terça-feira, 31 de março de 2009

Fragmentos de leitura 9: Mito e personagem II (R Krauss; Cindy Sherman; Lacan; Derrida; Barthes; L. Mulvey; Solomon-Godeau)






















Em cima, Cindy Sherman, Untitled Film still #91, 1981 (color photograph, 24x48 inches); em baixo, Cindy Sherman, Untitled Film still #92, 1981 (color photograph, 24x48 inches).

I. - 1. Antes de entrar propriamente na leitura das fotos, é importante situar algumas das diferenças entre Rosalind Krauss e Laura Mulvey. (cf. Fragmentos de leitura 7: Mito e personagem I). Para darmos conta, na exposição da nossa leitura do ensaio de Rosalind Krauss, do seu confronto do argumento de Laura Mulvey teríamos de nos abeirar, aqui, dos aspectos menos consistentes das posições desta última autora, precisamente porque mais condicionantes.

Por um lado, quanto ao lugar ambivalente, não apenas do voyeur, mas também da mulher, ali dada como fetiche erotizado. Por outro lado, do quanto, não apenas no dispositivo lacaniano, mas no psicanalítico em geral (a começar por Mal-Estar e Civilização e por Três Ensaios sobre a Sexualidade, de Freud), se verifica ser, não apenas abundante, mas quase exclusiva, a circulação das metáforas da verticalidade: verticalidade do falo como instância da totalidade, verticalidade do espelho, verticalidade do véu, verticalidade do plano da beleza, verticalidade do campo do fetiche.

2. O primeiro destes temas abre, no argumento de Mulvey, uma fractura que pode ser seguida mesmo em Jacques Lacan, e se mostra deslocadora de uma repartição demasiado simplificadora entre o feminino e o masculino. Colhido o voyeur, como se viu, na duplicidade que o cliva, entre controlo do que, na verdade, é ainda imagem (e portanto distância da presença) e a erotização do fetiche (e consequentemente proximidade da presença) - o que significa: entre controlo e, ao mesmo tempo, submissão - a esse voyeur corresponderia, do lado do seu outro, uma mulher que, enquanto lugar olhado do corpo teria, necessariamente, de inscrever em si mesma, também a contrapartida dessa distância, esse dispositivo de segurança e de salvaguarda, que seria o da auto-imunidade daquele que, nesta teoria do olhar masculino, se supõe detentor dos direitos exclusivos do olhar.

3. Ora, a estratégia de Rosalind Krauss é a de mostrar, mais precisamente: a) por um lado, de onde vem o dispositivo teórico que, ao mesmo tempo que treslê as imagens de Cindy Sherman, se mostra cego ao seu trabalho sobre o mito. Por outro lado, b) a de mostrar também que, mesmo aí, onde se desdobram as premissas teóricas que a orientam, teria sido preciso observá-las mais de perto, mais cuidadosamente, procurando extrair delas algumas necessárias implicações que supõem um sentido diferente daquele em que se posiciona Laura Mulvey.

Daí que, remontando, a partir do discurso de Laura Mulvey, às disposições teóricas que o estruturam, Rosalind Krauss comece por reler alguns dos textos de Jacques Lacan a partir dos quais se poderia dizer que essa repartição social e sexual do olhar e da relação com o falo se revelaria algo simplificadora. E o primeiro dos textos ali compulsados é precisamente «A Significação do Falo», que figura nos seus Écrits. Diz ali Lacan:

«Por mais paradoxal que possa parecer essa formulação, dizemos que é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. É pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada. Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem a sua demanda de amor é endereçada. Não convém esquecer que sem dúvida o órgão que se reveste dessa função significante adquire o valor de fetiche». (LACAN, Jacques, «A Significação do Falo», Escritos, trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 701)

O que a mulher rejeitaria, portanto, no seu desejo do outro, seria precisamente a «falta» que a constitui, quer dizer, o seu «atributo essencial» de feminilidade. Assim se daria ela, quanto ao seu desejo do outro, no registo fálico do objecto a que nada falta, do objecto intacto, do fetiche erotizado, precisamente aquele que a oposição que Laura Mulvey lhe reserva, quer na narrativa cinematográfica, quer, afinal, na narrativa tomada, transversalmente, nos mais diversos planos de mainfestação cultural. O falo como Significante é, na verdade, o termo-chave em relação ao qual se constitui todo o sujeito humano e, portanto, também o homem. Lacan frisa-o com bastante ênfase:

«Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva entender por isso um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objecto (parcial, interno, bom, mau, etc.), na medida em que esse termo [«objecto»] tende a prezar a realidade implicada numa relação. E é menos ainda o órgão, o pénis ou o clitóris, que ele simboliza. E não foi sem razão que Freud lhe extraiu a referência do simulacro que ele era para os antigos. Pois o falo é um significante [...] destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na medida em que o significante os condiciona por sua presença de significante. [...] Seja como for, o homem não pode visar a ser inteiro (à 'personalidade total' [...]), visto que o jogo da condensação e do deslocamento a que está fadado no exercício das suas funções marca a sua relação de sujeito com o significante (LACAN, Jacques, op. cit., pp. 696-697)

4. Portanto, nem ao homem nem à mulher é dado aspirarem a ser «inteiros», a não ser imaginariamente. Pois não seria decerto necessário recordar que, no que toca ao homem, é precisamente a experiência fantasmática de uma possibilidade da sua privação do falo (de uma ameaça, enfim, da castração) transferida do seu primeiro Outro (a mãe castrada, aquela mãe inicialmente fálica, com a qual haviam decorrido as primeiras verbalizações), que nele induz a Lei e a identidade /diferença sexual.

5. De onde, ainda, que Lacan diga que é, precisamente, enquanto destinado (o termo traduzido de Lacan é «fadado»), que ele se abre ao jogo da condensação e do deslocamento, precisamente as duas operações que Freud descrevera como sendo as da relação (linguística) própria aos materiais oníricos, na interferência ou inscrição da censura, na economia própria do seu acesso ao consciente. Lacan descrevê-los-á - a partir da análise de Jakobson, que os transpõe nas figuras da metáfora e da metonímia - como princípios estruturantes do insconsciente (dizendo-o estruturado como uma linguagem).

Quer dizer: é a relação com o simbólico (com o Significante ou a Letra que o implica) que dita a necessidade e produz ambas as operações como estruturantes no discurso. (Lacan dirá, em outro lugar, que o «discurso do inconsciente» é o mais comum dos discursos, o «discurso comum»: cf. PEREIRA, José Paulo, O Exercício da Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007; PEREIRA, José Paulo, «Testemunho e(m) Ficção: uma experiência «inexperienciada»», Intervalo nº2, Vendaval, Maio, 2006).

6. Do interior da relação descrita por Laura Mulvey, em que a diferença entre os papéis do masculino (+acção (discursiva ou não); +olhar) e do feminino (-acção(discursiva ou não);-olhar) parece seguir o critério diferencial da presença/exclusão dos mesmos dois atributos, levanta-se, então, esta dificuldade: como compreender, enquanto mera passividade e brando e piedoso baixar de olhos, a posição em que se rejeita a «essência» simbólica da feminilidade, no mesmo instante em que «a máscara» é aqui erigida como forma do seu distanciamento e, portanto, como lugar de comutação (imaginária) de ambos os termos da oposição?

7. Em face da descrição lacaniana, parece difícil compreendê-lo. Até porque essa rejeição implica também a intervenção do que ao simbólico antecede e, ao mesmo tempo, há-de propiciar: precisamente o imaginário, enquanto devir da «forma», momento de precipitação do ego e da relação dual-agressiva de interversão de papéis, que ele protagoniza com o seu outro, com quem disputa a posição de reciprocidade fálica, de suplementação do falo. O que Rosalind Krauss daqui retira (bem como da leitura de outros textos de Lacan) é, portanto, a observação e o argumento de uma simplificação, de uma redução, presentes no discurso de Laura Mulvey:

«Assim, se a feminilidade é construída - na medida em que é projectada como «falta» [lack], como o que falta, e neste sentido como sintoma do homem [a presença da «falta» a indicar, como sintoma, a presença de um exterior de que ela, como tal, se exclui e, portanto, de que ela se constitui como tal: como «falta»] - como uma ausência essencial, Lacan descreve a mulher como rejeitando essa ausência, e assim [rejeitanto] a sua própria «essência», de forma a assumir a mascarada [the mascarade] da totalidade, do nada falta do fetiche. A dança do seu «para ser olhada» é um véu a cobrir este nada, que Lacan em outro lugar designa por pas-tout. [...] É, é claro, o sujeito humano quem, neste sentido emerge como «em submissão à sua marca [a do significante]», emergindo [ele, sujeito humano] como o material através do qual a própria linguagem fala «tecida a sua natureza por efeitos nos quais podemos encontrar a estrutura da linguagem. [...] Em outro ensaio Lacan formulou a regra deste sujeito linguístico [...] que se lê todo o x é uma função do falo, com o falo entendido como significante mestre na cadeia linguística. [...] Mas dá-se também o caso de que todo o sujeito humano tem um ego, ou sentido (autónomo) de si, que quer manter-se fora dessa fórmula e se organizaria, em vez disso em outros termos, directamente opostos: [...] há um x que não é função do falo. » (KRAUSS, Rosalind, «Cindy Sherman, Untitled», Bachelors, Cambridge / Massachussets / London, MIT, 2000, pp. 127-128).

8. As fórmulas (aqui na leitura dos «matemas») de Lacan descrevem, aqui, na citação de Krauss, quer a dimensão do simbólico (todo o x é uma função do falo), quer a do imaginário (há um x que não é função do falo). Seria, assim, imaginariamente que nos suporíamos, em alguma parte de nós, excêntricos em relação à lei (ao simbólico) que nos determina e, portanto, que afirmaríamos o excesso irredutível de algum nosso sentido de nós-mesmos (o do nosso «ego»), como não redutível à nossa determinação exlusivamente simbólica. Ora, seria preciso contar, necessariamente, com o imaginário, quando se trata de ler a arte.

9. Porque, sendo a arte - desde a Crítica da Faculdade de Julgar, pelo menos - o gesto de uma afirmação da liberdade, seria também preciso não a reduzir ao momento da mera reprodução da diferença que o simbólico determina e regula e, ao invés disso, supor que é exactamente na medida do seu sublime, que o ser determinado enquanto tal se excede, no desafio que lhe é proposto pela experiência do incomensurável. Ora, o que Laura Mulvey lê, nas imagens de Cindy Sherman, não parece ser senão o rebatimento ou a reprodução do que, do ponto de vista simbólico, seria já a determi-nação da secundaridade da mulher.

II. - 1. O segundo ponto de desacordo diz respeito à observação, muito aguda por parte de Rosalind Krauss, dos termos em que Freud se refere à «beleza»: como envolvendo, por um lado, uma «sublimação» e, por outro lado, a «verticalidade» (com todas as conotações morais que, assim vista, ela supõe, mesmo na linguagem corrente, onde se associa a «verticalidade» às qualidades de coerência e de resistência moral). Em resumo, eis as observações de Krauss: os eixos vertical e horizontal da visão são fortemente sobredeterminados, quer dizer, muito densamente conotados:

«Se o vertical é o eixo da pintura [há um texto de W. Benjamin sobre esta questão, a que aqui voltaremos], o eixo em que a pintura se orienta para a parede [e não para o chão, por exemplo] é também, vimo-lo, o eixo do plano de visão. Esse plano, que os psicólogos da Gestalt caracterizam insistentemente como «fronto-paralelo» ao corpo de pé do espectador, é também, dizem-nos eles, o plano da Prägnanz, pelo qual, eles pretendem significar a coesão [the hanging together] ou a coerência da forma. Daí o próprio impulso da visão para a formulação da forma, para projectar coerência no espelhamento da própria forma do corpo, marcará já mesmo o plano vertical vazio como um reflexo desse corpo, mas pesado em baixo, mais leve em cima, e com uma orientação diferente da direita para a esquerda. E ao contrário qualquer localização da forma - de contorno ou de figura [of shape or of figure] assumirá o seu lugar num eixo que é imaginariamente [imaginatively] vertical, mesmo se nós o confrontarmos sobre a página de uma revista que tenhamos na mão sobre o nosso regaço ou nos azulejos do mosaico que jaz a nossos pés.» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., pp. 129-130).

2. Ele - o eixo vertical, que é, portanto, como veremos, mais adiante, na argumentação de Krauss, fetichizado pelo discurso analítico de Laura Mulvey - é para Freud [Três Ensaios sobre a Sexualidade e Mal-Estar e Civilização] o eixo da beleza, no sentido, não apenas de a sublimação, que implica uma forma de «elevação», pressupor a substituição do alvo sexual, na sua reconversão da libido objectal em libido narcísica (e portanto, aqui já na relação de re-investimento interno do (super-)ego), bem como a visão do órgão sexual por alguma forma sua substituta, mas também no sentido em que ela (como nos casos analizados por Freud; por exemplo, o de Leonardo Da Vinci) implica, nessa transposição, uma espécie de elevação ao saber, ao belo, ao transcendente, e assim por diante.

«Além disso, esta dimensão vertical, sendo o eixo da forma, é também o eixo da beleza. Isso é o que Freud acrescenta à imagem dos gestaltistas: nesse período da evolução em que o homem finalmente se pôs de pé, ele deixou o mundo do cheirar e das quatro patas, com o nariz encostado aos seus genitais, e entrou num mundo da visão no qual os objectos são agora experienciados à distância. E nesta distanciação os seus instintos carnais foram sublimados, escreve Freud, reorganizados fora do mundo dos órgãos da horizontal e dentro do mundo formal da vertical, o mesmo é dizer da beleza.» (ibidem, p. 130).

3. As consequências deste excurso e desta indagação serão várias, em Rosalind Krauss e na sua consideração dos escritos de Laura Mulvey a partir das suas próprias premissas psicanalíticas. Mas a questão das conotações morais da verticalidade havia já despertado a curiosidade e estado presente na reavaliação, em alguns artistas, dos legados do Modernismo. São eles Andy Warhol, nas suas pinturas Oxidation; Robert Morris, nos seus feltros e peças espalhadas; Ed Ruscha, nas suas imagens Liquid Word, todos eles em relação a Jackson Pollock, numa antecipação que abriria uma espécie de linhagem, na qual se tornaria agora necessário ler as imagens horizontais - «as horizontais», como dirá Krauss - de Cindy Sherman. Vejamos em síntese de que se tratava, para eles:

«Durante os anos 60 e 70, contudo, uma série de golpes forma desferidos contra este fetiche [o da verticalidade]. Houve, para tomar apenas um exemplo, um grupo de leituras da obra de Jackson Pollock - por si mesma um emblema dominante da condição sublimatória do campo pictórico vertical, opticamente condicionado - que desafiadoramente reinterpretou a pintura de Pollock como horizontal. Isto foi verdade para as Oxidation paintings de Andy Warhol, através das quais ele leu as imagens pingadas [dripped pictures] como a obra de um traçado urinário (como se feitas por um homem de pé sobre um campo horizontal e a urinar) insistindo assim no modo como as telas de Pollock são permanentemente marcadas pela horizontalidade da sua feitura. É também verdade dos feltros e peças espalhadas de Robert Morris, através dos quais ele reinterpretou a empresa de Pollock como de uma «anti-forma», pela qual ele queria dizer a sua condição de cedência à gravidade no assumir do eixo horizontal. Pode também ser dito das imagens Liquid Word de Ed Ruscha, com a sua leitura da significância da técnica do dripping enquanto abertura para a dimensão da entropia e de um «materialismo de base». (ibidem, pp. 130-131).




















Andy Warhol, Oxidation painting, 1978 (Urine and metallic pigment in acrylic medium on canvas)

4. Diga-se, entre parêntesis, que a estes «golpes desferidos sobre o fetiche da verticalidade», talvez se pudessem juntar, ainda, os de Robert Rauschenberg, que analisámos, aqui no blogue, apoiados na descrição que nos fazia Leo Steinberg (ver aqui Recapitulações - o quadro VIII: o acontecimento na pintura), da sua Bed. Quanto ao que aqui nos interessa, Krauss lembrará que «não era apenas a pintura modernista» que insistia naquela verticalidade fetichi-zada, «era também o mundo media dos filmes e da televisão, da publicidade» que a declarava abertamente, na sua conotação valorativa, estética e moral.

5. A obra de Cindy Sherman reagirá, portanto, (sobretudo numa segunda fase, como se verá) contra ela, no seguimento do que já havia acontecido com Warhol, Morris e Ruscha. Ora, a leitura proposta por Laura Mulvey, profundamente marcada, dada a sua formação psicanalítica, por uma retórica (estética e moral) da valorização da verticalidade, haveria de se revelar incapaz de espreitar para debaixo do barrete e acabaria, assim, por tresler a obra de Cindy Sherman:

«A teoria do olhar masculino, mesmo quando se desloca de uma análise das operações de um campo representacional - os filmes, as pinturas - para uma generalização acerca da estrutura da consciência humana, tinha tido de cegar-se ela mesma acerca da sua própria fetichização da vertical. O mesmo é dizer, tinha tido de cegar-se a si mesma para qualquer coisa que estivesse fora do registo vertical da imagem/forma. É por causa disto que os teóricos do olhar masculino repetem, ao nível da análise, a própria fixidez que estão a descrever como operante no olhar masculino ao nível dos seus efeitos sociais. E o sintoma desta repetição é a [sua] constante submissão ao efeito-de-significado que o sistema gera, uma submissão a ser encontrada no firme consumo da obra de Sherman como mito.» (ibidem, p. 133).

III. - 1. Poderíamos, agora, voltar ao assunto dos Film Stills de Cindy Sherman, retomando-as desde a sua primeira série: a dos Untitled ainda dos anos 70. Rosalind Krauss encara-a como forma de preparação de outras séries, em que a leitura de Laura Mulvey se torna cada vez mais distante da possibilidade de fazer sentido.


Recordemos, no entanto, uma vez mais, os termos da leitura de Laura Mulvey, para quem as imagens de Cindy Sherman andariam pelo registo de um soft-core - «a câmara intromete-se em momentos nos quais ela está indefesa [unguarded], às vezes despida, absorvida no seu próprio mundo na privacidade do seu próprio meio. Ou testemunha um momento no qual ela baixa as suas defesas, quando é de súbito surpreendida por uma presença, não-vista e fora do écrã, a olhá-la» - para, agora, melhor os podermos contrastar com os de Rosalind Krauss. Observa esta última:





















«Sherman, é claro que tem todo um repertório de mulheres a serem olhadas e a construção concomitante do observador [watcher] pela câmara para o qual [ela, a câmara] é o seu procurador. Logo desde o início do seu projecto, em Untitled Film Still #2 1977, ela estabelece o signo do intruso não-visto. Uma jovem envolta numa toalha está de pé em frente do espelho, tocando no seu ombro e seguindo o seu próprio gesto na sua imagem reflectida. A lateral de uma porta do lado esquerdo do enquadramento coloca o «espectador» [viewer] fora do compartimento. Mas o que é de longe mais significativo é que este observador é construído como um observador escondido por meio do significante que se lê no granulado da imagem, uma difusão da imagem que constrói o significado /distância/, uma dissociação do espaço psíquico do observador em relação ao do observado.» (ibidem, p. 118)

2. Trata-se, portanto, de não tomar a foto, nos seus aspectos formais, como meramente secundária. Ou ainda, de não menosprezar nela o trabalho do significante, para se perceber o quanto a imagem da «mulher indefesa» - enquanto lugar exclusivo «corpo olhado» - é simplesmente um mito, uma projecção mítica.

A replicação interna do enquadramento exterior da foto, na linha lateral da porta que aparece do lado esquerdo, em conjunção com a granulação da imagem são dois significantes que é necessário ter em conta para não «alucinar» simplesmente a cena, através da foto concebida como seu simples envelope transparente, exactamente como no mito acontece, isto é, quando o significado emerge através do significante. Diz Rosalind Krauss:

«O impacto narrativo destas imagens tende a submergir os elementos através dos quais ela [a narrativa] é construída, elementos como a profundidade de campo, o grão, a luz, etc., os quais, parecer-nos-ia, são demasiado fáceis de ignorar como integradores meramente formais, enquanto que eles funcionam como signifi-cantes cruciais para o efeito semântico.» [que eles implicam]. (ibidem, p. 122)

3. A «presença não vista do intruso» é, pois, por demais controlada para que possa pensar-se aqui simplesmente (no mito de) uma «jovem indefesa». Assim, o que as fotos induzem a pensar são duas coisas: a) por um lado, na força tremenda com que a imagem nos arrasta para a sua interpretação mítica, enquanto instância do significado: aquela que faz aparecer o significado à transparência do significante; b) na forma não menos importante como ela nos distancia dessa sua transparência, postulada pelo realismo, quanto à imagem enquanto instância do significado, e implica uma espessura do significante que a desloca.

4. Além disso, dir-se-ia que, acerca do seu olhar, se não pode estar inteiramente seguro da invisibilidade do intruso aqui, entretanto, mantido à distância. O que sucede com particular acuidade numa outra imagem: Untitled Film still #81 (imagem aqui a seguir) onde essa /distância/ psíquica interposta pela granulação da imagem, em relação ao observador desaparece, apesar das portas abertas o manterem, ainda, de fora do espaço que a mulher ali fisicamente ocupa. O que indica, por um lado, a variação dos parâmetros da significação, por outro, o controlo sobre eles exercido.
















No entanto, será sobretudo nas «horizontais» de Sherman, onde o trabalho sobre o mito incide também sobre aquela anterior fetichização da vertical, na linha dos trabalhos de Warhol, Robert Morris e Ed Ruscha, que os problemas começam a avolumar-se, e a leitura Mulvey vai perden-do, cada vez mais, terreno.

5. Aquilo de que as imagens de Sherman darão aí testemunho é de um trabalho, não apenas de des-mitificação, mas também, na sua dimensão auto-reflexiva, voltada sobre os processos herdados e interiorizados pelo modernismo, de um trabalho de dessublimação (conceito que poderíamos encontrar formulado, logo nas primeiras páginas do ensaio A Dimensão Estética, do freudo-marxista Herbert Marcuse; ou a sua contrapartida lacaniana, no ensaio de R. Barthes, «Essa Velha Coisa... A Arte», que seria a de uma dessimbolização). Recapitulando:

«Os Film Stills tinham sido um laboratório para explorar a série de significantes que se juntavam para produzir o aspecto de um certo género de filme ou de realizador e, através disso, para construir uma «personagem», selando-a com o real da denotação, a qual, nos próprios termos de Barthes, como vimos, é apenas o último dos códigos a introduzir-se sorrateiramente. Foi a partir destes vários testes que Sherman começou então a seleccionar um só significante, de forma a concentrar-se nele. Primeiro, em 1980, esse significante foi o efeito especial da projecção da iluminação a contraluz, com a sua resultante fissura no campo da imagem, a fractura que ela estabelece na experiência da densidade e da substância entre a personagem tridimensional e os seus achatados, contextos cénicos, de aspecto ficcional. A cor, que entrou no trabalho de Sherman, acentuou o sentido desta diferença.» (ibidem, p. 125)














Em cima, à esquerda: Cindy Sherman, Untitled Film still #36, 1979; à direita: Cindy Sherman, Untitled Film still, #147, 1985;

6. O Untitled Film still #36 (imagem à esquerda) tem uma curiosa história, visto que aparece pouco depois da descoberta-publicação de duas fotos feitas pelo pintor Edgar Degas, através de processos de solarização do negativo para criar reversões entre áreas de negativo e positivo dentro da iagem, e que Douglas Crimp, um dos críticos Sherman - o primeiro, diz Krauss, a realizar um trabalho crítico sério sobre o trabalho dela - descreve da seguinte forma:

«na impressão [print] na qual o braço direito e o torso da dançarina aparece como normalmente em positivo, a sombra do braço sobre a parede em que ela se apoia aparece como um golpe de luz. A sua face, também aparentemente na sombra, e o seu cabelo escuro são rgistados como luz. Neste ponto, obviamente, a linguagem começa a faltar [a falhar, to fail]. Como é que podemos deixar de falar de luz e sombra? Como é que podemos falar de uma sombra branca? Uma luz escura? Uma lâmina transluzente de braço? Quando a luz e a sombra, a transparência e a opacidade são revertidas, quando o negativo se torna positivo e o positivo negativo, os referentes da nossa linguagem desritiva dissolvem-se. É-nos deixada uma linguagem apenas gémea da fotografia, na qual a manipulação da luz gera a sua lógica própria e exclusiva» (CRIMP, Douglas, cit in KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 124)

Krauss cita-o, para acrescentar:

«De todos os Stills [dessa primeira série] este é tão severamente iluminado por detrás que nada se pode ver da face da personagem [assim se demarcando da projecção identificacional das leituras habituais] e quase nada do seu corpo para além da silhueta. [...] Enquanto modelo, o seu corpo lê-se preto no branco de fundo, [...]. No Untitled Film Still #36, a sua condição de hors de série, tem também a aura desta impossível dobra da dançarina de Degas, entrando numa luz que não tem nenhum foco, e na verdade nenhum ponto de vista externo possível. Talvez o Still tenha sido endereçado, imaginariamente a Crimp; mas tal endereçamento nada tem em si da teorização do olhar masculino e da psico-política do controlo sádico. Aliás, como veremos, esta espécie de iluminação por detrás, tudo aquilo que ela faz para fragmentar o olhar [gaze], emergirá como elemento crucial - ou significante - no trabalho de Sherman dos princípios de 1980.» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., pp. 122-124).

7. O que a imagem mostra é, de facto, a silhueta vazia e ambivalente, que «permanece radicalmente ambígua», inscrita sobre essa espécie de um intenso e ao mesmo tempo difuso olho de luz que, por detrás dela, se oculta e brilha, situado para lá e chegando até nós, através do véu das cortinas, numa espécie de transposição, uma vez mais, da /distância/ que conota, aqui, a impossibilidade de uma luz imediata, de um sentido imediato, de um sentido a abrir caminho até nós como luz obscurecida pela espessura de um corpo que não saberíamos, nem nomear, nem, portanto, atribuir ou identificar, e cujos gestos se suspendem, entre o despir-se (mas a nudez enviar-nos-ia aqui para a impossibilidade da nomeação) e o seu contrário, numa espécie de metáfora do processo de leitura, ou numa sugestão do re-corte significante, reversor do significado, mais do que da jovem indefesa de Laura Mulvey.

«Então, em 1981, um significante diferente, inserido na série desencadeada por uma encomenda para um desdobrável central da revista Artforum, emergiu como a preocupação central. Esse significante é o ponto de vista. E neste grupo de imagens esse ponto de vista, consistente através de toda a série e estridentemente adoptado pela câmara, é de cima para baixo. É como se a extrema horizontalidade do formato da imagem tivesse sugerido uma correspondente horizontalidade no campo da imagem. Como se de ser uma projecção do espectador a olhar para baixo para um campo de visão imaginado como paralelo à vertical do seu corpo direito e do plano de visão dela, a vista agora deslizasse para o chão para declarar a própria visão como horizontal. [...] No Untitled #92 [a primeira imagem, na abertura deste post] a narrativa posta em funcionamento por este significante não é a da «vulnerabilidade» através de uma pose que fosse «suave e frágil [sem forças, limp]», mas mais a da animalidade, com o corpo contraído numa espécie de fixação subhumana». (ibidem, p. 131).

8. Em relação à imagem do Untitled Film still #147 (exibido ao lado da imagem precedente), deixá-la-emos para o post seguinte, visto merecer um tratamento mais cuidado, mais minucioso e mais atento. Note-se, no entanto, que nas imagens até agora analisadas, uma estrutura de palimpsesto as atravessa. Porque, por um lado, um certo significado nelas parece emergir, à sua transparência, mas por outro lado, é a sua estrutura significante que o rasura e suspende, deslocando-o de qualquer sentido de presença plena.

Se quiséssemos retomar aqui os termos de Jacques Derrida (ver Recapitulações - o quadro XII: o pós-estruturalismo e o desafio do enquadramento), diríamos que o trabalho de Cindy Sherman opera uma re-marcação do termo não marcado («a mulher indefesa», «a mulher enquanto «falta»», enquanto sintoma da presença daquilo de que ela seria «falta», etc.), questionando-o ou suspendendo-o da sua evidência mais imediata.