sábado, 20 de dezembro de 2008

Fragmentos de leitura 5: o (des)enquadramento e o sublime














Caspar David Friedrich - Monk by the Seashore, 1809-1810

I - 1. A influência da estética de Kant poderia ter estado na base ou servido de pretexto a este quadro. A Crítica da Faculdade de Julgar estabelece, num dos seus aspectos, a experiência do sublime como a de uma incapacidade da representação do «abolutamente grande» pela faculdade da imaginação. Do maior e mais potente que a própria «grandeza» ou «medida», do incomensurável, numa palavra, nenhuma compreensão estética é possível. O absolutamente grande é o desmedidamente único. E nós vemos, ali, a silhueta ínfima do «monge» a recortar-se, na berma daquele abismo que o engolfa na sua voragem, sobre/sob a sua imen-sidão.

2. Mas a experiência do sublime, tal como Kant a descreve não é, apenas, a da constatação da impotência da comprehensio esthetica do absolutamente grande. É também a da ideia de uma razão (transcendental) pela qual poderíamos, ao mesmo tempo que incapazes de o restituir pela intuição imaginativa (ou pela representação própria da nossa imaginação), concebê-lo como o infinito na natureza. O monge, no quadro de Caspar David Friedrich pára, fascinado no meio dessa inabarcável e crepuscular vastidão das águas e dos céus, apanhado na sombra e na gravidade de uma espécie de grande anel de Saturno que ali o abraça, no avolumar da tempestade. Vê-se-o ali, como se tolhido do seu passo ou imobilizado. Mesmerizado ou siderado à vista do «colossal».

Dessa grandeza imensa ou absoluta do que os seus olhos não já podem distinguir bem, dir-se-ia que permanece colhido numa espécie de paralizante estupor, mesmo que ainda capaz de uma indagação, pelo meio do mesmo pânico que o acomete e a que sobre-vive, no seu «eis-me aqui, Senhor». Ele está prestes a ser submergido por aquilo mesmo que Kant descreve como sendo da ordem absolutamente grande. Ora, que é o sublime, «matematicamente» (e «dinâmicamente», mais adiante)? Eis o que Kant nos diz, na «Analítica do Sublime»:

«O belo da natureza concerne à forma do objecto, que consiste na limitação; o sublime, contrariamente, pode também ser encontrado num objecto sem forma, na medida em que seja representada nele uma ilimitação ou por ocasião desta e pensada além disso na sua totalidade. [...] Denominamos sublime o que é absolutamente grande. [...] O último é o que é grande acima de toda a comparação. [...] Trata-se de uma grandeza que é igual simplesmente a si mesma. Daí se segue que o sublime não deve ser procurado nas coisas da natureza, mas unicamente nas nossas ideias; [...]. A natureza é portanto sublime naquele entre os seus fenómenos cuja intuição comporta a ideia da sua infinitude. Isto não pode ocorrer senão pela própria inadequação do máximo esforço da nossa faculdade de imaginação na avaliação da grandeza de um objecto. [...] A verdadeira e invariável medida fundamental da natureza é o todo absoluto da mesma [...].» (KANT, Immanuel, «Analítica do Sublime», Crítica da Faculdade de Julgar, trad. de António Marques e Valério Rohden, Lisboa, Gulbenkian, 1990, pp. 137-150).

3. À letra, a experiência do sublime supõe o inimaginável, o irrepresentável ou o «indescritível». No confronto com o sem-limite e, por conseguinte, com o sem-forma do «absolutamente grande» somos postos diante, não de um objecto da natureza - visto que o sem-forma e sem-limite supõe a impossibilidade mesma de objectivação, ou de mensurabilidade - mas do que excede, não apenas a nossa capacidade de intuição ou representação pela imagem - como diz Kant «nada [do] que pode ser objecto dos sentidos, visto nessa base, deve denominar-se sublime» (ibidem, p. 144) - mas também qualquer discernimento da sua conformidade a algum fim ou finalidade (interna: aquela que inscreve a sua própria possibilidade; ou externa: aquela que a poria em relação com a razão prática ,tal como com a liberdade do homem).

4. A experiência do sublime é, pois, numa primeira instância, a experiência do desprazer causado pelo não-poder e não saber, a do não-poder saber e a do não-saber poder, isto é, a de um radical impoder: ele corresponde, em Kant, ao «sentimento da inadequação da nossa faculdade para alcançar uma ideia, que é lei para nós, [que] é respeito» (ibidem, p. 153). Mas esse desprazer, esse represamento ou privação do prazer - Derrida diria aqui: esse «Para Além do Princípio do Prazer», recordando o título de Freud - abre a comporta de uma razão transcendental que seria, para Kant, simultaneamente, nossa e, ao mesmo tempo, a que é, em nós, afecta à nossa impossibilidade da sua representação e, portanto, afecta à sua presentificação negativa. É precisamente o «irrepresentável» ou o «impresentificável» que, ao mesmo tempo que nos habita, nos exclui da exterioridade suposta por toda representação pela imaginação e, assim, define a nossa consonância com o que parece destituído de qualquer finalidade ou confomidade a fins.

«O sentimento do sublime é portanto um sentimento do desprazer a partir da inadequação da faculdade da imaginação, na avaliação estética da grandeza, à avaliação [da grandeza] pela razão e, neste caso, ao mesmo tempo um prazer despertado a partir da concordância, precisamente deste juízo da inadequação da máxima faculdade sensível, com ideias racionais, na medida em que o esforço em direcção às mesmas [ideias racionais] é lei para nós. Ou seja, é para nós lei (da razão), e pertence à nossa determinação, avaliar como pequeno, em comparação com ideias da razão, tudo o que a natureza como objecto dos sentidos contém de grande para nós; e o que activa o sentimento [a nossa exposição ao inabarcável pela imaginação] desta determinação supra-sensível concorda com aquela lei [da razão, aquela que traduz em nós a nossa determinação supra-sensível; quer dizer, a lei de uma razão que é «transcendental»]. [...] Portanto, a percepção interna da inadequação de todo o padrão de medida sensível para a avaliação de grandeza da razão [transcendental] é uma concordância com leis da mesma [razão] e é um desprazer que activa em nós o sentimento da nossa determinação supra-sensível, segundo a qual esse sentimento [de desprazer] é conforme a fins, por conseguinte é prazer, isto é considerar todo o padrão de medida da sensibilidade inadequado às ideias de razão». (ibidem, pp. 153).

5. É o próprio incomensurável - o informe e ilimitado porque absolutamente grande - que, simultaneamente barra e «comporta» em si a ideia dessa razão que, ao mesmo tempo que transcende o que cai na esfera dos objectos e da sua presença (estética), ou da sua representação pela imaginação, constitui também a nossa determinação, a sua pressuposição, como diz Kant.

Trata-se daquela determinação racional pela qual podemos, ao mesmo tempo que colhidos pelo desprazer (o medo e o terror, como se dirá mais à frente) da nossa pequenez perante o inabarcável, pressupor e considerar, por nossa vez, pequeno tudo o que, «a natureza como objecto dos sentidos contém de grande para nós». O que a experiência do sublime supõe, portanto, é precisamente uma espécie de reversão do incompreensível, por absolutamente grande, no pequeno frente à razão.

Entre o absolutamente grande e o seu agora e mesmo assim pequeno, vai um passo sobre o nosso próprio abismo interior: aquele que separa a faculdade da comprehensio aesthetica da razão que nos determina. A experiência do sublime faria aparecer, num outro contexto, o que a psicanálise pensa como sujeito dividido. Entre a sensibilidade - os sentimentos de «prazer»/«desprazer», pertencem-lhe (no que diz respeito aos aspectos da relação entre si e as pulsões) - e essa razão que em nós a transcende (marcando em nós, simultaneamente, o que também a nós nos transcende, na nossa capacidade de representação sensível), ele instala uma fractura e, ao mesmo tempo, parece sugerir Kant, uma superação, pela mesma «razão» que em nós há-de ser a da lei que nos determina.

«Portanto a sublimidde não está contida em nenhuma coisa da natureza, mas só no nosso ânimo, na medida em que podemos ser conscientes de ser superiores à natureza em nós e através disso também à natureza que nos é exterior (na medida em que influi sobre nós). Tudo o que suscita este sentimento em nós, a que pertence o poder da natureza que desafia as nossas forças, chama-se então (ainda que impropriamente) sublime; e somente sob a pressuposição desta ideia em nós, e em referência a ela, somos capazes de chegar à ideia da sublimidade daquele ente, que nos provoca íntimo respeito não simplesmente através do seu poder, que ele demonstra na natureza, mas ainda mais através da faculdade, que em nós está colocada, de ajuizar sem medo esse poder e pensar o nosso destino como sublime acima dele»
(ibidem, p. 162).

6. Frente ao informe, ao incomensurável e ao ilimitado, ao absolutamente grande, ao mais potente que a própria potência e maior que a própria grandeza, somos postos perante o ameaçadoramente estranho. Confrontados então com a possibilidade do nosso «nada» ou da nossa auto-anulação, levados a esse desafio lançado pelo poder da natureza que nos ameça, confrontados com a possibilidade de um abismo, portanto, que não é apenas exterior, mas também interior, somos chamados, não apenas ao nosso ser infinitamente pequeno, infinitamente finito, mas também a uma razão que é, simultaneamente, a razão do que nos transcende e a razão do que nos determina no nosso ser, antes e por fora dele, tal como antes e por dentro dele. Ao infinitamente pequeno e grande do ser, quer na sua abertura primitiva, na sua béance (como diria Lacan), quer no que constituiria o seu inescapável reverso: a Lei ou o Simbólico, que é também o modo de ser do Grande Outro em nós. António Marques chama a nossa atenção, no texto com que prefacia Crítica da Faculdade de Julgar, para a necessidade de ver na descrição kantiana da experiência do sublime a sugestão do ameaçadoramente estranho, ou do que Freud se chamará unheimlich. Essa aproximação com a psicanálise é ela mesma avançada por Jean-François Lyotard, nas suas Leçons sur l'Analytique du sublime (pp. 74-75):

«O belo contribuía para as Luzes, que são uma saída da infância, como dizia Kant. Mas o sublime é uma inflamação súbita, e sem futuro [avenir]. É assim que houve futuro [avenir], e que ele se nos dirige ainda, [a nós] que não esperamos nada, no sentido kantiano. Mas isso não é senão a história, ainda. [...] Sob esses dois aspectos [o da razão e o da imaginação, o da ideia e o da intuição sensível], o pensamento desafia a sua própria finitude, como que fascinado pela sua desmesura. É esse desejo de ilimitação que ele sente no «estado» sublime: felicidade e infelicidade. Que esse desejo seja vão, que ele deva ser relegado para de entre as ilusões inevitáveis, que a crítica classifique finalmente o sublime na vizinhança da demência, que ela mostre que não há valor moral, que enfim a análise desse sentimento seja concedida a título de simples apêndice, sem importância [sans porté], à estética - isso não é senão demasiado evidente. [...] O sublime não é, a este respeito, senão a irrupção, no e para o pensamento, desse desejo surdo de ilimitação. O pensamento «passa ao acto», ele «actua» o impossível, ele «realiza», subjectivamente, o seu todo-potência. Ele frui [jouit] do Real. Que se me perdoe ir procurar, para situar essa violência, termos tomados a um idioma completamente outro, aquele de Freud e de Lacan. Não sou o primeiro a fazê-lo.» (LYOTARD, Jean-François, Leçons sur l'Analyique du sublime, Paris, Galilée, 1991, pp. 74-75).

E Kant:

«Quem teme não pode absolutamente julgar sobre o sublime da natureza e tão pouco pode julgar sobre o belo quando é tomado de inclinação e apetite. Aquele foge da contemplação de um objecto que lhe incute medo; e é impossível de encontrar comprazimento num terror que fosse tomado a sério. Por isso, o agrado resultante da cessação de uma situação penosa é o contentamento. Este porém, devido à libertação de um perigo, é um contentamento com o propósito de jamais nos expormos de novo a ele; não gostamos de recordar uma vez sequer aquela sensação, quanto mais procurar ocasião para tanto. [...]

Assim, continua Kant:

O comprazimento no sublime é por isso também somente negativo (ao invés do belo, que é positivo), ou seja um sentimento da faculdade da imaginação de privar-se por si própria da liberdade, na medida em que ela é determinada conformemente a fins segundo uma lei diversa da do uso empírico. Desse modo a faculdade da imaginação obtém uma ampliação e um poder maior do que aquele que ela sacrifica e cujo fundamento porém é oculto a ela própria; em vez disso ela sente o sacrifício ou a privação e ao mesmo tempo a causa à qual ela é submetida. A estupefacção - que confina com o pavor, o horror e o estremecimento sagrado que apanha o osbservador à vista de cordilheiras que se elevam aos céus, de gargantas fundas e águas que irrompem nelas, de solidões cobertas por sombras que convida, á meditação melancólica,, etc. - não é, na segurança em que o observador se sente, um medo efectivo [...].» (ibidem, pp. 158-167).


7. A experiência do sublime começa portanto por ser a de uma cisão, uma disjunção ou heterogeneidade. Independentemente aqui da sua ordem (crono)lógica ou da sua ordenação, ela lembra a psicanálise em dois aspectos: a) o do unheimlich, o da sensação de uma mortal exteriorização do nosso próprio inconsciente e, com ela, a experienciação do terror infundido pela possibilidade da nossa própria desintegração, pela perda da consistência do ego ou pela rasura do limite entre dentro e fora que o determina (e em que ele se determina) na nossa existência; b) a da ameaça da castração sobre que se fundaria a nosso ser de sujeitos, enquanto experiência traumática da reflexividade ou da reversão da projecção do desejo do desaparecimento do rival, isto é, de um pai morto, experiência da pulsão de morte, no nosso próprio imaginário edipiano.

Ora, no sentido desse confronto com o ameaçadoramente estranho, não estaríamos aqui já muito próximos de uma experiência que seria também a do desenraizamento e da oscilação, como lhe chama Gianni Vattimo, quando aproxima a experiência do shock, segundo Walter Benjamin, da experiência do Stoss, segundo Heidegger? Talvez muito próximos, com excepção dessa razão que («transcendental») nos seria, simultaneamente, exterior e interior, segundo Kant? Fica a pergunta no ar. Porque, na verdade, aquilo de que se fala logo a seguir, em Kant é, como acima vimos, da pressuposição dessa Ideia de razão. Talvez também por isso mesmo, e com razão, observaria Jacques Derrida, em La vérité de la peinture, por um lado, que:

«Essa oposição forma/matéria comanda, sabe-se-o, toda a Crítica [da Faculdade de Julgar] e inscreve-a no interior de uma poderosa tradição. Ela seria, segundo A Origem da Obra de arte, uma das três determinações (hypokeime-non/sumbebekos [substância/ acidente], aistheton / noeton [sensível/inteligível], eidos-morphé/hylé [forma /matéria]) que caem violentamente sobre a coisa [no pensamento ocidental]. Ela busca um «esquema conceptual» (Begriffschema) para toda a teoria da arte. Basta associar o racional ao formal, o irracional à matéria, esta à ilógica, e acoplar o conjunto ao par sujeito/objecto para dispor de uma Begriffsmechanik à qual nada resiste. O uso massivo que dela faz a estética deixaria pensar numa deportação a partir do domínio da arte. Em todo o caso o criacionismo cristão teria trazido uma «incitação particular», uma motivação suplementar a considerar o complexo forma/matéria como a estrutura de todo o ente, o ens creatum como unidade de forma e matéria. Desaparecida a lei, os esquemas da filosofia cristã permanecem eficazes.» (DERRIDA, Jacques, La vérité en peinture, Paris, Flammarion, 1978, pp. 77-78).

8. Se o belo pressupõe a forma, o limite (não nos debruçaremos aqui sobre ele), o sublime convoca a matéria. No que, de resto, Jean-François Lyotard concordaria, observando embora que o sublime kantiano representa já o próprio declínio dessa matriz, ao pôr em jogo um informe em instância de «apresentação negativa» de uma forma que transcende a representação, e retirando daí algumas consequências:

«É uma pressuposição, mesmo um preconceito, uma atitude ready-made, pelo menos no pensamento ocidental, há já dois milénios, pensar que o processo de arte deva ser cumprido segundo a realização de um relacionamento entre uma matéria e uma forma. Esse preconceito permanece activo na própria análise de Kant. [... Mas] Já que a ideia de uma concordância entre a matéria e a forma está em declínio, declínio este já implícito na análise kantiana do sublime [dado que ele supõe o confronto com a desmesura da matéria como informe e sem-limite] (e que foi alternadamente escondido e revelado pela estética durante um século), a aposta das artes, sobretudo da pintura e da música, só pode ser a de aproximar a matéria: isto é, aproximar-se da presença sem recorrer a meios da apresentação». (LYOTARD, Jean-François, «Após o Sublime, Estado da Estética», O Inumano: considerações sobre o tempo, trad. de Ana Crsitina Seabra e Elisabete Alexandre, Lisboa, Estampa, 1990, pp. 142-143)

Por outro lado, observaria ainda Jacques Derrida, ela possui conexões, nomeadamente, com um certo criacionismo judaico-cristão, na sua forma de desligar da forma (a do belo simbólico):

«É essa determinação «subjectiva» do sublime a partir das nossas faculdades que Hegel julgará interessante e insuficiente. [Mas...] Kant e Hegel reflectem no entanto a linha de corte ou antes o pas [o «passo», mas também, o «não»] franqueador dessa linha entre finito e infinito como lugar próprio do sublime e [da] interrupção da beleza simbólica; não é portanto surpreendente que eles considerem ambos um certo judaísmo como a figura histórica da irrupção do sublime, um, Kant, do ponto de vista da religião e da moral, no interdito da representação icónica (nem «Bildnis», nem «Gleichnis»), o outro, Hegel, na poesia hebraica considerada como a mais alta forma negativa do sublime. A forma afirmativa do mesmo sublime encontrar-se-ia, diz ele, na arte panteísta» (DERRIDA, Jacques, ibidem, pp. 153-154).














Barnett Newman, Vir Heroicus Sublimis, 1950-1 (2,42 x 5,41 metros)


II. - 1. O pintor Barnett Newman, de que aqui vemos uma tela, intitulada Vir Heroicus Sublimis (homem herói e sublime) diria, no catálogo da sua primeira exposição, na Betty Parsons Gallery, que a forma abstracta é:

«uma coisa viva, um veículo para um complexo de pensamento abstracto, um transportador dos sentimentos temerosos que ele experimentou perante o terror do inconhecível [the terror of the unknowable]. A forma abstracta era, portanto, mais real do que uma «abstracção» formal de um facto visual com a sua sobreto-nalidade de [se tratar de] uma natureza já conhecida. Nem era ela uma ilusão purista com a sua sobrecarga de verdades pseudocientíficas [...] A questão que agora se levanta é a de como, se vivemos num tempo sem lenda ou mito que possa ser chamado sublime, se nos recusamos a admitir qualquer exaltação em relações puras, se nos recusamos a viver no abstracto, como é que podemos estar a criar uma arte sublime?» (in FINEBERG, Jonathan, Art Since 1940: strategies of being, London, Lawrence King, 1995, p. 99)

2. A sua questão é, portanto, a do sublime «hoje». Antes de o abordarmos, vejamos alguns factos da sua biografia, que nos ajudarão a eliminar certas hipóteses e a concentrarmo-nos noutras. Newman nasceu em Nova Iorque, em 1905, e frequentou a escola Hebraica, assim como o ensino público, enquanto, em casa recebia uma educação religiosa que lhe vinha, através da sua tradição familiar, da sua condição de filho de emigrantes judeus. Durante dois anos trabalhou na loja de manufactura de roupa masculina do pai, para arranjar o dinheiro que lhe faltava, para poder estabelecer-se como pintor, seu sonho de sempre.

Com a bancarrota de 1929, esses sonhos foram por água a baixo e Newman manteve-se a trabalhar para o pai, ao mesmo tempo que, depois do findo o curso, dava aulas, até 1937. Interessava-se por botânica, ornitologia, interesses científicos que conjugava com a sua formação filosófico-religiosa (Espinoza, Edmund Burke, por exemplo, mas também o Talmud e a Tora). A sua obsessão girava, segundo os testemunhos aproveitados por Jonathan Fineberg, em torno da possibilidade de transposição do Génesis para a história do pensamento e para a história da evolução das espécies. Em 1948, chegaria, finalmente, à definição de um acerto, na sua pintura. Pelo meio ficam 43 anos. Quer dizer, a sua entrada na pintura é relativamente tardia. Pinta então o seguinte quadro, intitulado Onement I:



















Barnett Newman, Onement I, 1948.

3. O título do quadro parece-nos não ter, a nosso ver, uma tradução boa em português. Onement é, por um lado, o processo pelo qual um ser devém ou advém, na sua unidade e completude. Mas é mais que isso. Ouçamos primeiro o que Fineberg tem para nos dizer:

«a palavra do título Onement tem uma série de sentidos importantes. É uma componente da palavra atonement que é um conceito importante para os judeus, que eles destacam durante o Yom Kippur. Os Cabalistas vêem este dia santo como o momento para reflectir sobre o mistério da criação. Espinoza, o filósofo que Newman estudou a par dos textos da Cabala, nivelou o conhecimento em três categorias: 1) os dados e as regras aprendidos sem qualquer referência ao intelecto; 2) coisas aprendidas por dedução ou lógica; e 3) (a ordem mais alta do conhecimento) o conhecimento imediato, usando a razão, mas obtido através de uma intuição directa da essência das coisas, um vislumbre que ia para além da razão. Este último nível parecia-se com o que Newman chamava o «sublime»». (FINEBERG, Jonathan, op. cit, pp. 100-101).

4. Ora, «atonement» supõe a ideia de um acto que demonstre «arrependimento» por alguma coisa que se fez. Mas podemos pressentir aí que se trata de uma espécie de reunião, de um at-onement. «Onement», que é parte da palavra «Atonement», indica um dos elementos fundamentais desse processo, que deve ser o de união consigo mesmo, mediante o arrependi-mento, durante o Yom Kippur, assim como por meio da meditação nos mistérios da Criação. Ora, essa união é, no caso de Onement, um acto de produção do UM. É, portanto, um acto de criação. E o interessante começa aqui.

5. Primeiro porque o título é aí sugestivamente «Onement I»... deixando no ar a sugestão de um inacabamento desse devir ontológico. Enquanto primeiro quadro de acerto com a sua poética própria, ele significaria, também, por um lado, a produção de si mesmo como um, num «unamento Um»: o primeiro dos unamentos. Por outro lado, necessariamente, a expectativa de «mais que Um» e, portanto, a insuficiência desse seu devir de si próprio, como se a imaginação fosse aí afectada pela mesma inadequação que a experiência do sublime supõe.

E em segundo lugar, porque o que o quadro mostra é, não tanto (ou não apenas) a forma do UNO, mas antes a forma de uma linha vertical de luz a cortar em DOIS campos de vermelho-terroso alguma coisa na qual já não se está, na qual «nós» já não estamos, e que agora vemos como «fundo». Ora, aqui, precisaríamos ainda de Fineberg, nas suas precisões léxicas, acerca do hebraico:

«Onement I simboliza o Génesis. É um acto de criação e de divisão. O zip de Newman [era assim que Newman chamava a essa tira vertical] pelo meio do quadro abaixo evoca a separação de Deus entre as trevas e a luz, uma linha traçada no vazio. Como o Deus do Antigo Testamento, o artista começa com o caos, com o vazio; Newman começa com uma cor sem mais [a blanck color] - sem textura, sem forma, sem detalhes. As cores em Onement I também simbolizam o Génesis. O vermelho terroso é a cor da terra. Adão [Adam] é o homem criado por Deus, e a palavra hebraica para terra é adamah. Portanto Adão é feito de terra, de barro. Além disso, os humanos são animais que caminham na vertical: o gesto vertical pelo meio da tela abaixo está em lugar [stands for] da humanidade, cuja primeira encarnação foi Adão. [...] O zip assemelha-se às figuras de Giacometti, que apesar das suas superfícies pesadamente modeladas são tão finas que são frágeis, furtivos momentos na existência. E Giacometti expunha em Nova Iorque, pela primeira vez em 1948, exactamente quando Newman pintava Onement I (FINEBERG, Jonathan, op. cit., pp. 100-101).


6. Adão (Adam) é também uma palavra conexa com a que serve, em hebraico, para designar «terra»: adamah. Se ela designa o primeiro homem, designa-o na sua relação de indissociação com aquilo que esteve na sua origem: entre origem e presente, haveria assim, uma espécie de vacilação, de dentro/fora do passado, em que o passado que entra pelo presente adentro. Além disso, o pintor «começa com o caos, com o vazio». O que supõe que o caos, o vazio se não desligam nunca inteiramente do ser que advém.

Newman começa com uma cor sem mais nada - sem textura, sem forma, sem detalhes. A recusa do formalismo vazio, que ele via no abstraccionismo de então, e da impessoalidade utópica da abstracção própria do neoplasticismo de Mondrian (afogado, a seu ver, na metafísica), era também a sua recusa do caos na pintura. Era esse o juízo que ele fazia da pintura de Mondrian, mesmo que mais tarde venha a verificar ter-se enganado. Mas o caos era também o da crise moral, como diria vinte anos depois:

«aqui há vinte anos sentimos a crise moral de um mundo em cacos, um mundo devastado por uma grande depressão e uma severa guerra mundial, e era impossível nesse tempo pintar a espécie de pintura que fazíamos - flores, nus reclinados, gente a tocar violoncelo [como os de Cézanne, Picasso, Matisse]. Ao mesmo tempo não podíamos passar ásituação de um mundo de puras e inorgânicas formas e contornos, ou relações de cores, um mundo da sensação. E eu diria que para alguns de nós, esta era a nossa crise moral em relação ao que pintávamos. De forma que tivemos de começar, por assim dizer, do nada [ou do esgravatar, from scratch], como se a pintura estivesse não apenas morta mas nunca tivesse existido» (FINEBERG, Jonathan, op. cit., p. 103).

Assinalemos aqui esta primeira morte, que mais à frente nos interessará, porque ela se re-edita, com a sua visita aos túmulos dos índios em Miamisburg. A presença supõe a morte, traz consigo a morte, insusceptível de ser deligada do traço do uno. O uno supõe, portanto, o abismo que ele mesmo transpõe.




















III. - 1. Comecemos a tentar juntar algumas pontas soltas do que até aqui foi sendo dito. Primeiro: 1) o sublime representa, por um lado, uma cisão na forma do uno. Ela implica uma ponte sobre o abismo, mas também o abismo sobre que ela se lança. O devir uno supõe um espaçamento no sujeito. Ele dá-se - (o traço de Jacques Derrida) - no pas que Jacques Derrida discerne entre o belo e o sublime, entre o desprazer e o prazer, entre o sem-forma e a forma, entre o caos e o uno. O «pas» é um limite, uma negação: o sublime é sempre um desprazer, uma barreira à compreensão estética; mas é, finalmente, também um limite do limite, uma negação do limite, entre a sensibilidade e o inteligível. Ele é um franqueamento do limite, que levanta a questão da sua diferença.

2. A estética (transcendental) de Kant propõe um passo sobre o abismo, a partir da pressu-posição de que aquela mesma «ideia», que a natureza - bruta e abruptamente, no seu desvão e na sua desmesura, face à nossa finitude e à nossa capacidade de representação pela imaginação - já comportaria, mesmo na ocultação produzida pela sua sensível e «aparente não conformidade a fins», é recuperada como ideia da nossa própria determinação supra-sensível. O sublime constitui, portanto, um desafio que se colocaria à razão. E ao mesmo tempo, ele só pode pensar-se a partir do sujeito, na suas simultâneas, pequenez e grandeza, finitude e infinitude.

3. De onde se deduz, como acentua Derrida, que seria preciso saber de que lado estaria, afinal, a sublimidade. Se do finito, sem o qual o infinito não se coloca como razão e conformidade a fins, uma vez que é a partir da própria inadequação da imaginação que ela assim se põe, se do lado do infinito, e então seria preciso perguntar «por que razão» a «razão» tem ainda lugar dentro e fora da natureza, como natureza (visto que nos determina, enquanto razão teórica ou pura e constitutiva, por um lado, e prática por outro lado) e como não-natureza (visto que o sublime, diz Kant, não deve ser buscado na natureza). É o problema do enquadramento, do parergon, do limite, enfim, e do limite do limite que o solicita, na sua suplementaridade. Diz Jacques Derrida:

«Nenhuma «teoria», nenhuma «prática», nenhuma «prática-teórica» pode intervir efectivamente nesse campo se ela não pesar (sobre) o quadro [quer dizer: se ela não ponderar, não pensar o quadro enquanto enquadramento e, por conseguinte, nas suas implicações], estrutura decisiva do que está em jogo, no limite invisível à (entre) interioridade do sentido (posto em abrigo por toda a tradição hermeneuticista, semioticista, fenomeno-logista e formalista) e (a) todos os empirismos do extrínseco que não sabendo ver nem ler, passam ao lado da questão. [...] A questão que se abre seria a de saber se se deve pensar uma sublimidade da alma a partir de um bordo ou do outro, do infinito ou do finito, sendo entendido que os dois não se opõem, mas transgridem-se um para o outro e um no outro.» (DERRIDA, Jacques, op. cit., pp. 71; 153).

2) O «unamento» - chamemos-lhe assim por enquanto - é movimento de um espaçamento e uma temporização. Se o caos exige a ordem, e portanto o passo a dar-se sobre ele; se o desuno exige a união, e portanto, o arrependimento (atonement), a união há-de reinscrever a desunião; reinscreve-a agora, em relação ao que, antes desunido (o formalismo vazio, a impessoalidade neoplástica, o mundo devastado, em cacos) se reune no momento genesíaco e genético a partir do nada ou dos restos, «from scractch». Em relação a ponte e abismo, um não existe sem o outro. Abolindo-os, eles regressam. (Note-se, já que se fala de abismo, que Newman foi execrado pelos seus contemporâneos, a quem todavia ele muitas vezes ajudou, com a honrosa excepção de Jackson Pollock, o único a não lhe virar costas, apoiando-o na sua segunda exposição).

3) O que podemos ver no quadro de Barnett Newman é uma espécie de inscrição; a inscrição divisória ou a incisão divisiva, o traço dividual de uma individuação, a divisão necessária ao devir da união, do unamento da forma que se desloca do desuno. Essa inscrição de alto a baixo do quadro é uma espécie de traço que se rediz no título como que duas vezes. Em «I» e em onement. A individuação é, em simultâneo, a não-divisão e a divisão, uma vez que é aí que a série se abre, para o conjunto de sete Onements que Newman produziu. No título, «one» ressoa em ambos os seus extremos, como se o resultado do processo de unamento fosse ainda a divisão: Onement One.

A pintura é uma forma de traçar, de dar um passo sobre o abismo, de deslocar o limite do nada, mas também de o «produzir». Um passo sobre o abismo, um não sobre o não do abismo que o próprio passo produz «como tal», na medida em que se coloca como seu limite, como seu interruptor denominativo e pictórico. Caso em que «a sublimidade», tal como o abismo, se teria de pensar nos dois bordos dessa fronteira/desse passo entre a natureza bruta e a razão, entre o finito e o infinito (como diz Jacques Derrida) sem que possa nunca pensar-se definitivamente passado. Oscilação e desenraizamento, portanto, como diria Vattimo. E Fineberg acrescenta:

«Onement também traz consigo uma referência a Eva. O Talmud diz: «É apenas quando ele está completo que ele é chamado «um»... Quando ele é macho conjuntamente com fêmea, como ele é altamente santificado, e zeloso da santificação». Portanto «onement» tem as suas raízes na Cabbala e na literatura do Talmud, que pertencia à formação de Newman. «Onement» é o momento Genético [e não apenas genesíaco]: é Adão e Eva conjuntos [together]; celebra a criatividade humana, especialmente a do artista.» (FINEBERG, Jonathan, op. cit., p. 101).

Ora, é precisamente a fórmula do «pas(so)» sobre(/sob) o abismo que aqui nos parece que se revelaria produtiva. Jean-François Lyotard retomará a questão do sublime e do abismo, a propósito de Barnett Newman precisamente:

«Em 1950-51, Barnette Baruch Newman pinta uma tela de 2,42 m por 5,42 m, a que ele dá o nome de Vir Heroicus Sublimis. No início dos anos 1960, as suas três primeiras esculturas intitulam-se Here I, Here II e Here III. Um dos seus quadros chama-se Now, dois outros têm por título Be. Em Dezembro de 1948, Newman escreve um ensaio com o título: The Sublime is Now. [...] Num curto texto inacabado e datado do fim de 1948, Prologue for a New Esthetic, Newman escreve que, nos seus quadros, não se dedica «à manipulação do espaço, nem à imagem, mas sim à sensação de tempo». «Não se trata, acrescenta, do tempo repleto de sentimentos de nostalgia, de grandes dramas, de associações e de história, o qual foi objecto constante da pintura». O texto é interrompido nesta denegação. De que tempo se trataria? [...] Associamos frequentemente ao sentimento de angústia a eventualidade de nada ocorrer. Confere um valor principalmente negativo à espera de que se trata, se se trata de uma espera. [...] Ocorrerá? A pergunta pode ser feita em todos os tons, como diria o meu amigo Derrida. [...] Newman rompe com a eloquência da arte romântica, mas não rejeita a sua tarefa fundamental, isto é, que a expressão pictórica ou outra seja testemunha do inexprimível. O inexprimível não reside num além, num outro mundo, num outro tempo, mas nisto: que ocorra (alguma coisa)». (LYOTARD, Jean-François, «O Sublime e a Vanguarda», O Inumano: considerações sobre o tempo, trad. de Ana Crsitina Seabra e Elisabete Alexandre, Lisboa, Estampa, 1990, pp. 95-98).


Se o sublime kantiano supõe a apresentação negativa do inexprimível, o que ele apresenta é precisamente «o inapresentável no espaço» da sua própria ocorrência. A incerteza quanto ao devir, num tempo em que a História se suspende (ver aqui no blogue Recapitulações - o quadro VII: os acendentes da instalação, a referência de Jean-Luc Nancy e Lyotard, a uma história suspensa, bem como a de Adorno, na correspondência com Walter Benjamin, a propósito de «O Narrador»). Ela fica suspensa sobre a possibilidade do impossível enquanto acontecimento. Porquê o impossível? Bem, por um lado, o impossível é já o sublime. Por outro, porque o acontecimento já não é previsível, nem antecipável e, por isso, não se deixa encerrar por nenhuma possibilidade do previsto ou do previsível, em nenhuma posse ou controle exercido sobre o tempo, como a modernidade o terá sonhado, procurando pensá-lo a partir da consciência: o falhanço da grande narrativa marxista ou iluminista ou mesmo capitalista, assim como crística, aí estariam para o provar), como diria JeanFrançois Lyotard, com a falência das «metanarrativas». Esse falhanço aparece tratado pela obra que popularizou o nome de Lyotard: A Condição Pós-moderna (assim como O Pós-moderno explicado às crianças). Em O Pós-Moderno Explicado às Crianças pode ler-se:

«As «metanarrativas» de que se trata em A Condição Pós-moderna são aquelas que marcaram a modernidade: emancipação progressiva da razão e da liberdade [aquela a que Kant e Hegel pertencem, por exemplo, e já discernível no projecto iluminista da Enciclopédia; ver a este respeito, por exemplo, o belíssimo texto de Michel Foucault sobre o Was ist Auklärung? de Kant: cf. FOUCAULT, Michel, «O Que São as Luzes?», MOTA, Manoel Barros (org.), Ditos e escritos de Michel Foucault II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento, 2ª ed., trad. de Elisa Monteiro, Rio de janeiro, Forense Universitária, 2005, pp. 335-352], emancipação progressiva ou catastrófica do trabalho (fonte do valor alienado do capitalismo) [a metanarrativa marxista; veja-se, a respeito dessa «catástrofe», o livro Marx & Sons, em que Derrida responde aos detractores do seu Spectres de Marx (cf. a este respeito PEREIRA, José Paulo, O Exercício da Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007)], enriquecimento da humanidade inteira através dos progressos da tecnociência capitalista, e até, se considerando o próprio cristianismo na modernidade (opondo-se neste caso, ao classicismo antigo, [a da] salvação das criaturas através da conversão das almas à narrativa crística do amor mártir. (LYOTARD, Jean-François, O Pós-Moderno Explicado às Crianças, trad. de Tereza Coelho, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 31)

Para os nossos propósitos e dentro do âmbito do que se foi aqui (no blogue) dizendo, essa falência prende-se, transversalmente, com a impossibilidade de conceber-se a noção de um tempo inteira e antecipadamente orientado, da consciência de um rumo da História, cuja certificação estaria, agora, cada vez mais em causa. Recordemo-nos do que diz Benjamin, acerca do tempo da massa e do espaço das multidões, a propósito de Baudelaire: o tempo massivo do informe da mémoire involontaire, o tempo do «choque» (e do desenraizamento heideggereano), o tempo concentrado da «imagem dialéctica» e a sua plasticidade histórica, projectada a sua «obscuridade profética» neste tempo «global» do incomensurável e, portanto, também no tempo de uma historicidade irredutível do acontecimento ao curso projectado ou ao programa dialéctico de qualquer história teleologicamente concebida, enquanto rumo definido, - o tempo, enfim, do «choque» - não será também o tempo do «Ocorrerá?» a que aqui Lyotard se refere? Ele acrescenta, num outro texto, «O Instante Newman»:

«A obra de Newman pertence à estética do sublime que Boileau introduziu com a sua tradução de Longino, a qual se elaborou lentamente na Europa, desde o fim do século XVII, e da qual Kant e Burke foram os analistas mais escrupulosos e que o idealismo alemão, o de Fichet e de Hegel nomeadamente, incluiu (e por isso mesmo não o percebeu realmente) no princípio de que o todo do pensamento e da realidade cria um sistema. [...] Na Crítica da Faculdade de Julgar, Kant esboça, num rasgo de inspiração quase involuntário, uma outra solução [diferente da solução de Burke] para o problema da pintura sublime. Não se pode, escreve Kant, apresentar no espaço e no tempo o infinito da potência ou o absoluto da grandeza, os quais são Ideias puras. Mas, podemos, pelo menos, «evocá-los», por meio daquilo a que dá o nome de «apresentação negativa». Deste paradoxo de uma apresentação que não apresentaria nada, Kant dá, por exemplo, a interdição das imagens pela lei mosaica. É apenas uma indicação, mas anuncia as saídas abstraccionistas e minimalistas pelas quais a pintura tentará escapar à prisão figurativa» (LYOTARD, Jean-François, «O Instante Newman», op. cit., p. 91).

Como se traduziria isto na pintura de Newman, em particular? Um quadro de Newman não pressupõe já nenhumas histórias, como vimos: «uma tela de Newman opõe às histórias a sua nudez plástica. Está tudo ali, dimensões, cores, traços, sem alusão» (ibidem, p. 86). O seu espaço já «não é triádico, no sentido em que seria instado sobre um destinador, um destinatário e o um referente. A mensagem não «fala» de nada, não emana de ninguém. Não é Newman quem fala, quem faz ver, pelo meio da pintura. A mensagem (o quadro) é o mensageiro, «diz»: aqui estou, ou seja: pertenço-te, ou sê minha. Duas instâncias: eu, tu, insubstituíveis e que só ocorrem na urgência do aqui-agora. [...] A mensagem é a apresentação, a apresentação de nada, ou seja: da presença.» (ibidem, pp. 87-88). O que significa que, nessa pintura, é o lugar do terceiro (da comunidade inexistente, do consenso impossível, da ideia Impresentificável) que abre o desvão do seu abismo. Ouçamos de novo Jean-François Lyotard, acerca do que ele pensa que em kant é já uma antecipação do que estará no cerne da «pintura moderna»:

«O sublime é outro sentimento [diferente do sentimento do belo]. Ocorre quando, pelo contrário, a imaginação falha ao «presentificar» um objecto que venha, nem que seja apenas em princípio, entrar em concordância com um conceito. Temos a Ideia do mundo (a totalidade daquilo que é), mas não temos a capacidade de dar um exemplo dele. Temos a Ideia de simples (o não-decomponível), mas não podemos ilustrá-la através de um objecto sensível que disso seria um caso específico. Podemos conceber o absolutamente grande, o absolutamente poderoso, mas qualquer «presentificação» de um objecto destinado a «fazer ver» essa grandeza ou esse poder absolutos surge-nos, ainda como dolorosamente insuficiente. Estas são ideias de que não há presentificação possível, e portanto, não fazem conhecer nada da realidade ([d]a experiência) proíbem também a concordância livre das faculdades que produz o sentimento do belo, impedem a formação e a estabilização do gosto [em torno do belo e da harmonia que este supõe, entre o jogo livre das nossas faculdades e o sentimento de prazer suscitado pelo objecto, tomado fora da sua existência, suspendido da sua determinação enquanto existente, da sua finalidade prática e dos seus «atractivos»]. Pode-se dizer que são impresentificáveis. [...] Fazer ver que há algo que se pode conceber e que não se pode ver nem fazer ver: eis o propósito da pintura moderna. Mas como fazer ver que há algo que não pode ser visto? O próprio Kant indica a direcção a seguir, nomeando o informe, a ausência de forma, um indício possível d impresentificável. Também diz da abstracção vazia que sente a imaginação à procura de uma presentificação do infinito (outro «impresentificável») que essa abstracção em si mesma é como a «presentificação» negativa. Cita o «Não farás para ti imagem de escultura, etc.» (Êxodo, 2,4) como a passagem mais sublime da Bíblia, no sentido em que proíbe qualquer «presentificação» do absoluto. (LYOTARD, Jean-François, op. cit., pp. 22-23)

A que se deverá então um título como Vir Heroicus Sublimis (homem heróico e sublime)? Há uma passagem curiosa da vida de Newman que é relatada também por Fineberg (tal como pela maioria dos autores). Lyotard reconta-a assim:

«Newman conta que no mês de Agosto de 1948, visita os túmulos (os «mounds») dos Índios Miami, no Sudoeste do Ohio e a fortificação indiana de Newark, Ohio. «De pé diante dos túmulos de Miamisburg [...] fiquei confundido, escreve ele, pelo carácter absoluto da sensação, por essa simplicidade natural». Numa conversa ulterior narrada por Hess, glosa este acontecimento do lugar sagrado. Olha-se o sítio e pensa-se: «Eis-me aqui... e além, lá longe, (para além dos limites do sítio), é o caos, a natureza as ribeiras, as paisagens... Mas, aqui, adquirimos o sentido da nossa própria presença... Veio-me a ideia de tornar o espectador presente, a ideia de que o homem está presente...». [...] A arte não é um género definido por um fim (o prazer do destinatário), menos ainda um jogo, cujas regras deveriam ser descobertas; leva a cabo uma tarefa ontológica, ou seja «cronológica». Cumpre-a sem acabar. É necessário recomeçar sem fim o testemunho da ocorrência. [...] A obra ergue-se no instante, mas o raio do instante descarrega sobre ela como um comando minimal: .» (LYOTARD, Jean-François, «O Instante Newman», op. cit., pp. 92-94)

«Diante dos túmulos» que se guardam no lugar sagrado - e da morte - o caos afasta-se: condição para que possamos aceder à nossa presença: «o quadro representa a presença o seu oferecer-se aqui e agora». Ele não conta: ele é o acontecimento que ele mesmo se recusa a contar, pois esse é o seu testemunho da ocorrência. Que haja quadro e não o nada (que haja enquadramento e sujeito, visto que um não vai sem o outro, mesmo se para dizer o não-quadrável ou o impresentificável e, por conseguinte, a interrogação de um e de outro e nela a afirmação da existência no tempo) é, finalmente, no confronto com o impresentificável do Tempo, o seu mistério e o da criação, a sua criação como incisão no espaço. O quadro de Newman é aí uma espécie de performativo, de gesto de um dizer que é já acção de produzir. E nele uma convocação do espectador a esse devir do sujeito/quadro em lugar do nada, a essa presença do impresentificável que é o passo sobre/sob o seu abismo contemplativo. Mas a descrição de Newman da experiência associada à sua visita dos túmulos de Miamisburg, e à intenção de tornar o espectador presente, sugere também que o quadro é posto no lugar da sepultura. Sepultura do caos, da natureza - além - que se afasta, o quadro é também um lugar do sagrado, do separado (precisamente o que sagrado significa). O lugar em que a instância do terceiro se abre à experiência do Outro. Talvez por isso mesmo, quando é convidado a pensar no interior de uma sinagoga, em colaboração com um arquitecto, Newman venha a dizer, num texto que escreve em 1963:

«Aqui, nesta sinagoga, cada homem está sentado, isolado no seu «dugout», esperando que seja chamado, não para subir a um estrado, mas para escalar uma colina onde, sob a tensão do Tzimtzum que cria a luz e o universo, ele pode tomar consciência do sentido total da sua personalidade diante da Tora e do seu nome». [E, comenta Lyotard] A «colina» central onde se lê a Tora, está [no texto de Newman] escrita sob o nome de «mound» [o nome dos túmulos de Miamisburg], sobre os esboços e o plano. Esta condensação do espaço índio e do espaço judaico tem a sua origem e o seu fim numa tentativa de captar «a presença». A presença é o instante que interrompe o caos da história e lembra ou chama apenas, que «há» antes de qualquer significado daquilo que há.» (LYOTARD, Jean-François, «O Instante Newman», op. cit., p. 93)

Ora, «a presença» é o nome do impresentificável (tal como a Ideias de mundo, ou de simples, ou de absolutamente grande), do que não pode ser abarcado na sua totalidade, «sob a tensão do Tzimtzum que cria a luz do universo». Olhando para o quadro, e seguindo os elementos de Lyotard e os apoios de Fineberg, observam-se ali esses raios de imperativo ontológico, de um urgente «presente», como se eles se descarregassem, a distâncias variáveis, num espaço cuja profundidade é impossível de determinar, mas que vem precisamente a invadir o espaço do espectador. É nessa distância variável e indecidível que eles acolhem o espectador na sua presença. A dimensão épica (o heróico: lembremo-nos, simultaneamente, da sugestão de Fineberg, estabelecendo a analogia entre os onement de Newman e as figuras de Giacometti) é ali a de uma presença sempre retomada e fulgurante do mesmo acontecimento de divisão, da mesma presentação (negativa) do mesmo «onement», do mesmo raio de luz em instantes diversos e dispersos (o que não significa desordenados: Newman media cuidadosamente as distâncias no quadro, calculava-as obsessivamente; mas também não significa que sejam «successivos») e sem espécie nenhuma de sequência ou continuidade, uns mais à frente que outros, outros mais indiscerníveis que alguns deles, do vermelho de que emergem e em que submergem, mas afastados entre si, nessa espécie de vibração enérgica do seu sem-fundo.