domingo, 31 de maio de 2009

Recapitulações XIV: A Vénus de Urbino II - «o que Manet viu», na obra de Ticiano (D. Arasse; M. Foucault)














Ticiano, Vénus de Urbino, 1538.

I - Em «A Vénus de Urbino - uma erótica da pintura clássica», tinha-se antecipado aqui a possibilidade de uma relação de apropriação dinâmica entre a pintura de Ticiano e a de Manet. Num certo sentido, a leitura proposta por Daniel Arasse (ver Recapitulações XIII: A Vénus de Urbino - uma erótica da pintura clássica, aqui no blogue) é já motivada por essa construção retroprojectiva, na pintura de Manet, de uma relação transformadora (embora no post anterior, dela não tivéssemos dado conta), de apropriação e deslocação da pintura de Ticiano.

Poderíamos agora avançar que, sendo uma erótica da pintura clássica o que nesse quadro de Ticiano se poderia também ler, isso significava igualmente, na mesma medida, que Manet tivesse ali visto uma espécie de prenúncio daquela redução do espaço em profundidade, que viria a verificar-se na sua pintura e que, de outros modos, por via da relação de confronto com a fotografia, vimos já na pintura de Monet.

Redução de um espaço em profundidade cuja imitação constituira a intenção da pintura clássica até ao século XIX (sob a ilusão da objectividade, do efeito de real que vai de par com invisibilidade do sujeito que vê a si próprio, do sujeito moderno enquanto voyeur, ou enquanto aquele que vê supondo ver sem ser visto, como dizia Wajcman), ao princípio de que a sua representação era antropomórfica.

A sugestão da Vénus de Urbino passava, lembremo-lo, segundo a leitura de Daniel Arasse, pela correlação entre o ponto de fuga no espaço e o sexo no corpo despido (aberto ou exposto ao nosso olhar e em plena consciência desse facto, um vez que a sua personagem central no-lo indica explicitamente, com o gesto da sua mão esquerda): «na Vénus de Urbino, o ponto de fuga é situado na vertical de prumo da mão esquerda da «Vénus» e à altura do seu olho esquerdo» (ARASSE, Daniel, On y voit rien, Paris, Denoël, 2000, p. 148). O que reinscrevia, indirecta e subtilmente, mas inequivocamente, a presença do observador no espaço representado.

Frisando que esse gesto de Ticiano ficaria, na sua obra, como gesto de representação absolutamente isolado (em nenhum quadro posterior o gesto dessa Vénus seria retomado), Daniel Arasse observa: «de qualquer forma não podeis banalizar esse gesto. Ele é de facto excepcional, mesmo no século XVI. Ticiano não o retomou nunca e nenhum outro pintor o fez também. Mesmo em 1538, ele devia ter parecido um pouco ousado, no limite do pornográfico» (ibidem, p. 131).

E Manet «viu ali qualquer coisa que o interessou suficientemente para que ele fizesse a sua Olympia e mesmo para que ele fizesse, alguns anos antes, uma pequena cópia da Vénus de Urbino» (ibidem, p. 136). O que é tão importante quanto o facto de que a sua Olympia contribuiu para o nascimento da modernidade em pintura - é M. Fried, lido por Arasse, quem o diz. O que Manet teria visto no quadro de Ticiano é ali pensado, com efeito, por Daniel Arasse, em função do M. Fried escreve sobre o primeiro - Manet.

«Segundo Fried, nos anos 1860, Manet trabalha sobre a «convenção primordial» da pintura: um quadro é feito para ser olhado. [...] O que diz Fried é que Manet vai transformar o teatro da pintura. Ele renuncia à teatralidade clássica, fundada sobre a colocação em cena da perspectiva e [sobre] o assunto/sujeito [le sujet] literário. Ele procura uma teatralidade fundada somente pela pintura. Segundo Fried, Manet procura fazer quadros que se contentem em apresentar-se ao espectador, em olhá-lo. Ele esforça-se, cito Fried, por fazer de maneira que cada porção da superfície olhe o espectador de frente. É o que ele chama a (ou o) facingness da pintura de Manet. [...] E esse facingness, esse face a face da pintura com os seus espectadores, é a nascença da modernidade. [...] Fried estima também que essa busca encontra um suporte particularmente adaptado no nú erótico clássico. Porque esse nú supõe um sujeito que se oferece, mais ostensivamente que qualquer outro, como objecto para um público masculino.» (ibidem, pp. 162-163).

E acrescenta Arasse:

«Fried não fala dela [da Vénus de Urbino]. Mas, depois do que se acaba de dizer sobre a Vénus de Urbino, ele permite-nos compreender o que Manet pôde ver no quadro e, ao mesmo tempo, compreender melhor o trabalho de Ticiano. [...] Como diz aproximadamente Fried, sem pensar em Ticiano, mas [pensando] em Manet, ela [Olympia] coloca-nos sob o império do olhar, um olhar fixo e dominador. Eis o que Manet viu [na Vénus de Ticiano]. E eis o que ele transformou. Nele [no quadro Olympia] é toda a superfície que olha o espectador de frente: a criada vem para a frente sobre um fundo opaco, o cão adormecido tornou-se num gato. [...] Manet anulou toda a perspectiva. O quadro não tem nenhuma profundidade. Todo ele é superfície, e essa opção é confirmada por uma minúscula transformação. Minúscula e decisiva. Manet desfez cuidadosamente a relação directa que Ticiano havia instalado, entre a posição do nosso olhar, o sexo da mulher e a profundidade. Manet desfez essa condensação» (ibidem, pp. 166-167).















Manet, Olympia, 1863.

Na verdade, Manet pinta igualmente uma superfície vertical, como divisória de fundo, mas desloca-a da vertical do sexo da sua Olympia ligeiramente para a direita, deixando ela, assim, de o «indicar». Ao mesmo tempo, o sentido do seu gesto, que é já outro, em Olympia, modifica-se. Ele tapa, interpõe-se, veda o sexo e, por contraste com a sugestão de Ticiano, esconde, obtura, mura o abismo, fecha o alçapão da pirâmide de projecção do espaço perspéctico, recobre-o com a forma rasa de uma mão que tapa, da mesma forma que o quadro se desdobra todo sobre uma superfície que nele se estende a toda a largura do seu fundo.

A vertical de fundo - irónica e ilusoriamente suposta, por Panofsky, como divisória arquitectónica (no quadro de Ticiano) - age aqui no mesmo sentido descentrador que a sua mão. Essa dupla indicação contrastiva reenvia-nos agora, não para um ponto de fuga corpóreo, mas para a sua própria impossibilidade, para a impossibilidade da sua visibilidade ou da sua captação. Manet:

«desdobrou na superfície [do seu quadro] o que Ticiano havia condensado na articulação entre superfície e profundidade. Ele rebateu a profundidade na superfície. É toda a pintura que nos olha de frente. Não é já a posição do nosso olhar [teoricamente inscrita, como notava Arasse, a propósito do quadro de Ticiano, na sua ordenação compositiva: veja-se «Recapitulações XIII»] que a estrutura interna do quadro determina e a nossa relação com ele. Fried tem razão. Uma forma da modernidade tinha nascido.» E além disso, a mão «[...] já não acaricia o sexo; ela está deposta sobre ele, firmemente, face ao espectador. Olympia olha-nos mas ela não se toca» (ibidem, pp. 167-169).

Eis, portanto, que o gesto da sua mão é, diferentemente do gesto da Vénus de Urbino, o de uma interposição que nos indica, por contraste, sobre o fundo constituído pela memória do quadro de Ticiano - de que Manet executara uma cópia anteriormente - como vedando o acesso ao interior do corpo/espaço em profundidade, a um espaço-corpo em profundidade. Ora, se quiséssemos dar aqui conta das observações de Michel Foucault - embora a sua visão difira, na sua orientação, da de M. Fried - a propósito do que a pintura de Manet traz de novo à pintura, que características poderíamos começar por salientar? É o que veremos a seguir.

Sem comentários:

Enviar um comentário