terça-feira, 31 de março de 2009

Fragmentos de leitura - 8: Mito e personagem (R Krauss; Cindy Sherman; Lacan; Derrida; Barthes; L. Mulvey; Solomon-Godeau)























Untitled Film Still
#39, 1979, (Silver print, 8x10 inches)

I. - 1. Rosalind Krauss escreve, na sua obra Bachelors, um extenso e notável ensaio, significativamente intitulado Cindy Sherman, Untitled. Aí ela dialoga com a crítica feminista e também com aquela que, mais tradicionalmente, se tem revelado incapaz de pensar uma estética para além dos imperativos da mera «representação».

Ora, a posição fundamental do seu argumento é a de que o trabalho de Cindy Sherman é sobre o «mito». (Diga-se pois, antes de mais, entre parêntesis, a conveniência de ler Fragmentos de leitura 7: O mito e o seu consumo, aqui no blogue - antes deste, que aqui começa - que e precisamente sobr a questão do mito). Por exemplo, o mito da arte como representação, ou mito de uma linguagem exclusivamente dada como jogo fundado. Ou, ainda, o mito do feminino como dado como estrita representação da «falta». O mito, também, do sentido posto em forma e, no caso da mulher, o mito do significante que, enfim, nos reenviaria, sem regresso, ao outro masculino, dado como operador exclusivo da produção de sentido, e, portanto, da diferenciação ou da marca como pura exterioridade, da denominação como particularização e exclusão. Ou o mito, em suma, que leva a ver a foto como ostensão literal de um reflexo do real. Assim como, ainda no caso de Cindy Sherman, o mito de uma mulher convertida em mero espelho estendido, à contemplação do desejo masculino, e à miragem da sua exclusiva relação com a produção (e a reprodução) do discurso.

O trabalho sobre o mito produz-se, em cada série dos Untitled de Cindy Sherman, como um incessante re-corte do significante. De foto para foto é o significante visual, construído pela escolha de um ângulo de enquadramento, uma distância focal, a densidade de uma granulação (importante, portanto, na sugestão da presença de um observador voyeur, como veremos), a replicação interna dos enquadramentos, obtida por intermédio do contraste acentuado, como acontece no contraluz, quer nos fundos muito escuros, uma situação cenograda, um adereço, que se vai deslocando, remodelando o seu modelo, sem que nunca cheguemos a estar em posição de o encontrar, finalmente, em alguma forma de presença plena.

De foto para foto, é um processo de reversão, não apenas dos limites aparentes da significação, mas também da sua ancoragem, pretensamente referencial, que se vai operando, num horizonte que é o da interrogação do processo da mitificação. Dessa centralidade da questão do «mito» deriva a justificação, em Rosalind Krauss, do recurso às Mitologias e, em particular, um pouco mais adiante, a propósito da natureza codificada, móvel e compósita dos sentidos do nome e da identidade das «personagens», a S/Z. Será portanto também à sua luz que os pressupostos de outros discursos se equacionarão. Sobretudo o de Laura Mulvey, incessantemente debatido, nas suas fragilidades mais notórias.

2. O que torna, todavia o seu ensaio verdadeiramente admirável é aquilo a que talvez fosse mais exacto ou adequado chamar: a sua escolha de uma tonalidade própria. Se Rosalind Krauss nos vem falar de Roland Barthes, é porque a obra de Cindy Sherman é, também ela, sobre o mito. E se, por outro lado, é ainda preciso tomar posição face aos impensados de certas formulações de fundo de alguma teoria feminista é, também, porque ela própria recai, frequentemente, no mito amputando assim a sua obra de uma dimensão importante, indispensável à sua compreensão. Krauss segue, então, os critérios do «mitógrafo», do «desmitificador». Precisamente aqueles que ela encontra, quer em Barthes, quer na própria Cindy Sherman.

3. Eis, então, o seu ponto de partida: o que é um mito? O mito é um significante sem espessura nem densidade, tornado absolutamente transparente, porta-voz de um significado que o ancora, arrastando-o para a sugestão de um fundo em presença, no seu modo analógico de significação. Um significante disfuncional, portanto, afundado no ensimesmamento próprio do que se diria ser «última palavra» do mito, a sua presunção de um pôr a descoberto do fundamental. Um significante a cuja transparência emerge o mesmo significado a que ele se deixa ancorar (como se o seu sentido nos fosse dado «em-si-mesmo», imediatamente).

O que conduz a dois preceitos operatórios distintos, mas bastante simples e ligados entre si: a) é preciso espreitar (parodiando-se aqui o «unveiling» hermenêutico) para debaixo do barrete do «natural» e do «analógico» que são próprios do mito; b) o que aí se encontra, é sempre o significante. E, acrescenta Krauss - com ele, também o esforço, muitas vezes feito, ou para:

[...] limitar a possibilidade de que ele produza uma multiplicidade de significados instáveis, e promova o deslizamento entre eles ou, por outro lado, [para] fazer o inverso e saudar, e mesmo facilitar tal deslizamento. A limitação é a tarefa do realismo nos romances e nos filmes: para cada significante, um e apenas um significado. Inversamente, deslizamento e proliferação interessaram sempre o artista anti-realista (o que se costumava chamar vanguarda). (KRAUSS, Rosalind, «Cindy Sherman, Untitled», Bachelors, Cambridge/ Massachussets/ London/ England, MIT, 1999, p. 107)

4. Que a obra de Cindy Sherman envolva, pois, um trabalho sobre o mito, e que esse trabalho se traduza num insistente movimento de reversão do «significado» pelo re-corte do significante, pode facilmente ver-se, argumenta Rosalind Krauss, acompanhando o jogo dos deslocamentos em que cada imagem se insere, no desencadear do movimento de re-articulação que atravessa cada uma das séries.

São então ali dois os aspectos que nas imagens é importante observar: a) por um lado, o da necessidade de nos fazer sentir , mediante a sua força sugestiva, a facilidade com que a pulsão do mito nos arrasta e nos torna reféns de um pré-conceito, de uma circularidade e de uma forma de eternização; b) por outro lado, os modos de desconstrução significante do «enquadramento» cultural, necessários para o deslocar, o pôr a descoberto (o des-mitificar). Elas fazem-no, portanto, a partir do jogo de formas sucessivas em que as séries se organizam, sem que se possa aí falar, em nenhum momento, de imagens inteiramente desligadas umas das outras:




















Untitled Film still
#7, 1978 (Silver Print, 8x10 inches)

«Este facto de que não há nenhuma personagem isolada [no free-standing character], por assim dizer, mas apenas uma concatenação de significantes de forma a que a persona se liberte - concebida, incorporada, estabelecida - pelo próprio acto de cortar [de desprender, separar, dissociar: of cutting out] os significantes, tornando-«a» numa pura função de enquadramento, de iluminação, de distância [focal], de ângulo de câmara, e assim por diante, é o que se descobre quando se espreita por debaixo do barrete. E Sherman, enquanto des-miti-ficadora, está especificamente a autorizar-nos, a encorajar-nos a espreitar por debaixo do barrete, mesmo quando ela está também a mostrar-nos o impulso tremendo para acreditar no mito [the tremendous pull to buy into the myth] - o que quer dizer, a aceitar o significado como um facto acabado, uma figura isolada [a free-standing figure], como «personagem».» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 110).

5. Que se reconheça, nas suas fotos, os ecos fantasmáticos de personagens ou de vedetas do mundo dos media e, em particular, do cinema (Gina Lollobrigida, Monica Vitti, Lana Turner, Barbara Bel Geddes, etc.); que elas sejam então remetidas a uma lógica redutora, que nelas mais não veria que uma sua emanação celebratória (a ponto de se chegar ao risível de projectar, por exemplo, os seus Film Stills ao lado de fotogramas de filmes como os de Douglas Sirk, Alfred Hitchcock ou John Sturges, procurando situá-los face àquilo de que eles seriam memória e homenagem, mesmo que «inconsciente») insinuando-se, assim, a presença orientadora, no seu trabalho, de uma intenção ou de uma tendência evocativa ou nostalgicamente consagradora... Ou ainda que, por outro lado, se chegue a ver, nas suas imagens, as variantes expressivas de «uma mesma personagem fundamental» - aquela que seria, «no fundo, ela própria» - a diferença seria, na realidade, pouco significativa. Pois que se teria passado ao lado de um dos aspectos essenciais do seu trabalho: o da des-mitificação.

6. Porque seriam, mesmo assim, duas formas expeditivas de alienante exteriorização do espectador, em relação ao seu envolvimento, no trabalho desencadeado pelas suas imagens. E portanto, dois modos de falhar o juízo acerca da sua eficácia. Duas formas do mesmo afundamento no mesmo mito, dois modos igualmente concessivos de um mesmo paradigma «crítico», duas instâncias da mesma hermenêutica: a da representação em geral e, em particular, a da representação subjectivo-expressiva (controlada pela intenção confessionalista de uma revelação íntima, do desvelamento de alguma verdade de fundo, oculta do e no sujeito fotografado, suposto como política e culturalmente manipulado pelas determinações do patriarcado), ou de uma representação objectivo-comemorativa, de vocação memorialista (celebratória do arquivo, da memória ou do património histórico, que continuam os do mesmo «patriarcado»). Dois modos de submeter as suas imagens a uma caução analógica (exactamente como no mito se verifica, tal como ele nos é descrito em Mitologias).





















Untitled Film still #2, 1978, (Silver print, 8x10 inches)


II. - 1. Uma vez que se trata, nas imagens de Sherman, sempre de personagens que nelas diferentemente vão ressurgindo, seria preciso começar por perguntar: O que é uma personagem? É Roland Barthes quem desdobra, em S/Z, a ideia de personagem em que se apoia Rosalind Krauss. Uma personagem é uma combinatória traços semânticos, mais ou menos móvel, assim como mais ou menos complexa e/ou incongruente, colocada sob a cobertura e o travão de sentido que lhes é imposto pela sugestão denotativa, pelo efeito de real de que o Nome próprio é portador. Diz Roland Barthes:

«Quando semas idênticos atravessam várias vezes o mesmo Nome próprio e nele parecem fixar-se, nasce um personagem. O personagem é, portanto, um produto combinatório: a combinação é relativamente estável (marcada pelo retorno dos semas) e mais ou menos complexa (comportando traços mais ou menos congruentes, mais ou menos contraditórios); esta complexidade determina a «personalidade» do personagem, tão combinatória como o sabor de um pitéu ou o travo de um vinho. O Nome próprio funciona como o campo magnético dos semas; reenviando virtualmente a um corpo, arrasta a configuração sémica para um tempo evolutivo (biográfico). Em princípio, aquele que diz eu não tem nome (é o exemplo típico do narrador proustiano); mas de facto, eu torna-se imediatamente um nome. Na narrativa, (e em muitas conversas), eu deixa de ser um pronome, é um nome, o melhor dos nomes; dizer eu é infalivelmente atribuir-se significados; também é dotar-se de uma duração biográfica, submeter-se imaginariamente a uma «evolução» inteligível, significar-se como objecto de um destino, dar um sentido ao tempo.» (BARTHES, Roland, S/Z, trad. de Ana Mafalda Leite e Maria de Santa Cruz, Lisboa, Edções 70, 1980, p. 56).

2. A palavra configuração atesta aqui a noção de uma agregação e de uma estabilização do sentido. Uma suspensão e uma dotação de sentido. É isso que faz com que «eu» se torne, numa conversa, numa novela ou num romance, também o lugar interpretativo e interpelativo de uma dotação de sentido, de uma duração e de um destino. O que significa, numa palavra, que a construção da personagem assenta num processo fantasmático.

É também isso que possibilita a sua comutação por um Nome próprio. E é isso que faz, em suma, com que «a personagem» facilmente se converta na instância mítica de um signo fechado (cf. a propósito do mito, aqui no blogue, Fragmentos de leitura 7: O mito e o seu consumo, imediatamente antecedente deste post). Rosalind Krauss fá-lo notar, por seu lado, nos seguintes termos:

«O nome é então o significado - a personagem - que o autor introduz sorrateiramente sobre os códigos para produzir a impressão realista de que para cada nome há um referente, uma denotação, um facto empírico unificado. O que está a ser mascarado [na narrativa realista] é que o nome, mais do que apontar para uma entidade primária no «real», é um efeito do vasto já-escrito, já-ouvido, já-lido dos códigos; isto, a denotação, é apenas o último dos códigos que se faz deslizar para o seu lugar. O consumidor da ficção realista, contudo, compra a história e acredita na «personagem», acredita na substância da pessoa da qual tudo o resto para decorrer como um conjunto de atributos necessários, acredita, em outros termos, no mito. (KRAUSS, Rosalind, op. cit., pp. 110-111).

Por outras palavras, não há Nome próprio, ou pronome, que não seja aqui o operador ficcional de um efeito de ancoragem. Ponto fulcral, quando se pensar, mais adiante: a) quer nas relações de distinção de género, pela teoria feminista, entre «o feminino» (enquanto lugar olhado do corpo) e o masculino (como corpo-agente desse olhar) e, por conseguinte, de (re)produção de uma divisão social do olhar no sistema patriarcal; b) quer no carácter irredutivelmente fantasmático de toda a subjectividade, a começar pela do sujeito fetichista que caracteriza, em particular, o voyeur, cuja posição ambivalente Krauss não se esquecerá de sublinhar.

O que há no pronome ou no Nome próprio (o da «personagem») é, portanto, do ponto de vista da sua função na narrativa realista, (cinematográfica ou não, visto que aqui se trata, também, de uma novela de Balzac) a produção de um efeito de enquadramento e de retenção, de delimitação ou de separação fundadas pela sua sugestão de relação referencial, induzidas por um simulacro de presença, ou por um referente cujo efeito é o de atenuar «o murmúrio dos códigos».

4. E o que ele efectua é, assim, no que diz respeito ao que está em causa, o movimento de uma mitificação: o de uma condensação e o de uma fixação, uma paragem ou uma suspensão da relação de reenvio dos traços de sentido, que ele se encarrega de configurar ou de pôr em forma, e que lhe conferem, nesse mesmo instante, aquela já referida sugestão, acerca da gravidade de um destino, do traçado de uma evolução, da consistência de uma duração. O que ali se engendra é, finalmente: o mito da identidade que subjaz a toda a (auto-/hetero-)biografia, a toda a restituição de um sentido fundamental do sujeito:

«Mostrando que cada «personagem» é produzido através de uma concatenação de códigos separados - alguns [são] os significantes ou os operadores da diferença, quer de género (masculino/feminino) quer de idade (jovem/idoso), ou de posição social (rico/pobre); outros [são] os operadores de referência a um conhecimento geral sintonizado no texto pelo mero àparte («como nas Arabian Nights»); ainda outros os operadores do enigma que conduz o avanço da narrativa em direcção à sua Verdade (quem é? o que é?) - o que Barthes deixa claro é que quando um nome finalmente chega para referir ou denotar uma personagem, esse nome é ancorado, [já] transportado, pelo murmúrio dos códigos.» (KRAUSS, Roland, op. cit., p. 110)

3. O que há-de estar em causa, no debate acerca dos Film Stills de Cindy Sherman é, portanto, o significante convertido em instância do significado. Krauss encontra dela uma dupla declinação, na sua abordagem do imenso rol dos escritos entretanto produzidos sobre a obra da autora. Por um lado:

«Uma forma disto, que pode encontrar-se nas montanhas de literatura [produzidas] sobre o trabalho de Sherman, é a assumpção de que cada destes significados é oferecido como uma instância do eu mais profundo de Sherman - tornando-se o artista (Verdade Universal nº 2 [sendo a Verdade Universal nº 1, a de que «os artistas imitam a realidade»]) o veículo através do qual a integralidade da humanidade poderia ser projectada e abrangida em todos os seus aspectos.

Por outro lado:

«Uma outra forma de consumo do mito é de continuar a aceitar o significado acabado do papel, a «personagem», mas vendo a multiplicidade desta como as várias formas do que Arthur Danto parece gostar de chamar The Girl. Ele fornece a sua própria listagem denominativa destas variantes: The Girl in Trouble, The Girl detective, The Girl We Left Behind, Daddy's Brave Girl, Somebody's Stenog, Girl Friday, Girl Next Door, The Whore with the Golden Heart... Mas o seu ponto é que «A Girl é uma alegoria para algo de mais profundo e de mais obscuro [darker], no inconsciente mítico de toda a gente, independente-mente do sexo... Cada um dos stills é sobre a Girl in Trouble, mas no seu agregado eles tocam no mito que cada um de nós transporta da sua infância, do perigo, do amor e da segurança que define a condição humana.»» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 112-113).

5. Qual é, então, o problema? Para Krauss, o problema é este: cada uma dessas projecções alegóricas gira em torno de um mesmo espaço partilhado de fantasia. Cada uma delas é a instância refractada, a projecção de uma variante do mesmo recorte identitário, a variante de um mesmo mito, a fantasia de um «mesmo» inconsciente mítico: um espaço partilhado, susceptível de ser recuperado pela natureza alegórica em que o seu inconsciente mítico seria, afinal, simul-taneamente, por analogia, o de toda a gente.

6. O que significa que a arte seria, então, unicamente «representação», induzindo-nos à noção de que todo o jogo significante nos aponta a necessidade de fazer-se emergir uma natureza mais ou menos reguladora, mais ou menos universal. E que o artista seria, simultaneamente, toda Humanidade contida nesse espaço partilhado, numa espécie de precipitação condensadora do trabalho então controlado da diferença e da historicidade: «A Girl como instância do mito de que há um espaço partilhado de fantasia, ou daquilo que ele próprio nos fornece como conteúdo mítico, como «o espírito cultural comum» [the common cultural mind].

7. E é aqui que se abre então, no seu texto, o seu diálogo com a teoria feminista e, em particular com Laura Mulvey, para quem «é [também] necessário opor-se face à expressamente não-, mesmo anti-, teórica afirmação da própria Sherman». Mesmo o modo sincopado da formulação de Laura Mulvey parece já trair a sua reticência quanto à eficácia do trabalho de Sherman, tal como ele, de resto, é lido no horizonte da interpretação psicanalítica. A posição não-/anti-teórica de Sherman é ali vista como correlata da sua sumissão às condicionantes do simbólico e, consequentemente, às do patriarcado que ele se encarrega de reproduzir.

Porque aos seus olhos, o que se lê nos trabalhos de Cindy Sherman é sobretudo conduzido pelo que parece resultar, na sua interpretação, dessa dita posição não- e anti-teórica, que seria, precisamente, a posição própria do mito. Como se a teoria e o mito, tal como a ciência e o mito, como se a filosofia e o mito, como se a história e o mito, etc., fossem como a água e o azeite, plena ou inteiramente - miticamente - adversos entre si. E como se a rejeição de uma formulação a que Laura Mulvey pudesse chamar de «teórica» não pudesse ser, em Cindy Sherman, antes de mais, a rejeição de uma linguagem, precisamente no mesmo tipo de opções que teria dela feito uma artista e não uma crítica de arte ou, ainda mais adequadamente, uma teórica do feminismo.

O que conduzirá, a partir daqui, a argumentação de Krauss, no sentido de mostrar que o que essa leitura feminista indica é ainda uma recaída no mesmo mito de que ela suspeita no trabalho de Cindy Sherman e, assim, que na leitura de Laura Mulvey se passa inteiramente ao lado do que esse traz consigo de mais subversor.

III - 1. Da reinterpretação a que vinte anos de abordagem feminista teriam dado lugar, entre as primeiras leituras de Judith Williamson, que as davam como «Imagens da Mulher» e as mais recentes de Abigail Solomon-Godeau, que as dá, num deslocamento significativo, sob o tema de «A Mulher enquanto Imagem», Rosalind Krauss encontra uma síntese que lhe é oferecida pela própria Laura Mulvey:

«A ideia inicial de que as imagens contribuiam para a alienação da mulher em relação aos seus corpos e à sua sexualidade, com uma expectante esperança de libertação e de recuperação, deu lugar a teorias da [sua] representação como sintoma e significante do modo como os problemas postos pela diferenciação sexual sob o patriarcado podiam ser deslocados para o feminino» (MULVEY, Laura, «Phantasmagoria of the Female Body», cit. in KRAUSS, Rosalind, op.cit., p. 114).

2. Observando que o «esteretipo» deixou, entretanto, de ser tomado como uma espécie de simples descartável, «uma espécie de erro dos mass-media, uma espécie de vestido barato que a mulher poderia vestir ou despir», para passar a ser pensado em termos de introjecção e de «máscara», num sentido agora informado pela leitura psicanalítica - a «mulher-enquanto-imagem» gerada pela produção simbólica do sujeito e da sua diferença sexual - Rosalind Krauss, na sua leitura de «Visual Pleasure and Narrative Cinema», alinha as três distinções que ali lhe parecem essenciais:

a) a concepção de uma marcação de género a distinguir os papéis masculinos (os homens como agentes da acção narrativa), dos femininos (as mulheres como objectos passivos do olhar masculino, lugar de um corpo-espectáculo, quer motivando, quer suspendedo e desviando a acção masculina, mediante a interferência de algum modo mais ou menos avulso de opulência formal), tal como Mulvey os vê, assumidos na narrativa cinematográfica;

b) a determinação masculina do lugar do espectador, estruturado como voyerista e fetichista, lugar no qual ele derivaria o seu prazer de uma eroticização do fetiche («o olhar masculino projecta a sua fantasia sobre a figura feminina, que é estilizada de acordo com ele»). Uma erotização apenas viável, frisará também Rosalind Krauss, a expensas de uma denegação da castração, na assunção do corpo feminino como intacto.

Estas duas observações, que diriam respeito à articulação da diferença sexual no discurso narrativo cinematográfico, sustentam-se, observa ainda Rosalind Krauss, na seguinte tese de fundo, citada de Mulvey:

««A mulher... representa [stands] na cultura patriarcal o significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode vivenciar as suas fantasias e obsessões através de um controlo exercido pela linguagem, impondo-as à imagem silenciosa da mulher ainda amarrada ao seu lugar enquanto suporte [significante, bearer] do sentido [meaning], não [enquanto] marcador do sentido» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 115)

3. Desdobrando, então, os pressupostos teóricos desta afirmação, em relação à economia simbólica da cultura do patriarcado e às condições da sua reprodução, Krauss observará, no entanto, que é precisamente dessa mesma leitura psicanalítica de fundo que resultará a sua recaída no mito, quando se trata de ler a obra de Cindy Sherman.

Procuremos observar porquê. Com efeito, a leitura psicanalítica (lacaniana) deriva esta diferenciação dos papéis do instante-chave que, ainda no processo do Édipo, corresponde à angústia da castração, coincidente com o acontecimento visual da observação da diferença genital. Eis o modo como Rosalind Krauss a coloca, então em perspectiva:

«A economia psíquica que leva os homens à actividade e ao discurso, e as mulheres à passividade e ao silêncio é uma economia que também separa o olhar do ser olhado, espectador, de espectáculo. E essa economia está organizada, de acordo com esta leitura da psicanálise, em torno da angústia da castração, o mesmo é dizer em termos de um acontecimento através do qual a criança masculina se dá conta da diferença sexual e, num único e mesmo momento, socializada pela subordinação à lei parental. E se a diferença e a lei convergem numa configuração psíquica única, eles fazem-no em relação ao acontecimento visual no qual a possibilidade da ausência é verificada no corpo da mãe «castrada», a mulher de cujos genitais se pode ver que o phallus está ausente. Tornando-se cúmplice da lei paternal, a criança escolhe o discurso, para o qual o significante mestre é agora o emblema da própria diferença; o significante fálico, o significante enquanto phallus.» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 116)




















Untitled Film still #81, 1979 (Silver print, 8x10 inches)

Ora se: a) por um lado, é da Metáfora Paterna (isto é, da mitificação de um signo, de um significante mestre, exemplarmente replicado como princípio de distinção e de estabilização do sentido) que resulta o critério diferencial do discurso situando ele, na convergência entre Lei e reprodução da diferença, o termo marcado como lugar exterior de uma falta necessária, quer à economia do funcionamento do sistema psíquico quer, em simultâneo, ao equilíbrio da ordem social, seria, então, também necessário perguntar se não tenderia, esta interpretação, a ser, ela própria, tendencialmente securitária e conformista ou conservadora, traída pela sua própria compreensão do lugar da mulher como significante excluído da produção do sentido.

E se, por outro lado: b) é desta teoria do sujeito que resulta todo o dispositivo disponível para se compreender e situar a ordem subjacente à determinação do prazer do voyeur - que, na sua relação de erotização do fetiche, se vê forçado a denegar aquela mesma falta de que, por outro lado, depende precisamente o seu próprio sentido (visto que essa falta se dá, simultaneamente, como necessária ao equilíbrio e à manutenção do mesmo sistema patriarcal que, por um lado, a produz e que ela, por outro lado, consagra) - em que sentidos ela poderá e deverá fatalmente ter de pensar a mulher? Em relação a a) eis uma resposta possível:

«Se o filme opera constantemente para recriar a mulher como um sintoma da angústia masculina da castração - assim a silenciando - também trabalha, e aqui mesmo mais intensamente, para a situar como um fetiche erotizado; a imagem da falta [lack] embrulhada em papel [papered over], o emblema do todo [wholeness] restaurado. A mulher é neste sentido exposta como uma imagem que simultaneamente se estabelece a si como outro do homem - a Verdade de que é ele que possui o phallus - e ao mesmo tempo a imagem fetichizada do corpo inteiro do qual nada falta. [...] É com esta armadura teórica a postos, então, que a própria Laura Mulvey olha os Film Stills, compreendendo-os como o retomado ensaio desta estrutura do olhar masculino, do voyeur a construir a mulher numa infinda repetição da sua vulnerabilidade e do seu controlo: «a câmara olha: ela 'captura' a personagem feminina numa paródia de diferentes voyeurismos. Ela intromete-se em momentos em que ela está indefesa [unguarded], às vezes despida, absorvida no seu próprio mundo na privacidade do seu próprio meio. Ou testemunha uma momento no qual ela baixa as suas defesas [her guard drops] e ela é subitamente fitada por uma presença, não vista [unseen] e fora do écrã, a observá-la»». (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 118)

O lugar que, na leitura de Laura Mulvey, é deixado ou reconhecido à mulher, nas imagens de Sherman, é precisamente aquele que coincidiria, de forma bastante redutora, com as disposições necessárias ao prazer do voyeur. Dir-se-ia então que Mulvey «compra» o mito, e a história que ele vende, como a mais natural e susceptível de esperar-se. E a isso se conforma. Porque a sua leitura é, por outro lado, desarmada pelos efeitos de enquadramento em jogo nos Stills de Cindy Sherman, como se verá num próximo post. A mulher indefesa, vulnerável, «às vezes despida», fitada por uma presença não-vista, em que é que ela se diferenciaria, em Sherman, afinal, do lugar comum daquela outra Mulher prototípica, que lhe seria reservado e ditado pelo simbólico, pela lei e pela sua diferença, pela diferença imposta pela lei e pela diferença estabelecida como lei? E como dissociá-la, então, da sua própria reversão fetichista, numa representação diferida do phalo, aqui embalado na imagem do «intacto»?

«E todavia, observa ela, podíamos dizer que é esta mesma armadura que opera em tal descrição estabelecendo uma leitura mítica dos Films stills, uma que não se dá ao trabalho de espreitar para debaixo do barrete. Judith Williamson tinha visto o papel construído a emergir nos Stills como uma sequência de significantes através dos quais qualquer imagem fílmica deve ser construída - «os dois não podem ser separados», disse ela; Laura Mulvey, por outro lado, está a aceitar o significado-como-instância, um signo congelado, a totalidade semântica que se lê «mulher-enquanto-imagem» ou ainda, «mulher como objecto do olhar masculino». (ibidem)

Como se leriam, então, os Stills de Cindy Sherman? Veremos. O que se poderia adiantar, de forma resumida, seria o carácter de palimpsesto da imagem...