua mais originária. A promessa, como dirá também Derrida, não é um performativo qualquer, um performativo de entre outros, visto que ele descreve a dimensão própria de todo o falar, e expõe o modo como nele, por um lado, o sujeito se descobre no seu «grau-zero-menos-um»; por outro, a língua caminha, nessa escuta, para o seu exterior absoluto, a partir do que nela há de fantasmaticamente inscrito.

«O monolinguismo do outro tem certamente o rosto e os traços ameaçantes da hegemonia colonial. Mas o que nele permanece inultrapassável, qualquer que seja a necessidade ou a legitimidade de todas as emancipações, é muito simplesmente o «há a língua», um «há a língua que não existe», a saber que não há metalinguagem e que sempre uma língua será chamada a falar da língua – porque esta não existe. Não existe doravante, nunca existe ainda.» (DERRIDA, Jacques, op. cit., p. 102)

Ou ainda:

«A partir do momento em que falo, antes mesmo de formular uma promessa, uma esperança ou um desejo como tais, e aí onde ainda não sei o que me vai acontecer ou o que me espera no fim de uma frase, nem quem, nem o que espera quem ou o quê, já estou nesta promessa ou nesta ameaça – que reúne desde então a língua, a língua ameaçada, prometedora até na ameaça e vice-versa, assim reunida na sua própria disseminação. Não se pode falar de uma língua a não ser nessa língua. Nem que seja pondo-a fora dela mesma (ibidem, p. 36)

E finalmente - quanto ainda a Derrida:

«[...] é preciso escrever no interior, se se pode dizer, das línguas. É preciso apelar a escrita para dentro da língua dada. Para mim isso terá sido, do nascimento até à morte, o francês. [...] Mas esta intimidade desconcertante, este lugar «no interior» do francês, eis que ele não pode deixar de inscrever na relação a si da língua, na sua auto-afecção, se assim se pode dizer, um exterior absoluto, uma zona fora da lei, o enclave clivado de uma referência apenas audível ou legível a esta absolutamente outra anteprimeira língua, a este grau-zero-menos-um da escrita que deixa a sua marca fantasmática «na» dita monolíngua.» (ibidem, pp. 96-97; aqui o negrito corresponde ao meu sublinhado, distinto dos itálicos de Jacques Derrida).

E de novo Roland Barthes: a língua, cujas primeiras verbalizações - como diz Lacan - se iniciam com a mãe (veja-se o seu seminário sobre As Formações do Inconsciente) - antes que a metáfora paterna a estabilize, e a prenda a uma margem estável, ou a aparafuse a um sentido imposto, (pela coação exercida pelo Nom-du-père) - não deixa, para o escritor, de ser o que, em psicanálise, se chama «um objecto», neste caso um objecto fetiche, um objecto substituto do falo «inexistente», e portanto a marca de uma relação que, embora imaginária, se mantém transgressora ou perversamente solta do simbólico.

A relação imaginária com a língua marca-se aqui, como veremos, pelo seu carácter dual ou ambivalente (como ambivalente é, também, segundo Philippe Lacoue-Labarthe, o próprio conceito de imaginário em Lacan) e poder-se-ia descrevê-la como uma relação de dessimbolização (veja-se a descrição que Barthes nos dá de arte, no seu texto sobre a arte pop), ou se quisermos, (com Herbert Marcuse) como de dessublimação.

Tanto uma como outra são imediatamente políticas, na medida em que rompem com a lei que amarra o sujeito a um conceito ou a um lugar, a um Sentido ou a um destino, a uma Vocação ou a uma atribuição. Celebrando o corpo da mãe sob a forma da língua, o escritor exige dele uma exclusiva devoção, supõe nele a presença do que o simbólico lacaniano lhe nega. Por isso o embeleza ou desmembra, o «desfigura», para fazer só seu, suspendendo-o do simbólico que o dá, «hegemonicamente», como a Lei. Eis o que nos diz Barthes:

«Nenhum objecto mantém uma relação constante com o prazer (Lacan, a propósito de Sade). No entanto, para o escritor, esse objecto existe; não é a linguagem, é a língua, a língua materna. O escritor é alguém que brinca com o corpo da mãe (remeto para Pleynet, sobre Lautréamont e sobre Matisse): para o glorificar, para o embelezar, ou para o desmembrar, para o levar até ao limite daquilo que, do corpo, pode ser reconhecido: eu chegaria a fruir com uma desfiguração da língua, e a opinião pública soltaria grandes gritos, pois não quer que se «desfigure a natureza»». (BARTHES, Roland, O Prazer do Texto, op. cit., pp. 78-79)

E uma outra vez:

«No campo intelectual, a escolha política é uma suspensão de linguagem - portanto uma fruição» (ibidem, p. 87).