terça-feira, 31 de março de 2009

Fragmentos de leitura 7: O mito e o seu consumo.


















Mitologias

I - 1. O que é um mito, hoje? É um modo de significação, uma fala específica, uma linguagem diferenciada, responde Roland Barthes, em Mitologias. Ora, se ele é um modo de falar e de significar - é uma forma da mensagem - é porque há evidentemente outros, que não são míticos. No entanto, na ordem diversificada da circulação dos signos, qualquer signo (de qualquer substância expressiva; escrita, imagem; fotográfico, pintado, musical, publicitário, etc., etc.) se pode tornar num significante mítico. O mito contemporâneo não é, assim, nem apenas um falso objecto - uma história falsa, que se quisesse fazer passar por verdadeira - nem simplesmente um objecto substancial específico, mas antes uma fala predatória, que se apodera de qualquer objecto tomado no seu sentido, para o deformar ou naturalizar, tornando-o, assim, em conceito.

Assim descrito, um dos seus processos consistiria nessa espécie de suspensão do sentido. Ela reduz o sentido do signo do qual se apodera ao seu essencial e afasta-o da sua riqueza inicial, da sua temporalidade e, também, da sua contingência histórica. Constituindo-o numa espécie de instantâneo, empobrece-o no seu valor, divide o seu sentido a partir do seu interior, suspendendo nele a abertura da sua memória. Suspende-o, pára-o, pondo-o em forma e dando-lhe uma espécie de «natureza».

O sentido de qualquer signo pode assim tornar-se numa forma mítica quando se rigidifica e ganha o estatuto de uma ideia posta em forma, uma reserva disponível que é, então, impregnada de uma significação segunda, que o dilata ou expande, o altera e deforma. E porque não tem objecto próprio - qualquer objecto lhe serve, desde que reúna certas condições, sendo, uma delas, a de já existir como um signo já constituído - o mito deve retirá-lo a outras linguagens. Barthes dá-nos em «O Mito, Hoje» vários exemplos de mito. O mais eloquente dos quais - ou talvez o mais famoso - é o seguinte:

([...] eu estou numa barbearia, dão-me um número do Paris-Match. Na capa, um jovem negro, vestido com o uniforme francês faz a saudação militar, com os olhos erguidos, fixados certamente numa prega da bandeira tricolor. Esse é o sentido da imagem. Mas, quer eu seja ou não ingénuo, vejo bem o que ele me significa: que a França é um vasto Império, que todos os seus filhos, sem distinção de cor, servem fielmente sob a sua bandeira, e que não há melhor resposta aos detractores de um pretenso colonialismo do que o zelo deste negro em servir os seus pretensos opressores. Encontro-me pois [...] perante um sistema semiológico privilegiado: há um significante, formado já, ele, de um sistema prévio (um soldado negro faz a saudação militar francesa); há um significado (que é aqui uma mistura intencional de francesismo e de militarismo); e há, enfim, uma presença do significado através do significante (BARTHES, Roland, «O Mito, Hoje», Mitologias, trad. de Augusto Seabra, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 187)

2. Tem-se, portanto, um primeiro signo, já constituído em torno da articulação entre uma imagem e um sentido. A imagem (que vem acima, logo na abertura deste texto) possui, uma vez reconhecível (ela não coloca problemas de decifração, ao leitor corrente; a sua eventual dimensão pré-iconográfica é imediatamente preenchida, mesmo que o seu sentido seja pouco abundante: vê-se bem, enfim, que é «um jovem soldado, fardado com o uniforme militar francês, a fazer continência») imediatamente um sentido. Imagem e sentido formam então um signo (visual), constituído pela sua correlação.

Estar-se-ia aqui, ainda, neste ponto, ao nível de uma linguagem que se diria meramente «informativa». A imagem «contém» uma informação. Evidentemente, este primeiro sentido seria já aquele que ela teria, mesmo antes de figurar na capa do Paris-Match, ou independentemente de nela figurar. Mas deve já notar-se o seguinte: Esse seu primeiro sentido não é pleno. É isso, por um lado, que faz a sua inocência, o torna pouco polémico, o dá como «indiscutível». A foto atesta apenas, em princípio, uma presença. E só posso «discutir», ou pôr em dúvida, coisas que me sejam dadas como plenas, exclusivas, que não consintam nenhuma espécie de reserva: porque é essa plenitude que o torna contestável.

Realmente, não conheço as circunstâncias da foto, nem as da biografia do jovem soldado, não sei o que o conduziu até à situação em que ali o encontro; nem sei, sequer, se se trata, «verdadeiramente» de um soldado. Dir-se-ia, portanto, que ainda, neste ponto e a este nível, estou perante um primeiro sistema semiológico (um primeiro sistema de significação), relativamente inocente, incontestável. O que tenho à minha frente poderia, ainda neste ponto, condensar-se na seguinte fórmula, que é a fórmula do signo em geral:

E(R)C= uma Expressão (esta imagem) que é Relacionada com um Conteúdo («um jovem soldado negro faz a saudação militar francesa»).

Ou: Se R So=um Significante que é Relacionado com um Significado.

3. Barthes chamará a este primeiro sistema semiológico (a ideia de sistema é a de um conjunto estruturado) uma «linguagem-objecto». Ora, é dele que o mito se vai apoderar. É esse primeiro signo que ele vem desviar ou extraviar - «roubar», visto que o mito é, a seu ver, um significante roubado, como veremos - para o vir a colocar sob o nosso olhar, dando-lhe uma função interpelativa, e um sentido impositivo, de notificação e de «esclarecimento», impondo a sua significação como natural.

Em primeiro lugar, porque o Paris-Match lhe impõe a amplificação de um determinado circuito, que corresponde à sua tiragem. Não é, por exemplo, uma revista militar, ou um jornal de emigrantes africanos, residentes em França, mas uma revista de carácter nacional, embora definida por uma certa linha editorial. Esse primeiro signo /imagem=«um jovem soldado negro faz a saudação militar francesa»/ aparece aí, portanto, num contexto mais alargado do que aquele que lhe diria respeito, caso se tratasse de uma foto relativamente casual e pessoal.

Assim, o que este primeiro signo sofre (assim que entra na capa do Paris-Match) é uma espécie de torsão ou de deslocamento, que o coloca num nível de circulação mais amplo. Desprendendo-se da situação em que «poderia ter tido» a sua origem, ele entra numa espécie de deriva calculada. E esse desvio é intencional (ele obedece à intenção própria de uma linha editorial, de um aparato circunstancialmente marcado e preparado). A razão da sua utilização é ali deliberadamente induzida, na capa da revista, sob o facto de que ele é aí ostentado. O facto dessa sua ostentação, alargada e distribuída, ganha assim a função de uma interpelação e o sentido de uma notificação, a pretexto de mera informação.

4. Neste sentido, o que faz o Paris-Match? Muito simplesmente ele diz-nos: Vejam! Exemplarmente, «um jovem soldado negro, fardado com o uniforme francês, saúda a sua bandeira». Ao olhá-la somos colhidos por uma espécie de vertigem identificacional, na qual também se lê um: «vejam! aqui estou eu, um jovem soldado negro que faz a saudação militar francesa». Essa vertigem é inclusiva: «eu» e «ele» misturam-se nela, no momento em que temos a impressão de que «a imagem fala por si».

Neste sentido, o mito é já: a) um «roubo» de linguagem: vai-se buscar (ou «selecciona-se», de entre diversas fotos, a que mais convém a um certo sentido) um signo já existente para o fazer falar de uma certa maneira, para o fazer significar de um certo modo. Veremos qual, pois, será a essa maneira de o pôr a significar - de o fazer falar - que Barthes chamará mito. É portanto dela que precisamos de conhecer melhor os processos. Mas note-se, desde já que: b) uma vez que «a imperialidade francesa», que é aqui o conceito mítico, (e que constitui, em simultâneo, aquilo a que Roland Barthes chama «a pulsão do mito»), não possui nenhum signo que lhe seja específico e próprio, (embora disponha de muitos signos possíveis, retirados de outras linguagens) o que ela faz é agarrar-se a um signo que já exista. O conceito mítico é, pois, parasitário.

5. O que significa, em suma: a) que qualquer signo pode ser presa do mito; b) que o que o mito lhe dá é, não apenas uma função interpelativa e notificadora, mas também uma espécie de dilatação do sentido, que lhe alterará ou deformará o seu primeiro sentido. Vejamos agora como. Para isso, consideremos, em primeiro lugar, de que forma essa apreensão predadora, ou essa captura mítica do signo já existente, numa dada linguagem-objecto, têm lugar. Na sua descrição, Barthes chama-nos a atenção para um detalhe que é absolutamente fulcral, e que se prende com o modo de articulação entre duas linguagens distintas:

«Sabemos, agora, que o significante pode ser encarado no mito sob dois pontos de vista: como termo final do sistema linguístico (ou visual) ou como termo inicial do sistema mítico; importa, pois, utilizar aqui os dois nomes: no plano da língua, isto é, como termo final do primeiro sistema, chamarei ao significante sentido ([...]um negro faz a saudação militar francesa); no plano do mito, chamar-lhe-ei forma. Quanto ao significado, não há ambiguidade possível: manter-lhe-emos o nome de conceito. O terceiro termo é a correlação dos dois primeiros [...]. Chamarei ao terceiro termo do mito a significação: a palavra é aqui tanto mais justificada quanto o mito tem, efectivamente, uma dupla função: designa e notifica, faz compreender e impõe.» (BARTHES, Roland, op. cit., p. 188).

6. Em resumo: o sentido, na linguagem-objecto, transforma-se em forma, na meta-linguagem que o mito é. Que é uma «meta-linguagem»? É uma linguagem segunda, que fala de uma linguagem primeira, tomando-a por seu objecto. Uma meta-linguagem nunca existe por si mesma. Ela só se constitui, portanto, a partir da linguagem que ela mesma toma por objecto. Ela é, assim, uma das formas de uma linguagem reflexiva, voltada sobre si própria. Se recuarmos, agora, à nossa primeira fórmula (ERC /imagem=«jovem soldado negro que faz a saudação militar francesa»/) observamos o seguinte. Se o que Barthes nos propõe é que chamemos «ao termo final» do primeiro sistema semiológico «sentido», temos então que o «sentido» é: «jovem soldado negro que faz a saudação militar francesa».

Ora, neste ponto, não estamos ainda no mito. Porque é que é o «termo final» do primeiro sistema semiológico? Porque na comunicação quotidiana, nos servimos de significantes (neste caso de uma imagem) para chegar a dizer o que queremos que o nosso interlocutor perceba (entenda, «veja»), isto é, que queremos que ele chegue a perceber do que nós dizemos. O termo final é, portanto, o termo de chegada, aquele em que a correlação a que chamamos signo, «termina», do ponto de vista da compreensão do nosso enunciado.

Dizer o que queremos dizer significa fazer passar o sentido intencionado através de um significante que se lhe torna como que transparente. Ora, o que o leitor/inter-locutor/espectador «vê», do ponto de vista da comunicação, é o que ele entende, o que ele percebe, quer dizer, o «conteúdo» da imagem. Não a imagem por si mesma, mas a imagem funcionando enquanto imagem de «alguma coisa», a cuja partilha a comunicação chega. Assim, sob a imagem e à sua transparência, o que ele «vê» aparecer, ou emergir, é o seu sentido: «jovem soldado negro que faz a saudação militar francesa».

7. Ora, no momento em que o conceito mítico dele (do sentido do primeiro sistema) se apodera (convertendo-o em significante de um segundo sistema), o seu sentido inicial é provisoriamente suspenso. Não é eliminado, mas é suspenso. Converter o sentido em significante é esvaziá-lo da sua memória, embora não da sua existência. Um sentido suspenso é um sentido que continua a existir, embora deixe, provisoriamente de servir. E o momento pelo qual agora o sentido (convertido em significante) se oferece à sua dilatação-deformação é, portanto, o momento da sua contracção, da sua retirada, mas não da sua eliminação, entre a primeira linguagem (a linguagem que ele toma como objecto de captura) e a segunda linguagem (a sua meta-linguagem). É sobre esta espécie de contracção provisória que conviria lermos agora a seguinte passagem do texto de Barthes:

«É preciso fazer recuar muito a história [...] a biografia do negro se se quer libertar a imagem, dispô-la a receber o seu significado [mítico]. Mas o que é capital em tudo isto é que a forma não suprime o sentido, não fazendo mais que empobrecê-lo, afastá-lo, mantendo-o à sua disposição. Julga-se que o sentido vai morrer, mas é uma morte suspensa: o sentido perde o seu valor, mas conserva a vida, de que a forma do mito vai nutrir-se. O [anterior] sentido será para a [...nova] forma [significante em que ele então se torna] como que uma reserva instantânea de história, como que uma riqueza submissa, que é possível convocar ou afastar numa espécie de alternância rápida: importa sem cessar que [ess]a forma possa voltar a enraizar-se no sentido e nele alimentar-se naturalmente; [e] importa sobretudo que possa nele ocultar-se. É este incessante jogo do esconde-esconde entre o sentido e a forma que define o mito. A forma do mito não é um símbolo: o negro que saúda não é o símbolo do Império francês. Tem demasiada presença para isso, faz-se passar por uma imagem rica, vivida, espontânea, inocente, indiscutível. Mas ao mesmo tempo, esta presença é submetida, afastada, como se fosse tornada transparente, retraindo-se um pouco, fazendo-se cúmplice de um conceito que se lhe apresenta já armado, a imperialidade francesa: ela é emprestada.» (BARTHES, Roland, op. cit., p. 189).

8. Como diz Barthes, o sentido primeiro «afasta-se», entra na sua morte suspensa, ou «convoca-se», retorna obedientemente, em relação à mesma imagem, enquanto forma significante em que ele se converte. Ele torna-se submisso, secundário, sob a pressão exterior do conceito mítico. Digamos que esse primeiro sentido se torna um sentido simultaneamente presente e ausente. E que o conceito mítico faz dele, empobrecendo-o, suspendendo-o, submetendo-o, uma espécie de sentido ready-made, pronto a servir, agora, de forma destinada a receber, por infiltração, um outro sentido que se lhe vem associar ou acrescentar, enchendo-o massivamente, e a que Barthes chamava acima «conceito».

A diferença entre sentido e conceito é a diferença que vai do que é um significado reinterpretável ao que é um significado que, a dado momento, se revela terminal, cheio de «si mesmo». No momento em que é apropriado a outra significação, o sentido, que é termo final da linguagem-objecto, converte-se em forma da sua própria meta-linguagem, para se dar como «termo inicial» do sistema mítico, isto é, como seu significante. Nesse momento, o primeiro sentido (o da linguagem-objecto) é amputado em metade: tira-se-lhe a sua memória, torna-se-o amnésico (já não pergunto pela memória daquele ser-imagem, pela biografia do negro que vejo na foto), embora não lhe tire a existência (há negros no exército: aqui está um), para o impregnar de uma outra memória:

«a imperialidade francesa condena o negro a não ser mais do que um significante instrumental, o negro interpela-me em nome da imperialidade francesa. [...] À superfície da linguagem algo deixa de se mover. [...] Tudo se passa como se a imagem provocasse naturalmente o conceito, [...]. A língua presta-se ao mito [...] é raro que ela imponha, desde o início, um sentido pleno, não deformável. Isso deve-se à abstracção do seu conceito: o conceito de árvore é vago, presta-se a múltiplas contingências. Sem dúvida que a língua dispõe de todo um aparelho de apropriação (esta árvore, a árvore que, etc). Mas sobra sempre, à volta do sentido final, uma espessura virtual em que flutuam outros sentidos possíveis: pode dizer-se que a língua propõe ao mito um sentido perfurado. O mito pode facilmente insinuar-se, dilatar-se nele: é um roubo por colonização» (ibidem, p. 195).

É na medida em que toda a língua-objecto - poderíamos dizer: toda a denotação - se constitui como corpo social que, precisamente, ela se deve manter num certo nível de abstracção que lhe permita acolher situações diversas, contextos particulares, etc. Uma das formas de a definir é pensando-a no seu funcionamento enquanto sistema de «valores» e, portanto, de permutas comunicacionais (um signo é «uma forma de mediação» e um «valor», quer de uso, quer de «troca»: para certas mediações, certos signos valem mais que outros; um signo, de uma forma geral, é um valor de uso e de troca, e escolhê-lo-íamos também em função disso: do seu valor de adequação (troca pelo que designamos com ele, e de uso preferencial, em determinado contexto).

Nesse sentido, a língua não nos impõe nunca um sentido pleno. Pelo contrário, há no signo uma incompletude necessária, um vazio que o torna mobilizável, transladável, transpositivo, no processo de significação. E é na medida da sua relativa abstracção, como nos diz Barthes, que o sentido primeiro nunca é pleno. É antes um «sentido perfurado», poroso, infiltrável, que pode ser enchido e assim expandido (como também acontece no caso do mito, de forma perversa, como veremos). Ora, no momento em que esse sentido «não-pleno» se contrai, subtraído ou suspenso da sua memória, numa forma de existência disponível para outra significação, outra memória, ele é depreciado, reduzido, empobrecido e perde a sua anterior mobilidade, para passar agora acolher o conceito que se lhe vem juntar:

«Do mesmo modo no que respeita ao negro fazendo a saudação: como forma, o sentido é nele reduzido, isolado, empobrecido; como conceito da imperialidade francesa, ei-lo de novo ligado à totalidade do mundo; à História geral da França, às suas aventuras coloniais, às suas dificuldades presentes. A falar verdade, o que se investe no conceito é menos o real do que um certo conhecimento do real: passando do sentido à forma, a imagem perde algo do seu saber:mas é para melhor receber o do conceito. De facto, o saber contido no conceito mítico é um saber confuso, cheio de associações moles, ilimitadas. Importa insistir bastante no carácter aberto do conceito: não se trata, de forma nenhuma, de uma essência abstracta, purificada; é uma condensação informe, instável, nebulosa, cuja unidade e coerência estão ligadas sobretudo à sua função». (BARTHES, Roland, op. cit., pp. 189-190)

9. O que é que permite esta permutação, pela qual o sentido não-pleno, num sistema semiológico primeiro, passa ao estatuto de forma de um conceito aberto e difuso, num sistema semiológico segundo? É aquilo que poderíamos designar como a sua adequação, como a sua exemplaridade. Essa passagem dá-se por «analogia»: se temos nesta imagem um «jovem soldado negro que faz a saudação militar francesa» - e sabemos que a França possui, como qualquer outro país, um exército - é o facto de o jovem soldado ser «negro» e envergar a farda do exército francês que nele propicia a sua colagem ao conceito mítico de uma «imperialidade francesa» (que sustentou o projecto colonial e que agora o vem impregnar, para se branquear da sua responsabilidade histórica).

A imperialidade francesa aparece então ali como não discriminatória e acolhedora. O mito da «imperialidade francesa» diz, portanto, o seguinte: que a grandeza da França está no facto de recrutar e responsabilizar, assim como acolher e proteger todos os cidadãos sem excepção, sem diferenças de raça ou de estatuto. No mito, à transparência desse primeiro signo, o da linguagem-objecto de que ele se apodera, o seu «conceito» emerge como seu significado. O conceito mítico parasita, assim, um signo primeiro e, através do primeiro sistema semiológico, no sentido que lhe era próprio, emerge agora como se por ele caucionado ou justificado. É em suma através de «esta imagem», a de «este jovem soldado negro», que «a imperialidade francesa» me interpela, na capa do Paris-Match, convertendo-o numa espécie de ventríloco.

«Neste sentido, pode dizer-se que o carácter fundamental do conceito mítico é o de ser adequado: [...] a imperialidade francesa deve tocar tal grupo de leitores e não outro: o conceito corresponde estreitamente a uma função, define-se como uma tendência. [...] Do ponto de vista ético, o que há de embaraçante no mito é precisamente o facto de que a sua forma é motivada. Porque se há uma «saúde» da linguagem, é a arbitrariedade do signo que a torna possível. O que há de repugnante no mito é o recurso a uma falsa natureza, é o luxo das formas significativas, [...].» (BARTHES, Roland, op. cit., p. 190).

O processo do mito é, neste caso, como podemos ver, o de subsumir um termo marcado (o jovem soldado que é negro) e dá-lo como «ex-denominado», se pensarmos que denominar é particularizar e, consequentemente, «destacar», «singularizar» e «excluir». O que se vê ali, não é já tanto «o negro» enquanto excluído, mas «o soldado» que o inclui, sob o gesto amplo e difuso, nebuloso da inclusão própria da imperialidade francesa. Mas o facto de ele - o conceito mítico: a imperialidade francesa - ter necessidade de se dar como «natural» precisamente a partir daquele a quem ela submete, e subsume como termo marcado, e de proceder (como é sabido, visto que acontece um pouco por toda a parte) - sendo justamente em nome da imperialidade francesa que «o negro» nos interpela, na saudação estampada capa da Paris-Match - como se a sua significação dele emanasse (desse jovem a quem ela submete e simultaneamente exclui), é precisamente o que torna o mito detestável.

10. Em outros termos, o que é odioso no mito é a sua caução «natural», o seu álibi justificativo, o seu branqueamento histórico, quando se trata de defender a imperialidade francesa (ou de qualquer outra nacionalidade), através do pequeno soldado. A cavilha de segurança do mito é, pois, a da analogia: é ela que lhe permite fazer passar por «natural» um conceito que é, como todos os conceitos, histórico: o da «imperialidade francesa». O que diz, então, a meta-linguagem que o mito é, da linguagem-objecto de que ele se apropria? Isto: «não há melhor resposta aos detractores de um pretenso colonialismo do que o zelo deste negro em servir os seus pretensos opressores». A quem o diz? Aos consumidores de mitos, quer dizer, aos seus consumidores.

O que distingue o mito de outros signos - não-míticos - é a sua necessidade de evacuar o real e o tempo, naturalizando o seu conceito. Fazendo-o a partir da relação analógica que se estabelece entre o «conceito» mítico que impregna o «termo final» (o sentido) do signo de que ele se apodera, e o signo dessa linguagem-objecto que se constitui como sua presa, o mito faz passar o seu conceito como «natural» pela língua-objecto, património de todos, ou pela mais anódina das imagens, a deste «jovem soldado negro»: uma imagem que aparece, exemplar-mente, como «uma imagem qualquer». A imagem é, então, uma simples instância, de entre muitas possíveis, da significação mítica. O conceito mítico emerge, portanto, através do signo visual que ele vem colonizar (ou através do signo linguístico, em outros exemplos aqui não abordados). A sua operação é portanto a evacuação da sua contingência histórica e, através disso, a imposição da sua naturalidade ou eternidade, a simulação de um estatuto de inocência:

«A função do mito é a de evacuar o real: ele é literalmente um escorrer incessante, uma hemorragia, ou, se se preferir, uma evaporação, em resumo, uma ausência sensível. É possível completar, agora, a definição semiológica do mito na sociedade burguesa: o mito é uma fala despolitizida. Há que compreender, naturalmente, política no sentido profundo, como um conjunto de relações humanas na sua estrutura real, social, no seu poder de fabricação do mundo; importa, sobretudo, dar um valor activo ao prefixo des: ele representa aqui um movimento operatório, actualiza sem cessar uma defecção. No caso do soldado-negro, por exemplo, o que é evacuado não é, certamente, a imperialidade francesa (bem pelo contrário, é ela que há que tornar presente), mas a qualidade contingente, histórica, numa palavra: fabricada, do colonialismo (BARTHES, Roland, op. cit., p. 210)

Essa evacuação do real e da história dá o colonialismo como uma coisa natural, não histórica ou não produzida, presente e benéfica, e resulta da infiltração e do enchimento, do embutimento ou da soldagem, da impregnação ou da infiltração do conceito mítico no sentido do signo primeiro que a imagem começou por ser: «é que o mito é uma fala roubada e restituída. Simplesmente, a fala que se constitui não é já a mesma que se tinha subtraído: ao entregá-la, ela não foi reposta exactamente no seu lugar. É este breve furto, este momento furtivo de uma contrafacção, que constitui o aspecto transido da fala mítica». (BARTHES, Roland, op. cit., p. 195)

«Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: provoca a abolição da complexidade dos actos humanos, dá-lhes a simplicidade das essências, suprime toda a dialéctica, toda a elevação para além do imediatamente visível, organiza um mundo sem contradições, porque sem profundidade, um mundo exibido na sua evidência, funda uma claridade feliz: as coisas têm a aparência de significar por si sós (BARTHES, Roland, op. cit., p. 210).

Em resumo, qual é a fórmula final, já não do signo, mas a do mito? É a de um signo que é, não apenas deslocado do seu primeiro sentido, aquele que encontramos ao nível da denotação, numa linguagem-objecto, mas também fechado, ao nível de uma conotação que o completa, o enche do que ele pretende que pensemos tratar-se de «si mesmo». Se a quiséssemos construir nós mesmos, retomando a primeira fórmula, dada acima, poderíamos ter:

MITO= ((ERC) R analógica C)

Que se poderia ler assim: no mito, um primeiro signo, tomado de uma linguagem-objecto, ao nível da denotação, converte-se em significante conotador de um conceito, segundo uma relação analógica de adequação, ao nível da sua meta-linguagem. O articulador do mito, entre a denotação e a conotação é, portanto, analógico. Nessa passagem, o signo vai da denotação à conotação, para regressar, finalmente, a uma espécie de inocência denotativa, que já não é senão simulada, contaminada pelo furtivo instante de uma espécie de impregnação, de uma infiltração: de uma dilatação do primeiro sentido, que o deforma e altera. É neste mesmo sentido que, em outros ensaios, acerca da foto de imprensa, Roland Barthes lê os processos de conotação que nela passam, a coberto do poder excepcional de denotação que é característico da fotografia. Outro caso muito evidente, encontrar-se-ia em O Óbvio e o Obtuso, em que a foto é tratada como signo contínuo (speculum e spectrum, quer dizer, reflexo ou «emanação» química - ou electrónica, no caso da digital - de um referente) e analisada como cobertura denotativa de um processo conotativo (estabelecido pela montagem, a pose, etc.) que é, evidentemente, ideologicamente investido.