quarta-feira, 29 de abril de 2009

«Elementos para uma semiologia pictural» 2 - de Louis Marin

A LEITURA DO QUADRO

O quadro é um texto figurativo e um sistema de leitura: seria desejável, para compreender a importância desta primeira afirmação, que os termos texto e leitura não fossem metafóricos, mas apenas apreendidos a partir da metáfora tão frequentemente utilizada da leitura. O que é ler? É percorrer pelo olhar um conjunto gráfico e é decifrar um texto; cindamos provisoriamente para benefício da análise, essas duas operações: o quadro é primeiro um percurso do olhar. Uma carta de Poussin a Chantelou a propósito do seu quadro La Manne, ajudar-nos-á a precisar os dois princípios essenciais desta ideia: o primeiro é o da unidade plástica da representação ou ainda o da unidade da visão do quadro:

Quando tiverdes recebido o vosso quadro, suplico-vos, se o achardes bom, que o orneis com um pouco de cornija, porque ele precisa dela, a fim de que considerando-o em todas as suas partes os raios do olho sejam retidos e não dispersados pelo exterior recebendo as espécies de outros objectos vizinhos que vindo juntamente com as coisas pintadas confundem o dia.

Um quadro vê-se globalmente todo de uma só vez, como uma totalidade que implica não apenas um ponto de vista que eventualmente (mas eventualmente apenas) um código perspéctico pode determinar, segundo uma construção mais ou menos rigorosa, mas que se deve entender mais profundamente como a distância e a orientação de um olhar situado «hic et nunc» num espaço existencial de comportamento, mas também, o recorte do espaço do quadro desse espaço existencial, espaço outro que, anulando, de modo interno, o espaço vivido, se constitui num lugar essencial que chamaremos utopia. Que o quadro se torne afresco, que ele invada a arquitectura, que ele invista de todos os lados o contemplador nada muda: é sempre o espaço vivido que se anula no espaço existencial da pintura; é o espaço vivido que se torna festa utópica: é o contemplador que vê no centro da pintura e que a pintura olha. Poussin acrescenta – como complemento necessário do primeiro princípio – um princípio de «narratividade» ao qual dá uma conotação psicológica, mas que pod ser generalizada como discurso do olhar:

De resto, se vos lembrais da primeira carta que eu vos escrevi respeitante aos movimentos das figuras que eu vos prometia aí fazer e de que a todo o conjunto vós consideraríeis como sendo o quadro, creio que facilmente reonhecereis quais são aquelas que enlanguescem, que admiram, aquelas que têm piedade... e outras, porque as sete primeiras figuras do lado esquerdo vos dirão tudo o que aqui é escrito e tudo o resto é do mesmo estofo: lede a história e o quadro, a fim de conhecer se cada coisa é apropriada ao assunto.

O que Poussin indica a Chantelou sob a aparência de uma história, é uma leitura plástica do quadro. O acto de leitura desenrola assim um tempo, uma sucessão no interior do instante de visão, desdobra uma multiplicidade na totalidade oferecida à unidade do olhar, uma sucessão englobada, integrada no instante de unidade de visão. O problema, para dizer a verdade, que se põe à análise semiológica é o de analisar a articulação desses diferentes tempos e mais particularmente o de perguntar-se como é que a unidade de visão será articulada e recortada pela discursividade da leitura sem cessar de ser uma. A unidade de visão do quadro é uma totalidade estruturada, organizada por movimentos do olho, uma estrutura de olhares e o quadro é o escalonamento da superfície plástica por um conjunto de signos ao mesmo tempo tópicos e dinâmicos destinados a guiar o olhar, a fazê-lo realizar um circuito, a ultrapassar obstáculos, a retardar, a diferir numa diferença ao mesmo tempo temporal e espacial, a realização da unidade da visão como totalidade estruturada.

É preciso distinguir aqui uma tópica de uma dinâmica do olhar, ou ainda as direcções ou orientação, os marcos, pontos estratégicos, manchas e nós de direcção. Num sentido, o recobrimento ou a conjugação da tópica e da dinâmica do quadro reenvia à organização do espaço do quadro dada por inteiro, mesmo se ela é sempre dissimulada e está no desdobramento da força criadora que é, na sua origem, é de algum modo distendida e em repouso, qualquer que seja a violência do seu conteúdo. Donde este recurso necessário para tentar repreendê-la – recurso sempre votado ao fracasso – nos esboços, nos desenhos que permitem – mas de longe e aí ainda no completamento – reencontrar a intenção dinâmica de que o quadro não exibe senão o fim.

Além disso, e está aí um ponto essencial, esse circuito do olhar sobre a superfície plástica é no lugar do quadro, um circuito aleatório: ele não é nunca necessário. Os marcos plásticos são signos de movimentos virtuais e comportam possibilidades de escolha. E é a forma aleatória do circuito que faz aparecer – na sucessão temporal de percursos possíveis – o carácter sincrónico da unidade da visão como totalidade estruturada de olhares. Com efeito, a relativa liberdade de percurso implicando hesitações, regressos, diferenças, ela não compromete nunca o olhar num movimento linear irreversível.

O tempo de leitura espacializa-se através disso mesmo, estende-se ou radia em torno de pontos estratégicos do quadro. Ele converte-se em espaço dinâmico e qualitativo nas modulações e nos acordos dos valores e das cores. Assim a soma aberta dos percursos possíveis realizados ou virtuais forma sistema. Em termos fenomenológicos, poder-se-ia dizer que cada percurso é um perfil parcial descolado da visão unitária, que implica a colocação em jogo simultânea de três actividades perceptiva, estruturante e memorizante, sendo cada perfil colocado «em perspectiva» na visão unitária.

Esta análise arrasta duas consequências: a primeira é a de que o objecto pictural para o estudo semiológico é constituído pelo conjunto indissociável do quadro e da sua leitura entendida como totalidade encadeada e aberta de percursos possíveis. Estes descobrem-se desde logo duplamente solidários: entre eles e na totalidade do texto figurativo. Ou, numa outra terminologia, o quadro forma uma «matriz» de percursos do olhar a partir da qual são geradas as figuras do quadro, definindo cada geração uma leitura.

A segunda consequência é a de que o quadro como sistema de leitura comporta na liberdade aleatória dos circuitos do olhar, diversos graus de condicionamento. Este ponto parce-nos muito importante: como conceber um sistema – quer dizer um conjunto de elementos ligados pelos condicionamentos de uma coerência interna, orgânica – que admita «jogo», o jogo livre do olhar, que implica o jogo dos elementos de leitura? Cada percurso é livre, mas é a sucessão aberta, indefinida dos percursos que os torna solidários uns dos outros, que os articula uns aos outros, por elementos ou direcções privilegiadas.

Para dizer a verdade, esses graus de condicionamento da leitura do quadro são bastante diversos de um quadro para outro, de um nível a outro de leitura. Assim, na pintura representativa fundada sobre um sistema analógico que comporta notoriamente uma organização ilusionista do espaço plástico, o grau de condicionamento é particularmente forte: em certas paisagens de Poussin, organizadas em torno do eixo ziguezagueante de um caminho a religar o primeiro plano à grande superfície plana de um lago, o olhar é ligado no quadro a esse percurso imaginário de que se pode dificilmente libertar, da mesma forma que a construção legítima torna obrigatório um ponto de vista situado a uma certa distância da tela.

Mas mesmo nesse caso são sempre possíveis liberdades, escolhas, paragens; eles formarão somente o contraponto da melodia soberana dos eixos de construção do quadro. Em contrapartida, uma pintura fundada num sistema não analógico será libertada desse tipo de condicionamento, mas para reencontrar outros mais profundos e mais elementares, mais internos à leitura do quadro.

A outra vertente da noção de leitura é aquela de uma decifração ou da interpretação. Nós distinguimo-la do percurso do olhar, por razões operatórias, mas esta distinção é abstracta: se o quadro é efectivamente um conjunto significante, um signo ou um sistema de signos, é no percurso do olhar que se deve efectuar a interpretação. Todavia, a metáfora da leitura arrisca-se, se ela fosse prosseguida até ao fim, a incitar a enganadoras analogias, porque na leitura, os caracteres gráficos são atravessados num movimento instantâneo para a significação: ler e decifrar são duas operações bloqueadas na apreensão imediata do sentido. No quadro se institui, ao contrário uma dissociação que torna problemática, se não a interpretação, pelo menos a aplicação sem discernimento do modelo da leitura e para além desse modelo, do próprio modelo linguístico. Segundo Saussure, a teoria do signo linguístico enriqueceu-se com o princípio da dupla articulação...:

entre os signos linguísticos, é preciso com efeito separar as unidades significativas cada uma das quais é dotada de sentido (as «palavras»...) que formam a primeira articulação, as unidades distintivas que participam da forma, mas não directamente um sentido (os sons antes os fonemas) e que constituem uma segunda articulação.


De onde a primeira questão prévia a toda a aplicação do modelo linguístico a um objecto não linguístico como a pintura: há na pintura, alguma coisa que possa ser posta em correspondência com o princípio da dupla articulação? A segunda questão também primordial reenvia à distinção saussureana entre língua e fala. A língua

é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo que, por si só, não pode nem criá-la, nem modificá-la... ela é um objecto bem definido no conjunto heteróclito dos factos de linguagem... ela é um sistema homogéneo de signos onde nada há de essencial senão a união entre o sentido e a imagem acústica.

Ela é instituição social e sistema de valores, o que quer dizer, segundo Saussure, que ela é constituída por elementos, por signos

dos quais cada um é ao mesmo tempo um «valendo por» e o termo de uma função mais alargada em que têm lugar diferencialmente, outros valores correlativos. A fala é pelo contrário um acto de vontade individual e de inteligência no qual convém distinguir: 1º as combinações pelas quais o sujeito falante utiliza o código da língua com vista a exprimir o seu pensamento pessoal; 2º o mecanismo psicológico que lhe permite exteriorizar essas combinações.

A fala é uma combinação de elementos seleccionados no código da língua e actualizados no discurso. A distinção da língua e da fala, fundamental para definir o processo do sentido, será ela transponível no domínio pictural? Poder-se-á falar, fora que toda a metáfora, da língua do pintor? Há um código ou códigos picturais? Enfim, poderá haver para a pintura o equivalente do sintagma linguístico que mantém, com a fala, uma relação de proximidade estrutural, para falar como Barthes? Todas estas questões tem já sido postas e respostas negativas frequentemente vigorosas lhes têm sido dadas por Dufrenne ou por exemplo por Francastel. É preciso, parece-me, retomá-las ainda, porque delas depende o estatuto de uma semiologia da pintura.

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