quarta-feira, 6 de maio de 2009

«Elementos para uma semiologia pictural» 5 - de Louis Marin

OS CÓDIGOS PICTURAIS

Em primeiro lugar o problema dos códigos picturais: se ler um quadro consiste, não apenas em percorrê-lo com o olhar, mas em decifrá-lo, se à extensão da leitura se articula em profundidade um espaço de leitura, a interpretação implica um ou mais códigos de interpretação, para dele reconhecer ou compreender o sentido. A perspectiva representativa dispõe de um primeiro código, o código perceptivo, tanto mais profundo quanto a sua colocação em funcionamento é tanto mais imediata e mais inconsciente, quanto parece não aparecer nunca como código. Klee fazia-o notar justamente, mesmo para uma pintura dita «não figurativa»:

À medida que a obra se enche, acontece facilmente que uma associação de ideias aí se inscreva – [não é o reconhecimento da série paradigmática?] – aprestando-se a pôr em jogo os demónios da interpretação figurativa. Porque, com um pouco de imaginação, todo o agenciamento um pouco estendido se presta a uma comparação com realidades conhecidas da natureza. Uma vez interpretada e nomeada, semelhante obra não responde já inteiramente ao querer do artista [pelo menos não ao mais intenso desse querer] e as suas propriedades associativas são a origem de mal-entendidos apaixonados entre o artista e o público.

Esse código analógico, representativo, fundado sobre a percepção não é inocente. Não apenas nos seus fundamentos – o quadro representa um homem, uma mulher, um pássaro – mas ainda na sua própria existência, o código implica uma certa dependência cultural marcada essencialmente pela familiaridade com a noção de representação que é um traço de cultura notório. Ao nível da legibilidade primária do quadro, é o código de decifração e esse unicamente que é utilizado, utilização garantida – parece – pela imediatidade analógica da representação. É nesse sentido que a leitura do quadro é a mais próxima de uma grafia na sua banalidade.

O signo gráfico, ou antes o significante é atravessado em direcção ao sentido, sem ser percebido por ele mesmo. Do mesmo modo, o quadro é atravessado como representação do mundo. Ele é percepcionado como o mundo é percepcionado. Ele não é lido, decifrado. O quadro é apreendido como analogon do mundo ou da coisa. Dito de outro modo, a leitura do quadro bloqueia-se e fixa-se no que não é ainda uma junção [assemblage] de figuras articuladas, mas uma simples sucessão de figuras. Pierre Bourdieu nos seus Élements por une sociologie de la perception artistique estudou bem esse ponto, a título de uma sociologia da arte.

A utilização do código perceptivo, quaisquer que sejam as suas implicações culturais, põe um importante problema à semiologia, aquele sobre o qual Frege, num texto célebre, chamava, no começo do século, a atenção: a distinção do sentido e da referência, distinção que a analogia icónica mascara tornando particularmente difícil a leitura do quadro fundada nesse código. É interessante notar que Frege ilustra a distinção do sentido e da referência por um exemplo tirado da substância visual, aquele bem conhcido da lua e do telescópio:

A referência de um nome próprio é o objecto ele próprio que nós designamos pelos seus meios; a ideia que nós temos nesse caso é inteiramente subjectiva; entre ambos está o sentido que é, na verdade, já não subjectivo como a ideia, mas ainda não é o próprio objecto... Alguém observa a lua através de um telescópio. Eu comparo a lua ela própria à referência; é o objecto de observação mediado pela imagem real projectada pelo objecto vidro no interior do telescópio e pela imagem retiniana do observador. Ao primeiro comparo-o como sentido, o último é como a ideia ou a experiência. A imagem óptica no telescópio é na verdade unilateral, e dependente do ponto de vista da observação: mas é ainda objectiva na medida em que pode ser usada por vários observadores.

Do mesmo modo, logo que percepciono, sobre um quadro, uma árvore ou um homem, o homem ou a árvore, como o objecto do mundo, é a referência ou o designado do quadro. A imagem sobre o quadro, a imagem «unilateral» - plana [à plat] – é o sentido e a experiência que eu tenho dessa imagem é ela mesma diferente do sentido: ela constitui a ideia subjectiva – no sentido de Frege – que nós temos de um homem ou uma árvore. O signo, diz ainda Frege, exprime o seu sentido e designa a sua referência. Há assim uma dupla função de expressão e de designação: é um designante cujo designado se encontra à distância como objecto do mundo e é uma expressão cujo expresso é o sentido.

Do mesmo modo que, na linguagem, pode exprimir-se sentido, sem designar referência, também uma das contribuições – que não é o mais negligenciável – da pintura dita «abstracta» é o de fazer aparecer a possibilidade de exprimir sentido sem referência e é essa possibilidade que a pintura fundada sobre obre o código analógico da representação dissimula. Assim poderíamos nós dizer, na terminologia de Frege, que a semiologia pictural é a ciência do sentido. Mas o que é esse expresso que a imagem pictural exprime? Qual é o conteúdo dssa noção muito ambígua de expressão à qual os trabalhos de Dufrenne, por exemplo, tentaram dar um estatuto metafísico?

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