terça-feira, 31 de março de 2009

Fragmentos de leitura 10: Mito e personagem III (R Krauss; Cindy Sherman; Lacan; Derrida; Barthes; L. Mulvey; Solomon-Godeau)















Cindy Sherman, Untitled film still, #147 (1985)

I. - 1. Em Fragmentos de leitura 9: Mito e personagem II pudemos observar já dois elementos importantes que entram na construção das «horizontais» (i. e. nas imagens, não apenas de formato horizontal, mas também organizadas, do ponto de vista do significante, já não pela primazia da forma, segundo as disposições produzidas pela fetichização da verticalidade, mas por uma sua disposição horizontal, não hierarquizada e, portanto, resistente à pregnância) de Sherman.

2. Nelas opera um ponto de vista que, enquanto novo significante, rebaixa esse olhar vertical. O Untitled film still 147# é aí , no entanto, o testemunho de um efeito que nos importa ter conta, no seu contraluz. Será agora, por sua conta, Rosalind Krauss a socorrer-se de Lacan, para mostrar de que modo aí se constrói o olhar enquanto objecto a (numa relação especular referida a um estrato da subjectividade em que o sujeito não é ainda «o sujeito», já constituído como dotado de um superego, mas apenas termo ou elemento de uma relação dual-agressiva, de uma relação de mútua e conflituante suplementaridade, em que ele vai e vem do seu outro, na sua reivindicação fálica, sem o limite estável de uma auto-certificação nele implantado pela lei ou pelo simbólico). Eis uma primeira descrição de Rosalinda Krauss:

«Uma outra instância de luz selvagem [wild light] é o Untitled #147 (1985), onde a cabeça e o torso superior [nos são] dados num enorme plano aproximado [«close-up»] são mergulhados na obscuridade apenas violada pelos fragmentos de luz traseira de um pouco de cabelo e de um ombro, e - construindo a sinistra significação da obra - o brilho reflectido de uma pupila que emerge da obscuridade do resto da face como um mármore escuro, acentuadamente [utterly] opaco. Este contraste entre a opacidade do aspecto da figura e a qualidade da luz irradiando para fora por sobre o espectador, a partir de diversas partes do resto da imagem estabelece uma condição que pode ser generalizada a outras partes desta série a que estou a chamar Brilhos e Reflexos.» (KRAUSS, Rosalind, «Cindy Sherman, Untitled», Bachelors, Cambridge / Massachussets / London, MIT, 2000, p. 137).

3. A horizontalidade não é, portanto, aqui apenas a do formato da imagem. Ela pressupõe uma dispersão (uma des-hierarquização) distributiva da luz que, na sua não-homogeneidade (Roland Barthes lembrava em Elementos de Semiologia que todo «o excesso», deslocador do paradigma, se joga no eixo do sintagma, numa continuidade que corta a sua distinção, o carácter discreto das suas unidades e, portanto, suspende o seu limite ou a sua lei), resiste à pregnância. Assim, a horizontalidade esquiva-se, aqui, à projecção fetichizada da visão vertical comum (mimética e ideal, simbolicamente controlada e imaginariamente unificada), pelo olhar, da forma/significado que suporia, em primeiro lugar, a exterioridade (a distância objectivante em figura) do que é visto, em relação ao espectador. Essa dispersão destaca, numa espécie de sinistra flutuação, um olho brilhante sobre o rosto obscurecido da figura, uma pérola ou uma jóia nas trevas do rosto que se abisma nessa insondável obscuridade.

4. Ora, é precisamente esse olho que, voltado na nossa direcção e destacado da formal-ideal da sua ligação com o rosto, se nos torna inquietante: ele é o lugar do olhar enquanto «objecto a». Alguma coisa nele deixa «o lugar do que é visto», para vir a ocupar «o lugar do que vê», e nos confronta com o nosso próprio olhar: vejo-me outro a ver-me, em mim outro, por fora de mim. O poeta António Machado tem uma formulação que parece aqui bastante apropriada à descrição desta esta relação. Dizia ele, nos seus Proverbios y Cantares (a citação é de memória e, portanto, aqui com a inexactidão esperável): «El ojo que ves no es / ojo porque tú lo veas; es ojo porque te ve». Diz Rosalind Krauss:

«É uma condição que gostaria, agora pela minha vez, de iluminar usando a obra de Lacan; embora de modo diferentemente da teoria do olhar masculino, esta condição do olhar ameaçadoramente estranho [uncanny gaze], que Lacan qualifica como «o olhar enquanto objecto a» opera contra os efeitos da sublimação. Estabelecendo o modelo deste olhar como objecto a, Lacan especificamente o contrasta com o modelo do ego, ele próprio ligado ao ponto de vista do diagrama perspéctico, através do qual o «Sou eu!» [como na interpelação mítica] do sujeito, escapando da condição dispersa do Simbólico (a cadeia de significantes) para entrar na gestalt unificada do Imaginário, se projecta a si mesmo como todo. Esta projecção, como nos lembramos, é usada pela teoria do olhar masculino para ligar a instituição do fetiche às próprias condições da visão, compreendida como mapeada pela pirâmide óptica da perspectiva. (ibidem).

4. Que pressupõe este olhar ameaçadoramente estranho (olhar enquanto «objecto a»)? Na verdade o lugar geometral do sujeito apenas se pode equacionar a partir da sua constituição como tal: como sujeito, dotado já de um superego (de um Simbólico, dirá Lacan). E o enunciado «sou eu!» só a partir daí é possível, enquanto interiorizado a partir da interpelação do olhar em que o sujeito é colhido, para ser determinado pela «lei» social. Imaginário e Simbólico entram assim quase ao mesmo tempo, no sujeito que somos. Mas, se por um lado, eles se coordenam entre si, no sentido de que o imaginário supõe o Uno de si que à parte da lei nos supomos ele é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade do advento do simbólico e de unidade que a determinação simbólica visa controlar. Isto supõe uma ambivalência fundamental no modelo lacaniano. Como frisaria P. Lacoue-Labarthe:

«O que seria preciso marcar, contra e com Lacan, remontando de Lacan a Reik, é que há um ruir constante, mas surdo do imaginário. O imaginário destrói ao menos tanto quanto ele ajuda a construir. Mais exactamente, ele não cessa de perverter o que ele constrói. Isto é por onde se explica que o sujeito ao espelho seja primeiro um sujeito em 'desistência' ['en désistement'] (e que, por exemplo, não recuperará nunca da insuficiência mortal a que o vota, segundo Lacan, a sua pré-maturação). [...] A figura não é nunca una [...] não há essência do imaginário. O que nos leva a pensar em Reik, dito de outra maneira, é o facto de que [nele] o sujeito «desiste» por ter de afrontar sempre pelo menos duas figuras - ou com uma figura pelo menos dupla) partição instabilizante ou desestabilizadora do figural (que confunde certamente a distinção entre o imaginário e o simbólico, e enceta nessa mesma altura a negatividade ou a alteridade absoluta do «real»...» (LACOUE-LABARTHE, Philippe, «L'écho du sujet», cit. in DERRIDA, Jacques, «Désistance», Psyché: Inventions de l'autre, Paris, Galilée, 1987, pp. 631-632).

5. Parece necessário ter em conta esta dimensão de uma (des)constituição do sujeito em jogo na ambivalência do imaginário. Para que se possa fazer sentido com o que se acaba de citar, de Rosalind Krauss, à luz do que também dela se citou, no post anterior, em Fragmentos de leitura: O mito e a personagem II, e se possa assim compreender que o ego tanto é conforme ao social (todo o x é função do falo) como lhe é excêntrico (existe um x que não é função do falo) e que isso suporia um «de»-sistere, um prolongamento e uma divisão especular, uma de-sistência que deveria deslocar, constantemente, o que aí se dá como lei construíndo-o e, ao mesmo tempo, arruinando-o.

Uma captação do seu exterior, em suma, ou uma excepcionalidade que lhe seria, na verdade, materialmente constitutiva. Regressando ao olhar enquanto objecto a, ter-se-ia aqui o descentramento do sujeito que olha, tornado visível a partir da sua exterioridade, a invadir e ocupar ali uma posição que, habitualmente tida por posição do objecto, lhe é devolvida em posição de alteridade irredutível, voltando-se contra o si próprio que seria correlato da forma/significado do quadro e, portanto, contra o seu próprio saber. O olhar enquanto «objecto a» cinde o olhar geometral, idealizado, cartesiano, exterior ao seu objecto, para o vir a confrontar com a materialidade (e já não com a imunidade e a tranquilizadora certeza) dessa sua exterioridade. Diz Lacan:

«O que me determina profundamente no visível é o olhar que me é exterior. É pelo olhar que entro na luz, e é do olhar que recebo o seu efeito. De onde se tira que o olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna, e pelo qual - se me permitem que me sirva de um termo, como o faço frequentemente, decompondo-o - sou foto-grafado. [...] Partimos por nossa parte, do facto de que há algo que instaura uma fractura, uma bipartição, uma esquize do ser, à qual este se acomoda, a partir da natureza. Este facto é observável na escala diversamente modulada do que é, afinal, susceptível de ser inscrito sob a forma de mimetismo. É o que entra em jogo, tanto na união sexual, como na luta até à morte. [...] Sem dúvida alguma, é por intermédio de máscaras que o masculino e o feminino se encontram de maneira mais aguda, mais ardente.» (LACAN, Jacques, Livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychannalyse, Paris, Seuil, 1973, p. 121)

E Krauss cita Lacan, a propósito desta espécie da indecidibilidade, dessa réplica inversora em que a sua posição de saber é afastada, numa passagem logo a seguir ao pequeno apólogo que Lacan ali, em Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, conta da sua própria experiência quanto a este olhar enquanto «objet a[utre]». Regressando sobre o que haveria a deduzir da sua pequena história, diz Lacan. (Estenderemos aqui a citação, primeiro, um pouco mais aquém e, depois, mais além do que Rosalind retira de Lacan, para que se possa ter uma visão mais ampla do argumento a que ela recorre):

«O essencial da relação da aparência ao ser, da qual o filósofo, conquistando o campo da visão, se torna tão facilmente no mestre, está algures. Não está na linha recta [da geomteria e da sua representação da propagação da luz ou dos raios luminosos], está no ponto luminoso - ponto de irradiação, de jorro, de fogo, fonte brotante de reflexos. A luz propaga-se, sem dúvida em linha recta, mas refracta-se, difunde-se, inunda, enche (não nos esqueçamos dessa taça que é o nosso olho) ela transborda-a também, ela convoca em torno da taça ocular, toda a uma série de órgãos, de aparelhos, de defesas. Não é simplesmente à distância que a íris reage, é também à luz, ela tem de proteger o que se passa no fundo da taça [ocular], que poderia, em certas conjunturas ser por ela lesado - e a nossa pálpebra, também ela, frente a uma luz demasiado intensa, é chamada a piscar [cligner] primeiro e recerrar-se depois numa careta bem conhecida. [...].» (ibidem, pp. 108-111)

Portanto, a luz é, simultaneamente, anterior e exterior-interior ao sujeito. É a leitura que Lacan faz de Merleau-Ponty e de que se apropria. O que há de próprio na luz para o sujeito é este seu estar já nela lançado. Nascer, não será necessariamente ser lançado na luz que nos entrará entrará pelos olhos adentro, sob a forma do olhar, do corpo luz e da interpelação? O sujeito deveria ser pensado na mesma luz que, nele, desencadeia a visão. E na sua constituição de sujeito, é a partir da interpelação de um olhar encarnado que ele entra na luz. Se a visão é o correlato da civilização, da verticalidade e da beleza para Freud, ela flutua, aqui, na sua materialidade, enquanto encarnação da luz.

É em relação a ela - à luz, à matéria, à matéria luminosa que banha o sujeito - que, entre o olho, como órgão foto-sensível, tomado estritamente como órgão da visão, (na relação essencial pressuposta no seu aparelho óptico: sistema de focagem e de refracção, bem como de estimulação, na superfície da retina, dos seus foto-sensores: córnea (e câmara anterior)+cristalino +humor vítreo +retina (cones e bastonetes)), e outros órgãos vizinhos ou adjacentes (a íris, por exemplo, reage à quantidade de luz, e a pupila é um diafragma de diâmetro variável, abertura dessa espécie de abismo ou de fosso, de túnel ou de furo que o sujeito é e pelo qual a luz entra), como a pálpebra e, finalmente, toda musculatura do rosto, mobilizada na careta provocada por uma exposição a uma intensidade excessiva, se estendem os seus efeitos, é preciso encontrar a materialidade do sujeito: a sua penetrabilidade, a sua vulnerabilidade; mas também a sua agressividade, a sua camuflagem e a sua luta.

Ora, isto significa, por um lado, que é preciso, à visão, inseri-la no plano da materialidade do sujeito. Dito de outro modo, o sujeito não é exterior e anterior àquela luz graças e através da qual ele «vê». Pelo contrário, a luz é já o sujeito que nela (se) vê e se constitui. Há, portanto, neste plano, necessidade de pensar o essencial da relação entre o ser e o parecer como exterior e irredutível ao ponto geometral que a perspectiva lhe reserva: «O essencial da relação da aparência ao ser, da qual o filósofo, conquistando o campo da visão, se torna tão facilmente o mestre, está algures», como se lê, logo na abertura da citação anterior. A função do sujeito em relação à luz e ao visível é, por isso, começará por notar Lacan, ambígua:

«A função do sujeito em relação ao que há de próprio na luz parece portanto anunciar-se já como ambígua. [...] Tomo aqui a estrutura no nível do sujeito, mas ela [essa estrutura] reflecte algo a encontrar na relação natural que o olho inscreve a respeito da luz. Não sou simplesmente esse ser punctiforme a ser situado no ponto geometral a partir de onde é apreendida a perspectiva. Sem dúvida, nas profundezas do meu olho, o quadro pinta-se. O quadro está certamente no meu olho. Mas eu, Eu estou na pintura. O que é luz olha-me [diz-me respeito, interpela-me, me regarde], e graças a essa luz no fundo do meu olho, alguma coisa se pinta, que não é simplesmente a relação construída, o objecto sobre o qual o filósofo se demora - mas que é impressão [e não simplesmente um objecto], que é jorrar de uma superfície que não é, de antemão, situado por mim na sua distância.» (LACAN, Jacques, op. cit., pp. 110-111).

O que faz aqui aparecer o quadro (que se pinta no fundo do olho) como sujeito, mostra que o sujeito é, enquanto estrutura, sempre quadro (coisa que já a propósito de Louis Marin e da Vanitas de Champaigne, se tinha dito aqui no blogue, em Recapitulações - o quadro V: o fundo):

«É aí que alguma coisa que faz intervir o que é elidido na relação geometral - a profundidade de campo, com tudo o que ela apresenta de ambíguo, de variável, nada controlável por mim. É o que muito pelo contrário me apreende, me solicita a cada instante, e faz da paisagem outra coisa que não uma perspectiva, outra coisa a que chamei quadro [visto que me abarca]. O correlato do quadro, a situar no mesmo espaço que ele, quer dizer no exterior, é o ponto do olhar. Quanto ao que de um ao outro faz mediação, o que é entre os dois, é qualquer coisa de uma outra natureza que não o espaço da óptica geometral, alguma coisa que desempenha aí um papel exactamente inverso, que opera, não por ser atravessável, mas por ser opaco. No que se me apresenta como espaço da luz, o que é olhar é sempre algum jogo entre a luz e a opacidade. [...] Para dizer tudo, o ponto do olhar participa sempre da ambiguidade da jóia. E eu, se sou alguma coisa no quadro, sou sob esta forma do écrã, que designei há pouco a mancha.» (LACAN, Jacques, op. cit., p. 111)

Eis, então, a opacidade do écrã. Porquê opacidade? Porque um écrã é uma operação de desvio, uma operação de iluminação desviante, de cobertura e promoção, à nossa atenção, de qualquer coisa que, pela sua presença, não deixa ver mais, ou não nos deixa ver outra coisa: o efeito de écrã é o da nossa absorção no que ele mostra, e de afastamento do que ele esconde. Lembremo-nos aqui dos souvenir-écrã de que nos fala Freud, a propósito das recordações de infância, em A Psicopatologia da Vida Quotidiana, (cf. aqui no blogue Recapitulações - o quadro III: o souvenir-écrã) num texto cuja tradução portuguesa, feita por José Marinho, nos dá «recordações de cobertura» por «recordações-écrã» (ou «souvenir-écrã»).

Eis, portanto, a jóia no écrã, a jóia como écrã, a estrutura de écrã da jóia, na sua opacidade, a envolver-se no seu íntimo com a secreção desencadeada pela minha labilidade, a minha fragilidade, a partir de uma profundidade de campo não controlável - a profundidade de campo é, assim, o correlato de uma distância não controlável, o correlato da instabilidade do limite entre «eu» e «fora» de mim, que a penetração da luz, na qual sou luz incorporada, tornada carne, assinala; uma profundidade de campo que é tudo menos o que a relação geometral me daria, na sua abstracção, como se diz acima.

Olhando o Untitled #147 é, indecidível, fantasmática e espectralmente o meu olho que vejo, o olhar que me é devolvido, suspenso das suas/minhas próprias trevas. O que mo torna inquietante é a indecidibilidade em que ele se me torna inatribuível e assim me traz ao pressentimento da minha morte, da minha anulação-dispersão, do limite do meu limite, pela suspensão do meu recalcamento.

Alguma coisa da pulsão escópica ali se exterioriza, a partir do lugar suposto feminino-passivo - bem longe iria ele, já - no ameaçador pressentimento da minha incontrolada ou incontrolável extroversão ou transbordo, do meu vacilante campo de profundidade. Eis o que nenhuma geometria, nenhuma gestalt, nenhum eidos, nenhum «objecto» a não ser o «objecto a» (o «objet autre») poderia «dar», no ponto de irradiação da luz que transborda, se difunde, e pode queimar. Nessa dualidade agressiva de uma relação imaginária em que nunca se chega à posição de domínio estável, em que nenhuma distância, nenhuma profundidade de campo me pode valer:

«Tal é a relação do sujeito com o domínio da visão. Sujeito não é aqui a entender-se no sentido corrente da palavra sujeito - essa relação não é de modo nenhum uma relação idealista [a relação de um sujeito transcendental, deduzido à maneira cartesiana, por exemplo, na sua inferida existência de sujeito exterior e «necessariamente» anterior ao mundo]. Esta sobre-apropriação [a palavra que está no texto de Lacan é «survol», que se traduziria imediatamente por «sobrevoo»; mas é preciso também recordar que «vol» podia designar, em simultâneo, não apenas «roubo», mas também, pela mesma altura, igualmente a perseguição e a preensão em voo, na caça - «Le faucon, le héron, le lanier, l'autor volent le lièvre, la perdrix, etc», como diz o diccionário mas também, ainda num sentido clássico, «elevação e complicação do pensamento»: «mais son vol est si haut, que presque à tous moments je me trouve en défaut»] a que eu chamo o sujeito, e que eu tenho como dando consistência ao quadro, não é uma sobre-apropriação simplesmente representativa. Há mais do que uma maneira de nos enganarmos a respeito da função do sujeito no domínio do espectáculo. [...] Há factos que não podem articular-se senão a partir da dimensão da sobre-apropriação [survol] pela qual eu me situo no quadro como mancha - são os factos do mimetismo.» (ibidem, p. 112-113).

E o ponto de apoio de Lacan é Roger Caillois, em Méduse et compagnie: «Caillois põe em relevo as três rubricas que são efectivamente as dimensões maiores em que se desdobra a actividade mimética», animal e humana. São elas «o travestimento, a camuflagem, a intimidação». «É nesse domínio, diz Lacan, que se apresenta a dimensão pela qual o sujeito se deve inserir no quadro». Qual é, então, a função do mimetismo, senão a da representação ou da imitação dissimuladora de qualquer espécie? Vejamos em que consistem essas três funções:

«o efeito do mimetismo é a camuflagem, no sentido técnico propriamente dito. Não se trata de se colocar de acordo com o fundo [isso relevaria da re-presentação do «fundo», fosse qual fosse o acordo], mas em sobre um fundo sarapintado, tornar-se às pintas [o que releva, não de um acordo, mas de uma subtracção ou um desaparecimento do fundo, por sobre-apropriação do seu modo à superfície] - exactamente como se opera a técnica da camuflagem nas operações de guerra humana. Quando se trata do travesti, uma certa finalidade sexual é visada. A natureza mostra-nos que essa intenção sexual se produz por todos os efeitos que são essencialmente de disfarce, de mascaramento. Aqui se constitui um plano distinto da própria visée sexual e que se dá o caso de desempenhar um papel essencial, e que é preciso não nos precipitarmos em distinguir demasiado depressa como sendo o do engano [la tromperie]. A função do logro, nessa ocasião, é outra coisa [...]. Enfim, o fenómeno da intimidação comporta, também ele, essa sobrevalia que o sujeito tenta sempre atingir na sua aparência. [...] Imitar é sem dúvida reproduzir a imagem. Mas fundamentalmente é, para o sujeito, inserir-se numa função cujo exercício o apreende». (LACAN, Jacques, op. cit., pp. 114-115).

Assim:

«A função do quadro - em relação àquele a quem o pintor, literalmente, dá a ver - tem uma relação com o olhar. Essa relação não é, como pareceria a uma primeira apreensão, a de ser a armadilha do olhar. Poder-se-ia crer que, como um actor, o pintor visa o viste-me, e deseja ser visto [regardé]. Não o creio. Creio que há uma relação com o olhar do amador, mas que ela é mais complexa. O pintor, àquele a que deve estar diante do seu quadro, dá qualquer coisa que, em toda a parte, pelo menos na pintura, poderia resumir-se assim - Tu queres ver? Pois bem, vê então isto! Ele dá qualquer coisa a pastar ao olho, mas convida aquele a quem o seu quadro é apresentado a depor aí o seu olhar, como se depõem as armas. É aí que se produz o efeito pacificante, apolíneo, da pintura. Algo é aí dado não tanto ao olhar como ao olho, algo que comporta um abandono, uma deposição do olhar.» (ibidem, p. 116).

II. - 1. Como é que este percurso se constitui, em Rosalind Krauss, como necessário para mostrar a inadequação ou a improdutividade da leitura de Laura Mulvey? O que é que está em causa, no confronto com a teoria do olhar masculino? Note-se, a deposição do olhar é, para Lacan, um resultado do efeito do quadro que poderíamos descrever como uma rendição, uma deposição das armas, uma cedência. O Untitled #147 é, para Rosalind Krauss, recordemo-lo, o lugar de uma condição que pode ser reencontrada em outros lugares da mesma série. Observa ela:

«O desejo despertado pela impossibilidade da ocupação de todos esses múltiplos pontos da projecção luminosa do olhar é um desejo que funda o sujeito na realização de um ponto de vista que é dele retido, um [ponto de vista] que ele ou ela não podem ocupar. E é a própria fragmentação desse «ponto» de vista que evita este olhar invisível e não situado [unlocated] de ser o lugar de coerência, de sentido, de unidade, da gestalt, do eidos. O desejo não é aqui mapeado como o desejo da forma, e assim da sublimação (o vertical, a gestalt, a lei); o desejo é modelado em termos de transgressão contra a forma. É a força investida na dessublimação. Em nenhum lugar a noção de se ter tornado «a imagem» é mais dolorosamente abrasadora [«ponto de irradiação, de jorro, de fogo, fonte brotante de reflexos», dizia Lacan mais acima, onde «a relação essencial entre o ser e a aparência» reside] evocada do que no Untitled Film still #167 (1986) de Sherman.» (KRAUSS, Rosalind, «Cindy Sherman, Untitled», op. cit., p. 140).














Cindy Sherman, Untitled Film still #167 (1986).

Não é já aqui a luz (o contraluz) o único indutor da dispersão do ponto de vista e da desintegração do rosto-identificação:

«A figura, agora absorvida e dispersada no fundo-chão, pode apenas ser apanhada em alguns restos ainda visíveis, embora escassamente, na sarapintada superfície do escuros detritos que enchem a imagem. Discernimos a ponta de um nariz, o emergir de um dedo com uma unha pintada, a careta arrancada de uma dentadura. Horizontalizada, a vista para baixo mapeada pela imagem põe o significante na dissolução da gestalt em funcionamento. Mas quando atinge o extremo inferior da imagem, a visão do espectador encontra o olhar que se projecta a partir de dentro desta matriz de quase invisibilidade na sua direcção. Reflectido no pequeno espelho de um kit atirado fora, esse olhar não pode ser identificado com nenhum origem na imagem. Em vez disso parece juntar-se a todos os outros brilhos e pontos reflectidos de luz na imagem para constelar o significante de /ilocalizável/, e assim para a transgressão da gestalt.» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 140).

Rosalind Krauss faz, antes de se aproximar desta série, todo aquele percurso de que em Lacan, deixámos acima registo. Eis que nos diz:

«Lacan volta-se para o modelo da imitação animal, que o seu velho amigo Roger Caillois tinha descrito anteriormente nos anos 1930 como o efeito do espaço no sujeito (-insecto) que, cedendo à força do olhar generalizado do seu espaço, perde os seus limites orgânicos e se mistura com o que o cerca num acto de imitação quase psicótico. Tornando-se ele próprio numa camuflagem sem forma, este sujeito mimético agora torna-se uma parte do «quadro» do espaço em geral: «torna-se uma mancha, torna-se um quadro, está inscrito no quadro», insiste Lacan. [...] O deslizar para a frente e para trás entre o insecto de Callois e o «Eu» de Lacan nesta discussão da imitação é importante para aquilo a que Lacan pretende chegar através desta noção do olhar. [...] Passamos antes para dentro do «quadro» como mera «mancha», o que quer dizer enquanto matéria física, enquanto corpo. E aqui, Lacan refere-se também à posição de Merleau-Ponty em Fenomenologia da Percepção segundo a qual a nossa relação com o espaço - na medida em ela que é o alvo do olhar constituído pelo ambiente luminoso, uma luz que nos captura no seu raio por detrás tal como pela frente - funda a nossa percepção, não na transparência de uma apreensão conceptual do espaço, (como no espaço geometral) mas na espessura e na densidade do corpo que simplesmente intercepta a luz. É neste sentido que 'estar no quadro' não é sentir-se interpelado pelo sentido [meaning] da sociedade - «sou eu!» - não é sentir-se, digamos, pleno [whole]; é sentir-se dispersado, sujeito a uma imagem organizada não pela forma mas pelo informe [formlessness]». (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 140).

Os Untitled #147 e #167 seriam assim bem a ilustração da impossibilidade de uma preensão predatória, nada convidativos a uma interpretação da mulher como falta-sintoma do que, de algum seu exterior masculino, imunizado e distanciado, controlador, se dispusesse ao comprazimento regulado pela mesma lei que, na teoria do olhar masculino, seria a de uma repartição demasiado simplificadora, entre masculino-activo e feminino-passivo. Pelo contrário, a nossa radical e irredutível inconsistência entra aí em jogo, nessa cisão ou nessa esquize do olhar de que fala Lacan, na qual a máscara ou a camuflagem descolam o ser da aparência e constituem o seu instrumento, não redutível simplesmente ao logro. O processo de des-mitificação em jogo, na obra de Cindy Sherman, faz dessa descolagem uma exigência contra o logro, acentuando o embuste, ou o barrete do natural e do analógico do mito - o mito do sujeito/objecto, ou do activo/passivo, por exemplo - a emergência do significado através de um significante necessariamente, nesse caso, concebido como um envelope transparente. Ele poder-se-ia ainda acompanhar na série dos «Mestres», de que Rosalind Krauss também falará, mais adiante.













Cindy Sherman: Untitled #211; Untitled #214, 1989.

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