O «quadro» - I: Do ponto de vista da semiologia da pintura, não é apenas o «quadro» que constitui uma operação-chave na construção dos «enunciados» pictóricos. São também, como nos diz Louis Marin, o fundo e o palco, bem como o plano de representação. Procuremos então elencá-los aqui por esta ordem. Pensemos primeiro no «quadro»:
O que é um quadro? Ele corresponde, em primeiro lugar, a uma operação que é, simultaneamente, de selecção e de corte. O que ele instaura na pintura é um limite. Esse limite dissocia o que entra na composição, daquilo que ela exclui, permitindo, ao mesmo tempo, a contrução/recepção de um título verbal/texto visual, de um título e de um quadro. Em MARIN, Louis, «Figures de la recéption dans la représentation moderne de peinture», (onde tais elementos são depreendidos da sua leitura de um quadro de Nicolas Poussin – La Manne – ) lemos o seguinte:
«Uma primeira figura ou antes uma configuração essencial das marcas e das marcações da apresentação da representação pictural moderna é o seu quadro (cornice, frame): [...]. Desde logo, com a leitura do nome do quadro, a visão encontra-se anunciada e prevenida, provocada para a leitura de uma narrativa [...]. O quadramento do quadro [l’cadrement du tableau] é a condição semiótica da sua visibilidade, mas também da sua legibilidade [...]. O quadro não é uma instância passiva do ícone: ele é, na interacção pragmática do espectador e da representação, um dos operadores da constituição da obra [du tableau] como objecto visível cuja finalidade integral é a de ser vista». (MARIN, Louis, «Figures de la recéption dans la représentation moderne de peinture», De La représentation, Paris, Gallimard/Seuil, 1994, pp. 314-316).
1. O quadro é, portanto, o limite que circunscreve e torna possível a ostensão da obra pictórica - a apresentação da representação pictórica, quer dizer, a sua constituição de um enunciado pictórico em situação de interlocução. Assim como na linguagem verbal o sentido de um enunciado se não compreende a não ser a partir da sua pausa final e, portanto, da sua pontuação, o quadro repesenta, enquanto operador de visibilidade-legibilidade, o equivalente visual ao ponto final de uma frase ou ao final de um parágrafo, ou ao final de um texto. Do mesmo modo que a interrupção/inacabamento de uma frase ou de um discurso nos não permitiria interpretá-los, fazer com eles o sentido em que supomos que eles são proferidos, assim também a ausência de um limite ou enquadramento suspenderia a possibilidade da interpretação. No caso de La Manne, de que Marin trata, esse discurso é narrativo e versa um trecho do Antigo Testamento. Dito isto, é necessário começar a estabelecer aqui algumas distinções importantes.
2. Na medida em que o quadro circunscreve uma composição (ordenada, na pintura renascentista, segundo as leis da perspectiva, ou segundo o princípio da relação plano de representação/espelho-reflexo e, como se viu, em muitos casos, dotada de uma auto-referência discursiva explícita, na qual o sujeito enunciador se inscreve no enunciado-quadro: o pintor retrata-se a ele mesmo, como tivemos oportunidade de ver, no meio de grupos de figuras mais ou menos conhecidas da época) ele supõe, portanto, uma escolha, tal como os actos verbais supõem uma selecção e uma combinação de termos. Essa escolha é também a que preside à auto-representação do pintor (no caso do cripto-retrato), ou à sua exclusão do enunciado pictórico, e liga-se, assim, ao modo de narração de uma história (contada na primeira pessoa - eu, aqui e agora - ou na terceira pessoa - quando, por exemplo, a figura do admonitor não nos interpela com o seu olhar - como se verá, mais adiante).
3.O efeito discursivo dessa operação de corte é, como nos diz Louis Marin, o de converter a diferença infinita dos elementos pertences ao real na diferença absoluta em que eles entram, no interior do espaço circunscrito pelo limite que o quadro estabelece: fechando o enunciado, o quadro-limite funciona como o ponto final que induzisse à constituição do seu sentido, em retrospecção. É a partir do momento em que o quadro/enunciado é «acabado» que se pode interrogar-lhe o sentido, e que os momentos da sua ostensiva visibilidade e da sua eventual legibilidade entram em jogo. Ouçamos a descrição de Louis Marin (ibidem, p. 318):
«É uma experiência do quadro e não do seu pintor: ele assinala a autonomia funcional real, e a autonomia estética possível do dispositivo de representação: a representação apresenta-se [através do corte pressuposto pelo quadro] a representar alguma coisa; signo da dimensão reflexiva, o quadro [o corte] é o seu operador. Ele constitui um momento importante na construção do espectador «ficcional» ou modelizado da representação no próprio interior da representação pictórica: operador do processo de transformação do aspecto em prospecto, da diferença simples entre contrários [A vs B vs C...] na diferenciação dos contradictórios [A vs não-A...], que é reservada à apresentação da representação, à sua recepção específica. O quadro como signo e processo visa transformar a diferença infinita do mundo percepcionado (as espécies das coisas que se avizinham [entre si]) numa diferenciação absoluta em que a representação pictural não admite nenhum juízo de conveniência ou desconveniência com o que ela não seria, mas somente um juízo declarativo da sua apresentação como representação, por exclusão de tudo o que não é ela».
4. A passagem da diferença infinita entre contrários (própria da situação da nossa percepção no real), para a diferença absoluta entre contraditórios é o resultado visível da passagem, da percepção do real, ao discurso-imagem sobre ela produzido. Essa passagem implica uma suspensão da diferença infinita que é própria do «inumerável» na imensa variedade dos aspectos das coisas no mundo. Essa diferença infinita não é apenas, portanto, a que marca a abundância do variegado de um mundo demasiado grande para que possa ser abarcado pelo nosso olhar. Ela é também a que é própria a um ordenamento das coisas segundo as leis da sua convenientia ou convergência, no mundo real. Aquelas figuras de um quadro de Chagall, o intitulado «Sobre a Cidade», ou o intitulado A Memória e as Cidades, não poderiam ser percepcionadas no mundo real porque, segundo as leis da convenientia (ou convergência; ver Michel Foucault, As Palavras e as Coisas) que regem essas coisas no mundo real, elas não voam. Dir-se-ia, assim, que o céu em que aparecem não lhes convém, no mundo real. Assim, o facto de elas aparecerem no quadro suspensas nesse céu resulta da sua transposição discursiva-pictórica e supõe, quer um deslocamento (do real para a representação), quer uma condensação (metafórica, segundo a qual elas ganham atributos que não teriam, uma vez situadas na aparência ou na percepção exterior do mundo real). Assim, seguindo-se o que Louis Marin nos diz, podemos observar que, no interior do quadro, elas entram numa relação sintáctica que supõe, no interior do espaço circunscrito da tela, uma diferença absoluta cujo princípio é o que rege a diferença entre os contraditórios: A versus não-A. Por exemplo, elas voam sobre cidades, mas não são cidades, ao nível do enunciado figurativo-pictórico. É antes ao nível da enunciação que é preciso pensar a sua distribuição topológica no quadro.
O que é um quadro? Ele corresponde, em primeiro lugar, a uma operação que é, simultaneamente, de selecção e de corte. O que ele instaura na pintura é um limite. Esse limite dissocia o que entra na composição, daquilo que ela exclui, permitindo, ao mesmo tempo, a contrução/recepção de um título verbal/texto visual, de um título e de um quadro. Em MARIN, Louis, «Figures de la recéption dans la représentation moderne de peinture», (onde tais elementos são depreendidos da sua leitura de um quadro de Nicolas Poussin – La Manne – ) lemos o seguinte:
«Uma primeira figura ou antes uma configuração essencial das marcas e das marcações da apresentação da representação pictural moderna é o seu quadro (cornice, frame): [...]. Desde logo, com a leitura do nome do quadro, a visão encontra-se anunciada e prevenida, provocada para a leitura de uma narrativa [...]. O quadramento do quadro [l’cadrement du tableau] é a condição semiótica da sua visibilidade, mas também da sua legibilidade [...]. O quadro não é uma instância passiva do ícone: ele é, na interacção pragmática do espectador e da representação, um dos operadores da constituição da obra [du tableau] como objecto visível cuja finalidade integral é a de ser vista». (MARIN, Louis, «Figures de la recéption dans la représentation moderne de peinture», De La représentation, Paris, Gallimard/Seuil, 1994, pp. 314-316).
1. O quadro é, portanto, o limite que circunscreve e torna possível a ostensão da obra pictórica - a apresentação da representação pictórica, quer dizer, a sua constituição de um enunciado pictórico em situação de interlocução. Assim como na linguagem verbal o sentido de um enunciado se não compreende a não ser a partir da sua pausa final e, portanto, da sua pontuação, o quadro repesenta, enquanto operador de visibilidade-legibilidade, o equivalente visual ao ponto final de uma frase ou ao final de um parágrafo, ou ao final de um texto. Do mesmo modo que a interrupção/inacabamento de uma frase ou de um discurso nos não permitiria interpretá-los, fazer com eles o sentido em que supomos que eles são proferidos, assim também a ausência de um limite ou enquadramento suspenderia a possibilidade da interpretação. No caso de La Manne, de que Marin trata, esse discurso é narrativo e versa um trecho do Antigo Testamento. Dito isto, é necessário começar a estabelecer aqui algumas distinções importantes.
2. Na medida em que o quadro circunscreve uma composição (ordenada, na pintura renascentista, segundo as leis da perspectiva, ou segundo o princípio da relação plano de representação/espelho-reflexo e, como se viu, em muitos casos, dotada de uma auto-referência discursiva explícita, na qual o sujeito enunciador se inscreve no enunciado-quadro: o pintor retrata-se a ele mesmo, como tivemos oportunidade de ver, no meio de grupos de figuras mais ou menos conhecidas da época) ele supõe, portanto, uma escolha, tal como os actos verbais supõem uma selecção e uma combinação de termos. Essa escolha é também a que preside à auto-representação do pintor (no caso do cripto-retrato), ou à sua exclusão do enunciado pictórico, e liga-se, assim, ao modo de narração de uma história (contada na primeira pessoa - eu, aqui e agora - ou na terceira pessoa - quando, por exemplo, a figura do admonitor não nos interpela com o seu olhar - como se verá, mais adiante).
3.O efeito discursivo dessa operação de corte é, como nos diz Louis Marin, o de converter a diferença infinita dos elementos pertences ao real na diferença absoluta em que eles entram, no interior do espaço circunscrito pelo limite que o quadro estabelece: fechando o enunciado, o quadro-limite funciona como o ponto final que induzisse à constituição do seu sentido, em retrospecção. É a partir do momento em que o quadro/enunciado é «acabado» que se pode interrogar-lhe o sentido, e que os momentos da sua ostensiva visibilidade e da sua eventual legibilidade entram em jogo. Ouçamos a descrição de Louis Marin (ibidem, p. 318):
«É uma experiência do quadro e não do seu pintor: ele assinala a autonomia funcional real, e a autonomia estética possível do dispositivo de representação: a representação apresenta-se [através do corte pressuposto pelo quadro] a representar alguma coisa; signo da dimensão reflexiva, o quadro [o corte] é o seu operador. Ele constitui um momento importante na construção do espectador «ficcional» ou modelizado da representação no próprio interior da representação pictórica: operador do processo de transformação do aspecto em prospecto, da diferença simples entre contrários [A vs B vs C...] na diferenciação dos contradictórios [A vs não-A...], que é reservada à apresentação da representação, à sua recepção específica. O quadro como signo e processo visa transformar a diferença infinita do mundo percepcionado (as espécies das coisas que se avizinham [entre si]) numa diferenciação absoluta em que a representação pictural não admite nenhum juízo de conveniência ou desconveniência com o que ela não seria, mas somente um juízo declarativo da sua apresentação como representação, por exclusão de tudo o que não é ela».
4. A passagem da diferença infinita entre contrários (própria da situação da nossa percepção no real), para a diferença absoluta entre contraditórios é o resultado visível da passagem, da percepção do real, ao discurso-imagem sobre ela produzido. Essa passagem implica uma suspensão da diferença infinita que é própria do «inumerável» na imensa variedade dos aspectos das coisas no mundo. Essa diferença infinita não é apenas, portanto, a que marca a abundância do variegado de um mundo demasiado grande para que possa ser abarcado pelo nosso olhar. Ela é também a que é própria a um ordenamento das coisas segundo as leis da sua convenientia ou convergência, no mundo real. Aquelas figuras de um quadro de Chagall, o intitulado «Sobre a Cidade», ou o intitulado A Memória e as Cidades, não poderiam ser percepcionadas no mundo real porque, segundo as leis da convenientia (ou convergência; ver Michel Foucault, As Palavras e as Coisas) que regem essas coisas no mundo real, elas não voam. Dir-se-ia, assim, que o céu em que aparecem não lhes convém, no mundo real. Assim, o facto de elas aparecerem no quadro suspensas nesse céu resulta da sua transposição discursiva-pictórica e supõe, quer um deslocamento (do real para a representação), quer uma condensação (metafórica, segundo a qual elas ganham atributos que não teriam, uma vez situadas na aparência ou na percepção exterior do mundo real). Assim, seguindo-se o que Louis Marin nos diz, podemos observar que, no interior do quadro, elas entram numa relação sintáctica que supõe, no interior do espaço circunscrito da tela, uma diferença absoluta cujo princípio é o que rege a diferença entre os contraditórios: A versus não-A. Por exemplo, elas voam sobre cidades, mas não são cidades, ao nível do enunciado figurativo-pictórico. É antes ao nível da enunciação que é preciso pensar a sua distribuição topológica no quadro.
5. Nesse sentido, a articulação enunciativa do quadro de Chagall supõe deslocamentos (de posição), operados a partir da sua percepção mundana, para a sua posição recontextualizada, no espaço do quadro, que é o espaço da percepção-leitura de Sobre as Cidades ou de A Memória e as Cidades). O mesmo é dizer que o quadro, operador de suspensão das leis que regem a nossa apreensão das coisas no real, é também o operador da dimensão reflexiva de um discurso de que ele constitui o enunciado, isto é, o operador da dimensão da autonomia estética possível da representação. O que ele estabelece é a fronteira entre a relação transitiva que toda a representação pressupõe, e a opacidade reflexiva que a sintaxe que as relaciona no interior do espaço do quadro, pressupõe.
6. Tal significa que, embora mantendo alguma margem de legibilidade (podemos reconhecer as figuras do quadro de Chagall como figuras antropomorfas, um homem e uma mulher, embora elas surjam suspensas no céu), o texto (pictórico ou verbal) supõe, também, uma outra margem, na qual a relação entre as figuras/formas se refaz e o sentido é mais móvel e instável e supõe, por parte o leitor-espectador, alguma reacção de estranhamento. Se a primeira é a sua margem de transitividade (no sentido em que o reconhecimento é uma operação de relação entre as figuras plásticas e as figuras da percepção habitual, a partir destas últimas), a sua segunda margem é a da sua opacidade reflexiva. Assim, do quadro, enquanto operação de corte e selecção-combinação se poderia dizer o que Roland Barthes dizia do Texto:
«São traçadas duas margens: uma margem obediente, conforme, plagiária [... que copia ou se aproxima formalmente da representação perceptiva usual das coisas no real social e histórico em que vivemos, margem a que chamámos aqui «transitiva»] e uma outra margem móvel, vazia, (apta a tomar quaisquer contornos [de sentido, margem a que chamámos aqui da reflexividade; numa palavra, «a margem da opacidade reflexiva», que na sua intransitividade se afasta da primeira]) [...]. Estas duas margens, o compromisso que elas encenam, são necessários. Nem a cultura, nem a sua destruição são eróticas; a fenda [entre ambas as margens] é que se torna erótica». (BARTHES, Roland, O Prazer do Texto, trad. de Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 40).
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