sexta-feira, 22 de maio de 2009

Recapitulações XIII: A Vénus de Urbino - uma erótica da pintura clássica (D. Arasse; Louis Marin; E. Panofsky; R. Goffen; M. Foucault; R. Krauss)














Ticiano, Vénus de Urbino, 1538.

I - Que nos diz Daniel Arasse, a propósito de Ticiano, e em particular da Vénus de Urbino? Em primeiro lugar que, ao contrário do que se passara com a Vénus Adormecida de Giorgione, que data de 1510 (Giorgione foi mestre de Ticiano; é Ticiano, de resto, quem virá a acabar o quadro, que o mestre deixara, com a sua morte, por concluir) a Vénus de Urbino está bem acordada. E que isso confere à disposição da sua mão esquerda um sentido completamente outro.














Giorgione, Vénus Adormecida, 1510.

«Em Giorgione ela dorme. O seu gesto é inconsciente. Ela sonha talvez. Aqui ela está bem desperta; ela sabe o que faz e olha-nos.» (ARASSE, Daniel, On y voit rien, Paris, Denoël, 2000, p. 160). «[...] Giorgione tinha pintado a sua mulher adormecida numa paisagem; um quarto de século mais tarde, Ticiano moderniza-a despertando a figura (como outros antes dele) e colocando-a na cama de um palácio veneziano. Do mesmo passo, a definição da figura torna-se incerta. Em Giorgione, é evidentemente uma ninfa ou Vénus - apenas os deuses, as ninfas e os sátiros estão nus na natureza. Em Ticiano pelo contrário, não há já meio de saber se essa mulher nua é [uma] Vénus ou uma cortesã. [...] Foi talvez essa ambiguidade que reteve Manet: apesar da sua beleza perfeita, ela não é uma mulher ideal.» (ibidem, p. 138)

O que teria suscitado em Mark Twain uma reacção absolutamente inusitada - e, talvez hoje mais que ontem, para nós estranha - nos seus Travellogues, escritos por ocasião das suas viagens pela Europa. Recordando-o, diz-nos Arasse:

«Mesmo Mark Twain acha que é um quadro abominável, o mais «vil» que ele tinha visto. Por uma vez faltou-lhe humor». De resto, mesmo os estudiosos do pintor (Crowe e Cavalcaselle) «na sua grande obra sobre Ticiano, não se mostram chocados pela mão esquerda. E pour cause: dela nada dizem. Descrevem o braço direito, a mão direita e o seu bouquet de rosas, mas nem uma palavra sobre a mão esquerda. Como se a Vénus de Urbino fosse maneta» (Ibidem, pp. 130-131).

Dito isto, trata-se, para Daniel Arasse, não de nos cingirmos a uma leitura iconográfica, frustre na maioria das vezes, quanto à questionação e à compreensão do que no espaço plástico da inscrição se coloca em jogo, mas de observar o quadro para compreender «o modo como ele funciona». O pressuposto da leitura de Arasse situar-se-á, portanto, no cruzamento, por um lado, dos dados da história e, por outro, da semiologia pictural. E observar o modo como ele funciona significa nela, num primeiro instante, procurar discernir, no percurso do nosso olhar, o que nos é ditado pelas disposições que, da sua construção espacial e da sua organização figural, nos impõem, ao mesmo tempo, uma necessária reflexão sobre suas implicações de sentido.

Ora, desse percurso, diríamos que Arasse retém três pontos nodais de incidência, que hão-de funcionar ali como outras tantas interrogações, susceptíveis de abrir o seu próprio questionamento à ponderação das implicações de sentido que projectarão, sobre o quadro, uma compreensão menos estreita do que aquela que ele vinha suscitando, do lado da história da arte.

II - O primeiro desses pontos nodais seria, por exemplo, este: a) a «dama ignuda», de quem Guidobaldo della Rovere encomenda o quadro (um retrato e um nú; o retrato caberia aqui, provavelmente, na classificação de Omar Calabrese, como «retrato travestido»), interpela, com o seu olhar, o espectador, ao mesmo tempo que a posição da mão esquerda lhe dirige a atenção para o seu sexo. Ora, acerca dessa mão esquerda, do lado da crítica e da história de arte, um pesado silêncio se fora adensando: a questão seria, portanto, aqui a das razões susceptíveis de explicar essa espécie de interdito. Um segundo desses pontos nodais b) teria que ver com a compreensão mais atenta da inscrição, no quadro, daquela repartição dos espaços que nele se representam. E a questão levantar-se-ia, aqui, ao nível do que seria, por um lado, a realidade arquitectónica própria dos interiores palacianos de Veneza, no século XVI.

Ora, a constatação de que partirá Arasse é a de que a divisória que se inscreve no quadro, entre o plano mais próximo, em que a Vénus surge deitada, e o interior do salão que se vê na parte superior direita, não possui nenhuma correspondência com a realidade arquitectónica própria da época. Como justificá-la então, exclusivamente, em função do princípio da «imitação» (ou da ilusão referencial) que presidiria a uma pintura toda ela condicionada, desde a sua incorporação da perspectiva, pelo princípio da representação de um «espaço em profundidade»? Ora, Daniel Arasse virá a descobrir aí um processo pictórico de dissociação simbólica de espaços distintos, rastreável em outros quadros de Ticiano:














Ticiano, Madona e Menino, com Stª Catarina e Sº Domenico e um doador, 1512-1516.

«Em 1512, numa Santa Conversação com a Virgem e o Menino e um doador, Ticiano tinha já usado este dispositivo para apresentar a Virgem e distinguir o seu lugar daquele do doador que se recorta diante de uma paisagem. [...] Em 1538, vinte anos mais tarde, Ticiano retoma esse dispositivo para apresentar a sua dama ignuda. [...] Ticiano sugere uma sacralização, uma divinização do corpo feminino. (ARASSE, op. cit., pp. 144-145). Aquilo não é uma cortina, aquilo não é uma parede. Não corresponde a nada de conhecido, a nada de repertoriável na realidade. Aquilo não representa nada. A mesma coisa para o «bordo de pavimento». De facto, Panofsky fala de bordo de cortina e de bordo de pavimento porque isso lhe permite ver no quadro a representação coerente de uma divisão de palácio. Mas o quadro é incorente... (ARASSE, op. cit., p. 143). [...] essa zona negra não é uma cortina como queria Panofsky, que vê no seu recorte vertical um «bordo de cortina»; e a linha acastanhada não é também o «bordo do pavimento». Aparentemente Panofsky o velho tinha-se esquecido do que escrevera Panofsky o novo. [...] Para Panofsky, em 1932 [...] «reportar qualquer coisa que representa a qualquer coisa que é representada, um dado formal, plurívoco de um ponto de vista espacial, a um conteúdo conceptual que é, ele, sem equívoco possível, tridimensional» [...] é impossível na prática.» (ARASSE, op. cit., pp. 139-140).














Tratar-se-ia, portanto, para Daniel Arasse, do que, também para Louis Marin (cf. deste último, por exemplo a antologia de textos reunidos em De la représentation) caberia ao nível do «pré-iconográfico» (no sistema iconológico de Panofsky), como sendo da ordem do que designa sob a fórmula de um «informe em instância de figurabilidade», enquanto inscrição, plástica e visual, daquilo em que Marin vê a dimensão do «infra-/pré-iconográfico».

Dizer que «não» se trata do bordo de uma cortina, nem de um «bordo de pavimento» é aqui o mesmo que chamar a atenção para a ambivalência de sentido dessas duas linhas limítrofes graças às quais o espaço do quadro, tal como ele ali se desdobra, se cinde em dois. O que interpretamos como divisória arquitectónica entra ali em jogo com aquilo que, ao mesmo tempo, em outros quadros de Ticiano, resulta como procedimento dissociativo, como incisão visual e signo plástico de uma dissimetria fundamental, entre dois espaços hierarquicamente distintos.

E a sugestão de Arasse há-de ser, como veremos, um pouco mais adiante, a de que a figura da Vénus se constitui, no quadro do plano que mais se aproxima do observador, a partir da projecção exterior e imaginária do que uma das criadas, aquela que ali aparece ajoelhada, nessa espécie de écrã que se vê do lado direito, no interior do baú. A Vénus que ali vemos sai inteirinha do cofre, onde permanecia acautelada dos olhares do mundo, para vir a ocupar aquele espaço de intimidade que mais se lhe adequa, pela sua pretendida sugestão.

Para Arasse - como de resto para toda a gente, hoje em dia: veja-se por exemplo, a análise extremamente arguta que W. J. T. Mitchel faz do modelo iconológico de Panofsky, em «The Pictorial Turn», Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representatation, Chicago UP, 1995, em correlação com o pensamento de Althusser, acerca do conceito de «ideologia» - no modelo de Panofsky há um elemento que representa o seu calcanhar de Aquiles, e que diz respeito à forma injustificada como, ao nível ainda do que nele se designa como «pré-iconográfico» se desliza, de modo redutor e sem solução de continuidade, para o «iconográfico». O que nesse passo se suprime é precisamente um certo inconsciente da «significação expressiva», uma certa suspensão da intecionalidade da «significação factual» presente na inscrição e no seu jogo correlacional, naquilo que eles supõem de abertura móvel e grafemática a sentidos que não seriam, necessariamente, compatíveis entre si. É precisamente o que acontece no quadro de Ticiano.

Deslizamos aí, se nos colocarmos exclusivamente na senda da interpretação de Panofsky, sem nenhuma espécie de articulação teórica consistente, (movidos pelo nosso horror ao vazio e pela nossa precipitação no preenchimento dessa abertura, ou na redução dessa ambivalência da forma) para um «significado» que a realidade histórica e arquitectónica da época se encarregaria de contrariar. Ver ali uma parede ou um bastidor, ou aqui o rebordo de um chão é fazer interferir, na nossa interpretação, um dado com que Ticiano não poderia contar, na arquitectura da época. E a relação estabelecida entre a Vénus de Urbino e outros quadros do mesmo autor seria já suficiente para interrogar a pertinência dessa leitura.

Conheceis compartimentos venezianos [desta época] cortados a meio por uma parede ou por uma divisória móvel? Eu não... (ibidem, p. 143)

Por outro lado, seria justamente nessa medida que o quadro de Ticiano seria, para Daniel Arasse, «incoerente». Incoerente até num sentido, ele próprio, de certo modo, perverso, porque a palavra abre para dois sentidos inesperadamente reversos: a) «incoerente», por um lado, bem entendido, porque atravessado por essa espécie de cisão, ou de cesura interna entre dois espaços não-contínuos entre si, fazendo aparecer, na Vénus de Urbino, um segundo quadro embutido no primeiro. Mas «incoerente» b) também no sentido em que o prefixo «in-» da palavra nos pode igualmente indicar, não apenas que se trata de uma «negação», mas também de uma «interioridade», enquanto atributo dessa sua eventual coerência. Posto que a sua incoerência só poderia verificar-se ao nível da relação referencial, seria então precisar indagar acerca dela, num outro plano: precisamente o da consistência interna do «funcionamento» quadro, pensado como estrutura clivada.

Se o quadro de Ticiano é, num outro sentido, «in-coerente», uma sua eventual «coerência» não poderia ser aqui senão «interna»; ela não poderia senão situar-se ao nível da correlação simbólica (e plástica) entre os espaços descontínuos cuja cesura ali se inscreve. Aquele segundo quadro que nele aparece como que embutido no primeiro, há-de funcionar, por isso, como operador de legibilidade, como suplemento de leitura do retrato da cortesã da qual Francesco Maria della Rovere, pai de Guidobaldo della Rovere, possuía já um retrato. Guidobaldo insistirá, no entanto que, diferentemente do que acontece com o retrato que o pai possui, a quer nua.



















Ticiano, La Bella, (anterior retrato da mesma mulher, em posse, à data em que Guidobaldo della Rovere encomenda a sua dama ignuda, de Francesco Maria, seu pai)

III - Além desses dois pontos nodais que orientam a sua leitura, a que acabámos de nos referir haveria, para Daniel Arasse, um terceiro: c) Daniel Arasse sugere-nos que se trata de um quadro feito a pensar num contexto matrimonial. À data em que o quadro se dá por concluído (1538), a mulher de Guidobaldo della Rovere, Giulia Varano (que com ele casa aos dez anos (!!)), tem já quatorze anos. A questão começa, portanto, por ser a seguinte: o que teria levado o Duque de Urbino, já casado, a encomendá-lo? «Guidobaldo della Rovere tinha certamente outros meios de satisfazer as suas vontades» (ibidem, p. 128).

A ideia de que o quadro se destinasse à satisfação dos seus desejos eróticos é, para Arasse, simplesmente absurda. Com a sua riqueza e o seu poder, o Duque jamais precisaria, como a certa altura chegou a ser corrente dizer-se, de «chamar a mão em socorro do espírito»... O quadro de Ticiano não pode, como Arasse sugere, ser lido como a história de arte habitualmente o lia: como a ilustração precursora, em pintura, do que viriam a ser, séculos mais tarde, (graças ao desenvolvimento da técnica fotográfica e das técnicas de impressão, no período da guerra do Vietname), as «pin-up». E aqui, a leitura de Arasse socorre-se de estudos feitos sobre a época, para salientar:

«[...] Rona Goffen mostrou perfeitamente como, no século XVI, a masturbação feminina era, num contexto preciso, aceite e mesmo recomendada. Dizendo a ciência que as mulheres não podiam ser fertilizadas a não ser no momento da sua fruição, os médicos sugeriam às mulheres casadas que se preparassem manualmente para a união sexual para gerarem um filho. [...] Os padres também recomendavam a masturbação porque, como não podeis deixar de saber, para os homens da Igreja, a única sexualidade autorizada era no casamento e ela devia visar exclusivamente a reprodução. Portanto, no casamento, a mulher podia, quase devia, «preparar-se» para a união sexual para se assegurar da sua intervenção e para não se arriscar a cometer, ou a fazer cometer sobretudo a seu marido, o pecado de uma copulação sem progenitura, apenas por prazer. Portanto, no século XVI, esse gesto [o da Vénus de Urbino] não podia ser concebido nem percebido como o de uma pin-up a preparar-se para uma união ilícita. Rona Goffen indica mesmo que a pose dessa mulher, apoiada sobre o seu lado direito, correspondia a recomendações do mesmo género. Dito de outro modo, se não é um tableau de mariage, é um quadro imaginado num contexto de casamento.» (ARASSE, op. cit., pp. 132-133).

Ora, é aqui que começa a tornar-se possível uma primeira conexão produtiva do primeiro com o segundo quadro, o quadro nele embutido, do lado superior direito, o quadro no quadro maior que o inscreve. Que se vê ali? A figura do que seriam duas criadas, uma delas ajoelhada, a espreitar para dentro de um dos baús. Daniel Arasse lembra que, segundo uma certa tradição florentina, era frequente, nessa altura - trata-se aqui do século XVI, mas segundo uma prática que vem já de trás, do século XV - que as noivas trouxessem, como parte do seu dote, baús ou cofres como esse, onde guardariam o seu enxoval, destinado à noite de núpcias.

E a particularidade desses «cassone», - era o nome que se lhes dava, - consistia em que, já no século anterior, pelo menos em Florença, sobre o fundo dos seus tampos traziam precisamente imagens de nus femininos. Em Veneza, um tipo semelhante de baús ou de cofres designava-se «cofres sarcófagos» [«coffres en sarcophage»]. A ideia de Arasse é a de que o quadro que aparece em primeiro plano - o da Vénus propriamente dita - é explicado pelo quadro nele embutido. A figura da Vénus é o que a criada vê, no interior do cofre. O quadro de Ticiano cruzaria, pois, duas referências:

«Ticiano vai procurar, esta mulher nua, ali onde ela se encontra. Primeiro, a pose geral da figura, ele toma-a do quadro de Giorgione que ele acabou perto de trinta anos antes. Em seguida, uma vez que ele faz uma Vénus citadina deitando-a sobre a sua cama que dá o ar de estar num palácio, ele vai procurá-la ao interior dos cofres de casamento e põe-a, à sua mulher nua, em primeiro plano. [...] É no quadro que isso se passa. Esses cofres, horizontais, com as suas curvas convexas, ecoam as curvas do corpo feminino deitado na cama. E estão-lhe associados também porque eles contêm as vestes da figura nua em primeiro plano. Diga-se de passagem: não se deveria dizer que a Vénus de Urbino está «nua» - ela está «despida»...» (ARASSE, op. cit., pp. 156-57).

Ora, nesse sistema de ecos ou réplicas formais, de isotopias figurativas que constroem nexos metafóricos ou de correspondência semântica entre os dois quadros, entra também uma outra correlação: aquela que se estabelece entre a posição do espectador que, interpelado pelo olhar da Vénus, é posicionado, no quadro de Ticiano, necessariamente de joelhos, à sua frente, assim entrando em correlação com a posição da criada que, ao fundo, no outro quadro, se debruça sobre o baú, e faz dela uma figura delegada do espectador-contemplador.

IV - Ter-se-ia assim uma dupla relação: a) entre o corpo da Vénus e o baú (ou cofre), cujas formas convexas o reinscrevem no outro quadro; b) entre a nossa posição, tal como ela é inscrita pelo olhar da figura da Vénus - deveríamos estar de joelhos, para poder ter o nosso olhar à altura do seu - e a nossa posição, tal como ela surge reinscrita, no segundo quadro, na figura da criada.














O que digo simplesmente é que a construção do quadro nos dá teoricamente - sublinho: teoricamente - uma posição em relação à Vénus equivalente à da criada em relação ao cofre: muito perto da figura, e de joelhos diante dela. Sei bem que de facto nós estamos de pé e a alguma distância. Essa posição, é um efeito produzido pelo dispositivo do quadro.


A posição teórica do lugar que o quadro nos reserva é, portanto, um dado compositivo e formal que é interno à sua organização espacial e figural e independente do nosso comportamento. Situado na linha do horizonte e interpelado pelo olhar da Vénus, o nosso olhar há-de impor-se-nos ali a uma certa altura, em relação à superfície do quadro (precisamente a altura do olhar da Vénus, situado exactamente à mesma altura que o olhar da criada ajoelhada ao fundo).

E esta rede de correspondências mais se acentua se imaginarmos, como propõe Daniel Arasse, que o quadro de Ticiano, encomendado por Guidobaldo della Rovere, se destinava, não ao Duque de Urbino propriamente dito (que era suficientemente rico para não precisar, para satisfazer os seus desejos, de se socorrer de um quadro) mas antes a Giulia Varano, sua mulher, que à data teria quatorze anos, segundo um desígnio de lembrança e de recomendação acerca do que se deveria fazer para uma boa preparação para a união sexual sem o cometimento do pecado do prazer dissociado da procriação.

[Parêntesis: da interrelação entre a) - relação metafórica entre o corpo feminino e o cofre, (a lembrar-nos aqui o «Nossa Senhora era uma mala», de Alberto Caeiro - e b) - relação metafórico-metonímica de mediação do espectador-contemplador do quadro, pela figura da criada - estabelecer-se-ia um elo de passagem, ou de comunicação. Olhando a Vénus, olhamos simultaneamente, para o corpo, não apenas que a contempla, no lugar da criada, mas também no qual uma relação metonímico-metafórica se estabelece, entre os seus olhos e o seu sexo, como lugares da sua abertura].

V - Ora, dessa rede de correspondências seria ainda preciso notar que ela não resume a àquelas duas correlações notadas acima. Uma terceira correspondência c) nos mostraria: 1. que o ponto de convergência das linhas do quadriculado do tapete, que indica o ponto de fuga no segundo quadro, situado do lado direito e acima do primeiro, se situa exactamente na linha vertical que desce até ao sexo da Vénus; 2. que assim se estabeleceria, não apenas uma relação de correspondência entre dois pontos ordenadores da nossa atenção, mas também uma correlação metafórica entre o corpo, o baú e o quadro (o quadro como caixa cenográfica aberta; o corpo como abertura e, simultaneamente, ocultação; o baú como lugar do mistério e, ao mesmo tempo, da imagem: da figura e da representação), entre a abertura do espaço da perspectiva e a abertura do corpo. Diz Arasse:

«O importante, o que faz da Vénus de Urbino um quadro excepcional, é que ele põe em cena o que constituiu a própria erótica da pintura clássica. [...] passar do tocar ao ver, substituir o ver ao tocar, fazer do ver um quase-tocar mas, para ver, não tocar. Ver, apenas ver. [...] Na Vénus de Urbino, a cama de Vénus representa essa superfície de pintura de onde surge, muito próxima, a mulher nua e de onde ela nos olha. E aí penso em Benjamin e na sua definição de aura, «aparição única de um longínquo»... [...] A mulher olha-nos da superfície do quadro e encara-nos: ou que sejais, ou que estejais sob o seu olhar.» (ARASSE, op. cit., pp. 162-166).

Ou, por outras palavras, o corpo da Vénus seria aqui, tal como o corpo da pintura (assente na ou suportado pela tela) - o corpo de uma pintura que acabara de incorporar a perspectiva e, com ela, o desdobramento de um espaço em profundidade - todo ele centrado naquele elemento ordenador que, longe de ser um ponto simplesmente geométrico - o ponto de fuga - seria ele próprio uma espécie de enigma (bio-lógico) da representação, de impensado corpóreo: o ponto-origem da vida no corpo, o ponto que diria respeito à «origem do mundo» (tal como Courbet o designará), se imaginarmos que esse mundo avança, no espaço e no tempo, em direcção ao nosso olhar, há medida que por ele caminhamos. Ver o corpo amado (o corpo do nosso desejo), supõe, paradoxalmente, a necessidade de o não alcançarmos, de dele nos afastarmos de cada vez que dele nos aproximamos, de nele não tocar: e neste sentido, «ver» seria já o «tocar» possível do voyeur, o tocar possível sem o perder de vista.

Assim, o gesto da Vénus seria, ele mesmo, também o gesto que designaria ou indicaria, pela sua mão esquerda, uma espécie de vórtice e móbil central, de lugar de voragem e mistério, de fluxo de energia a que seria preciso remeter a própria ciência, a própria comprensão óptica e geométrica da representação, enquanto elementos concorrentes nos processos de imitação de um espaço em profundidade.

«A «Vénus» ocupa um lugar preciso, aquele da cama, situado entre dois espaços claramente definidos e conjuntos: o espaço ficcional da sala das criadas e o espaço real da sala de onde olhamos o quadro. Mas o lugar da cama escapa a esses dois espaços. Ele ocupa um «entre dois espaços»... [...] Digamos o lugar da cama, mas eu poderia também dizer a cama como lugar (do corpo nú) encontra-se entre dois espaços... [...] e esse lugar, essa cama, nada mais são que a superfície da tela [...]. Em Ticiano, a perspectiva colocava o nosso olhar na vertical exacta da mão que acaricia o sexo, e essa posição era sublinhada pela linha vertical indicando o bordo da superfície escura que se recorta sobre a profundidade da sala.» (ibidem pp. 165- 167)

VI -
A sugestão é, pois, aqui, por um lado, a de que o espaço aberto pela perspectiva participa, simultaneamente, de uma erótica e de um processo de fetichização. Por outro lado, a de que, nela, a pintura coloca o nosso olhar numa relação projectiva e imaginária, produtiva e «criadora», fecunda e genesíaca com «a carne do mundo». A cama ou a tela são aqui, para Daniel Arasse, o lugar-suporte do corpo-pintura que, no seu espaço em profundidade, nos interpela e incita, a partir dos seus buracos negros e dos seus vórtices de energia. E a pintura é, pois, uma produção do olhar como acontecimento. Não apenas uma produção do olhar, mas uma produção do lugar olhado do corpo, num mundo vital em movimento, que não poderia deixar de ser antropomorfo, tal como ele é visto, ou penetrado pela visão, isto é, sentido como abertura de um espaço em profundidade no qual avançamos, «penetramos» (pelo olhar), e no qual estamos já lançados ou situados.

(Sabe-se como Marcel Duchamp inverterá o sentido deste pressuposto da representação. A dissociação entre o observador e o representado, o espaço intervalar de uma sua penetração pelo olhar, funciona ironicamente, em Duchamp, também no sentido inverso. Os nossos olhos não são apenas o órgão de uma «penetração» do mundo-corpo exterior. São também o órgão que nos expõe, a nós mesmos, à penetração do mundo-corpo exterior (cf. a leitura de Jean-François Lyotard, a propósito de Étants donnés, de Marcel Duchamp). Observará Rosalind Krauss, a propósito de Étant Donnés:

«O espectáculo por detrás da porta é, entretanto, moldado de forma a articular esta carnalização do observador. Replicando de forma exacta o modelo da perspectiva renascentista, a mise-en-scène apresenta o seu nú por detrás da rompida abertura de uma parede de tijolos numa paródia da noção de Alberti de que o plano através do qual nós olhamos, numa construção perspéctica, é como uma janela.» (KRAUSS, Rosalind; FOSTER, Hal; BOIS, Yves-Alan; BUCHLOH, Benjamin, Art since 1900: modernism, antimodernism, postmodernism II: - 1945 to the present, New York, Thames & Hudson, 2007, p. 498).

De facto, no próprio gesto de espreitar pelos ralos da porta para o interior sobre o qual ela abre, nessa sua abertura, e onde se vê o que a imagem seguinte mostra, o espectador é apanhado a olhar. Ele é apanhado pela imagem que polariza o espectáculo que ele contempla e que o fascina. Os ralos da porta são portanto posicionadores de uma certa relação de simetria e de comutação, entre o lugar da abertura do olhar e o da abertura do corpo olhado. É precisamente isso que Krauss nos diz:

«Além disso, orquestrando as geometrias da perspectiva através das quais o cone da visão (convergindo num ponto situado no olho do observador - o ponto de vista) é o espelho exacto da pirâmide de projecção (convergindo pontualmente no «infinito» - o ponto de fuga) os ralos [peepholes] de Duchamp estabelecem o ponto de vista como reflexo do buraco que lhe é directamente oposto, nomeadamente, o ponto entre as pernas do nú [...]. Escrevendo acerca dos sistemas transformacionais de Duchamp, o filósofo francês Jean-François Lyotard captou este colapso bipolar dos pontos de vista e de fuga nos orifícios [assim especularmente geminados] do corpo [o sexo feminino e o olho do observador] no trocadilho «con celui qui voit» [...].» (ibidem).












A pintura ou o quadro como janela - a palavra «janela» é de criação portuguesa, a partir do latim «Janus», designação dada ao deus bifronte - é também o lugar em que o voyeur é possuído pela imagem que o fascina, e que ele julga controlar à distância da sua própria invisibilidade. Veja-se a este propósito, aqui no blogue, os posts referentes à leitura que Rosalind Krauss produz, a propósito de Cindy Sherman, e em discussão das teses de Laura Mulvey: Fragmentos de Leitura 8, 9 e 10 (sobretudo os dois últimos)).

Poder-se-ia agora perguntar que tem tudo isto a ver com Manet? Qual seria, então, a relação entre o quadro de Ticiano e a pintura de Manet? Que terá visto Manet, no quadro de Ticiano que inspirou a sua Olympie? É o que reservaremos para um outro post. Partindo das sugestões de Daniel Arasse (que leu Michel Fried, acerca de Manet), tentaremos não perder de vista o que nos diz, por outro lado, Michel Foucault, na conferência sobre «La peinture de Manet», que profere em 1971, durante a sua digressão pela Tunísia.

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