I - 1. Na peça
A Compra do Cobre, há um interessante e instrutivo diálogo sobre «a quarta parede» - no que diz respeito à «destruição da identificação e da ilusão» - isto é, aquela parede de que Walter Benjamin sublinha a necessidade de abertura, quando nos indica a necessidade de «enterrar a orquestra». Nesse diálogo, discutem-se (pré-)conceitos de teatro. Dele resulta uma noção nítida, impossível de ignorar, do que o «teatro épico» pretende afastar, como característica do «teatro tradicional» e de vocação mimético-aristotélica ou naturalista. Trata-se de sacudir o seu torpor narcótico, o
voyeurismo que lhe é próprio, bem como o seu fatalismo histórico, a indiferença perante a vida, opondo-se à
dissociação da sua
sensibilidade, como diria o poeta Thomas Stearns Eliot. O passo a que nos referimos é o seguinte:
«[...]
DRAMATURGO:
O que acontece à quarta parede?
FILÓSOFO
O que é?
DRAMATURGO
Habitualmente, fazemos teatro não como se a cena tivesse três paredes, mas quatro; estando a quarta do lado do público. Suscitamos e alimentamos a ideia de que o que se passa em cena é um processo de acontecimentos autênticos da vida; ora na vida evidentemente não há público. Fazer teatro com a quarta parede significa, pois, fazer teatro como se não houvesse público.
ACTOR
Compreendes, o público vê, sem ser visto, acontecimentos bastante íntimos. É exactamente como se alguém, por um buraco de uma fechadura, espiasse uma cena cujos protagonistas estivessem muito longe de desconfiar que não estão sós. Na realidade, arranjamo-nos para que tudo seja visto sem dificuldade. Simplesmente o arranjo é camuflado.
FILÓSOFO
Ah, bom! O público admite tacitamente que não se encontra num dado teatro e que a sua presença, aparentemente, não é notada. Tem a ilusão de se encontrar diante do buraco de uma fechadura. Mas então deveria esperar até estar no vestiário para aplaudir.
ACTOR
Mas, justamente, os seus aplausos confirmam que os actores conseguiram representar como se ele não estivesse presente. [...]»
2. E no texto «Cena da rua», observa Brecht:
«O aspecto decisivo é que, na nossa cena da rua, uma das caraterísticas maiores do teatro tradicional está ausente: o preparar da ilusão. A apresentação do nosso demonstrador tem o carácter de uma repetição: o acontecimento já se produziu, o que tem agora lugar é a sua repetição. [...] Que a cena de teatro siga, neste ponto, a cena de rua e o teatro não esconderá mais que é teatro, assim como a demonstração na esquina da rua não esconderá mais que é demonstração (não se apresenta como acontecimento). [...] A representação tem por pretexto um incidente que pode ser diversamente apreciado; pode repetir-se sob uma forma ou sob outra e não está ainda acabado, terá consequências, de tal maneira que o julgamento que se emite sobre ele tem importância.» (AA VV, Estética teatral - textos de Platão a Brecht, 2ª ed., trad. de Helena Barbas, Lisboa. Gulbenkian, 2004, pp. 476-477; 472-473).
3. Três coisas nos fixarão a atenção: a) a posição e as implicações desse «ver sem ser visto», por parte do público, lugar de alienação e de exercício de um poder que é também o que o sujeita, enquanto espectador; b) a ocultação da preparação da ilusão; c) o inacabamento que pressupõe, no incidente a representar, a noção de um passado que, eximindo-se ao seu fechamento na plenitude presente do que já teve lugar, age no seu por vir. Começaremos pelo segundo destes dois aspectos da mesma coisa - b). Nele se verificaria isto: a não ocultação da repetição seria um signo teatral. Aí seria preciso narrar porque, como se depreende do facto de que nenhum acontecimento é inteiramente redutível à sua própria presença, nem a História não fala por si mesma, nem os factos. Um acontecimento não é, de resto, um facto nem fala por si. E narrar supõe aqui, como se adianta em c) a descontinuidade própria do que é repetido. A cena de rua é o lugar do discurso performativo, tal como no-lo descreve Homi K. Bhabha. Isto deverá permitir-nos, no final, cruzar estas passagens de Brecht com o afloramento de algumas das questões levantadas pelo «pós-colonial» (onde o discurso cristão se re-inscreve com um desnível que o contradiz, extraindo das suas dobras o que nele há ainda de antropofágico).
4. Narração descontínua e deslocadora, pois, na medida em que repetida segundo diversos ângulos, conforme os diferentes tipos e movimentos do que se deve encarar, não apenas como sua re-percussão, mas também como, à luz do que Walter Benjamin pressupunha no conceito «imagem dialéctica» e de figurabilidade ou plasticidade da história, acção do passado pelo presente adentro (ver aqui, no blogue, «Fragmentos de leitura 2 - Walter Benjamin e a teoria do «choque»»). O que implica, por outro lado, a possibilidade de uma proliferação das vozes, bem como de uma abertura do sujeito plural. Nenhuma Voz sagrada - silenciosamente sagrada - portanto, para nos dar definitiva conta da «verdade» (ver aqui no blogue «Recapitulações - os quadros X: o palco do gesto»). Enquanto que no teatro tradicional a ilusão de uma «história» que por si mesma falasse seria preparada como tal - o que pressupõe que o que nela se oculta seria precisamente a refracção necessariamente pressuposta pela repetição - na cena de rua do «teatro épico» ela é assumida. Se o teatro tradicional oculta a preparação da ilusão, tal não acontece, pois, na cena de rua do teatro épico, onde ela é antes manifesta, quer dizer, destruída.
2. Em a) o «buraco da fechadura» é bem a figura (a sinedóque, ou a metonímia, mas também o símbolo) de uma quarta parede frontal-transparente do cubo cenográfico que permanece tacitamente fechada, à maneira de como, no sistema prisional, (cujo modelo de referência - numa outra esfera de considerações, mais amplamente cultural, e não considerada como estritamente teatral - poderia ser o estabelecido pelo protótipo de J. Bentham, tal como dele nos fala, nos seus estudos, Michel Foucault), o guarda vigia os detidos sem que estes possam ter qualquer ideia de quando estão a ser vistos.
O Panóptico de J. Bentham
Para quem espreita pelo buraco da fechadura, e enquanto espreita, dir-se-ia, no entanto, que nem buraco há: é o próprio sujeito que é um furo, como diria Lacan. O que significa que essa alienação preparada escaparia, em acto, se ela é efectivamente uma ilusão cuja preparação é ocultada, à percepção do voyeur. A experiência do «ver sem ser visto» - aquela em que assenta o peep-show, o voyeurismo - é a que funda, na modernidade, a condição da ilusão realista e a ilusão do controlo dos estados de coisas. Poderíamos dizer, de uma outra forma: essa condição é a condição ilusória do controlo do exterior, nas relações de poder. Poderíamos encontrar isto em Wajcman. Observará Gérard Wajcman, em Fenêtre: chroniques du regard et de l'intime, a propósito do deslocamento inaugurado pela janela albertiana na pintura, em relação à pintura medieval:
«Janela olhada, o quadro é o lugar e o agente de uma reversão. Subversão do olhar. Destituição do primeiro [o Deus medieval] e instituição do segundo [o homem renascentista], entre o Outro e o olhar do Contemplador, a troca trocou-se. O Outro foi posto à distância, o Outro doravante é visto. Visto, ele é despojado da sua potência de olhar-mestre. O sujeito que vê [le voyant] tomou-lhe o lugar, mas no seu lugar, do outro lado, deste lado aqui da janela. O quadro, a janela italiana torna-se lugar de um olhar-mestre do homem. O homem não está já sob o Olhar do Outro, à sua janela, ele não está já no quadro. [...] Submeter o visível, isso é não apenas reduzi-lo ao estado de objecto, é [também] fazê-lo depor armas, [fazer com] que ele baixe os olhos. O poder de olhar, é também o poder de não ser olhado. [...] Tudo retorna a esta fórmula: ver sem ser visto. É a fórmula do panóptico, o que Jeremy Bentham porá em acção no seu panopticon. Como tal, ela é a expressão do todo-poderoso. Nenhum poder se conquista sem se assegurar do olhar, mas a potência plena do olhar não é inteiramente realizada na capacidade de tudo poder ver. É preciso ainda não ser visto. Ver sem ser visto, é o próprio atributo de Deus, de um deus que, quaisquer que sejam os seus avatares, é sempre mais ou menos um deus oculto. Ver sem ser visto, esse poder é um atributo dos deuses, dos príncipes e de todos os poderosos.» (WAJCMAN, Gérard, «L'invention du caché», Fenêtre: chroniques du regard et de l'intime, Paris, Verdier, 2004, pp. 363-365)
Gérard Wajcman parte da seguinte premissa: o olhar renascentista, tal como ele é pensado no tempo de Alberti e implicado no seu tratado, procura furtar-se à sua própria e anterior exposição ao Outro, a qual subtende toda a iconografia Medieval. Vejamos como ela nele se formula:
«Alberti foi o teorizador e o agente principal desta perturbação. Em suma, até à Renascença, a pintura foi o lugar de passagem do Invisível ao visível, o lugar de uma visitação de um Outro mundo ao nosso mundo. Pela janela do quadro, como nos retratos flamengos, vêm-nos ver; Deus, Cristo e os santos, o povo do mundo invisível lá no alto vinha contemplar a criação e as criaturas cá em baixo, vigiá-las, submetê-las e pelo menos fazer-se-lhes lembrar. A pintura era no mínimo um periscópio do céu sobre a terra. Ela era ainda mais. Poderíamos dizer assim as coisas: ir ver uma pintura era ir fazer-se ver pelo Outro, colocar-se sob o seu olhar, submeter-se ao seu olhar mestre. Tal era no fundo a função do ícone, [...] o fundamento da imagem cristã. Situa-se tradicionalmente o seu advento no fim do século IV, com os relevos da base do obelisco de Constantinopla» (WAJCMAN, Gérard, op. cit., p. 347)
Ora, a mutação operada pela janela albertiana implica, em primeiro lugar, uma passagem, da imagem que nos olha, para a imagem que somos, desta feita, nós a olhar. Permuta ou troca de posições e de olhares entre deus e o homem, pela qual, no entanto, nos tornaríamos todos filhos de um deus menor... Desde logo porque sujeitos ao «ponto de vista», que é a versão mitigada do olhar omnividente e omnipresente a que a máquina de Alberti procura escapar, reservando-Lhe, então, o lugar do «ponto de fuga». Deus é a natureza, como crê a Idade Média, no sentido de ser seu Criador. Mas o inverso não se verifica: a natureza não é Deus, conforme, de resto, aos preceitos da proibição bíblica da idolatria. Ora, aquela reversão albertiana não se reduz, evidentemente, para Wajcman, a uma simples troca de posições. Porque por um lado, inventando no homem um deus oculto, a sua janela dá d'Ele, contudo, uma versão diminuída, terrenamente reduzida ao «ponto de vista». Já por aí haveria uma diferença assinalável. A sua (pretensa) secularização, que se projecta na conquista do mundo, entretanto operada pela geometria, a cartografia, a física, a matemática e a óptica, dá dele, ao mesmo tempo que exprime o seu desejo, a figura do zarolho imóvel, cíclope e paralítico, na posição em que o quadro o põe: preso ao «ponto de vista» - como um insecto preso na sua própria teia - ele seria um deus mortal, em suma. Mas, além disso, é aí que a janela albertiana arrasta consigo, justamente no ponto em que instaura o advento do espectador como elemento demarcador e determinante da Modernidade, uma dupla ilusão:
«A noção da pintura ilusionista, pela qual se designa a pintura perspectiva, contém a sua própria ilusão, a de crer que a ilusão em pintura seria simplesmente aquela de ver para lá da superfície do quadro, como por uma janela: ilusão de transparência em máscara de uma outra: a de crer que, não vendo já o olhar, nós não somos olhados. [...] O ilusionismo em pintura engendra o espectador e no mesmo movimento dissimula-lhe que a sua posição de espectador, de livre observador, é uma miragem. [...] Lacan levantará o véu de tudo isso para mostrar a verdade: que não há nada a ver, quer dizer que aquilo que é elidido no visível, para lá do olhar e com o olhar, é o facto de que nada em verdade o espectador observa senão ele mesmo, o seu próprio olhar situado no campo do Outro. O seu olhar ex qua, colocado no exterior.» (WAJCMAN, Gérard, «Naissance de l'intime» op. cit., p. 434)
3. Portanto, ilusão da ilusão, como frisara Rothko, a propósito do realismo em pintura (ver aqui no blogue dois textos: «Recapitulações - os quadros IX: a carne opaca da pintura» e «Recapitulações - o quadro III: a recordação de cobertura»). E aqui «o exterior» é um dos nomes do abismo. Como afirmará Heidegger - a propósito da imagem do mundo como característica da Modernidade - na medida em que o homem se põe como imagem, o homem põe-se a si mesmo «em cena». Ora, é precisamente no espaço aberto pelo «si mesmo» dessa «re-presentação» que a interrogação se coloca: em que consiste ele, nessa cena narcísica? Em outros termos, o que contemplamos nos quadros são, ao mesmo tempo, as figuras do nosso próprio abismo, situados agora no exterior: precisamente num campo que é também o campo da Lei e do grande Outro. Onde, de facto, nunca deixámos de estar, aliás. Esse campo é, bem vistas as coisas, aquele em relação ao qual qualquer desvio nos é, como se acaba de ver, simultaneamente sujeitante, devoradora e inversamente incorporativo. Para resumir, regressando provisoriamente a Brecht, a partir do que se acaba de observar: o fantasma que assola o teatro tradicional, pelo buraco da sua fechadura não é apenas o da imagem como presença plena do ser, signo da «liberdade» do observador (não fôra o facto de aí, por virtude da irredutibilidade da com-posição que afecta a relação entre o homem e o mundo, a conquista deste último arrastar consigo a sujeição do primeiro). O que seria coisa bastante moderna, como frisaria Heidegger. Diz-nos ele em Caminhos da Floresta, a propósito do «Tempo da Imagem do Mundo»:
«O que distingue a essência da modernidade não é que se transite de uma precedente imagem do mundo medieval para uma imagem do mundo moderna, mas sim que o mundo se torne, em geral, imagem. [...] Re-presentar significa aqui trazer para diante de si o que está-perante enquanto algo de contraposto, remetê-lo a si, ao que representa, e, nesta referência, empurrá-lo para si como o âmbito paradigmático. Onde tal acontece, é o homem que, sobre o ente, se põe como imagem. Mas na medida em que o homem, deste modo, se põe como imagem, ele põe-se a si mesmo em cena, isto é, no círculo aberto do que é universal e publicamente representado. Com isso, o homem põe-se a si mesmo como a cena, na qual o ente doravante se tem de re-presentar, presentificar [präesentieren], isto é, ser imagem. O homem torna-se no que representifica [Repräsentant] o ente, no sentido do que é objecti-vo.» (HEIDEGGER, Martin, «A Imagem do Mundo», Caminhos da Floresta, trad. de Alexandre Franco de Sá, et alii, Lisboa, Gulbenkian, 1998, pp. 113-114)
4. O homem moderno é portanto o que re-presentifica. Toda a «representação» é antropomórfica, como diria Nietzsche, a pensar, por exemplo em Kant e na coisa «em si», no seu Livro do Filósofo. A própria ideia de uma sequência histórica é, já de si, um antropromorfismo, pois, apenas em nós se produz a ligação entre a sensação e o movimento que lhe é consecutivo, ou entre percepção de certo estado de coisas e a sua determinação, sob a forma de acção ou reacção. É, pois, compreensível que a representação tenha lugar precisamente como movimento pelo qual o homem se objectiva, descritiva e narrativamente. A sua observação dá-nos bem a noção de quanto a representação supõe de objectivação do sujeito. Trata-se, em Heidegger de uma observação geral quanto ao que, do ponto de vista da sua concepção própria, distinguiria o modo pelo qual a modernidade se representa a si mesma, na sua relação com o mundo. O que não evita, entretanto, que as suas observações possam ser aplicáveis ao discernimento de uma premissa de pensamento em que também o «teatro tradicional», aristotélico ou naturalista entra. Seria, no entanto, preciso então reforçar esta noção: o fantasma que a esse teatro assola seria, por isso mesmo, não apenas o do mundo-imagem, mas também, correlatamente, o da sua conquista e o da sua posse, o da sua detenção em extensão:
«O entrelaçamento, decisivo para a essência da modernidade, dos dois processos - que o mundo se torna imagem e o homem se torna sujeito - lança, ao mesmo tempo, uma luz sobre o processo fundamental, à primeira vista quase contraditório, da história moderna. Quanto mais inexoravelmente o mundo estiver à sua disposição como conquistado, quanto mais objectivamente aparecer o objecto, tanto mais subjectivamente, isto é, tanto mais manifestamente se erguerá o subjectum, tanto mais irresistivelmente a consideração do mundo e a doutrina do mundo se transformará numa doutrina acerca do homem, em antropologia. [...] O processo fundamental da modernidade é a conquista do mundo como imagem». (HEIDEGGER, Martin, op. cit., pp. 116-117)
5. Se o homem moderno encontra a sua medida como subjectum, a partir do seu desdobramento da extensão do todo-imagem mensurável, a antropologia é já um dos momentos dessa sua re-presentativa projecção in extenso: «imagem do mundo, compreendida essencialmente, não quer, por isso, dizer uma imagem que se faz do mundo, mas o mundo concebido como imagem. [...] Onde se chega à imagem do mundo, cumpre-se uma decisão essencial sobre o ente na totalidade. O ser do ente é procurado e encontrado no estar-representado» (HEIDEGGER, Martin, op. cit., pp. 112-113). Poderíamos aqui abrir, agora, uma primeira especificação. Vejamos de que forma isto ganha concreção, no plano histórico. Eis o que, para Gérard Wajcman, foi a «ilusão» político-ontológica, bem como histórico-epistemológica, que acompanhou, com o processo das Descobertas, o advento da «pintura perspectiva». Dirá ele:
«O homem da Renascença vai entregar-se a um reajustamento do seu quadro natural. Quer dizer que não é apenas o espaço pictural que, com a perspectiva, será remanejado, é também, através do progresso da cartografia, o espaço geográfico. A conquista do mundo, as grandes viagens e descobertas cuja época então se abre, é em primeiro lugar uma conquista do olhar. O homem deseja ver. Ele deseja ver mais. Mais longe. Além das montanhas e do outro lado dos mares. A alta navegação, invenção portuguesa, condição de grandes viagens e descobertas, é a capacidade de se lançar sobre o mar tirando as costas dos olhos. Mas tirar as costas dos olhos, é também em verdade a faculdade de se lançar ao mar imenso sem ser seguido pelo olhar. É a potência de lançar o seu próprio olhar para longe e diante de si, abandonando todo o olhar.» ( WAJCMAN, Gérard, op. cit., p. 368).
6. Se regressarmos ao pressuposto realista do «teatro tradicional» deveríamos agora poder dizer: a sua ilusão referencial seria, portanto, a de «um mundo conquistado», ontológica e epistemologicamente dado como ente plenamente presente, metafísica e an-historicamente posto diante de si, como «imagem» do integralmente Presente. Ela funcionaria como registo de uma ficção «teórica» regulada por um imaginário «expansionista», de controlo ou de dominação. Convocar à presença significa, aqui, procurar submeter ao tribunal de uma razão simbolicamente sancionada, nestes termos, por aquela mesma distinção que, entre o palco e o teatro, entre a cena e o espectador se instala: a «janela» é a divisória simbólica de uma quarta parede que sustenta uma sua presumida mas falsa liberdade, própria de quem apenas olha a partir de fora. Tratar-se-ia, nesse Simbólico, de uma prevenção historicamente denegadora da sua inter-relação, recalcadora de qualquer entrevisão da sua com-posição. Dir-se-ia que, no teatro tradicional, todo o «efeito de real» é aí sancionado de uma forma notoriamente regressiva. Não há nele outro a não ser o olhar hipnotizado, - não se olha de outro ângulo, não há deslocamento, nem abertura, de historicidade - a através do buraco da fechadura... Rasura da com-posição, sob o pânico vertiginoso desencadeado pela reduplicação dos espectros. Dirá Gérard Wajcman, numa outra passagem:
O quadro-janela [de Alberti] é uma arma V3, [uma] máquina de ver, de velar e de roubar [voler]. O quadro-janela, a invenção do oculto. O quadro-janela é aquilo pelo qual o Homem se liberta de um olhar e se torna assim o Vidente do Mundo, de um mundo tornado imagem. [...] Ver é velar. Mas há outra face da resposta que o Homem, para assentar o seu poder, deve trazer à anterioridade irredutível do olhar de Deus e ao seu poder. Ela consiste ainda em humanizar o olhar de deus: desta vez ocultando-se dele. Ver, aqui, é velar-se [...] Ora esta elisão é dupla, simbólica e real. O sujeito que vê é «elidido» como corpo, reduzido ao seu olho, e o seu olho a um ponto. Elisão simbólica: o sujeito é elidido enquanto geometrizado, ele torna-se no que não pode ser visto. Mas também elisão real: é então o seu olhar que, escondido, é elidido. [...] A Renascença inventou o oculto. (WAJCMAN, Gérard, op. cit., pp. 392-393; p. 395)
E a propósito do teatro:
«O espectador moderno e o teatro do mundo. Espantosamente, a história do teatro parece desfasada em relação à história do espectador moderno. Seria com efeito necessário esperar pelo século XIX para se estabelecer um dispositivo conforme a invenção do espectador como potência sobre o visível, ou seja esse que nós conhecemos no teatro de hoje, onde a sala é mergulhada no escuro em face do palco iluminado. É a invenção de Wagner em Bayreuth. Anteriormente a sala era constantemente iluminada. [...] É a chegada do gás de iluminação que terá permitido instalar comodamente, quase instantaneamente, uma relação sala obscurecida/palco iluminado ou sala iluminada/palco obscurecido.» (WAJCMAN, Gérard, op. cit., pp. 418-419).
7. Assim, a quarta parede actua à transparência Simbólica do mesmo Imaginário que regula, de um lado, a restrição da abertura própria à fascinação do espectador, do outro lado, o confinamento da abertura própria à possessão do actor pela personagem. Com efeito, um dos mitos da representação teatral tradicional é, para Roland Barthes, o da possessão do actor. Precisamente o daquela mesma mimesis de que Platão, no Livro III de A República, acusa Homero, que fala como o próprio Crises, observando Sócrates, a certa altura: «não existe entre nós homem duplo nem múltiplo, uma vez que cada um executa uma tarefa. [...] Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, prosternávamo-nos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-íamos que na nossa cidade não há homens dessa espécie [...]». No teatro ocidental, observará Roland Barthes, paga-se ao actor para que se sacrifique, para que se anule na sua própria presença. É ainda um resto de sacralidade, como nos dirá Roland Barthes:
«O principal desses mitos consiste em definir o actor em exercício como um possesso: o actor incorpora em si a sua personagem, ele é por ela «habitado». Este mito é a combinação de elementos de origem diversa. Há primeiro um elemento verdadeiramente ancestral, um desses raros temas, talvez mesmo o único, que se encontra em todas as formas de sociedade, o tema do Duplo: a personagem funciona como o duplo do actor, ela é investida como um «outro». Ha aí um jogo muito antigo com a morte: o actor morre em si mesmo, serve para nutrir o seu duplo, sacrifica-se, e é a razão pela qual se o admira. Esse sacrifício é aliás ainda penetrado pelo sagrado, visto que ele é propiciatório: ele poupa ao espectador um assassínio análogo [cometido] sobre si mesmo: o actor oferece-se como vítima à personagem no lugar do espectador, que tem assim, todo o benefício do transfert sem dele ter os riscos. [...] A possessão do actor - e não do espectador - é portanto uma forma envergonhada de sacralização: o sagrado entra aqui sem alarde, sem riscos, mas também sem ousar dizer o seu nome.» (BARTHES, Roland, «Le mythe de l'acteur possédé», Oeuvres complètes - I: livres, textes, entretiens, 1942-1961, Paris, Seuil, 2002, p. 924)
II - 1. Imaginemos agora que o âmbito destas observações se alarga e, retrospectivamente, nos convida a pensar numa história ainda mais recente. Parece-nos que o que até aqui foi dito, acerca da preparação-ocultação da ilusão, bem como acerca do mundo como imagem, enquanto convocação à presença plena e enquanto pulsão de conquista, ganha outras direcções, quando se aproximam aqueles excertos de Brecht de algumas das passagens de Edward Said, colhidas de Orientalismo:
«Filosoficamente o tipo de linguagem, pensamento e visão a que tenho estado a chamar genericamente orientalismo é uma forma de realismo radical; qualquer indivíduo que utilize o orientalismo [...] vai designar, nomear, apontar e fixar aquilo de que fala ou pensa com uma palavra ou expressão que então se considera ter adquirido realidade ou, mais simplesmente até, ser realidade. De um ponto de vista retórico, o orientalismo é absolutamente anatómico e enumerativo: usar o seu vocabulário significa enveredar pela particularização e divisão das coisas orientais em partes manejáveis. Psicologicamente, o orientalismo é uma forma de paranóia, [...].» (SAID, Edward, Orientalismo, trad. de Pedro Serra, Lisboa, Cotovia, 2004, p. 83)
Ora, o processo da ilusão a que se submete o voyeur supõe: a) a subtracção ou a abstracção da presença do seu corpo, durante o espectáculo: o que ali se lhe representa parece-lhe ser «uma realidade dissociada, que lhe é exterior»; b) no «realismo radical» do qual essa sua subtracção é condição de possibilidade, frente ao espectáculo a que assiste, do outro lado da quarta parede frontal-transparente, a sua posição é a do anatomista; c) retoricamente, como diz Said, na sua reconstituição ou no seu acompanhamento anatómico da estrutura e enumerativo dos elementos dessa história que ele acompanha em cena: o que supõe que ali se represente a história sem interrupções, no Todo coeso do seu desenvolvimento acabado, ditado das profundezas insondáveis de uma destinação e de uma Voz sagrada; d) psicologicamente, na paranóia em que se traduz o corte, a divisão entre o que vê e o que é visto, e se produz a exclusão entre o sujeito que vê e o sujeito que é visto. Ela assegura-lhe a inexistência de qualquer relação - de responsabilidade ou de imputabilidade - entre si e o seu Outro, aquele que, finalmente, o constrói como sujeito.
Quer a fruição voyeurista desse panopticismo, cujo efeito catártico seria, do ponto de vista da teoria aristotélica, homeopaticamente cúmplice da sujeição às leis da polis, quer o Imaginário dessa sua abstracção, a pretexto da inteligibilidade dos possíveis da acção, nesta cena de contemplação cautelarmente retirada da sua própria auto-percepção são, no fim do espectáculo, sancionados pelos aplausos. O voyeurismo do teatro tradicional suporia então uma colonialidade interna que nos deveria levar a voltar o olhar para o lugar em que eles se constituem. Se quiséssemos uma descrição eloquente do efeito narcótico deste preceito abstracto de realismo (burguês-colonial) ou daquilo em que esse verismo representacional se suporta, talvez pudéssemos e devêssemos pensar, posta no plano deste cotejo mais alargado, nesta descrição datada de 1953 e retirada de um texto de Roland Barthes, escrito para a revista Esprit - «Folies Bergère». Ele é bem o signo da sua negação do teatro entendido como abertura da visão e recuo explícito sobre as condições implícitas da ilusão:
«[Imaginemos que] São oito horas da noite, eu sou corrector de bolsa no país de Auge, comerciante em Bruxelas ou vendedor de chapéus em Independance (Kansas), encontro-me em Paris e entro no Folies-Bergère. É-me assegurado de que a nota de mil francos que dou à senhora da caixa me vai trazer durante três horas uma fortuna. Nenhum dos milhões que custou o espectáculo me é estranho, porque todo esse dinheiro está exposto no palco [sur la scène] à minha intenção, sob a forma de substâncias raras e de um material humano dispendioso na proporção da sua beleza bem visível: não dou o meu dinheiro a troco de uma emoção incerta, a troco de uma arte cuja inteligibilidade me seria hipotética, como acontece com outros teatros. Posso dizer que aqui, não perco o meu dinheiro de vista, vejo-o proliferar numa grande quantidade de coisas de que posso sem cessar controlar o carácter dispendioso. A economia desse teatro garante-mo, o meu dinheiro não se dissipa, permanece estável como no meio de uma troca; logo que tenha dado a minha nota de mil francos a uma funcionária de caixa científica como uma empregada de banco, eu encontro-o nas luzes da ribalta, mergulhado em plumas, endurecido em diamantes, repartido por uma multitude de artifícios engenhosos, estendido sobre a garupa das mulheres - a menos que estas estejam nuas, o que custa ainda mais caro, o que é bem natural. Mostra-se-mo, não se faz outra coisa senão mostrar-se-mo, e confesso que isso me satisfaz. Quero dizer que tudo isto é a prova do preço, não da sua realidade. E todo o meu prazer se sustenta no facto de que vejo bem que se trata de uma evidência fabricada, que só ela foi dispendiosa, e não os objectos. Sou então lisonjeado por ser tão bem compreendido, mas não tolo, é bem o espectáculo que me convém. Aliás tudo nele me lembra a dialéctica fundamental das festas burguesas (incluindo nelas os funerais): «o Dinheiro custa caro, mas vós vedes que eu tenho o bastante para agir como se ele não me custasse nada, dito de outro modo: eu destruo o Dinheiro unicamente para vos mostrar que o tenho». Eis um teatro que tem pouca relação com o Music-hall, onde se passa mesmo assim alguma coisa, onde há um pathos da acrobacia, da canção e da dança.» (BARTHES, Roland, «Folies-Bergère», Oeuvres complètes- I: 1942-1961, Paris, Seuil, 2002, pp. 234-235).
4. Procuremos, no entanto, ver mais de perto o que acontece, antes de passar em revista as implicações do que aqui nos é dito, do ponto de vista da relação entre o palco e o espectador:
«Nas Folies-Bergère, nenhum pathos, todo o teatro está organizado como uma montra enorme, é um teatro-vitrine [...]. Não é pois necessário que [ali] se passe outra coisa senão esse fluxo e esse refluxo de matéria preciosa: a morte de Joséphine e de Bonaparte, tudo isso não é senão a projecção de trajes e rostos. Todo o argumento, toda a fala, todo o germe de movimento retornam à extensão imóvel das coisas, o teatro todo se solidifica no ouro, no rosa e na pluma: todo ele é avançado, o acto teatral é esvaziado do seu tremor, não resta senão um décor promovido à categoria de espectáculo: carnes, trajes, gestos, dansas e anedotas, tudo é décor de si mesmo: a duração nada produz [n'accouche rien], ela não faz senão fascinar, ela renova uma fixidez, o espectáculo impõe-se como uma virtude inalterável e eterna do Dinheiro. Portanto, nenhum teatro pode ser a esse ponto a negação [o nada, le néant] do teatro, e é nisso que as Folies-Bergère são um lugar exemplar». (BARTHES, Roland, op. cit., p. 235).
5. Do ponto de vista da relação entre o palco e o espectador, tal como do ponto de vista da relação entre o presente e o passado, ou ainda, do ponto de vista da vida, pensada para além da auto-consistência de qualquer espécie de real «exterior» tido por plenamente presente, há um ponto que resume o funcionamento deste teatro-vitrine, em que o espaço se recobre da inércia de uma relação de equivalência reificadamente sustida na evicção do tempo, de uma relação de imperturbada legibilidade ou da estabilidade do valor cambial, do valor de troca, em suma, colocados fora do Tempo. No seu realismo radical - tão radical que o dinheiro que se paga entra pelos olhos dentro, sob a sua tradução em «espécies» de ostentatação - ele não tolera, nem a emoção incerta, nem a inteligibilidade hipotética. O recurso ou o operador dessa apaziguadora garantia, dessa tranquilizadora e imobilizadora certeza quanto à superioridade do Dinheiro, é precisamente a evacuação do tempo, a sua espacialização no desfile de trajes, objectos em que o passado se fixa, na extensão para que tudo ali reflui, e a linguagem se lhe cola, sem espessura. Com efeito, observará Roland Barthes:
«Depois do teatro antigo, em que a fala podia por si mesma ser demiurgia, o teatro não cessou de perder a sua virtude de acontecimento [de advento, avènement]; nas Folies-Bergère, no teatro frontal e decorativo, sem acto e sem mistério, a expulsão [a evicção, l'éviction] do Tempo é total, já não se passa mais nada, não há já nenhum corpo-a-corpo, mas apenas o afrontamento passivo de um olhar e de um objecto cuja única função é a de se apresentar a si mesmo; empenachado, emplumado, adamantinado, encourado, esse objecto não é nunca senão o Dinheiro, que reina aqui no lugar do logos dramático. O drama é então rebaixado à categoria do décor, a História é um tableau vivant, a Mulher é boneca, a carne é cera, a cor é um nome, o mistério é máquina, nada de vivo e de subtil, nada de ambíguo me ameaça, a minha repleção é completa no seio de um universo inteiramente reificado.» (BARTHES, Roland, op. cit., pp. 235-236)
E ainda:
Aqui [...], é ela [a cena] que me viola, ela não me chama, ela é sem vazio, ela persegue-me, ela submerge a sala com a sua toalha luminosa, tudo é ameaçado, invadido por uma frente de Dinheiro e aí sucumbe às suas delícias: sinto o Dinheiro sobre mim e todo o preço do espectáculo se sustenta da minha passividade nesse contacto: sinto-me violado pelo Dinheiro. (BARTHES, Roland, op. cit., pp. 235)
III - 1. Voltemos, agora, à nossa primeira citação, a dos dois excertos de Brecht. Olhando, a partir dele, a descrição de Roland Barthes, quanto ao que exemplarmente se constitui como a negação do teatro, diríamos que o que aí se oculta é precisamente a temporalidade que afectaria a própria relação de troca. A reificação que resulta dessa evacuação do Tempo, é precisamente aquela que afecta o valor: o dos signos, o do poder, o dos acontecimentos, na cena do esvaziamento da História. No circuito ilusoriamente fechado dessa relação de troca, o que tranquiliza o espectador de Independance (no Kansas) - não é possível deixar-se de sorrir, com esta ironia toponímica, associada ao comerciante ou vendedor de chapéus... - é a garantia de uma não depreciação da sua nota de mil francos. A maiúsculação do Dinheiro tem aí a conotação de uma posse que vai além de qualquer emoção incerta, de qualquer valor hipotético. Ela transcendente toda a eventual historicidade da História. Digamos que se passa, nessa ocultação da preparação da ilusão, de que Brecht acima nos fala, algo de muito semelhante ao que se passa na sugestão denotativa da fotografia de imprensa, tal como no-la descreve Barthes, em O Óbvio e o Obtuso. Ela representa, aos leitores do jornal, da revista, etc., uma cena «indiscutivelmente real» - a fórmula irónica é ainda, aqui, de Brecht e não de Barthes. Diz Brecht: «o indiscutível renuncia facilmente e sobretudo ao entendimento» (Ibidem, op. cit., 469); eis uma boa fórmula para os poderes sugestivos da denotação fotográfica - e o que sob essa realidade ostensiva se oculta é precisamente a sua preparação da ilusão, como diz Brecht, acerca do teatro tradicional.
2. Na fotografia de imprensa, essa ocultação da preparação da ilusão incidiria, por exemplo, na pose. O que o teatro burguês fomenta é pois esta desumanização, onde se treina ou exercita a indiferença. Essa indiferença passa pela noção de que, entre a parede frontal-transparente do cubo cenográfico e, por um lado, os actores e, por outro lado, o seu público, há um reenvio, um jogo de espelhos, desencadeado pelos dois lados reflectidos do mesmo imaginário. O imaginário da sua repleção como coisa presente. A quarta parede é, portanto, um corte Simbólico. Precisamente o que o Édipo instaura, enquanto dispositivo de incorporação da lei e princípio da distinção, bem como da ancoragem nominativa: é uma boca de cena. Não será, também, precisamente o que se passa numa certa imprensa? Não actuará ela aí também? Qual é a diferença entre o funcionamento do jornal e o do peep-show? Num texto sobre a fotografia, Roland Barthes sublinhava o extraordinário poder da denotação fotográfica, cuja função de cobertura imaginária da conotação aí funciona como álibi de um certo simbólico. A imagem de Kennedy, de que aqui se tratará é precisamente aquela com que se abre este post:
«O interesse metódico da trucagem [ou, no caso que se seguirá, da pose] reside no facto de intervir mesmo no seio da denotação, sem prevenir; utiliza a credibilidade específica da fotografia, que não é senão, como vimos, o seu poder excepcional de denotação, para fazer passar por simplesmente denotada uma mensagem que é, com efeito, fortemente conotada: em mais nenhum outro tratamento a conotação toma tão completamente a máscara «objectiva» da denotação. [...] Eis aqui uma fotografia de imprensa amplamente difundida por altura das últimas eleições americanas: é o busto do presidente Kennedy, visto de perfil, com os olhos erguidos para o céu, de mãos postas. Aqui, é a própria pose do sujeito que prepara a leitura dos significados de conotação: juvenilidade, espiritualidade, pureza; a fotografia só é evidentemente significante porque existe uma reserva de atitudes estereotipadas que constituem que constituem elementos já feitos de significação (olhar erguido para o céu, mãos postas): uma «gramática histórica» da conotação iconográfica deveria, pois, procurar os seus materiais na pintura, no teatro, nas associações de ideias, nas metáforas correntes, etc., itso é, precisamente na «cultura» [...]: a mensagem não é aqui «a pose», mas «Kennedy a orar»: o leitor recebe como uma simples denotação aquilo que, efectivamente, é estrutura dupla, denotada-conotada». (BARTHES, Roland, «A Mensagem Fotográfica», O Óbvio e o Obtuso, trad. de Isabel Pascoal, 1984, pp. 17-18).
4. Voltemos agora atrás. O projecto colonial fundou-se no pressuposto eurocêntrico de que a dominação se exerceria por uma «boa causa», no mesmo campo em que a burguesia capitalista legitima o «realismo» do seu teatro, reservando, para a cena, o papel do outro: aquele que é visto sem ver. Ela - o espectador - põe-se no lugar da «Humanidade»: «não são os povos colonizadores, nem os seus interesses que aqui estão; é a humanidade, no seu estádio culturalmente mais avançado». A relação colonial fundou-se exactamente sobre estes pressupostos. Os povos e as culturas colonizadores sonharam encontrar-se em posição de ver sem ser vistos; que viam, em suma, o que/quem não os poderia ver.
5. Ora a guerra colonial desencadearia, nesse teatro da História europeia que avança para o campo do Outro, uma espécie de efeito unheimlich que arrancaria o voyeur da sua abstracção. De repente, a descolonização constitui-se o revelador histórico da ilusão da sua suposta transcendência, cuja preparação activamente se cultivou e ocultou. Há uma parábola desta reversão que, recontada por Homi K. Bhabha, nos parece não menos instrutiva do que o que de Brecht se acaba de ler:
«Há uma cena nos escritos do colonialismo inglês que se repete tão insistentemente após o início do século dezenove - e, por meio dessa repetição, inaugura de modo triunfante a literatura do império - que sinto-me obrigado a repeti-la uma vez mais. [...] Na primeira semana de maio de 1817, Anund Messeh, um dos primeiros catequistas indianos, fez uma jornada apressada e febril da sua missão em Meerut a um bosque nas proximidades de Delhi. Ele encontrou cerca de 500 pessoas, homens, mulheres e crianças, sentados sob a sombra das árvores e ocupados, como lhe haviam relatado, em ler e conversar. Aproximou-se de um homem de aparência idosa, abordou-o e passou-se então a seguinte conversação:
«Dizei-me, por favor, quem são estas pessoas todas? E de onde vêm elas?» «Somos pobres e humildes e lemos e amamos este livro» - «Que livro é esse?» «O livro de Deus!» - «Deixai-me examiná-lo, por obséquio.» Anund, ao abrir o livro, percebeu que era o Evangelho de Nosso Senhor, traduzido para língua hindustani, do qual havia muitas cópias em posse do grupo: [...]. Anund perguntou-lhes, «Por que vos vestis todos de branco?» «O povo de Deus deve usar trajes simples» foi a resposta, «como sinal de que estão limpos de seus pecados» - Anund observou, «Vós devíeis ser Baptizados, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Vinde a Meerut: há ali um Padre Cristão; ele vos dirá o que deve ser feito». Eles responderam, [...] «Estamos dispostos a ser baptizados, mas nunca receberemos o Sacramento. A todos os outros costumes dos cristãos estamos dispostos a nos conformar, mas não ao Sacramento, pois os europeus comem carne de vaca e isto jamais nos servirá» (BHABHA, Homi K., «Signos Tidos como Milagres: questões de ambivalência e de autoridade sob uma árvore nas proximidades de Delhi, em Maio de 1817», O Local da Cultura, trad. de Myriam Ávila et alii, Belo Horizonte, UFMG, 2003, p. 150-152).
Todos de branco, numa cautelar e preventiva antecipação em relação à necessidade e/ou à possibilidade de alguma obrigação ou compulsão ao Sacramento... Antes, portanto, que o Corpo de Cristo seja erguido à sua frente, em forma de lua branca, e se recue até à antropofagia dessa sua incorporação... Todos «limpos dos seus pecados»... Ou, como diria Jean-Luc Nancy:
«É o nosso Om mani padre..., o nosso Allah ill'allah... o nosso Schema Israel... Mas a variante da nossa fórmula indica de imediato a diferença que nos é mais própria: somos obcecados pela vontade de mostrar um isto, e de (nos) convencermos de que este isto, aqui, é o que não se pode nem ver nem tocar, nem aqui nem noutro lugar - e que isto é aquilo, não de qualquer maneira mas como o seu corpo. [...] Quisemos sempre a segurança, a certeza pura de um Eis: eis, sem mais, em absoluto, eis, aqui, a mesma coisa. Hoc est enim... desafia, apazigua todas as nossas dúvidas sobre as aparências, e dá ao real o verdadeiro retoque final da sua ideia pura: a sua realidade, a sua existência». (NANCY, Jean-Luc, Corpus, trad. de Tomás Maia, Lisboa, Vega, 2001, pp. 5-6).