Mia Couto, na Biblioteca de Faro
Ouvindo há poucos dias Mia Couto na Biblioteca Municipal de Faro, na sessão de lançamento do seuJesusalém, questionado acerca da intenção da sua reinvenção vocabular por um dos presentes, não pude deixar de sorrir. Mas não fui apenas eu. Sorrimos todos, da sua irónica e maliciosa esquiva. Eis a sua resposta: «não, não é para chatear os linguistas, como você diz. Nada tenho contra eles. É que eu ouço mal, sabe?»...
Talvez esteja tudo aqui, nesta bela fórmula: a de uma certa, atenta e deslocadora surdez à língua vinda do outro... Ou então a de uma sua escuta que se diria hipermnésica. O que acontece, em Mia Couto, pelas mais diversas vias: a da relação paronomástica, por exemplo, como parece imediatamente perceptível em «pensatempos» ou «jesusalém», etc., onde uma letra cai par dar lugar a outra, desencadeando associações inesperadas: a ideia de um pensamento enraizado no tempo, um pensamento que contém o tempo e, dele grávido e impotente para lhe escapar, a ele permanece preso, pela necessidade que lhe dita ou traz o seu enigma; ou a ideia de um lugar outro, de um espaço inaugural, no qual a relação com o transcendente é, simultaneamente, uma relação com a irredutibilidade da sua distância e onde nada, afinal, se inaugura, porque o começo é uma ideia da história, como não poderia deixar de ser. Mas, em ambos os casos, uma escuta hipermnésica da língua, guiada pelas ressonâncias que a percorrem transversalmente.
Não era Barthes que dizia, em O Prazer do Texto: «A linguagem que falo em mim mesmo não é do meu tempo; está exposta, por natureza, à suspeição ideológica; é pois com ela que tenho de lutar. Escrevo porque não quero as palavras que encontro: por subtracção» (BARTHES, Roland, O Prazer do Texto, trad. de Margarida Barahona, Lisboa, Ed. 70, 1988, p. 82)? Ou Derrida, em O Monolinguismo do Outro: «uma estrutura imanente de promessa ou de desejo, uma espera sem horizonte de espera informa toda a palavra» (DERRIDA, Jacques, O Monolingismo do Outro ou a Prótese da Origem, trad. de Fernanda Bernardo, Porto, Campo das Letras, 2001, p. 35)?
A escrita põe então em jogo o sentido de que não há presentemente uma língua, como nos diz Derrida em O Monolinguismo do Outro, não ser a que, ao escritor, chega vinda do outro. A recusa do escritor situa-se, pois, nesse seu enclave clivado, que é o da impropriedade do dizer comum. A língua não é de ninguém e, ao mesmo tempo, o seu domínio sobre nós, enquanto seus falantes, só passa por nós no momento da sua transformação escrita. Para que esse domínio por nós passe é necessário, no entanto, que nos encontremos, como diz Derrida, sobre o seu limite «inencontrável». O pressentimento da co-extensividade ao outro desse nosso não-domínio da língua que falamos, mas que é a língua que também nos fala, e o apelo que nos vem de uma sua fundamental estruturalidade, a cada instante, põem em jogo a sua subversão pela escrita.
A subversão protagonizada pela escrita supõe nela a afirmação, quer de uma irredutível impropriedade da língua que lhe chega, quer de uma despossessão que é condição constitutiva do sentido, visto ser no processo da sua (re)apropriação que a linguagem e o sujeito se oferecem ao seu devir. Ela só pode ganhar-se a partir de dentro da língua, sobre os limites em que o simbólico se afirma nas coisas, no sujeito e no mundo, e as suas linhas de fronteira se deslocam e (re)cortam.
Eis, portanto, o que nos diria Derrida: que o sujeito que somos se situa, sempre, sobre «o limite inencontrável da língua», que a língua não faz um consigo mesma, e que há o que designa por «monolíngua» - mesmo aqueles que falam diversas línguas são, no fundo, monolingues - mas que, ao mesmo tempo, essa monolíngua não «existe», isto é, não se pode tomá-la de fora. E o escritor percebe-o como ninguém, na singularidade da sua impessoalidade, no momento em que escreve. Pois ele se descobre nem dentro nem fora, mas sobre o seu «limite inencontrável».
Sobre esse limite inencontrável da lei da língua - porque para falar dele era preciso que nele estivéssemos e, na verdade, estar nele é não o encontrar, ou não poder encontrá-lo: tal como estar fora dele: não se pode falar dele a não ser nele - ele apercebe-se, não só de que essa inexistência damonolíngua supõe, não apenas a impossibilidade de a dar como sua, mas também a intuição de que, na verdade, todo o sujeito se articula na historicidade de um movimento pelo qual, na sua escuta, a língua se desdobra num espaço que se descentra de si mesmo.
A sua relação com a língua só pode então ser, quer de inevitável pertença, quer de inevitável excesso. Se ela assume a forma de uma lei, de uma língua da lei, assim como também de uma lei da língua - com os traços ameaçantes da hegemonia colonial: visto que, no interior de qualquer cultura, a sua aprendizagem decorre sempre de uma imposição simbólica, e da colonialidade que a informa - a verdade é que a emancipação parte do seu interior e segue um movimento que a arrasta para fora-de-si.
Nesse aspecto, pressupondo a sua historicidade, a escrita supõe sempre a promessa e o desejo de uma anteprimeira língua, de uma língua mais originária. A promessa, como dirá também Derrida, não é um performativo qualquer, um performativo de entre outros, visto que ele descreve a dimensão própria de todo o falar, e expõe o modo como nele, por um lado, o sujeito se descobre no seu «grau-zero-menos-um»; por outro, a língua caminha, nessa escuta, para o seu exterior absoluto, a partir do que nela há de fantasmaticamente inscrito.
«O monolinguismo do outro tem certamente o rosto e os traços ameaçantes da hegemonia colonial. Mas o que nele permanece inultrapassável, qualquer que seja a necessidade ou a legitimidade de todas as emancipações, é muito simplesmente o «há a língua», um «há a língua que não existe», a saber que não há metalinguagem e que sempre uma língua será chamada a falar da língua – porque esta não existe. Não existe doravante, nunca existe ainda.» (DERRIDA, Jacques, op. cit., p. 102)
Ou ainda:
«A partir do momento em que falo, antes mesmo de formular uma promessa, uma esperança ou um desejo como tais, e aí onde ainda não sei o que me vai acontecer ou o que me espera no fim de uma frase, nem quem, nem o que espera quem ou o quê, já estou nesta promessa ou nesta ameaça – que reúne desde então a língua, a língua ameaçada, prometedora até na ameaça e vice-versa, assim reunida na sua própria disseminação. Não se pode falar de uma língua a não ser nessa língua. Nem que seja pondo-a fora dela mesma.» (ibidem, p. 36)
E finalmente - quanto ainda a Derrida:
«[...] é preciso escrever no interior, se se pode dizer, das línguas. É preciso apelar a escrita para dentro da língua dada. Para mim isso terá sido, do nascimento até à morte, o francês. [...] Mas esta intimidade desconcertante, este lugar «no interior» do francês, eis que ele não pode deixar de inscrever na relação a si da língua, na sua auto-afecção, se assim se pode dizer, um exterior absoluto, uma zona fora da lei, o enclave clivado de uma referência apenas audível ou legível a esta absolutamente outra anteprimeira língua, a este grau-zero-menos-um da escrita que deixa a sua marca fantasmática «na» dita monolíngua.» (ibidem, pp. 96-97; aqui o negrito corresponde ao meu sublinhado, distinto dos itálicos de Jacques Derrida).
E de novo Roland Barthes: a língua, cujas primeiras verbalizações - como diz Lacan - se iniciam com a mãe (veja-se o seu seminário sobre As Formações do Inconsciente) - antes que a metáfora paterna a estabilize, e a prenda a uma margem estável, ou a aparafuse a um sentido imposto, (pela coação exercida pelo Nom-du-père) - não deixa, para o escritor, de ser o que, em psicanálise, se chama «um objecto», neste caso um objecto fetiche, um objecto substituto do falo «inexistente», e portanto a marca de uma relação que, embora imaginária, se mantém transgressora ou perversamente solta do simbólico.
A relação imaginária com a língua marca-se aqui, como veremos, pelo seu carácter dual ou ambivalente (como ambivalente é, também, segundo Philippe Lacoue-Labarthe, o próprio conceito de imaginário em Lacan) e poder-se-ia descrevê-la como uma relação de dessimbolização (veja-se a descrição que Barthes nos dá de arte, no seu texto sobre a arte pop), ou se quisermos, (com Herbert Marcuse) como de dessublimação.
Tanto uma como outra são imediatamente políticas, na medida em que rompem com a lei que amarra o sujeito a um conceito ou a um lugar, a um Sentido ou a um destino, a uma Vocação ou a uma atribuição. Celebrando o corpo da mãe sob a forma da língua, o escritor exige dele uma exclusiva devoção, supõe nele a presença do que o simbólico lacaniano lhe nega. Por isso o embeleza ou desmembra, o «desfigura», para fazer só seu, suspendendo-o do simbólico que o dá, «hegemonicamente», como a Lei. Eis o que nos diz Barthes:
«Nenhum objecto mantém uma relação constante com o prazer (Lacan, a propósito de Sade). No entanto, para o escritor, esse objecto existe; não é a linguagem, é a língua, a língua materna. O escritor é alguém que brinca com o corpo da mãe (remeto para Pleynet, sobre Lautréamont e sobre Matisse): para o glorificar, para o embelezar, ou para o desmembrar, para o levar até ao limite daquilo que, do corpo, pode ser reconhecido: eu chegaria a fruir com uma desfiguração da língua, e a opinião pública soltaria grandes gritos, pois não quer que se «desfigure a natureza»». (BARTHES, Roland, O Prazer do Texto, op. cit., pp. 78-79)
E uma outra vez:
«No campo intelectual, a escolha política é uma suspensão de linguagem - portanto uma fruição» (ibidem, p. 87).
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