segunda-feira, 4 de maio de 2009

«Elementos para uma semiologia pictural» 3 - de Louis Marin

SINTAGMÁTICA PICTURAL


O exame da noção de percurso do olhar conduziu-nos a considerar o quadro como totalidade encadeada ou ligada. Como é que essa totalidade pode ser decifrada? Como é que um sentido – e comunicável – poderá ele aparecer por ela e nela? A significação, vimo-lo, não pode nascer senão de uma articulação, de uma découpage. O grande sintagma do quadro poderá ele ser montado [découpé] ou articulado em sintagmas secundários ou unidades sintagmáticas relativamente autónomas? Como passar da totalidade contínua do quadro a unidades discretas – Para o fazer, é preciso lembrar o que nós indicaríamos in limine como a condição fundamental de toda a semiologia pictural: a indissociabilidade do visível e do nomeável como fonte de sentido:

Não há sentido senão nomeado e o mundo dos significados não é outro senão aquele da linguagem. Perceber o que essa outra substância significa, é fatalmente recorrer à découpage da língua.

Assim, o grande sintagma pictural pode ser mediado pela linguagem, permitindo essa mediação a sua articulação e a sua constituição em conjunto significativo. O assunto do quadro, o seu título podem, na grande pintura de história, reenviar a um texto referencial cuja análise no quadro permite a sua articulação. Por exemplo, num estudo feito noutro lugar, pudemos mostrar, a propósito do quadro de Poussin le Frappement du Rocher (Érmitage) qu a análise do sintagma narrativo bíblico se reencontrava em toda a sua clareza no sintagma icónico que, através disso mesmo, era articulado de maneira significativa.

Os significantes do relato literário, os «contadores» se tornam então nos significados do relato pictural, graças a esta propriedade que toda narrativa possui de ser, na sua substância de sentido, independente das modalidades particulares pelas quais ele é relatado. As unidades sintagmáticas picturais ou figuras assim articuladas pelos significados da narrativa constituem as unidades de sentido do quadro. Certamente que, isolada do seu contexto sintagmático, a figura é polissémica. É inútil lembrar aqui a famosa experiência de Koulechov no domínio cinematográfico. Assim no Möise exposé de Poussin (Ashmolean Museum), a figura isolada da serva e do pequeno Moisés na sua cesta não permite dizer se ele é exposto ou recolhido.

Mas a integração da figura no texto figurativo permite reduzir a ambiguidade polissémica e o desígnio do sentido aparece. Assim – no caso da pintura de história e sem pretender através dela esgotar o sentido do quadro – as unidades de sentido são determináveis, graças à análise da estrutura narrativa e a figura apresenta-se no sintagma figurativo como o equivalente do que o semiótico da narrativa chama uma função, no seu estatuto assertivo de presentificação de um analogon no quadro. Esse tipo de análise que liga a estrutura temporal da narrativa, o sistema de expressão e a articulação figurativa parece-nos aplicável em numerosos casos e autoriza a constituição de tipologias complexas segundo as modalidades de articulação das figuras. Assim se podem comparar de modo significativo, do ponto de vista as estruturas narrativas, por exemplo os martírios de St. Blaise e de St. Laurent de Berzé-la-Ville, a famosa predela da Profanação da Hóstia de Ucello a Urbino, a série dos Moisés de Poussin, etc. Claro, a comparação foi frequentemente praticada, e pelo próprio pintor – como vimos a propósito de Poussin. Mas a teoria dessa prática merece alguma atenção na medida em que ela poderia permitir fundar em rigor o que muitas vezes permanece intuitivo ou se encontra traduzido num vocabulário marcado pelas representações ideológicas.

Passando ao quadro «sem história» como a paisagem ou a natureza morta, o problema que nos preocupa não faz senão deslocar-se. Se não temos aqui possibilidade de análise estrutural da narrativa para tentar o recorte do sintagma pictural, aí então dispomos para articular a substância visual, do que é nomeável no quadro, árvores, ribeiro, ponte, nuvem, vidro de cristal ou guitarra, e a repartição desses elementos nomeáveis em zonas da superfície plástica que representarão assim mais ou menos densidade informativa. O sintagma do quadro organizar-se-á em zonas informativas diferenciais articuladas entre elas, no e pelo sintagma.

Por exemplo, seria interessante fazer a teoria da pintura de natureza morta a partir de uma análise da sintaxe figurativa dos quadros, quer dizer da articulação dos objectos entre eles e da articulação das zonas de alta densidade informativa e de baixa densidade. Um estudo do tipo do que tentou J. R. Demoris sobre Chardin permite alcançar diferenciações finas e significativas da natureza morta flamenga e da de Chardin. Através dela apareceria – e isso seria verdadeiro igualmente para o retrato – a possibilidade de estender a análise do sintagma do quadro, para lá das figuras, até a um recorte de sub-unidades e à sua articulação sintáctica na figura que constitui assim a unidade de integração e de sentido desses signos figurativos.

Eles podem é claro ter uma significação própria mas perdem-na na sua integração na figura. O isolamento do signo figurativo, fora do contexto da figura, que o promove de algum modo à dignidade de figura, faz aparecer um «efeito de sentido» sobre o qual se debruçam numerosos livros de arte; como se a extracção do signo, para fora da figura, lhe desse um outro sentido ou uma significação nova por uma espécie de virtualidade polissémica cujo poder evocador e sugestivo é inegável. O pintor pode utilizá-la na apresentação sobre a tela, um contexto ausente, quer dizer uma unidade sintagmática vazia ou neutra. Os mesmos procedimentos analíticos podem ser aplicados na integração de um signo figurativo isolado num texto literário, numa grafia para constituir um novo objecto «texto-figura» cuja ilustração constitui um domínio particular.

A grafia desempenha então o papel de figura pela sua repartição tipográfica sobre a página, sem, nessa medida, deixar de veicular, por um outro recorte propriamente linguístico, um sentido que lhe é próprio. Estes tranferts ou estes «efeitos de sentido» que têm uma grande importância teórica podem igualmente ser estudados nos emblemas ou nas medalhas nas quais se prende uma relação nova entre a legenda que é simultaneamente signo figurativo e sintagma e a figura que é, por seu lado, signo figurativo e unidade sintagmática. Tentámos noutro lado um estudo desse género sobre a famosa medalha de Alberti cujo processo de articulação se interpreta pelo jogo duplo da metáfora e da metonímia do significante e do significado.

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