sábado, 22 de novembro de 2008

Recapitulações - O quadro II: o «admonitor» de Alberti, como suplemento da apresentação da representação pictórica

Giovanni Bellini, Apresentação no Templo.

Pablo Picasso, Guernica.

A auto-representação do sujeito enunciador (como em Giovanni Bellini, do lado direito do quadro) não é, contudo (sendo ela própria também a forma do «auto-retrato escondido», que «dissimula a presença do pintor no seio de um grupo de personagens», naquilo a que Omar Calabrese chama o cripto-retrato), a única possibilidade da marcação da instância do sujeito enunciador. Pois o sujeito enunciador de um quadro, tal como o de uma história, pode implicar uma diferenciação entre o seu autor e o seu narrador: em Guernica, a figura que entra pela janela não supõe o reconhecimento de nenhuma auto-representação autoral do sujeito enunciador. Segundo o preceito de Leon Batistta Alberti, no seu De Pictura (1435):

«A história porá em movimento a alma do espectador quando cada figura pintada no quadro mostra claramente o movimento da sua própria alma [...]. Nós choramos com aquele que chora, rimos com aquele que ri e afligimo-nos com aquele que se aflige. São os movimentos do corpo que fazem conhecer os movimentos da alma. [...] Todos os corpos devem mover-se segundo a ordem da história, quer dizer, devem convir ao assunto quadro. [...] Numa história gosto de ver alguém que nos advirta e nos indique o que ali acontece [na história, no relato, no quadro]: que nos convide a ver com a sua mão; ou que ameace com uma face encolerizada e os olhos brilhantes [étincelants] tão bem que ninguém ouse aproximar-se, ou que mostre aí algum perigo ou alguma maravilha; ou nos convide a chorar ou a rir com eles. Assim, o que quer que façam as figuras pintadas entre elas e com o espectador, tudo deve ser dirigido para a compleição e o ensino da história.» (MARIN, Louis, op. cit. 319).

O quadro, enquanto operador de limte que sustenta a possibilidade e a legibilidade do título é, portanto, replicado, no seu interior, por esta meta-figura que é a do «espectador-comentador» e que funciona como seu suplemento. Ela não é necessariamente a do pintor, como acontece do cripto-retrato, mas antes a de alguém que nos adverte e nos indica alguma coisa. É, em primeiro lugar, o equivalente pictórico-figurativo do narrador, cuja diferença em relação ao autor (aparentemente explícito no caso do cripto-retrato, apesar de todas as modalizações possíveis, que mais adiante veremos) deve ser tida em conta. Digamos, então, que, se o quadro é o operador de apresentação da representação em pintura, o espectador-comentador é, no seu interior, a figura que aí o redobra, na sua função de recorte, enquanto operador de visibilidade-legibilidade. Do ponto de vista desta pragmática da recepção da representação em pintura, a figura do admonitor - tal como é definida por Alberti - é a de uma representação de uma mediação orientadora da leitura.