domingo, 21 de dezembro de 2008

Recapitulações - os quadros XII: o «pós-estruturalismo» e o enquadramento do enquadramento




















Robert Smithson, A Nonsite, 1968.

1. A crítica de arte Rosalind Krauss oferece-nos, numa das secções de Art Since 1900: modernism, antimodernism and postmodernism, uma súmula introdutoriamente descritiva da passagem do «estruturalismo» ao «pós-estruturalismo»: aí tudo começa por se desencadear a partir da recusa da autonomia dos sistemas, cujas «regras e operações começam e terminam dentro das suas fronteiras», segundo o estruturalismo. Eis a razão pela qual nos parece que o pós-struturalismo viria a ter um papel tão decisivo, nos estudos pós-coloniais e nos estudos de género, onde a questão da fronteira e do Outro permanece decisiva.


Ainda no interior do estruturalismo linguístico (mas também, de outras formas, no estruturalismo antropológico, etnológico, etc.; por exemplo, com a descoberta de Lévi-Strauss, de que o discurso que estuda os mitos seria, ele próprio, «mitológico» e «mitomorfo»), essa primeira fractura abre-se - vemo-lo hoje, retrospectivamente - com o tratamento dos shifters e dos performativos, que põe a descoberto a dimensão do discurso e dissociam a linguística da sua atenção exclusiva às estruturas imanentes ao enunciado linguístico. E ela vem, por exemplo, de Émile Benveniste e do seu tratamento dos shifters (veja-se Problemas de Linguística Geral I e II: em particular, por exemplo, «O aparelho formal da enunciação» e «Esta linguagem que faz a história») ou de Oswald Ducrot, a propósito das pressuposições tal como, mais tarde virá, mais amplamente, do tratamento dos performativos, por Jacques Derrida.


2. A aplicação feita por Michel Foucault do termo «discurso», (transposto do seu uso em Benveniste onde funcionava por oposição a «história»), opera aí para sublinhar que se trata sempre, na amplitude condicionada do movimento discursivo, de pensar as relações de força e de poder nele em jogo. Não haveria, portanto, nem história inteiramente dissociável do «discurso», nem historiografia praticável a partir de qualquer noção de «ciência» tida como anterior e «exterior à linguagem», como também Roland Barthes dirá (cf. O Rumor da Língua, Mitologias, etc.; no primeiro, em especial o texto «Da Ciência à Literatura»), nem, portanto, metalinguagem neutra. Essa percepção de que se estabelecem cumplicidades entre o discurso e o poder, bem como entre o saber e as forças que o atravessam e condicionam, ou abrem à sua própria questionação é, depois, continuada por Jacques Derrida. Para este último, duas questões maiores se porão, ainda no interior do estruturalismo: a) o preceito da autonomia dos sistemas de signos permanece estranho, em face da aparente arbitrariedade do significante em relação ao significado; b) ele resulta ainda mais estranho face à diferenciação linguística entre termo marcado e termo não marcado. Na verdade, ambos decorrem de um pressuposto metafísico, uma «oposição» dissimétrica, em que os desníveis do poder binariamente se inscrevem, tanto na língua como no discurso, em torno de uma diferença pressuposta como plena.


Richard Long, Um círculo no Alasca, 1975.

3. Nesse sentido, o discurso supõe já, mesmo enquanto tomado como mera «actualização» da língua, o redobramento de relações de poder que nela figuram, sedimentadas e consagradas paradigmaticamente, sob a forma de relações binárias. Alguns exemplos, muito simples, ajudariam a uma compreensão rápida, embora muito geral e, ao mesmo tempo, muito sumária e apenas introdutória. Por exemplo no «par» homem/mulher, o termo marcado é «mulher», visto que homem designa, simultaneamente, a espécie e o género. Ora, nem a espécie se poderia manter ou sobreviver sem a mulher, nem o masculino se definiria por «si mesmo» enquanto tal.

O que significa que «a mulher» produzida pelo discurso patriarcal (que também passa por ela, uma vez tido por dominante) faz do homem o que ele supõe (imaginariamente) ser. Se houvesse apenas homens, não seria já de «homens» que se comporia a espécie (talvez de hermafroditas). Da mesma forma se poderia argumentar, a propósito da relação de «arbitrariedade» do significante em relação ao significado. Se é verdade que o conjunto de sons ou de letras que compõem uma dada palavra são aparentemente indiferentes ao seu sentido - cão, dog, chien são palavras bastante diferentes e, todavia designam aparentemente uma mesma coisa, ou uma mesma representação; se é verdade que esse sentido, aparentemente, não se altera com a variação do significante, o qual lhe seria assim indiferente na comunicação quotidiana, também é verdade que é nesse fundo de aparente «indiferença» significante e a partir dele que se inscreve toda a distinção e, portanto, a constituição ou a produção do sentido. Dir-se-ia, então, por esse motivo, que o significado estaria aí simultaneamente dentro e fora de «si mesmo».


4. O que, para além de mostrar que o significante não é indiferente, nem puramente arbitrário, em relação ao significado a que ele se torna como que «transparente» na interacção verbal mais comum, mostrará também que, embora ele aparentemente se apague à nossa percepção, na comunicação quotidiana, interessada sobretudo no conteúdo da mensagem, é precisamente da sua variação que se constituirá o sentido. Essa variação significante, constitutiva do sentido agirá, assim, a partir de lugar pressuposto pela linguística como exterior ao significado.

Uma vez mais: se o que nos importa habitualmente é o conteúdo da mensagem é, todavia, a partir do seu veículo aparentemente secundário e trasparente, aparentemente neutro e meramente instrumental (o significante) que ele se constituirá. Por exemplo, a palavra différance (com um «a», para significar, simultaneamente, diferendo, conflito e diferimento, atraso, adiamento), é teoricamente formada como termo marcado cuja escuta está já inscrita na escuta dos sentidos da palavra différence termo não-marcado de uso corrente. Nesse caso, (como nos casos de «entre» e «antre» em francês e muitos outros) só o significante (escrito) permite, em certas circunstâncias, distinguir entre as ideias ou os sentidos de uma «diferença plena», aquela em que se está «naturalmente» habituado a pensar, e uma outra diferença na qual o «limite natural» se rasura, sem todavia se apagar, sublinhando nela a presença do seu artifício e da sua historicidade, o seu carácter culturalmente produzido, ao nível do sentido.

O que différance torna patente é uma forma que apenas no registo (escrito) do significante pode ser distinguida do significante habitual différence, o qual pressupõe, no seu sentido, um enquadramento discursiva e socio-culturalmente operado. Assim, dir-se-ia que, se tomarmos a diferença entre homem e mulher do lado habitual da différence, parecer-nos-á que eles são termos meramente complementares e harmonicamente opostos de uma mesma relação. Se todavia os tomarmos a partir da noção de différance, perceberemos que, no entanto, essa diferença não é imediata e absolutamente constituível como natural, que ela designa um conflito e um diferimento (um atraso, um adiamento) de qualquer fronteira simples e definitiva entre ambos.


O que a palavra différance, que constitui um neologismo derridiano, designa é um duplo sentido, necessário à ponderação das implicações decorrentes da relação entre homem e mulher: o de um conflito e, ao mesmo tempo, o de um diferimento da fronteira entre ambos. Diferimento porque nenhum dos termos da relação homem / mulher é definível senão a partir da sua oposição ao outro. O que significa que «o próprio» (o «homem», por exemplo) se torna aí, apenas definível a partir do que lhe é, digamos assim, mais «propriamente impróprio», segundo a cultura em que essa diferença de género se constrói.

Nesse caso, definir «homem» supõe operar a partir do que a oposição contida na língua e no discurso dá como seu exterior. Mas se apenas a partir do seu «exterior» se pode defini-lo na sua diferença, isso significa que essa exterioridade lhe é constitutiva e que a definição da sua diferença se vê, assim, adiada pela necessidade da sua relação com o que lhe é supostamente «oposto». Quer isto dizer que a definição «positiva» e auto-télica ou auto-suficiente, autónoma (como quereria o estruturalismo) ou auto-produzida do ser homem «em si mesmo» se vê, então, irremediavelmente comprometida por aquilo que de início não pareceria ser senão o elemento mais particular, menos geral, excluído por menos «relevante», tão excluído que quase transparente (como acontece quando designamos a espécie humana pela palavra «homem») da relação que o dito «par» de elementos «opostos» supõe. Ou, para usarmos uma expressão que será decisiva, na ponderação derridiana crítica do estruturalismo, se é verdade que não é possível pensar uma estrutura que não seja dotada de um centro, também é verdade que esse seu centro tem, todavia, origem num outro ponto, exterior à estrutura que ele regula. O «centro» do ser do homem está, por um lado, em si próprio, mas ele está, enquanto tal, também fora dele (na mulher em relação ao qual ele se define, por exemplo).

O que acontece com as palavras «homem» e «mulher» acontece também com inúmeros outros «pares de palavras/conceitos» como «natureza» e «cultura», «ocidental» e «oriental», «nacional» («o que é nacional é que é bom», como dizia o anúncio) e «estrangeiro», ou «importado», etc. Não se pode definir nenhum dos termos dessas relações a não ser a partir do que, sendo-lhe diferente, implicará o diferimento de qualquer sua descrição unitária definitiva obtida numa definição puramente a-histórica. Será essa a razão pela qual Jacques Derrida se servirá das palavras «marca» e «re-marca» (que não consiste numa mera repetição da «marca», mas antes num seu deslocamento, uma vez que a «remarca» marca, agora, o que antes era o «não-marcado», deslocando-o da sua posição exclusividade ou do estatuto privilegiado decorrente da sua posição de fundo e, para retomarmos o termo de Brecht, o põe no «podium» da nossa atenção, pelo facto de que a sua condição de «não-marcado» implica já, a seu ver, de forma inconsciente, i. e. sem que nisso atentemos, aquilo que lhe é, só aparentemente, exterior: o termo marcado), para pensar a tarefa da desconstrução.


Aquilo que acontece com os significados, no plano da relação de sentido implicada entre termo não-marcado (por exemplos os termos homem, cultura, etc. são «não-marcados») e termo marcado, acontece também com os significantes, no plano da relação de suposta arbitrariedade, que os secundarizaria em relação aos significados que eles veiculam. Por exemplo, (para retomar o post Digressões I: o corpo-a-corpo e a instalação, aqui no blogue) as palavras mention e mansion, estão em jogo na escuta do termo «dit-mension», forjado por Lacan, ele mesmo em ressonância do termo comum dimension, tal como o termo différance, em relação ao termo comum différence. O que Lacan faz, nesse contexto, é induzir, por exemplo, à ideia de que todo o espaço corrente e discursivamente dado como «exterior» ao sujeito supõe já a projecção da experiência de um corpo vivido ou concebido como espaço circunscrito e habitado e, nele, pela sua necessária e inevitável constituição segundo as restrições impostas pela linguagem e o «discurso», através da sua educação e da sua sociabilização, a necessidade irredutível da menção, da repetição, ou da impossibilidade de uma origem absoluta, simplesmente inaugural, da «alma» ou da «linguagem», depois da resolução do complexo de édipo.

Operando com o significante e com o jogo (que muitas vezes a poesia faz questão de trazer à nossa atenção) entre formas distintas de significante, ele produz ou destaca uma relação de ressonância que, na sua teoria, nos dá conta de um conceito a que ela chega, e que diferiria, por exemplo, dos sentidos e significantes anteriores, disponíveis na língua francesa, através do seu contacto com a obra de Freud. Mesmo relendo Freud, Lacan desenvolve o que nele estava latente, quanto ao carácter linguístico da subjectividade. Ora, nesse sentido, o significante não é decerto «indiferente» ao significado, nem, portanto, arbitrário, visto que a ressonância entre dimension, dit-mension, mansion e mention não se encontra em português, em palavras como mansão, menção e dimensão a não ser parcialmente. E esse jogo constitui uma dimensão do que, para Jacques Derrida será o retraçar diferencial próprio da «escrita», que não se reduz ao verbal nem ao literalmente ortográfico, mas afecta também as formas visuais-figurativas ou visuais-abstractas, em geral (na pintura, no sonho, etc.).


Em resumo, poder-se-ia dizer, deste último ponto de vista: há uma dimensão anagramática da escrita (e da linguagem em geral e, por conseguinte, de todo o significante: verbal, visual-figurativo ou visual abstracto, etc.) que supõe, no plano da forma, a necessidade da suspensão de toda a espécie de limite uno e nu (entre o significado e o significante, por exemplo) e da sua reinscrição deslocadora. Sempre que o significante ganha visibilidade, na dimensão do sintagma, que é aquela que se abre ao excesso, o sentido desloca-se, interroga-se, suspende-se (embora se não «elimine») num processo de «significância». O processo de significância é um processo de reenvio, em que o sentido nos chega, sempre e necessariamente, sob a forma de um outro significante.

O significado re-constitui-se aí a partir de um processo e de um jogo de significantes, isto é, a partir do que se começa por ter por seu mero exterior. Dito ainda de outra forma, é o «exterior» da linguagem (o que nela se faz desaparecer, como «significante» inaudível, na comunicação quotidiana) que a constitui no seu con-teúdo, ou no seu interior. Em resumo, toda a exterioridade se nos revela, assim, constitutiva daquilo que dela se diferencia. O que supõe a necessidade do des-mentido da «naturalidade» simples com que encaramos as coisas, ou da diferença plena em que elas parecem distinguir-se e, portanto, a necessidade de des-entronizar qualquer limite tido por simplesmente «natural» ou absolutamente imune a toda a espécie de relação: dentro e fora da língua e da linguagem.


5. A aposta da desconstrução será, então, na sua apropriação crítica dos legados de toda a cultura ocidental, a de marcar o termo não-marcado, mostrando o que escapa à nossa percepção: que, num mesmo discurso - o nosso, por exemplo - sem o termo marcado, não há qualquer termo não-marcado. Trata-se de mostrar que essa exterioridade - do termo marcado em relação ao termo não-marcado, tal como do significante em relação ao significado - lhes é constitutiva (a ambos, ao significado, bem como ao termo não-marcado). Essa operação de re-marcação pertence, portanto, ao movimento da desconstrução, sempre efectuado como reversão a partir do «interior» da «estrutura» do «sistema» da língua (suposto autónomo pelo «estruturalismo») ou do «discurso» (pois não há língua que dispense o seu «uso», nem uso que dispense a citação ou a «menção»), e mostra, por sua vez, a sua vinculação em relação a outros sistemas. É esse procedimento que é seguido, também, em La vérité em peinture, quando se trata de repensar os dados da análise de Kant, na sua Crítica da Faculdade de Julgar:

«Kant argumenta que a lógica da obra (ergon) lhe é interna (ou própria), de tal modo que isso que permanece fora dela (parergon) é apenas um ornamento externo e, como a moldura de um quadro, ou as colunas num templo, mera superfluidade ou ou decoração. O argumento de Derrida, contudo, é o de que a análise de Kant do juízo estético enquanto auto-fundado não é ele próprio auto-fundado mas importa um enquadramento do anterior ensaio do escritor «A Crítica da Razão Pura», um enquadramento cognitivo sobre o qual constrói a sua lógica transcendental. Assim, o enquadramento não é extrínseco à obra mas vem antes do exterior para constituir o seu interior como interior. Esta é a função parergonal do enquadramento.» (KRAUSS, Rosalind, «Post-Structuralism and Deconstruction», in FOSTER, Hal; KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yves-Alain; BUCHLOH, Benjamin H., Art Since 1900: modernism, antimodernism and postmodernism, London, Thames & Hudson, 2004, p. 45).

6. Em resumo, se a obra de arte obedece, segundo Kant, a uma lógica «transcendental» que lhe seria «interna» (isto é, uma lógica interna que implicaria, todavia, a impossibilidade da sua própria e simples redução ao ente que a «abriga»; a impossibilidade, pois, da sua redução à sua «interioridade» à obra dada enquanto ente que ela viria habitar; ou mesmo a impossibilidade da redução à «entidade» de uma qualquer sua formulação plenamente determinada, necessária e suficiente) essa sua determinação (topológica) é, todavia, cognitiva, e portanto simultanea-mente externa. A lógica «interna» de uma obra de arte só poderia ser estabelecida por um quadramento que, vindo do «exterior», a determinasse enquanto tal, isto é, como «dotada» desse seu «interior». Ou, para recuperarmos o sentido do que dizíamos, a propósito da «remarca» derridiana, não há lógica «interna» sem que seja preciso pensá-la ou dizê-la do «exterior». Nesse sentido, todo o termo não-marcado (aqui, «a lógica transcendental» «interna» à «obra», o seu «espírito», o seu «génio», a sua «alma», etc) é constituído pelo termo marcado (o seu quadro ou quadramento, o seu limite, a sua defi-nição, etc.). Ou ainda, toda a exterioridade (marcada) é, por sua vez, condição de possibilidade do «interior» (não-marcado).

Ora, como se vê, tudo isto se passaria ainda no, e a partir do «exterior do interior» do mesmo discurso (da mesma «obra»), em redor de uma mesma oposição metafísica (ergon/parergon; significado/significante, homem/mulher, cultura/natureza, transcendental/cognitivo, huma-no/animal, sujeito/objecto, etc.) a qual, no entanto, o sobredetermina a partir de fora, do seu exterior (visto que é uma oposição que opera igualmente noutras concepções, que não apenas a da obra de arte, como se pode compreender pelo tipo de oposições acima alinhadas) e/ou o discurso de Kant herda de outros discursos. Uma consequência deste processo ganharia, por exemplo, expressão no Non-site de Robert Smithson, com que abrimos este post (ver a primeira imagem) e que, tal como as de Daniel Buren ou Richard Long e Louise Lawler, essa (espectral e) irredutível exterioridade do interior. Nas imagens que se seguem, de Daniel Buren, vêem-se as colunas postas no «exterior» dos edifícios nos quais, como diria Kant, elas não passariam de ornamentos (parergon). E «Pollock e Terrina» de Louise Lawler sublinha, pela sua aproximação, em 1984, a sua vinculação crítica do expressionismo abstracto a uma domesticidade decorativa que põe em destaque o que nele haveria de inaceitável. Fá-lo a partir do exterior do quadro de Pollock.


Daniel Buren, (Les deux plateux) à esquerda; Louise Lawler à direita (Pollock and Tureen, 1984).



II - 1. Uma formulação-chave dessa ruptura subversora «pós»-estruturalista, e dessa estratégia de remarcação desconstrutiva, que descentra «o homem» e «o seu significado», cuja importância no campo dos estudos de género e dos estudos culturais tem sido inegável, visto que ela suspende as oposições tradicionais em que a cultura estereotipiza e consagra diferenças de poder e de posição social, quer para os géneros, quer para as culturas e os países, quer para as sociedades observadas por dentro de si mesmas, poderia encontrar-se no ensaio de Jacques Derrida «A Estrutura, o Signo e o Jogo no Discurso das Ciências Humanas»:

«Sem dúvida que o centro de uma estrutura, dado que orienta e organiza a coerência do sistema, permite o jogo dos elementos no interior de uma forma total. E ainda hoje uma estrutura privada de todo o centro representa o impensável. No entanto, o centro fecha também o jogo que ele abre e torna possível. Enquanto centro, é o ponto em que a susbtituição dos conteúdos, dos elementos, dos termos já não é possível. [...] Eis porque, para um pensamento clássico de estrutura, o centro pode ser considerado, paradoxalmente, dentro da estrutura e fora da estrutura. Está no centro da totalidade e, no entanto, uma vez que o centro não lhe pertence, a totalidade tem o seu centro noutro ponto. O centro não é o centro». (DERRIDA, Jacques, «A Estrutura, o Signo e o Jogo no Discurso das Ciências Humanas», COELHO, Eduardo Prado (org.), Estruturalismo: antologia de textos teóricos, trad. de A. Ramos Rosa, Lisboa, Portugália, [1967], p. 102).


À esquerda: Barbara Kruger, We won't play nature to your culture, 1983; à direita: David Hammons, Spade with chains,1973.


















O interior (o conteúdo, o significado) da obra - aquilo que está no seu «centro», ou aquilo em que ela «fundamentalmente» se distinguiria - tem ao mesmo tempo origem noutro ponto, como nos disserá já, a propósito de Kant, Jacques Derrida. Por exemplo, ele teria origem, no caso de Non-site, de Robert Smithson (primeira imagem), naquilo que parece constituir-se apenas como sua face «significante»: assim, a) trata-se de uma «imagem» que parece reflectir, na parede como que em espelho, as pedras do chão, contidas pelo seu enquadramento (segmental e trapezoidal), divergente do seu reflexo, vistas do ponto de vista do espectador; mas poderia também reparar-se que, b) se na parede o que está é uma imagem, não apenas das pedras, que já lá não estariam, mas da rocha de que poderiam ter sido tiradas, então é já «da imagem» que, vistas do interior da galeria, estas últimas obtêm a sua origem. Assim, o seu centro está dentro e fora da obra, dentro e fora da galeria, visto que ele lhe é sempre conferido suplementarmente pelo seu parergon. Diríamos, então, que neste «framing of the frame», neste enquadramento artístico do enquadramento socio-cultural que a galeria é, há uma espécie de desmontagem que nos torna sensíveis os seus preconceitos e as suas paredes.

Assim, a terra ou as pedras, os pedaços de rocha, por um lado, porque são «a natureza»: a) apenas nos seriam visíveis enquanto tal a partir das «galerias» do discurso que nos forma e informa. O seu terem aí sido colocadas indica-nos, antes de mais, a possibilidade de pensarmos que é de lá que as «vemos», enquanto sujeitos, informados pelo «discurso» de que a galeria é um dos lugares. Mas, por outro lado, b) enquanto exterior (fotografado e mapeado, isto é, emoldurado ou enquadrado, bem como encaixado) trazido para dentro da galeria, elas sublinham o facto de que a galeria é o espaço (ou o operador) de um enquadramento do que, ainda e mesmo a partir dela, bem se vê que nela permanece deslocado do seu centro (porque as pedras não lhe pertencem «naturalmente»). Nesse caso: c) o que na galeria é «centro» da galeria (a obra de arte, visto que não há galerias sem obras de arte) tem, todavia, o seu centro noutro ponto. E, no entanto, o que nos é possível intuir é ainda: d) aquilo que a «galeria» faz (das «obras de arte» e da «natureza»), obtendo-se a «si mesma» a partir de um centro deslocado do que originaria-mente não lhe pertence (definindo nelas ou a partir delas o seu próprio «centro», o seu conteúdo e o seu significado de «galeria»). Assim, entre o espaço da galeria e o da obra nela contida (tal como Kant no-la dá) se reconheceria uma semelhança, uma cumplicidade. Assim, também se poderia dizer que a galeria tem o seu «centro» nas obras que ela «contém» e, ao mesmo tempo, o centro que a define «como tal» (como galeria) está fora dela (na natureza e na arte que ela, afinal, também «produz», na medida em que a «expõe»). Um processo idêntico é aplicável às restantes imagens. Nota Rosalind Krauss, a propósito de Smithson:

«A questão dos enquadramentos esteve também no coração do pensamento de Robert Smithson sobre a relação entre paisagem, ou lugar natural, e o seu contentor estético, que o artista etiquetou de non-site. Smithson importou material mineral [...] de localizações específicas para o espaço da galeria e pondo-o em caixões geometricamente modelados, cada um visualmente ligado, por meio da sua forma, com o segmento de um mapa de parede a indicar a origem dos specimens. O acto óbvio de estetizar a natureza, e transformar o real em representação de si próprio através das operações de encaixamento geométrico para construir a matéria prima das rochas num signo - trapezoide - que vem a pôr-se no lugar [comes to stand for] do ponto de extracção das rochas, e assim, [no lugar] das rochas elas mesmas, é o que Smithson consigna ao sistema dos espaços do mundo da arte: as suas galerias, os seus museus, as suas revistas.» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 43)


E acrescenta:


«As estruturas em zigurate dos caixões e dos mapas de Smithson poderiam implicar que era apenas um jogo irónico e formal o que estava em questão neste aspecto da sua arte. Mas os caixões graduados também se dirigiam a uma espécie de história natural que podia ser lida na paisagem, os sucessivos estádios de extração do minério a partir da sua generosidade, até ao seu progressivo despojamento [esterilidade, barreness], até uma exaustão final. Era esta história natural que não podia ser representada dentro dos enquadramentos do discurso do mundo da arte, concertado como ele está para contar uma história bastante diferente - uma história da forma, da beleza, da auto-referência. Portanto, parte da estratégia de Smithson era inscrever ocultamente outro modo de representação, estranho ao enquadramento da galeria, um modo que ele tomou, de facto, do museu de história natural, onde rochas e caixões e mapas não eram excêntricos, abstracções esteticizadas, mas a base de um diferente sistema de conhecimento: um modo de mapear e conter ideias acerca do «real»». (ibidem)

O que significa: 1. que o centro - «o coração do pensamento» de Robert Smithson, como ela diz - entra e sai da galeria, está simultaneamente dentro (porque lhe traz um outro pensamento/sistema de conhecimento) e fora dela (porque mostra, a partir do seu interior, o que ela supõe do esteticismo estéril da auto-referência, bem como da urgente necessidade de o deslocar). Sai dela mostrando que ela se constitui a partir de outra coisa. Entra nela, para aí introduzir, subrepticiamente, «um outro modo de representação», um «diferente sistema de conhecimento».

2. Que a introdução de outro sistema de conhecimento no espaço de um conhecimento pré-existente (aquele que opera os enquadramentos próprios da galeria) revela ao mesmo tempo, a partir do que seria um seu exterior, que o carácter não-marcado desse conhecimento pré-existente é, também, susceptível de ser marcado. Operando na oposição entre estético, como auto-referencial, e natural, como hetero-referencial, ela põe a descoberto o carácter não marcado do estético que a cultura elege, a partir do seu exterior. Extraindo da história o presente pleno da representação «estética», circular e auto-referencialmente contida, e dos signos que invadem o domínio do «natural», ele significa, também, a partir do que lhe seria exterior, a historicidade que há nele(s). E embora nos pareça que o enquadramento operado pela galeria é um processo consonante com o processo da história natural, no sentido em que o homem faz parte dela (o que acrescentaria, talvez, uma dobra adicional à leitura do Non-site de Smithson como ironia) também é verdade que a história natural pode ser pensada do seu outro lado, a partir do que, na oposição humano / natural, funcionaria como exterior do humano. Nesse caso, seria a própria condição do homem a ser aqui dita pela exaustão ou pelo despojamento a que ele mesmo submete «a natureza» que tantas vezes invoca, na afirmação de uma différence conformada com as evidências de um pensamento corrente, dominado pela sua «naturalidade».

Poderíamos ler assim a fotografia de Barbara Kruger e a pá («Spade») de David Hammons. As folhas sobre os olhos indicariam então o que há de «vegetal» na visão implícita no facto de pensar-se, cegamente, que uma dada cultura é um dado «natural». O que significaria que, sendo ela também formada socio-culturalmente, a «visão» (e não a vista, que a figura não chega a mostrar) seria, todavia, aí construída a partir do que é culturalmente tido como seu exterior: a «natureza». Esse primeiro sentido pode, todavia, uma vez que as folhas ali aparecem «sobrepostas» aos olhos, ser visto como citação de um outro discurso estranho à mulher cujo rosto ali se vê. Esse discurso dá-a (à mulher) como seu exterior «natural». Mas, ao mesmo tempo, a inscrição de um enunciado «promessa» na imagem ali nos adverte que não será esse o caso, da parte da mulher que ali vemos, em relação à cultura do Outro (do masculino, por exemplo; ou do próprio «feminino», uma vez que é na cultura do Outro que «o próprio» se constrói como tal) visto que ela não é susceptível de, precisamente porque «construída» como «natural» ser, no entanto, reduzida à visão que assim a concebe, no discurso patriarcal que dela se tem habitualmente, e ela muitas vezes tem de si própria. Parte da ambivalência do sentido prende-se ali com a palavra «play», que pode remeter-nos, quer para o sentido de um fingimento, de um fazer de conta, do desempenho de um papel - play nature significaria, então, «fazer de natureza», assumir o lugar exterior da natureza, segundo o prescrito pela cultura do Outro - quer para o sentido de que tal não acontecerá na atitude desse nós, cuja margem permanece indecidível - we - em relação ao Outro (como a si próprio) - we won't play nature to your culture significando, então, não brincaremos, não jogaremos, não entraremos na farsa ou não faremos o jogo da «natureza», nem com, nem para com a tua cultura, isto é, não o faremos colocando-vos, também na posição desse exterior «natural». A leitura da imagem suporia, então, a possibilidade de ela supor uma remarcação do discurso do Outro (masculino, patriarcal, etc.) dado como «não marcado».

A atitude que ali se enuncia é, portanto, também a que considera que a própria «natureza» é já e apenas, actu(virtu)almente, um modo de ver histórica e socialmente construído que nos cega (homens e mulheres). O que implicaria que, a respeito daquilo que se considera como «visão», se deveria pensar o seu centro simultaneamente dentro e fora da cultura, dentro e fora da natureza, dentro e fora do masculino e do feminino. É nessa repartição deslocadora de posições que aquilo que se tem vindo a chamar descentramento opera «desconstrutivamente», remarcando os termos não-marcados. Por exemplo, vista ao lado de Spade with chains, a fotografia de Barbara Kruger pareceria dialogar com ela, dirigindo-se a si mesma e dirigindo-se-lhe com essa «promessa», o que nos faria realinhar a nossa primeira leitura em função, agora, dessa proximidade, tal como, na esteira do conceito de figuratividade da história de Walter Benjamin (e de imagem dialéctica; cf. Didier-Huberman, na bibliografia), se verificara já e, aqui de outro modo, acontecia já com «Pollock and Tureen», de Louise Lawler, em relação a Pollock. Observa Rosalind Krauss:

«Termos como parergon, suplemento, différance e re-marca deram sustentação [grounded] a uma nova prática artística na revivescência [mas também na vigília do que já morrera, in the wake] do modernismo. [...] Este grupo - inicialmente incluindo figuras como Robert Longo, Cindy Sherman, Barbara Kruger, Sherrie Levine, e Louise Lawler - estava fascinado pela reversão entre a realidade e a sua representação que estava a ser efectuada por uma cultura da informação no periodo tardio do século XX. As representações, argumentava-se, em vez de vir depois [sublinhado aqui de Rosalind Krauss] da realidade, como uma imitação dela, agora precede e constrói a realidade. As nossas emoções «reais» imitam aquelas que vemos em filme e sobre que lemos nos pulp romances; os nossos desejos «reais» são estruturados pelas imagens publicitárias; o «real» da nossa política é pré-fabricado pelas notícias de televisão e pelos cenários hollywoodianos da liderança; os nossos eus «reais» são agregações e repetição de todas essas imagens, enfileiradas por narrativas que não são da nossa feitura. Para analizar esta estrutura em que a representação precede o referente (a coisa do mundo real que se supõe que ela copia) faria a este grupo perguntar-se coisas acerca da mecânica da imagem-cultura: acerca da sua base na reprodução mecânica, a sua função como repetição serial, o seu estatuto como múltiplo sem original.» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., 47)

Para terminar, uma nota acerca da grande importância destas modificações na forma de concebermos hoje o «discurso» (presente, também, na imagem-cultura) e as categorias que, por um lado, inconscientemente o modelam e, por outro, ele deve interrogar e deslocar. Não seria apenas nos estudos de género que se poderia observar a sua importância, como se viu, de resto. Ela é absolutamente chave nos «estudos pós-coloniais» e, hoje, até na teoria do direito, na ética, etc. Stuart Hall, de quem falámos na última aula (a par de Edward Said, para quem Michel Foucault foi uma referência primordial e de Homi Bhabha, para quem Derrida e Lacan foram imprescindíveis, muitas vezes até para criticar algumas das posições da chamada «teoria do texto», patentes em textos de Roland Barthes), tem esta observação num dos seus textos:

«As diferenças entre as culturas colonizadora e colonizada permanecem profundas. Mas nunca operaram de forma absolutamente binária, nem certamente o fazem mais. Essa mudança de circunstâncias, [...] eu a designaria como um movimento que parte de uma concepção de diferença para outra, de diferença para différance, e essa mudança é precisamente o que a transição em série ou titubeante para o «pós-colonial» designa. [...] A própria noção de uma identidade cultural idêntica a si mesma, autoproduzida e autónoma, tal como a de uma economia auto-suficiente ou de uma comunidade política absolutamente soberana, teve que ser discursivamente construída no «Outro» ou através dele, por um sistema de similaridades e diferenças, pelo jogo da différance e pela tendência que esses significados fixos possuem de oscilar e deslizar.» (HALL, Stuart, «Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite», in SOVIK, Liv (org.), Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais, trad. de Sayonara Amaral et alii, Belo Horizonte, UFMG, 2006, p. 102; p. 109).

Assim como observaria Homi Bhabha, na sua leitura dos escritos de Frantz Fanon:

«O negro não é. Nem tão pouco o branco. Aquele alinhamento familiar de sujeitos coloniais – Negro / Branco, Eu / Outro – é perturbado por uma breve pausa e as bases tradicionais da identidade racial são dispersadas, sempre que se descobre serem elas fundadas nos mitos narcisistas da negritude e da supremacia branca. É esta pressão palpável da divisão [que a relação binária supõe] que leva a escrita de Fanon para a extermidade das coisas – a extremidade cortante que não revela nenhuma iluminação última mas, em suas palavras, «expunha uma declividade completamente nua de onde pode nascer uma autêntica sublevação»» (BHABHA, Homi, «Interrogando a Identidade: Frantz Fanon e a prerrogativa pós-colonial», O Local da Cultura, trad. de Myriam Ávila, Lima Reis e Gláucia Gonçalves, Belo Horizonte, UFGM, 2003, pp. 70-71).

Se o pós-estruturalismo em geral (e o desconstrucionismo em particular) por diversas formas põe à nossa vista o enquadramento que condiciona ou limita, rege ou regula a nossa visão das coisas, fazendo-o pela interrogação dos seus pressupostos, (mostrando que ela se constitui a partir do que ela-mesma constitui como seu exterior), isso significa que, no seu enquadramento do enquadramento, ele leva ao «podium» (expressão brechtiana, retomada por Walter Benjamin no texto de que lemos alguns trechos na última aula) da nossa atenção aquilo que de inconsciente a constitui e, como observa Homi Bhabha, embora não revelando nenhuma iluminação ou verdade última, «expõe dela uma declividade nua», uma dissimetria de que pode nascer a nossa «sublevação». «Branco»/«negro» é outras das muitas «oposições metafísicas» que se mostraram influentes no modo eurocêntrico e colonial de conceber o Outro. Nesse sentido, «a mudança de circunstâncias» a que hoje assistimos, como observa Stuart Hall, poderia ser descrita como a mudança de uma différence fortemente comprometida com toda a espécie de abusos, para uma différance que a afasta, a distancia (para usar de novo um termo brechtiano) de «si mesma».

sábado, 20 de dezembro de 2008

Avulsos 6: o enquadramento do «enquadramento»




















Daniel Buren, Within and Beyond the Frame, 1973.

«[...] as pinturas de Buren, estendiam-se por quase 200 pés, começando num extremo da John Web Gallery em Nova Iorque e alegremente continuando para fora da [sua] janela para abrir o seu caminho através da rua, como tantas bandeiras exteriormente penduradas em parada, finalmente ligando-se ao edifício oposto [sublinhados meus]. O enquadramento referido no título da obra era obviamente o da galeria, um enquadramento que funciona para garantir certas coisas sobre os objectos que ela guarda no seu interior. Estas coisas - raridade, autenticidade, originalidade, e carácter único [and unique] - são parte do valor da obra implicitamente afirmado pelo espaço da galeria. Esses valores, que são parte do que separa a arte dos outros objectos na nossa cultura, objectos que nem são raros, nem originais, nem únicos, operam então para declarar a arte como sistema autónomo dentro da cultura. No entanto, o carácter único, e assim por diante são também valores aos quais a galeria liga um preço, num acto que apaga qualquer diferença fundamental entre o que ela tem para vender e a mercadoria em qualquer outro espaço comercial.

[...] Buren parece estar a perguntar ao espectador em que ponto [as suas pinturas penduradas] cessam de ser pinturas (objectos de raridade, originalidade, etc.) e começam a ser parte de um outro sistema de objetos: bandeiras, lençóis estendidos a secar, anúncios publicitários à exposição do artista, enfeites de carnaval. Ele sonda, portanto, a legitimidade do poder do sistema de conferir valor à obra (KRAUSS, Rosalind, «Post-Structuralism and Deconstruction», in FOSTER, Hal; KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yves-Alain; BUCHLOH, Benjamin H., Art Since 1900: modernism, antimodernism and postmodernism, London, Thames & Hudson, 2004, p. 42; todos os sublinhados são nossos).


O que estava em causa, nas obras de Daniel Buren era já, portanto, na leitura de Rosalind Krauss, também a autonomia do sistema da arte, no movimento mais amplo do pós-estruturalismo em geral e, em particular, de uma desconstrução que assumia a tarefa de enquadrar os enquadramentos, ou os operadores de enquadramento que regulam o nosso «discurso», de remarcar os termos não-marcados, de expor os efeitos das forças que o atravessam e nele definem «as obras de arte» como tal (cf. Recapitulações - os quadros XII: o «pós-estruturalismo» e o enquadradmento do enquadramento, aqui no blogue).

Avulsos 5: Barthes sobre Brecht



«Brecht, se é lícito dizê-lo, afirmava o sentido, mas não o preenchia. Certamente o seu teatro é ideológico, mais francamente que os outros: ele toma partido sobre a natureza, o trabalho, o racismo, o fascismo, a história, a guerra, a alienação; no entanto, é um teatro da consciência, não da acção, do problema, não da resposta; como toda a linguagem literária, serve para «formular», não para fazer; todas as peças de Brecht terminam implicitamente por um «Procurem uma saída» dirigido ao espectador em nome dessa decifração a que a materialidade do espectáculo deve conduzi-lo: consciência da inconsciência, consciência que a sala deve ter da inconsciência que reina em cena, que é o teatro de Brecht.»


(BARTHES, Roland, «Literatura e Significado», Ensaios Críticos, trad. de Antóni Massano e Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 1977, p. 358; só os dois últimos sublinhados não são nossos).

Fragmentos de leitura 4: a co-notação dentro e fora do mito
















1. CONOTAÇÃO: Uma das noções mais úteis, para entender-se o modo como o sentido se produz, em certos tipos de linguagem, é a noção de conotação. Roland Barthes dá-nos dela, na sua apropriação dos estudos de Hjelmslev, a seguinte fórmula: (ERC) R C. Nela E = expressão ; R = relação; C= conteúdo formam, dentro do parêntesis, a noção do signo, aqui tomado enquanto «expressão relacionada com um conteúdo» que lhe é exterior. O que a fórmula diz é, portanto, o seguinte: «quando tomamos um signo como significante de um sentido que ele não contém, produz-se uma co-notação desse signo com esse sentido». Vejamos dois exemplos: começamos pela imagem de cima: ela mostra-nos «um grupo de focas» a que se juntou um «saco-cama». (Ou de um saco-cama a que se juntou um grupo de focas? Há uma diferença, importante, como veremos.)

a) GESTALT: Como lemos todos esses elementos num «grupo», pelo facto de estarem próximos uns dos outros (segundo nos diz a teoria da gestalt, agrupamos todos os objectos que na imagem se aproximam, diferenciando-os dos que deles se afastam ou se demarcam, inde-pendentemente da sua identidade: «lei da proximidade»), e notamos neles a semelhança da sua forma («lei da semelhança»), a partir da qual induzimos a ideia de uma semelhança de conteúdo: a ideia da protecção térmica que a pele das focas lhes oferece (/foca/ R «resistência ao frio» é o signo entre os parêntesis da fórmula) transfere-se (R) para (C) o «saco-cama». Note-se: a) que é um signo inteiro que se constitui como significante de outro; b) que o que se transfere das focas não é, por exemplo, nem o seu peso, nem a sua gordura. O que significa que a «co-notação» é sempre selectiva. Tal como a «identificação», segundo Freud. O que aqui nos interessa é que o que a selecciona são as regras da sistematicidade e da pertinência do sentido.

É neste ponto que nos é necessário examinar melhor o que se passa com este processo de conotação, que aqui funciona ao nível da imagem. O que a foto insinua é uma espécie de «apanhado», de «acaso feliz» ou de «circunstância rara», em que se pode observar: a) a «confusão das focas», que não distinguem o saco-cama de um seu exemplar congénere - com elas seria a natureza que se enganaria; b) a sofisticação de uma tecnologia de produção industrial que, para a protecção do corpo humano, escolhe como modelo o organismo das focas, e desenvolve uma espécie de cápsula termo-têxtil em tudo semelhante, na sua aparência exterior e nas suas propriedades de conservação termométricas, ao que das focas, que aqui vemos a olho nú (aguardando o saco-cama apenas que alguém lá se meta dentro, por exemplo num safari polar, sugerido como absolutamente seguro, uma vez que o equipamento dá todas as garantias necessárias a uma boa protecção: quer do frio, quer da percepção animal da presença humana).

b) A PROVA DE VALIDADE DO SENTIDO: Um sentido tem de ter a sua prova de pertinência no facto de se manter coerente, quer com os restantes sentidos (denotados), quer com o nosso entendimento dos pressupostos da situação de enunciação. O seu «natural» é função de ambas as coisas. O saco-cama será, para nós, o que a pele das focas é para elas: o que nos falta para a sobrevivência ou para um sono protegido, imunizado contra a quebra das condições térmicas necessárias à sobrevivência, confortavelmente resistente ao frio, etc. E essa impressão joga, no anúncio, com o nosso entendimento das implicações da situação enunciativa: aqui alguém nos quer vender um certo tipo, de uma certa marca, correspondente a um certo modelo de saco-cama. A conotação tem aqui um valor assertivo, quanto aos atributos desse objecto: a imagem desse «apanhado» é uma espécie de «promessa», ao mesmo tempo que constitui um enunciado que se diria «puramente» descritivo. Um enunciado simultaneamente constativo e performa-tivo.













c) DENOTAÇÃO: fotografia e o seu poder excepcional de denotação encarregam-se de assegurar «o efeito de real» da cena. O saco-cama é tão bom que as focas o confundem com uma das suas e ali se deitam, alinhadas. O mesmo processo se desenrola, na imagem de cima. O Jeep é um hipopótamo (um «cavalo do rio»), um animal terrestre e aquático, uma máquina anfíbia que nos permite o acesso a lugares de outro modo cortados da nossa geografia pedestre. Digamos que a possibilidade de seguir os hipopótamos revela esta carcaterística: eles não se dão conta da sua presença. Ele é «a ponte» e «o animal», o cavalo do rio, que nos transporta para além da nossa impotência motora. Uma máquina orgânica, capaz de seguir os seres da mesma espécie, aqueles que a tecnologia teria tomado por modelo, abrindo assim a possibilidade de vermos a natureza «selvagem» por dentro dos seus próprios movimentos, sem ter de ser afectado por qualquer espécie de contrariedade ou dissabor. O avanço da tecnologia indica assim, a possibilidade eufória da afirmação homem sobre a sua animalidade, confortavelmente instalado como se por dentro dela, sem que isso signifique, para ele, qualquer espécie de perda, qualquer espécie de regressão.

d) MITO 1: um segundo aspecto resulta deste primeiro processo de conotação. Cada uma das imagens é, pela sugestão denotativa da fotografia, um pedaço de realidade deslocado para fora de uma experiência de cuja realização ela seria, em primeira instância, uma espécie de atestação e de memória. Ao mesmo tempo que possui esse poder, a foto torna possível, mediante o seu valor de exposição, que a vejamos num outro contexto de (recepção) para o qual é cuidadosa-mente preparada (tratamento dos tons, grau de definição, montagem, etc.) Ora, esse desloca-mento é efectuado a coberto do seu valor denotativo. Deslocada para um folheto de anúncios comerciais ou para uma revista, ela é vista, agora, a par de outras cujo tema não é, necessaria-mente, nem o clima polar, nem o interior selvagem, nem, sobretudo, a mesma situação, vindo, por exemplo a funcionar com extensão temática.

Como só vemos o que a foto mostra, no seu enquadramento mediático, e não podemos ter presente a história em que ela originariamente se «inseriria», esse deslocamento do seu primero valor de denotação pode servir a outros sentidos, entrar em outras relações. Vimos em Avulsos 8: o mito e o seu consumo, de que forma o mito, enquanto metalinguagem, e o conceito mítico, enquanto parasitário e predador dos sentidos que, sob a sua pressão, se convertem em formas disponíveis, se infiltra na mesma linguagem-objecto de que extrai a sua caução naturalizadora. Tanto as focas como os hipopótamos são «a natureza selvagem».

Ora, a mitificação das propriedades dos artigos anunciados encontra precisamente na «natureza selvagem» a sua caução «natural». Tudo funciona aí de modo a sugerir que, quer no caso dos sacos-cama, quer no dos Jeeps, se atinge o máximo de uma perfeição cujo limite serve de balizamento ao desenvolvimento da tecno-ciência actual: «ser capaz de replicar a natureza como Criação». Por ela e através dela, é o homem que visaria subsumir toda a criação (à imagem de Deus). Ora, a gramática que rege conotção, no caso do mito, é a do lugar comum ou das «verdades universais». Uma dessas «verdades universais» ou «lugares comuns» é precisamente a do avanço e a da sofisticação da tecnologia, na promoção da segurança e do conforto, do alcance dos nossos gestos e na concretização dos nossos desejos. É esse o conceito mítico de que, cada um dos artigos anunciados, se impregna.


MITO 2: É a ponte-animal, aquilo em que a máquina se torna, digamos assim, neste seu cúmulo de sofisticação e de conforto. O que este breve apontamento nos mostraria: a) é que a co-notação na imagem, de uma forma geral, é sempre um resultado da operação de «com-posição» na qual aquilo a que os seus signos se ligam já existe, como lugar comum: à resistência das focas ao frio, à força, à resistência, à fluidez ou à leveza da locomoção dos hipopótamos, na água dos rios, ligam-se aqui as virtudes do equipamento expedicionário dos nosso desejos; b) que sobre ela se instalaria um «mito» - cuja fórmula é a de um signo fechado ((ERC) R C), formado pela relação entre a «marca», que é um nome próprio associado, dentro da imagem, ao único dos elementos do qual nos falta um nome próprio (por exemplo /Globettroter/, no caso do saco-cama; /Land Rover/ no caso do jeep) e um significado a que esse significante é associado na imagem, tudo isto com a evidência das coisas imediatamente reconhecíveis, legíveis: através do significante que a «marca» fixa - em princípio obscuro, como todos os nomes próprios - tem-se imediatamente «a presença do significado».

Tudo então se passa como se «o mito» deslocasse «a língua», que toma como seu objecto, para fora da sua historicidade, para a sua pura transparência, estabelecendo para ela e a partir dela uma metalinguagem: um dispositivo de segurança, uma espécie de travão do sentido. O mito desloca-a, então, «exemplarmente». Ele articula-se, aqui, por intermédio da analogia, uma vez mais. Não apenas o saco-cama mas também os Jeeps são isomorfos (tem a mesma forma) respectivamente, das focas e dos hipopótamos, de que vemos apenas a parte emersa. O mito diz a linguagem como se ela fosse, directamente, linguagem do ser das coisas e do homem, a linguagem natural do que existe. E diz a percepção como se ela fosse exacta, sem refracção, absolutamente coextensiva às coisas. What you see is what you get, como é comum ouvir-se dizer (é o que dizem os comerciantes também). Nele as coisas falariam por si. /Glo-bettroter/ passaria a designar, aqui, a omnipresença do homem, como dado imediato e natural do sentido da sua natureza (aquele que se lê na imagem; mas como se sabe, o homem está ainda muito longe de uma ciência capaz de replicar a vida dos organismos), eloquência objectiva de uma faculdade inscrita nesse objecto. Como dirá Roland Barthes:

«[...] o mito é um sistema particular pelo facto de que se edifica a partir de uma série semiológica que existe antes dele: é um sistema semiológico segundo. O que é um signo (isto é, o total associativo de um conceito e de uma imagem) no primeiro sistema torna-se um simples significante no segundo. [...] Como se vê, há no mito dois sistemas semiológicos, dos quais um [a língua] é deslocado em relação ao outro [o mito]: um sistema linguístico, a língua (ou os modos de significação que lhe são assimilados), a que chamarei língua-objecto, porque é a linguagem de que o mito se apropria para construir o seu próprio sistema; e o mito ele mesmo, a que chamarei metalinguagem, porque é uma linguagem segunda, na qual se fala da primeira. [...]; e há, enfim, uma presença do significado através do significante. O sentido já está completo, postula um saber, um passado, uma memória, uma ordem comparativa de factos, de ideias, de decisões (BARTHES, Roland, Mitologias, trad. de José Augusto Seabra, Lisboa, Edições 70, 1997, pp.186-188).


é) A NATURALIZAÇÃO DA HISTÓRIA: A co-notação é, então, cúmplice de uma operação sócio-ideológica, sempre que ela faz ponte com «o lugar comum», para se reduzir à tumidez de um signo fechado. O que mito diz, ao falar da linguagem-objecto, é que é o próprio objecto que é linguagem e que a linguagem adere, transparente, à extensão do mundo que toma por objecto. Ela preencheria o vazio da significação que, nos casos dos objectos da arte, pelo contrário, se abre. A ideologia em geral e o mito, em particular, têm horror ao vazio. No caso do MITO, esse horror transforma-se e oculta-se num processo de NATURALIZAÇÃO ou DEPURAÇÃO DA HISTÓRIA. A sua estratégia é sempre a da evacuação do tempo. Nesse seu fazer ponte, a conotação põe em acção, no caso do mito, um sintagma que adere aos limites de significação estritos que lhe são impostos pelo que já é lugar comum. Aquilo a que ele aspira é, assim, à eternidade do ser absoluto das coisas, fazendo-a aqui, na linguagem publicitária, depender da posse de um objecto.

f) LUGAR COMUM: O «lugar comum» é um paradigma que o mito, como metalinguagem, explora e re-produz como verdade das coisas. Quer dizer: a conotação é aí abertamente «discursiva». O seu deslocamento de sentido é sempre respeitoso, cortês, pegajoso, colaborativo, atencioso para com as regras da casa, se partirmos do princípio que «a casa» ou a morada são a de uma cultura «no seu estado costumeiro» (como diria Lyotard, em A Condição Pós-moderna), tal como elas nos são «naturalmente» ditas no mito como linguagem da verdade: espaço de pertença natural e de exclusão. O mito é uma espécie de grampo òu de agrafo analógico que segura os dois lados de um signo parcial virado do avesso e dado como total, como completo. Ele torna o signo faccioso, autoritário, sagrado, suspensivo do processo da significação, em nome de uma «melhor comunicação». Neste caso, que é o do mito, como acontece com as crianças, nas reuniões de família, a conotação não vai lá para fora... Fica-se pelo quintal ou pelas redondezas. Com ela, a resposta à pergunta «onde pára o sentido?» tem uma resposta imediata: «ali, bem debaixo d'olho».

g) ICONOGRAFIA. Os exemplos que aqui se deixaram poderiam ser lidos com o modelo da «iconografia» de Panofsky. Num signo contínuo (pois a imagem, «analógica» - a emanação física, electrónica ou químico-óptica de um referente, quando fixada fotograficamente - é contínua em relação ao referente; mesmo que possa ser digitalmente manipulada, e portanto desviada, posta em descontinuidade, esta reproduz a instalação de um certo ponto de vista uno: o que a põe em continuidade especular e espectral com o referente; mas há também imagens «verbais», digitais, etc.) e «pregnante» (diz-se que ele é «pregnante» se a sua estrutura do estímulo nos for simples e imediatamente reconhecível), o pré-iconográfico é imediatamente preenchido com o icono-gráfico para ser, finalmente, fechado com o simbólico (por exemplo: «só uma tecnologia muito evoluída, a mais evoluída, poderia ter conquistado, para a espécie humana, as potencialidades de organismos adaptados a outras condições de vida muito diferentes, etc): a imagem conotada é, portanto, na publicidade, dócil ao nosso entendimento.

h) DISCURSO: O que a enquadra é um «discurso» (que Homi Bhabha diria ser o «pedagógico», quer dizer, aquele cuja performatividade não desloca nem excede o ideologicamente consagrado: «o estereotipo, que é a sua principal estratégica discursiva [a do «discurso do colonialismo»], é um modo de conhecimento e de identificação que vacila entre aquilo que está sempre 'no seu lugar', aquilo que já é conhecido e algo que tem de ser repetido»; o absurdo do estereotipo: se ele aborda «o que já é conhecido», porque é que tem «necessidade de o repetir»? Eis o que o estereotipo esconde: o seu princípio de incerteza. Ele pertence ao «discurso» que Roland Barthes diria situado e saturado: o discurso «encrático», gerido pelo poder, que zela politicamente por «nós» do lado da «doxa», já estabelecida enquanto formação dominante, estereotípica: em última análise, trata-se ali da repetição da «história do progresso», que é a história de um certa «história», ainda hoje politicamente conveniente (mas epistemologicamente falida, como diz Lyotard) aos governos quando se trata de justificar orçamentos, concedidos a uma dada investigação científica, pelo bem-estar das populações, os avanços da humanidade, etc.).

i) REIFICAÇÃO: As imagens publicitárias não são, é claro, ameaçadoras. Se o fossem seriam contrárias à sua eficácia. Nenhuma inteligibilidade hipotética, nenhuma ambivalência de sentido ali inquieta o observador, visto que nelas a conotação anda por perto, não excede o círculo das nossas referências mais habituais, mais comuns. Ela certifica-o do seu lugar de pertença, à maneira de uma gestalt, de uma figura erigida sobre um fundo. No entanto, a conotação pode afectar a imagem de uma forma oscilante, desconfortável, vertiginosa, reversora. Por exemplo, quando nela se cruzam sentidos divergentes, nexos antagónicos ou, às vezes, indiscernivelmente sobrepostos, que fazem balançar toda a sua estrutura de significação, até à sua própria reversibilidade, ao seu próprio avesso, num excesso que abre o seu campo (quase) infinitamente, suspenso sobre o abismo.























2.
REMARCAÇÕES: A imagem que acaba de se ver é de uma instalação de Rebecca Horn. Aqui, a «co-notação» relaciona o signo «violinos» com outro(s) sentido(s). Mas esse sentidos são «incomuns», nessa associação. Melhor eles provocam uma dissociação da euforia: por exemplo, para nos mantermos num certo nível de generalidade, os violinos ligam-se ao sentido de «insectos». Aqui não poderíamos dizer, por exemplo, que «o sentido já está completo, postula um saber, um passado, uma memória, uma ordem comparativa de factos, de ideias, de decisões», como acima líamos, na definição de Roland Barthes. Primeiro porque nas oposições «cultura» / «natureza», «humano» / «animal», os «violinos» estão do lado do termo não-marcado.

Ora, aqui, a conotação remarca o termo não-marcado. Isto é, rebaixa-o, exibe-o numa espécie de regressão, sem contudo se deixar enclausurar numa significação óbvia. São ali violinos-insectos e não insectos-violinos. E porque a conotação é sempre selectiva, pode notar-se que o que aqui a regula não é o voo dos «violinos» (que não voam, a não ser por metáfora musical, o que como veremos, não parece ser o caso), mas o som dos insectos (que esses sim, podem voar, embora o som que produzem seja monótono, e não «voe» musicalmente, como parece ser aqui o caso).

METÁFORA (in ABSENTIA): Colocados perante esta imagem, uma vez que não vimos a instalação (vê-la significaria termo-nos exposto, no seu espaço, aos seus estímulos: aqui falta-nos o som dos violinos, etc.) o que temos é apenas a imagem (em que tropeçamos, na internet). Para seguir esse «voo» imaginário dos violinos-insectos, que aqui aparece representado no espaço único, contínuo e homogéneo (o de um quarto fechado: na verdade a instalação de Rebecca Horn abrangia, em 1992, uma série de quartos do Hotel Peninsular, de Barcelona), pela relação de redundância e de deslocamento, estabelecida pela repetição (é a orientação posicional dos violinos, associada à sua repetição distribuída, que os liga entre si para me sugerir a continuidade de um movimento direccionado, em que eles «sobem» - e «saem»? - e em que «não caem» ou «entram» - não?) é preciso que eu reconheça na sua forma, o corpo e as asas desses «insectos».

a) SINESTESIA e CINESTESIA: uma supõe aqui a interpenetração de sentidos ou percepções, dados sensoriais diferentes entre si; a outra supõe aqui a sugestão do movimento do que, por si mesmo, está em repouso. Dado que se está (estou/estamos) num quarto, a co-notação desencadeada dela distribuição dos violinos faz-me ouvir o ruído branco do seu bater de asas no seu/meu interior e vê-los a voar, como insectos. É o movimento e, simultaneamente, a sobreposição do visual e do auditivo, o que aí, inesperadamente, me atinge. O do voo dos insectos, e o som monótono do seu zumbido. E isso incomoda-me. Porquê? Talvez porque ela funcione, muito sugestivamente, ao contrário das conotações das duas primeiras imagens que vimos, em que há, também, objectos (que são artefactos humanos: um carro, um saco-cama) associados a animais. Ora, a instalação também é um artefacto humano. Simplesmente, o que a organiza é uma espécie de lacuna, de vazio interior que se nega a toda a espécie de satisfação, de repleção obtido pelo reconhecimento.

b) REGRESSÃO: Mas, então, por que é que não ouço eu a «música» dos violinos? A resposta óbvia é a de que, como lá não estive, não pude ouvir os sons produzidos pelos motores a que os arcos dos violinos estavam ligados. Mas como não tenho informação nenhuma acerca desses sons, também me posso perguntar: seria realmente música, os que eles produziam? Por outro lado, a conotação não é aqui entre os insectos e os violinos, mas entre os violinos e os insectos. Melhor dito, não dos insectos pelos violinos, mas dos violinos pelos insectos. Porque são os violinos que são colocados na posição dos insectos e não o contrário. O que tenho é, sumariamente, (/violino/ R «instrumento musical, posto em certa posição no espaço, que não é a posição estruturada da banda ou da orquestra, mas o da multiplicação e dispersão própria de uma espécie de debandada») R «insecto» e, encavalitada na primeira conotação, esta outra: (/música de violino/ R «bater de asas) R «o animal (que sou, que se é)») R «eu menos a voz e o sentido; eu menos a liguagem».

c) UNHEIMLICH: A estes, seria difícil conotá-los, de resto à primeira vista, com qualquer espécie de música, no interior de um quarto. Pelo contrário, é a música que aí é associada à monotonia dos instrumentos-insectos. O que faz toda a diferença porque, nesse sentido, a conotação funciona de modo regressivo, disforicamente, e produz uma espécie de auto-depreciação: põe o meu imaginário numa posição desconfortável, prestes a desintegrar-se do simbólico que ela suspende. Primeiro porque não se trata de um «avanço», de um «progresso» em direcção a coisa nenhuma, na conquista do espaço ou da sobrevivência, na história reconfortante e eufórica das comodidades descobertas pela tecnologia, como acontecia as primeiras imagens. Aqui, nenhuma «conquista» da espécie humana, em suma. Pelo contrário, trata-se de uma espécie de descida infernal, a um nível que se considera simbolicamente inferior, retrógrado: o da nossa condição animal. E enquanto signo, a presença do ruído branco desse pequeno enxame de violinos é ameaçadoramente estranho: unheimlich.

d) ASSONÂNCIA/ALITERAÇÃO: O que fica no ar é a sugestão da presença (invisível: para cá da imagem? Aqui, onde estou? Onde estou, exactamente? No «Hotel Peninsular»?) de alguma coisa anterior e exterior ao meu olhar, que os possa ter chamado ali: «flores»? Serão abelhas, os insectos? Ou «libélulas», «mariposas»? A instalação chama-se River of the Moon (Room of Lovers) e eles «saem» da cama e «levantam» do chão. A cama como metonímia da minha presença, como um chão animal do meu desejo. E reparo que o último dos insectos, junto da clarabóia, parece voltar para trás. Como se estivessem fechados no quarto. Além disso, o título contém assonâncias e aliterações que associam palavras como River e Lovers, Moon e Room. Umas por dentros das outras: e as vogais são fechadas ou médias. Há no seu interior uma espécie zunido, de eco que o atravessa, de vibração de asas. E vejo, na massa leitosa dos lençóis, o dorso imobilizado de uma espécie de caudal (desse «rio da lua»), a expressão ou o correlato plástico desse rio, como se a minha intromissão, no quarto, me fornecesse o instantâneo suspenso, imobilizado ou cortado, de um fluxo de acontecimentos que agora procuro reconstituir, por tentativas sucessivas.

e) OSCILAÇÃO/DESENRAIZAMENTO: o título incorpora, então, o ruído branco dessa vibração dos insectos que ouço, ao olhar os violinos; ele junta-se ao ruído distribuído e contínuo das suas asas/arcos, que agora parece partir do seu centro e estender-se aos seus extremos. Até agora tenho: A. - «violinos» = «insectos» (formado e formando duas outras conotações. Uma visual: os «arcos» dos violinos são = «asas»; outra auditiva: o som que eles produzem nas cordas é o «som de um bater de asas (dos insectos que ali estão)»: é esta última que me aflige) ; B. A esse som vem juntar-se o do título, na audível espessura do significante que ele incorpora: tenho, então, uma espécie de eco que não sei bem onde começa, (porque esse ruído se comunica e passa de um para outro dos lugares): se no título, se na imagem, que a ambos liga. A mesma perturbação, o mesmo voo. C. Terei, em contrapartida, algum momento em que a conotação se vira, se reorienta? Por exemplo: algum momento em que finalmente, os insectos são violinos e a natureza é antropomorfizada? Sim, mas apenas quando parto desta primeira conotação que lhe é inversa e que a reverte, que a remarca. E nessa altura, já não há nada a fazer: não posso subtrair a segunda conotação da primeira, não posso dissociá-las.

f) A CONDIÇÃO HUMANA: Por um lado, a animação azafamada dos violinos-insectos fechados no espaço angustia-me. Porquê? Eles tornam-se-me quase humanos, na «aflição» que projecto no que julgo ser o seu confinamento. Porque é a sua condição - trágica - de clausura que me impressiona, que eu vivo, enquanto espectador, como uma espécie de dissociação da sua condição «natural». Eles são uma espécie de grau zero da música: mas eu sou, uma espécie de grau zero do humano. Mas ao mesmo tempo, também eu me sinto agora dissociado, quase animal, sem voz, a debater-me no mesmo espaço enclausurado, que me corta de toda a euforia.

Pondo eu em jogo o sentido, esse sentido põe-me em jogo, entrega-me. Vejo ou revejo-me neles. O que a instalação de Rebecca Horn me diz, antes que eu saiba o que tocam os violinos, é que essa minha condição oscilante, entre humano e animal se lhes comunica e deles reflui para mim. Aquela condição em que aqui me debato. A de um confinamento que é também a impossibilidade da voz ou do sentido imediato, da «humanidade» do imediatamente comunicável, em suma.

g) PENSAMENTO DO EXTERIOR: E neste aspecto, lembro-me de Kafka e... do facto de Rebecca Horn ser alemã... E de Kafka ser um nome familiar, nas suas obras... Informo-me e vejo então que os violinos estavam ligados a motores: eis a razão por não ouço a «música». Portanto, a tecnologia produz aqui um regresso, o ingresso numa regressão... Ela retro-introduz a história no seu avesso mais mecano-animal, no avesso da sua tão apregoada origem. Há qualquer coisa de desmentido da origem orgânica, que ali intervém porque os animais, os sons que eles produzem, são já mecânicos.

Mas porque razão ouço eu os «insectos»? Porque (((/violinos/ R «instrumento») R «música») R «insectos») R «eu [espectador] sem voz («afónico»)»... - isto é: reduzido, no lugar da paixão, à minha condição mais elementar, mais animal. E o que sobe do fundo da minha animalidade, para uma luz inatingível, como a cena leva a pensar, é tão desprovido de voz como essa luz crua, que cai do alto, da clarabóia. «O animal» é «quase sem mundo», com «pouco mundo», como diz Heidgger, apropriando-se das teses do barão Jacob Von Uëxkull, para quem o que distingue a espécie humana das restantes é o facto de ela ser capaz de objectivar, de constituir o mundo como exterior, como dissociado de si mesma, como ob-jectivado. O que é ainda uma tese «humanista», dirá Jacques Derrida.

h) REAL/IMAGINÁRIO: A pedra é sem mundo, o animal tem pouco mundo, o homem é dotado de mundo, diz Heidegger nos seus Quatro Conceitos Fundamentais da Metafísica. E Lacan seguirá a mesma herança, segundo nos diz Elisabeth Roudinesco, na sua conceptualização do imaginário e do simbólico. A passagem do imaginário ao simbólico, a articulação entre ambos, a sobreposição reguladora da Lei do simbólico à dualidade agressiva do imaginário, em suma, faz-se como uma distanciação entre mim (mas eu nasço justamente dessa sobreposição, na minha auto-referência) e o «objecto» (pulsional) da minha relação imaginária. Até Walter Benjamin parece segui-lo, quando nos fala da «vida nua», em Critique de la violence. Por conseguinte, aqui, na paixão, no quarto dos amantes, regrido: perco distância em relação ao mundo, torno-me sua presa fácil, desço à minha condição animal.

i) LEITURA: É essa, parece-me, a conotação que se estabelece, e que ali permanece suspensa, levantada, eriçada como as duas tenazes abertas de um artrópode, em aberto e no aberto (cf. AGAMBEN, Giorgio, L'ouvert: de l'homme et de l'animal, trad. de Joël Gayraud, Paris, Rivages, 2002) para o sentido a vir, ao vórtice voraz do sem-sentido que o animal me parece ser. E a pergunta que me faço é: apenas com o registo fotográfico, como leio a imagem?

Pois bem, posso tentar, atentando nela, e no seu título: estou num quarto que é «de amantes». Esse «rio da lua», (essa espécie de transbordo, de enchente (in)visível) que afugenta os animais pertence, pois, a uma geografia incerta do meu «interior», daquele espaço em que imaginariamente estou, enquanto «amante». Tudo se passa aí. Os «insectos» sobem, elevam-se (é o que vejo na imagem) «atraídos» ou «extraídos» pela luz, pela possibilidade de outro espaço. No seu terem «pouco mundo», eles são irresistivelmente atraídos pela luz da clarabóia, absorvidos por ela. E regressam, talvez, à cama leitosa.

j) DESSUBLIMAÇÃO/IMPESSOALIDADE: O «rio da lua» é assim também «ascendente», tal como o vejo: corre para o alto, para fora do seu/meu confinamento no espaço, encaminha-se para uma espécie de fonte de onde «eu» diria que a luz «cai». É ali uma espécie de «garganta», que é de luz, neste quarto de «amantes» onde, às tantas, me torno insecto; um quarto vazio, numa espécie de destinação, de abominação. Mas não se «sai» daqui.

«Ninguém» sai. E não há cá «ninguém»... Pois «o amor» não é apenas o que «se diz» ou o que «se vê». Nem a música é apenas «o que se ouve»... É o que sobe, em busca de outro espaço... Como um rio visto ao contrário, a caminho da sua fonte, em direcção a uma luz silenciosa, sempre reversível, entre a clarabóia e a massa revolta e imóvel dos lençóis. Assim, «o rio» da lua distribui-se. O sentido desloca-se, entre várias possibilidades de conotação, em direcções e lugares distintos: a massa leitosa dos lençóis como seu reflexo lunar; a placa de luz da clarabóia, como limite deste espaço; o próprio curso deste pequeno enxame de violinos insectos.

l) SOBRE-INTERPRETAÇÃO: Mas a sua «subida» é aqui uma descida. Sem nenhuma sublimidade, pois a lua e o seu rio são crus, na história sem história desta cena. E o título é bimembre, de cesura mediana - como a sua rima interna ali acentua - com um movimento articulado, como o de um insecto, no bater das suas asas: River of the Moon (Room of Lovers). («Sobre-interpretação», como diria Umberto Eco: o título recarrega-se dessa ruidosa circularidade, dessa sua recursividade monótona e incomodativa, deixando-me ouvir apenas as sílabas e os sons que nele não se repetem, as que se destacam ou se diferenciam e, com isso ela afasta-se, arrasta consigo a sugestão anagramática da perda da razão, da perda da possibilidade de condução da significação (ri-the-lo-s), instalando-me numa espécie de significação inconsciente; desloca-se para fora da «cerimónia», começa a ser desrespeitosao, recarrega-se (ri-lo(the)s) da sua própria perversão).

m) SUSPENSÃO/FLUXO CORTADO: O «rio da lua» emerge, cobe e cai do/para/pelo «quar-to», da cama e do chão do quarto dos amantes onde estou... E onde me sinto, agora, aflitivamente instável. A minha condição lunar-leitosa de fluxo é própria do meu ser de amante: uma espécie de deflação da minha auto-consistência, em signos que se alteram como o leite, com o tempo. Signos da posse, metonímia do que ali eclodiu e jorrou, por atracção exercida sobre os corpos: a cama? Origem e regresso, por um movimento que é em direcção a uma fonte luminosa, em direcção a um repouso desconhecido e retorna, sem saída: a clarabóia? Esse rio da minha lua sai pelo título, pela clarabóia, pela garganta de luz? Mas não sai, dir-se-ia que entra... Ou entra e sai? Não sai apenas, parece não poder sair... Entra e sai. Paira nele, nas suas idas e vindas, na sua circulação em remoinho, pelo espaço que me aprisiona.

n) INESSENCIAL/ESSENCIAL: E o sentido começa a oscilar: os insectos/os violinos emudecidos, alados e emudecidos, alados e ruidosos, surdos e mudos no seu voo, «fogem» dali, fogem de «mim»? (Que há ali/aqui que os «afugente»? «Saem» para a luz? «Precisam» dela, como muitos deles?) Ou reconstituem simplesmente, o movimento de ida e vinda do rio, o fluxo e refluxo dos corpos? Que relação há entre eles e «os amantes» de que este quarto é o minguante, o confinamento da sua suposta liberdade?

o) ESPECTROS: E se os violinos-insectos fossem, aqui, também os espectros mudos, mudos e ruidosos, surdos e ruidosos, ruidosos e áfonos, de quem os ouviu e atraíu, de quem os ouviu e tangeu, de quem se atraiu e traiu, daqueles que perderam a voz, ali sussurantes ou gemebundos? Que tipo de crime ali se cometeu? Que dor ali se viveu? Que «amor»? Que lua? Que abundância jorra, ainda, lá fora? Que memória é esta, de que rio? Que espaços? (Por que é que a imagem que encontrei não indica a composição musical que imagino que os motores repetem? Esqueceram-se talvez do «essencial». Mas o que é o «essencial» da música? Haverá algum?)

p) VAZIO: Na (imagem da) instalação faço «eu mesmo» a experiência do meu vazio, da perda da consistência do meu ego, a experiência da minha afonia: faltam-me a voz, o sentido, o sentido dos sentidos, os sentidos da «escuta» e da «visão». Já só ouço, não escuto. Já só olho, não vejo. Ou melhor: vejo e escuto que apenas ouço e olho, dado que os objectos resistem ali a qualquer pretensa univocidade da minha interpretação. Não deixar de me dar conta de que entro numa espécie de oscilação, de indecisão, entre a animalidade e a humanidade. Desço, então, por mim abaixo. Falta-me o acordo, o acorde; entro em discordância, em dissonância, em assonância. Torno-me um deles, insecto num outro mundo que emerge no meu, que me é o mundo estranho de outra espécie, que finalmente é também o da minha espécie. Estranho a minha própria «espécie»: de que espécie é a minha a espécie, para as outras espécies com que agora estou? Os seres debatem-se, entram uns pelos outros adentro, neste mundo em que estou. Estou numa espécie de sub-mundo, de rés-do-chão da vida, mesmo se o quarto comunica para algum terraço, para alguma luz, que me cega ou me atira para a massa leitosa do «leito».

q) O EXTERIOR DO INTERIOR: Torno-me estranho a mim mesmo, duplo (irreconhecível e, no entanto, ameaçador) de «mim mesmo». Que «sei» eu do animal em que me torno, a não ser esta estranheza, esta ameaça, este medo que me assalta, no interior deste espaço que aqui é o meu, visto que é de lá que me revejo nele e me espanto comigo? Esse medo é provocado por uma vertigem: a das co-notações aqui produzidas. Elas saltam o muro e vão lá para fora, por dentro de mim, da linguagem que digo ser «minha». «Lá para fora por dentro; por dentro, da minha linguagem, da linguagem que digo ser «minha» e que afinal me possui.

r) DISTANCIAÇÃO: Elas supõem a minha noite, o meu ser nocturno, enluarado, crepuscular, de fluxo (River of the moon) o que, no «fundo» de mim mesmo, também sou, antes do simbólico e da sua negatividade, antes da distinção, ou do corte que me dissocia de toda a continuidade, e me põe no meu lugar, aquele que me impõe a Lei, partilhada com e entre os seres que povoam aquele mundo que afinal vejo não ser inteiramente meu. Sou-o, no meu ser espectral. O «animal» dos meus espectros, que ali levantam do chão, da cama.

s) «Talvez o que acabo de escrever seja esse mesmo rio, que me arrasta e atravessa, me enche da impossibilidade de qualquer repleção». Exactamente ao contrário do que acontece com as imagens publicitárias, que são de «encher o olho», aqui a imagem esvazia-me, arrasta-me para a minha indecisão, cega-me e emudece-me. Mas dá-me esta coisa inestimável: suspendendo o meu discurso, ele levanta-me da minha submissão,. A distância em relação a qualquer euforia, a humildade necessária em relação à repleção, num mundo «cheio de si mesmo». Ela resiste à minha solução, retira-se da linguagem, pelos seus alçapões abaixo, isto é, por ela a dentro, lá para fora.

3. POSIÇÕES: «Tudo isso faz sentido, para ti?» «Sim, para mim faz algum. Não o sentido, evidentemente. Pois a imagem, pondo em mim a descoberto uma condição que eu diria infra-humana ou animal, obriga-me a recuar, a suspendê-lo, a duvidar de quaisquer determinações unívocas. A imagem retrai-me, aqui, de qualquer espécie de repleção hermenêutica. Ela abre-me o abismo sobre que a minha linguagem se sustenta». «Bem, mas por que é que, nesta outra imagem, uma foto de Man Ray, tu ouves a música que não ouves naquela imagem da instalação?» «Ora, pelo mesmo motivo pelo qual não a ouço ali...». «E aqui?» «Aqui aonde?» «Aqui, na performance de Nam June Paik e de Charlotte Moorman, que interpretam 26'1. 1499 For String Players, de John Cage, no café Gogo, em Nova Iorque, em 1965?» «Bem, deixemo-nos destas coisas... Onde é que queres, humm..., ch... ch... chegar?» «Apanhei-te!» «Oh!... São libélulas, sabias? Não são abelhas, cá para mim...» Não desvies a conversa» «Oh... Todos os corpos são tangíveis. A música que o meu produz não me é sensível... Pelo menos imediatamente.» «Ninguém disse que era imediatamente». «Tens razão, ninguém disse... Pois estamos aqui longe da economia dos mitos»















Fragmentos de leitura 5: o (des)enquadramento e o sublime














Caspar David Friedrich - Monk by the Seashore, 1809-1810

I - 1. A influência da estética de Kant poderia ter estado na base ou servido de pretexto a este quadro. A Crítica da Faculdade de Julgar estabelece, num dos seus aspectos, a experiência do sublime como a de uma incapacidade da representação do «abolutamente grande» pela faculdade da imaginação. Do maior e mais potente que a própria «grandeza» ou «medida», do incomensurável, numa palavra, nenhuma compreensão estética é possível. O absolutamente grande é o desmedidamente único. E nós vemos, ali, a silhueta ínfima do «monge» a recortar-se, na berma daquele abismo que o engolfa na sua voragem, sobre/sob a sua imen-sidão.

2. Mas a experiência do sublime, tal como Kant a descreve não é, apenas, a da constatação da impotência da comprehensio esthetica do absolutamente grande. É também a da ideia de uma razão (transcendental) pela qual poderíamos, ao mesmo tempo que incapazes de o restituir pela intuição imaginativa (ou pela representação própria da nossa imaginação), concebê-lo como o infinito na natureza. O monge, no quadro de Caspar David Friedrich pára, fascinado no meio dessa inabarcável e crepuscular vastidão das águas e dos céus, apanhado na sombra e na gravidade de uma espécie de grande anel de Saturno que ali o abraça, no avolumar da tempestade. Vê-se-o ali, como se tolhido do seu passo ou imobilizado. Mesmerizado ou siderado à vista do «colossal».

Dessa grandeza imensa ou absoluta do que os seus olhos não já podem distinguir bem, dir-se-ia que permanece colhido numa espécie de paralizante estupor, mesmo que ainda capaz de uma indagação, pelo meio do mesmo pânico que o acomete e a que sobre-vive, no seu «eis-me aqui, Senhor». Ele está prestes a ser submergido por aquilo mesmo que Kant descreve como sendo da ordem absolutamente grande. Ora, que é o sublime, «matematicamente» (e «dinâmicamente», mais adiante)? Eis o que Kant nos diz, na «Analítica do Sublime»:

«O belo da natureza concerne à forma do objecto, que consiste na limitação; o sublime, contrariamente, pode também ser encontrado num objecto sem forma, na medida em que seja representada nele uma ilimitação ou por ocasião desta e pensada além disso na sua totalidade. [...] Denominamos sublime o que é absolutamente grande. [...] O último é o que é grande acima de toda a comparação. [...] Trata-se de uma grandeza que é igual simplesmente a si mesma. Daí se segue que o sublime não deve ser procurado nas coisas da natureza, mas unicamente nas nossas ideias; [...]. A natureza é portanto sublime naquele entre os seus fenómenos cuja intuição comporta a ideia da sua infinitude. Isto não pode ocorrer senão pela própria inadequação do máximo esforço da nossa faculdade de imaginação na avaliação da grandeza de um objecto. [...] A verdadeira e invariável medida fundamental da natureza é o todo absoluto da mesma [...].» (KANT, Immanuel, «Analítica do Sublime», Crítica da Faculdade de Julgar, trad. de António Marques e Valério Rohden, Lisboa, Gulbenkian, 1990, pp. 137-150).

3. À letra, a experiência do sublime supõe o inimaginável, o irrepresentável ou o «indescritível». No confronto com o sem-limite e, por conseguinte, com o sem-forma do «absolutamente grande» somos postos diante, não de um objecto da natureza - visto que o sem-forma e sem-limite supõe a impossibilidade mesma de objectivação, ou de mensurabilidade - mas do que excede, não apenas a nossa capacidade de intuição ou representação pela imagem - como diz Kant «nada [do] que pode ser objecto dos sentidos, visto nessa base, deve denominar-se sublime» (ibidem, p. 144) - mas também qualquer discernimento da sua conformidade a algum fim ou finalidade (interna: aquela que inscreve a sua própria possibilidade; ou externa: aquela que a poria em relação com a razão prática ,tal como com a liberdade do homem).

4. A experiência do sublime é, pois, numa primeira instância, a experiência do desprazer causado pelo não-poder e não saber, a do não-poder saber e a do não-saber poder, isto é, a de um radical impoder: ele corresponde, em Kant, ao «sentimento da inadequação da nossa faculdade para alcançar uma ideia, que é lei para nós, [que] é respeito» (ibidem, p. 153). Mas esse desprazer, esse represamento ou privação do prazer - Derrida diria aqui: esse «Para Além do Princípio do Prazer», recordando o título de Freud - abre a comporta de uma razão transcendental que seria, para Kant, simultaneamente, nossa e, ao mesmo tempo, a que é, em nós, afecta à nossa impossibilidade da sua representação e, portanto, afecta à sua presentificação negativa. É precisamente o «irrepresentável» ou o «impresentificável» que, ao mesmo tempo que nos habita, nos exclui da exterioridade suposta por toda representação pela imaginação e, assim, define a nossa consonância com o que parece destituído de qualquer finalidade ou confomidade a fins.

«O sentimento do sublime é portanto um sentimento do desprazer a partir da inadequação da faculdade da imaginação, na avaliação estética da grandeza, à avaliação [da grandeza] pela razão e, neste caso, ao mesmo tempo um prazer despertado a partir da concordância, precisamente deste juízo da inadequação da máxima faculdade sensível, com ideias racionais, na medida em que o esforço em direcção às mesmas [ideias racionais] é lei para nós. Ou seja, é para nós lei (da razão), e pertence à nossa determinação, avaliar como pequeno, em comparação com ideias da razão, tudo o que a natureza como objecto dos sentidos contém de grande para nós; e o que activa o sentimento [a nossa exposição ao inabarcável pela imaginação] desta determinação supra-sensível concorda com aquela lei [da razão, aquela que traduz em nós a nossa determinação supra-sensível; quer dizer, a lei de uma razão que é «transcendental»]. [...] Portanto, a percepção interna da inadequação de todo o padrão de medida sensível para a avaliação de grandeza da razão [transcendental] é uma concordância com leis da mesma [razão] e é um desprazer que activa em nós o sentimento da nossa determinação supra-sensível, segundo a qual esse sentimento [de desprazer] é conforme a fins, por conseguinte é prazer, isto é considerar todo o padrão de medida da sensibilidade inadequado às ideias de razão». (ibidem, pp. 153).

5. É o próprio incomensurável - o informe e ilimitado porque absolutamente grande - que, simultaneamente barra e «comporta» em si a ideia dessa razão que, ao mesmo tempo que transcende o que cai na esfera dos objectos e da sua presença (estética), ou da sua representação pela imaginação, constitui também a nossa determinação, a sua pressuposição, como diz Kant.

Trata-se daquela determinação racional pela qual podemos, ao mesmo tempo que colhidos pelo desprazer (o medo e o terror, como se dirá mais à frente) da nossa pequenez perante o inabarcável, pressupor e considerar, por nossa vez, pequeno tudo o que, «a natureza como objecto dos sentidos contém de grande para nós». O que a experiência do sublime supõe, portanto, é precisamente uma espécie de reversão do incompreensível, por absolutamente grande, no pequeno frente à razão.

Entre o absolutamente grande e o seu agora e mesmo assim pequeno, vai um passo sobre o nosso próprio abismo interior: aquele que separa a faculdade da comprehensio aesthetica da razão que nos determina. A experiência do sublime faria aparecer, num outro contexto, o que a psicanálise pensa como sujeito dividido. Entre a sensibilidade - os sentimentos de «prazer»/«desprazer», pertencem-lhe (no que diz respeito aos aspectos da relação entre si e as pulsões) - e essa razão que em nós a transcende (marcando em nós, simultaneamente, o que também a nós nos transcende, na nossa capacidade de representação sensível), ele instala uma fractura e, ao mesmo tempo, parece sugerir Kant, uma superação, pela mesma «razão» que em nós há-de ser a da lei que nos determina.

«Portanto a sublimidde não está contida em nenhuma coisa da natureza, mas só no nosso ânimo, na medida em que podemos ser conscientes de ser superiores à natureza em nós e através disso também à natureza que nos é exterior (na medida em que influi sobre nós). Tudo o que suscita este sentimento em nós, a que pertence o poder da natureza que desafia as nossas forças, chama-se então (ainda que impropriamente) sublime; e somente sob a pressuposição desta ideia em nós, e em referência a ela, somos capazes de chegar à ideia da sublimidade daquele ente, que nos provoca íntimo respeito não simplesmente através do seu poder, que ele demonstra na natureza, mas ainda mais através da faculdade, que em nós está colocada, de ajuizar sem medo esse poder e pensar o nosso destino como sublime acima dele»
(ibidem, p. 162).

6. Frente ao informe, ao incomensurável e ao ilimitado, ao absolutamente grande, ao mais potente que a própria potência e maior que a própria grandeza, somos postos perante o ameaçadoramente estranho. Confrontados então com a possibilidade do nosso «nada» ou da nossa auto-anulação, levados a esse desafio lançado pelo poder da natureza que nos ameça, confrontados com a possibilidade de um abismo, portanto, que não é apenas exterior, mas também interior, somos chamados, não apenas ao nosso ser infinitamente pequeno, infinitamente finito, mas também a uma razão que é, simultaneamente, a razão do que nos transcende e a razão do que nos determina no nosso ser, antes e por fora dele, tal como antes e por dentro dele. Ao infinitamente pequeno e grande do ser, quer na sua abertura primitiva, na sua béance (como diria Lacan), quer no que constituiria o seu inescapável reverso: a Lei ou o Simbólico, que é também o modo de ser do Grande Outro em nós. António Marques chama a nossa atenção, no texto com que prefacia Crítica da Faculdade de Julgar, para a necessidade de ver na descrição kantiana da experiência do sublime a sugestão do ameaçadoramente estranho, ou do que Freud se chamará unheimlich. Essa aproximação com a psicanálise é ela mesma avançada por Jean-François Lyotard, nas suas Leçons sur l'Analytique du sublime (pp. 74-75):

«O belo contribuía para as Luzes, que são uma saída da infância, como dizia Kant. Mas o sublime é uma inflamação súbita, e sem futuro [avenir]. É assim que houve futuro [avenir], e que ele se nos dirige ainda, [a nós] que não esperamos nada, no sentido kantiano. Mas isso não é senão a história, ainda. [...] Sob esses dois aspectos [o da razão e o da imaginação, o da ideia e o da intuição sensível], o pensamento desafia a sua própria finitude, como que fascinado pela sua desmesura. É esse desejo de ilimitação que ele sente no «estado» sublime: felicidade e infelicidade. Que esse desejo seja vão, que ele deva ser relegado para de entre as ilusões inevitáveis, que a crítica classifique finalmente o sublime na vizinhança da demência, que ela mostre que não há valor moral, que enfim a análise desse sentimento seja concedida a título de simples apêndice, sem importância [sans porté], à estética - isso não é senão demasiado evidente. [...] O sublime não é, a este respeito, senão a irrupção, no e para o pensamento, desse desejo surdo de ilimitação. O pensamento «passa ao acto», ele «actua» o impossível, ele «realiza», subjectivamente, o seu todo-potência. Ele frui [jouit] do Real. Que se me perdoe ir procurar, para situar essa violência, termos tomados a um idioma completamente outro, aquele de Freud e de Lacan. Não sou o primeiro a fazê-lo.» (LYOTARD, Jean-François, Leçons sur l'Analyique du sublime, Paris, Galilée, 1991, pp. 74-75).

E Kant:

«Quem teme não pode absolutamente julgar sobre o sublime da natureza e tão pouco pode julgar sobre o belo quando é tomado de inclinação e apetite. Aquele foge da contemplação de um objecto que lhe incute medo; e é impossível de encontrar comprazimento num terror que fosse tomado a sério. Por isso, o agrado resultante da cessação de uma situação penosa é o contentamento. Este porém, devido à libertação de um perigo, é um contentamento com o propósito de jamais nos expormos de novo a ele; não gostamos de recordar uma vez sequer aquela sensação, quanto mais procurar ocasião para tanto. [...]

Assim, continua Kant:

O comprazimento no sublime é por isso também somente negativo (ao invés do belo, que é positivo), ou seja um sentimento da faculdade da imaginação de privar-se por si própria da liberdade, na medida em que ela é determinada conformemente a fins segundo uma lei diversa da do uso empírico. Desse modo a faculdade da imaginação obtém uma ampliação e um poder maior do que aquele que ela sacrifica e cujo fundamento porém é oculto a ela própria; em vez disso ela sente o sacrifício ou a privação e ao mesmo tempo a causa à qual ela é submetida. A estupefacção - que confina com o pavor, o horror e o estremecimento sagrado que apanha o osbservador à vista de cordilheiras que se elevam aos céus, de gargantas fundas e águas que irrompem nelas, de solidões cobertas por sombras que convida, á meditação melancólica,, etc. - não é, na segurança em que o observador se sente, um medo efectivo [...].» (ibidem, pp. 158-167).


7. A experiência do sublime começa portanto por ser a de uma cisão, uma disjunção ou heterogeneidade. Independentemente aqui da sua ordem (crono)lógica ou da sua ordenação, ela lembra a psicanálise em dois aspectos: a) o do unheimlich, o da sensação de uma mortal exteriorização do nosso próprio inconsciente e, com ela, a experienciação do terror infundido pela possibilidade da nossa própria desintegração, pela perda da consistência do ego ou pela rasura do limite entre dentro e fora que o determina (e em que ele se determina) na nossa existência; b) a da ameaça da castração sobre que se fundaria a nosso ser de sujeitos, enquanto experiência traumática da reflexividade ou da reversão da projecção do desejo do desaparecimento do rival, isto é, de um pai morto, experiência da pulsão de morte, no nosso próprio imaginário edipiano.

Ora, no sentido desse confronto com o ameaçadoramente estranho, não estaríamos aqui já muito próximos de uma experiência que seria também a do desenraizamento e da oscilação, como lhe chama Gianni Vattimo, quando aproxima a experiência do shock, segundo Walter Benjamin, da experiência do Stoss, segundo Heidegger? Talvez muito próximos, com excepção dessa razão que («transcendental») nos seria, simultaneamente, exterior e interior, segundo Kant? Fica a pergunta no ar. Porque, na verdade, aquilo de que se fala logo a seguir, em Kant é, como acima vimos, da pressuposição dessa Ideia de razão. Talvez também por isso mesmo, e com razão, observaria Jacques Derrida, em La vérité de la peinture, por um lado, que:

«Essa oposição forma/matéria comanda, sabe-se-o, toda a Crítica [da Faculdade de Julgar] e inscreve-a no interior de uma poderosa tradição. Ela seria, segundo A Origem da Obra de arte, uma das três determinações (hypokeime-non/sumbebekos [substância/ acidente], aistheton / noeton [sensível/inteligível], eidos-morphé/hylé [forma /matéria]) que caem violentamente sobre a coisa [no pensamento ocidental]. Ela busca um «esquema conceptual» (Begriffschema) para toda a teoria da arte. Basta associar o racional ao formal, o irracional à matéria, esta à ilógica, e acoplar o conjunto ao par sujeito/objecto para dispor de uma Begriffsmechanik à qual nada resiste. O uso massivo que dela faz a estética deixaria pensar numa deportação a partir do domínio da arte. Em todo o caso o criacionismo cristão teria trazido uma «incitação particular», uma motivação suplementar a considerar o complexo forma/matéria como a estrutura de todo o ente, o ens creatum como unidade de forma e matéria. Desaparecida a lei, os esquemas da filosofia cristã permanecem eficazes.» (DERRIDA, Jacques, La vérité en peinture, Paris, Flammarion, 1978, pp. 77-78).

8. Se o belo pressupõe a forma, o limite (não nos debruçaremos aqui sobre ele), o sublime convoca a matéria. No que, de resto, Jean-François Lyotard concordaria, observando embora que o sublime kantiano representa já o próprio declínio dessa matriz, ao pôr em jogo um informe em instância de «apresentação negativa» de uma forma que transcende a representação, e retirando daí algumas consequências:

«É uma pressuposição, mesmo um preconceito, uma atitude ready-made, pelo menos no pensamento ocidental, há já dois milénios, pensar que o processo de arte deva ser cumprido segundo a realização de um relacionamento entre uma matéria e uma forma. Esse preconceito permanece activo na própria análise de Kant. [... Mas] Já que a ideia de uma concordância entre a matéria e a forma está em declínio, declínio este já implícito na análise kantiana do sublime [dado que ele supõe o confronto com a desmesura da matéria como informe e sem-limite] (e que foi alternadamente escondido e revelado pela estética durante um século), a aposta das artes, sobretudo da pintura e da música, só pode ser a de aproximar a matéria: isto é, aproximar-se da presença sem recorrer a meios da apresentação». (LYOTARD, Jean-François, «Após o Sublime, Estado da Estética», O Inumano: considerações sobre o tempo, trad. de Ana Crsitina Seabra e Elisabete Alexandre, Lisboa, Estampa, 1990, pp. 142-143)

Por outro lado, observaria ainda Jacques Derrida, ela possui conexões, nomeadamente, com um certo criacionismo judaico-cristão, na sua forma de desligar da forma (a do belo simbólico):

«É essa determinação «subjectiva» do sublime a partir das nossas faculdades que Hegel julgará interessante e insuficiente. [Mas...] Kant e Hegel reflectem no entanto a linha de corte ou antes o pas [o «passo», mas também, o «não»] franqueador dessa linha entre finito e infinito como lugar próprio do sublime e [da] interrupção da beleza simbólica; não é portanto surpreendente que eles considerem ambos um certo judaísmo como a figura histórica da irrupção do sublime, um, Kant, do ponto de vista da religião e da moral, no interdito da representação icónica (nem «Bildnis», nem «Gleichnis»), o outro, Hegel, na poesia hebraica considerada como a mais alta forma negativa do sublime. A forma afirmativa do mesmo sublime encontrar-se-ia, diz ele, na arte panteísta» (DERRIDA, Jacques, ibidem, pp. 153-154).














Barnett Newman, Vir Heroicus Sublimis, 1950-1 (2,42 x 5,41 metros)


II. - 1. O pintor Barnett Newman, de que aqui vemos uma tela, intitulada Vir Heroicus Sublimis (homem herói e sublime) diria, no catálogo da sua primeira exposição, na Betty Parsons Gallery, que a forma abstracta é:

«uma coisa viva, um veículo para um complexo de pensamento abstracto, um transportador dos sentimentos temerosos que ele experimentou perante o terror do inconhecível [the terror of the unknowable]. A forma abstracta era, portanto, mais real do que uma «abstracção» formal de um facto visual com a sua sobreto-nalidade de [se tratar de] uma natureza já conhecida. Nem era ela uma ilusão purista com a sua sobrecarga de verdades pseudocientíficas [...] A questão que agora se levanta é a de como, se vivemos num tempo sem lenda ou mito que possa ser chamado sublime, se nos recusamos a admitir qualquer exaltação em relações puras, se nos recusamos a viver no abstracto, como é que podemos estar a criar uma arte sublime?» (in FINEBERG, Jonathan, Art Since 1940: strategies of being, London, Lawrence King, 1995, p. 99)

2. A sua questão é, portanto, a do sublime «hoje». Antes de o abordarmos, vejamos alguns factos da sua biografia, que nos ajudarão a eliminar certas hipóteses e a concentrarmo-nos noutras. Newman nasceu em Nova Iorque, em 1905, e frequentou a escola Hebraica, assim como o ensino público, enquanto, em casa recebia uma educação religiosa que lhe vinha, através da sua tradição familiar, da sua condição de filho de emigrantes judeus. Durante dois anos trabalhou na loja de manufactura de roupa masculina do pai, para arranjar o dinheiro que lhe faltava, para poder estabelecer-se como pintor, seu sonho de sempre.

Com a bancarrota de 1929, esses sonhos foram por água a baixo e Newman manteve-se a trabalhar para o pai, ao mesmo tempo que, depois do findo o curso, dava aulas, até 1937. Interessava-se por botânica, ornitologia, interesses científicos que conjugava com a sua formação filosófico-religiosa (Espinoza, Edmund Burke, por exemplo, mas também o Talmud e a Tora). A sua obsessão girava, segundo os testemunhos aproveitados por Jonathan Fineberg, em torno da possibilidade de transposição do Génesis para a história do pensamento e para a história da evolução das espécies. Em 1948, chegaria, finalmente, à definição de um acerto, na sua pintura. Pelo meio ficam 43 anos. Quer dizer, a sua entrada na pintura é relativamente tardia. Pinta então o seguinte quadro, intitulado Onement I:



















Barnett Newman, Onement I, 1948.

3. O título do quadro parece-nos não ter, a nosso ver, uma tradução boa em português. Onement é, por um lado, o processo pelo qual um ser devém ou advém, na sua unidade e completude. Mas é mais que isso. Ouçamos primeiro o que Fineberg tem para nos dizer:

«a palavra do título Onement tem uma série de sentidos importantes. É uma componente da palavra atonement que é um conceito importante para os judeus, que eles destacam durante o Yom Kippur. Os Cabalistas vêem este dia santo como o momento para reflectir sobre o mistério da criação. Espinoza, o filósofo que Newman estudou a par dos textos da Cabala, nivelou o conhecimento em três categorias: 1) os dados e as regras aprendidos sem qualquer referência ao intelecto; 2) coisas aprendidas por dedução ou lógica; e 3) (a ordem mais alta do conhecimento) o conhecimento imediato, usando a razão, mas obtido através de uma intuição directa da essência das coisas, um vislumbre que ia para além da razão. Este último nível parecia-se com o que Newman chamava o «sublime»». (FINEBERG, Jonathan, op. cit, pp. 100-101).

4. Ora, «atonement» supõe a ideia de um acto que demonstre «arrependimento» por alguma coisa que se fez. Mas podemos pressentir aí que se trata de uma espécie de reunião, de um at-onement. «Onement», que é parte da palavra «Atonement», indica um dos elementos fundamentais desse processo, que deve ser o de união consigo mesmo, mediante o arrependi-mento, durante o Yom Kippur, assim como por meio da meditação nos mistérios da Criação. Ora, essa união é, no caso de Onement, um acto de produção do UM. É, portanto, um acto de criação. E o interessante começa aqui.

5. Primeiro porque o título é aí sugestivamente «Onement I»... deixando no ar a sugestão de um inacabamento desse devir ontológico. Enquanto primeiro quadro de acerto com a sua poética própria, ele significaria, também, por um lado, a produção de si mesmo como um, num «unamento Um»: o primeiro dos unamentos. Por outro lado, necessariamente, a expectativa de «mais que Um» e, portanto, a insuficiência desse seu devir de si próprio, como se a imaginação fosse aí afectada pela mesma inadequação que a experiência do sublime supõe.

E em segundo lugar, porque o que o quadro mostra é, não tanto (ou não apenas) a forma do UNO, mas antes a forma de uma linha vertical de luz a cortar em DOIS campos de vermelho-terroso alguma coisa na qual já não se está, na qual «nós» já não estamos, e que agora vemos como «fundo». Ora, aqui, precisaríamos ainda de Fineberg, nas suas precisões léxicas, acerca do hebraico:

«Onement I simboliza o Génesis. É um acto de criação e de divisão. O zip de Newman [era assim que Newman chamava a essa tira vertical] pelo meio do quadro abaixo evoca a separação de Deus entre as trevas e a luz, uma linha traçada no vazio. Como o Deus do Antigo Testamento, o artista começa com o caos, com o vazio; Newman começa com uma cor sem mais [a blanck color] - sem textura, sem forma, sem detalhes. As cores em Onement I também simbolizam o Génesis. O vermelho terroso é a cor da terra. Adão [Adam] é o homem criado por Deus, e a palavra hebraica para terra é adamah. Portanto Adão é feito de terra, de barro. Além disso, os humanos são animais que caminham na vertical: o gesto vertical pelo meio da tela abaixo está em lugar [stands for] da humanidade, cuja primeira encarnação foi Adão. [...] O zip assemelha-se às figuras de Giacometti, que apesar das suas superfícies pesadamente modeladas são tão finas que são frágeis, furtivos momentos na existência. E Giacometti expunha em Nova Iorque, pela primeira vez em 1948, exactamente quando Newman pintava Onement I (FINEBERG, Jonathan, op. cit., pp. 100-101).


6. Adão (Adam) é também uma palavra conexa com a que serve, em hebraico, para designar «terra»: adamah. Se ela designa o primeiro homem, designa-o na sua relação de indissociação com aquilo que esteve na sua origem: entre origem e presente, haveria assim, uma espécie de vacilação, de dentro/fora do passado, em que o passado que entra pelo presente adentro. Além disso, o pintor «começa com o caos, com o vazio». O que supõe que o caos, o vazio se não desligam nunca inteiramente do ser que advém.

Newman começa com uma cor sem mais nada - sem textura, sem forma, sem detalhes. A recusa do formalismo vazio, que ele via no abstraccionismo de então, e da impessoalidade utópica da abstracção própria do neoplasticismo de Mondrian (afogado, a seu ver, na metafísica), era também a sua recusa do caos na pintura. Era esse o juízo que ele fazia da pintura de Mondrian, mesmo que mais tarde venha a verificar ter-se enganado. Mas o caos era também o da crise moral, como diria vinte anos depois:

«aqui há vinte anos sentimos a crise moral de um mundo em cacos, um mundo devastado por uma grande depressão e uma severa guerra mundial, e era impossível nesse tempo pintar a espécie de pintura que fazíamos - flores, nus reclinados, gente a tocar violoncelo [como os de Cézanne, Picasso, Matisse]. Ao mesmo tempo não podíamos passar ásituação de um mundo de puras e inorgânicas formas e contornos, ou relações de cores, um mundo da sensação. E eu diria que para alguns de nós, esta era a nossa crise moral em relação ao que pintávamos. De forma que tivemos de começar, por assim dizer, do nada [ou do esgravatar, from scratch], como se a pintura estivesse não apenas morta mas nunca tivesse existido» (FINEBERG, Jonathan, op. cit., p. 103).

Assinalemos aqui esta primeira morte, que mais à frente nos interessará, porque ela se re-edita, com a sua visita aos túmulos dos índios em Miamisburg. A presença supõe a morte, traz consigo a morte, insusceptível de ser deligada do traço do uno. O uno supõe, portanto, o abismo que ele mesmo transpõe.




















III. - 1. Comecemos a tentar juntar algumas pontas soltas do que até aqui foi sendo dito. Primeiro: 1) o sublime representa, por um lado, uma cisão na forma do uno. Ela implica uma ponte sobre o abismo, mas também o abismo sobre que ela se lança. O devir uno supõe um espaçamento no sujeito. Ele dá-se - (o traço de Jacques Derrida) - no pas que Jacques Derrida discerne entre o belo e o sublime, entre o desprazer e o prazer, entre o sem-forma e a forma, entre o caos e o uno. O «pas» é um limite, uma negação: o sublime é sempre um desprazer, uma barreira à compreensão estética; mas é, finalmente, também um limite do limite, uma negação do limite, entre a sensibilidade e o inteligível. Ele é um franqueamento do limite, que levanta a questão da sua diferença.

2. A estética (transcendental) de Kant propõe um passo sobre o abismo, a partir da pressu-posição de que aquela mesma «ideia», que a natureza - bruta e abruptamente, no seu desvão e na sua desmesura, face à nossa finitude e à nossa capacidade de representação pela imaginação - já comportaria, mesmo na ocultação produzida pela sua sensível e «aparente não conformidade a fins», é recuperada como ideia da nossa própria determinação supra-sensível. O sublime constitui, portanto, um desafio que se colocaria à razão. E ao mesmo tempo, ele só pode pensar-se a partir do sujeito, na suas simultâneas, pequenez e grandeza, finitude e infinitude.

3. De onde se deduz, como acentua Derrida, que seria preciso saber de que lado estaria, afinal, a sublimidade. Se do finito, sem o qual o infinito não se coloca como razão e conformidade a fins, uma vez que é a partir da própria inadequação da imaginação que ela assim se põe, se do lado do infinito, e então seria preciso perguntar «por que razão» a «razão» tem ainda lugar dentro e fora da natureza, como natureza (visto que nos determina, enquanto razão teórica ou pura e constitutiva, por um lado, e prática por outro lado) e como não-natureza (visto que o sublime, diz Kant, não deve ser buscado na natureza). É o problema do enquadramento, do parergon, do limite, enfim, e do limite do limite que o solicita, na sua suplementaridade. Diz Jacques Derrida:

«Nenhuma «teoria», nenhuma «prática», nenhuma «prática-teórica» pode intervir efectivamente nesse campo se ela não pesar (sobre) o quadro [quer dizer: se ela não ponderar, não pensar o quadro enquanto enquadramento e, por conseguinte, nas suas implicações], estrutura decisiva do que está em jogo, no limite invisível à (entre) interioridade do sentido (posto em abrigo por toda a tradição hermeneuticista, semioticista, fenomeno-logista e formalista) e (a) todos os empirismos do extrínseco que não sabendo ver nem ler, passam ao lado da questão. [...] A questão que se abre seria a de saber se se deve pensar uma sublimidade da alma a partir de um bordo ou do outro, do infinito ou do finito, sendo entendido que os dois não se opõem, mas transgridem-se um para o outro e um no outro.» (DERRIDA, Jacques, op. cit., pp. 71; 153).

2) O «unamento» - chamemos-lhe assim por enquanto - é movimento de um espaçamento e uma temporização. Se o caos exige a ordem, e portanto o passo a dar-se sobre ele; se o desuno exige a união, e portanto, o arrependimento (atonement), a união há-de reinscrever a desunião; reinscreve-a agora, em relação ao que, antes desunido (o formalismo vazio, a impessoalidade neoplástica, o mundo devastado, em cacos) se reune no momento genesíaco e genético a partir do nada ou dos restos, «from scractch». Em relação a ponte e abismo, um não existe sem o outro. Abolindo-os, eles regressam. (Note-se, já que se fala de abismo, que Newman foi execrado pelos seus contemporâneos, a quem todavia ele muitas vezes ajudou, com a honrosa excepção de Jackson Pollock, o único a não lhe virar costas, apoiando-o na sua segunda exposição).

3) O que podemos ver no quadro de Barnett Newman é uma espécie de inscrição; a inscrição divisória ou a incisão divisiva, o traço dividual de uma individuação, a divisão necessária ao devir da união, do unamento da forma que se desloca do desuno. Essa inscrição de alto a baixo do quadro é uma espécie de traço que se rediz no título como que duas vezes. Em «I» e em onement. A individuação é, em simultâneo, a não-divisão e a divisão, uma vez que é aí que a série se abre, para o conjunto de sete Onements que Newman produziu. No título, «one» ressoa em ambos os seus extremos, como se o resultado do processo de unamento fosse ainda a divisão: Onement One.

A pintura é uma forma de traçar, de dar um passo sobre o abismo, de deslocar o limite do nada, mas também de o «produzir». Um passo sobre o abismo, um não sobre o não do abismo que o próprio passo produz «como tal», na medida em que se coloca como seu limite, como seu interruptor denominativo e pictórico. Caso em que «a sublimidade», tal como o abismo, se teria de pensar nos dois bordos dessa fronteira/desse passo entre a natureza bruta e a razão, entre o finito e o infinito (como diz Jacques Derrida) sem que possa nunca pensar-se definitivamente passado. Oscilação e desenraizamento, portanto, como diria Vattimo. E Fineberg acrescenta:

«Onement também traz consigo uma referência a Eva. O Talmud diz: «É apenas quando ele está completo que ele é chamado «um»... Quando ele é macho conjuntamente com fêmea, como ele é altamente santificado, e zeloso da santificação». Portanto «onement» tem as suas raízes na Cabbala e na literatura do Talmud, que pertencia à formação de Newman. «Onement» é o momento Genético [e não apenas genesíaco]: é Adão e Eva conjuntos [together]; celebra a criatividade humana, especialmente a do artista.» (FINEBERG, Jonathan, op. cit., p. 101).

Ora, é precisamente a fórmula do «pas(so)» sobre(/sob) o abismo que aqui nos parece que se revelaria produtiva. Jean-François Lyotard retomará a questão do sublime e do abismo, a propósito de Barnett Newman precisamente:

«Em 1950-51, Barnette Baruch Newman pinta uma tela de 2,42 m por 5,42 m, a que ele dá o nome de Vir Heroicus Sublimis. No início dos anos 1960, as suas três primeiras esculturas intitulam-se Here I, Here II e Here III. Um dos seus quadros chama-se Now, dois outros têm por título Be. Em Dezembro de 1948, Newman escreve um ensaio com o título: The Sublime is Now. [...] Num curto texto inacabado e datado do fim de 1948, Prologue for a New Esthetic, Newman escreve que, nos seus quadros, não se dedica «à manipulação do espaço, nem à imagem, mas sim à sensação de tempo». «Não se trata, acrescenta, do tempo repleto de sentimentos de nostalgia, de grandes dramas, de associações e de história, o qual foi objecto constante da pintura». O texto é interrompido nesta denegação. De que tempo se trataria? [...] Associamos frequentemente ao sentimento de angústia a eventualidade de nada ocorrer. Confere um valor principalmente negativo à espera de que se trata, se se trata de uma espera. [...] Ocorrerá? A pergunta pode ser feita em todos os tons, como diria o meu amigo Derrida. [...] Newman rompe com a eloquência da arte romântica, mas não rejeita a sua tarefa fundamental, isto é, que a expressão pictórica ou outra seja testemunha do inexprimível. O inexprimível não reside num além, num outro mundo, num outro tempo, mas nisto: que ocorra (alguma coisa)». (LYOTARD, Jean-François, «O Sublime e a Vanguarda», O Inumano: considerações sobre o tempo, trad. de Ana Crsitina Seabra e Elisabete Alexandre, Lisboa, Estampa, 1990, pp. 95-98).


Se o sublime kantiano supõe a apresentação negativa do inexprimível, o que ele apresenta é precisamente «o inapresentável no espaço» da sua própria ocorrência. A incerteza quanto ao devir, num tempo em que a História se suspende (ver aqui no blogue Recapitulações - o quadro VII: os acendentes da instalação, a referência de Jean-Luc Nancy e Lyotard, a uma história suspensa, bem como a de Adorno, na correspondência com Walter Benjamin, a propósito de «O Narrador»). Ela fica suspensa sobre a possibilidade do impossível enquanto acontecimento. Porquê o impossível? Bem, por um lado, o impossível é já o sublime. Por outro, porque o acontecimento já não é previsível, nem antecipável e, por isso, não se deixa encerrar por nenhuma possibilidade do previsto ou do previsível, em nenhuma posse ou controle exercido sobre o tempo, como a modernidade o terá sonhado, procurando pensá-lo a partir da consciência: o falhanço da grande narrativa marxista ou iluminista ou mesmo capitalista, assim como crística, aí estariam para o provar), como diria JeanFrançois Lyotard, com a falência das «metanarrativas». Esse falhanço aparece tratado pela obra que popularizou o nome de Lyotard: A Condição Pós-moderna (assim como O Pós-moderno explicado às crianças). Em O Pós-Moderno Explicado às Crianças pode ler-se:

«As «metanarrativas» de que se trata em A Condição Pós-moderna são aquelas que marcaram a modernidade: emancipação progressiva da razão e da liberdade [aquela a que Kant e Hegel pertencem, por exemplo, e já discernível no projecto iluminista da Enciclopédia; ver a este respeito, por exemplo, o belíssimo texto de Michel Foucault sobre o Was ist Auklärung? de Kant: cf. FOUCAULT, Michel, «O Que São as Luzes?», MOTA, Manoel Barros (org.), Ditos e escritos de Michel Foucault II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento, 2ª ed., trad. de Elisa Monteiro, Rio de janeiro, Forense Universitária, 2005, pp. 335-352], emancipação progressiva ou catastrófica do trabalho (fonte do valor alienado do capitalismo) [a metanarrativa marxista; veja-se, a respeito dessa «catástrofe», o livro Marx & Sons, em que Derrida responde aos detractores do seu Spectres de Marx (cf. a este respeito PEREIRA, José Paulo, O Exercício da Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007)], enriquecimento da humanidade inteira através dos progressos da tecnociência capitalista, e até, se considerando o próprio cristianismo na modernidade (opondo-se neste caso, ao classicismo antigo, [a da] salvação das criaturas através da conversão das almas à narrativa crística do amor mártir. (LYOTARD, Jean-François, O Pós-Moderno Explicado às Crianças, trad. de Tereza Coelho, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 31)

Para os nossos propósitos e dentro do âmbito do que se foi aqui (no blogue) dizendo, essa falência prende-se, transversalmente, com a impossibilidade de conceber-se a noção de um tempo inteira e antecipadamente orientado, da consciência de um rumo da História, cuja certificação estaria, agora, cada vez mais em causa. Recordemo-nos do que diz Benjamin, acerca do tempo da massa e do espaço das multidões, a propósito de Baudelaire: o tempo massivo do informe da mémoire involontaire, o tempo do «choque» (e do desenraizamento heideggereano), o tempo concentrado da «imagem dialéctica» e a sua plasticidade histórica, projectada a sua «obscuridade profética» neste tempo «global» do incomensurável e, portanto, também no tempo de uma historicidade irredutível do acontecimento ao curso projectado ou ao programa dialéctico de qualquer história teleologicamente concebida, enquanto rumo definido, - o tempo, enfim, do «choque» - não será também o tempo do «Ocorrerá?» a que aqui Lyotard se refere? Ele acrescenta, num outro texto, «O Instante Newman»:

«A obra de Newman pertence à estética do sublime que Boileau introduziu com a sua tradução de Longino, a qual se elaborou lentamente na Europa, desde o fim do século XVII, e da qual Kant e Burke foram os analistas mais escrupulosos e que o idealismo alemão, o de Fichet e de Hegel nomeadamente, incluiu (e por isso mesmo não o percebeu realmente) no princípio de que o todo do pensamento e da realidade cria um sistema. [...] Na Crítica da Faculdade de Julgar, Kant esboça, num rasgo de inspiração quase involuntário, uma outra solução [diferente da solução de Burke] para o problema da pintura sublime. Não se pode, escreve Kant, apresentar no espaço e no tempo o infinito da potência ou o absoluto da grandeza, os quais são Ideias puras. Mas, podemos, pelo menos, «evocá-los», por meio daquilo a que dá o nome de «apresentação negativa». Deste paradoxo de uma apresentação que não apresentaria nada, Kant dá, por exemplo, a interdição das imagens pela lei mosaica. É apenas uma indicação, mas anuncia as saídas abstraccionistas e minimalistas pelas quais a pintura tentará escapar à prisão figurativa» (LYOTARD, Jean-François, «O Instante Newman», op. cit., p. 91).

Como se traduziria isto na pintura de Newman, em particular? Um quadro de Newman não pressupõe já nenhumas histórias, como vimos: «uma tela de Newman opõe às histórias a sua nudez plástica. Está tudo ali, dimensões, cores, traços, sem alusão» (ibidem, p. 86). O seu espaço já «não é triádico, no sentido em que seria instado sobre um destinador, um destinatário e o um referente. A mensagem não «fala» de nada, não emana de ninguém. Não é Newman quem fala, quem faz ver, pelo meio da pintura. A mensagem (o quadro) é o mensageiro, «diz»: aqui estou, ou seja: pertenço-te, ou sê minha. Duas instâncias: eu, tu, insubstituíveis e que só ocorrem na urgência do aqui-agora. [...] A mensagem é a apresentação, a apresentação de nada, ou seja: da presença.» (ibidem, pp. 87-88). O que significa que, nessa pintura, é o lugar do terceiro (da comunidade inexistente, do consenso impossível, da ideia Impresentificável) que abre o desvão do seu abismo. Ouçamos de novo Jean-François Lyotard, acerca do que ele pensa que em kant é já uma antecipação do que estará no cerne da «pintura moderna»:

«O sublime é outro sentimento [diferente do sentimento do belo]. Ocorre quando, pelo contrário, a imaginação falha ao «presentificar» um objecto que venha, nem que seja apenas em princípio, entrar em concordância com um conceito. Temos a Ideia do mundo (a totalidade daquilo que é), mas não temos a capacidade de dar um exemplo dele. Temos a Ideia de simples (o não-decomponível), mas não podemos ilustrá-la através de um objecto sensível que disso seria um caso específico. Podemos conceber o absolutamente grande, o absolutamente poderoso, mas qualquer «presentificação» de um objecto destinado a «fazer ver» essa grandeza ou esse poder absolutos surge-nos, ainda como dolorosamente insuficiente. Estas são ideias de que não há presentificação possível, e portanto, não fazem conhecer nada da realidade ([d]a experiência) proíbem também a concordância livre das faculdades que produz o sentimento do belo, impedem a formação e a estabilização do gosto [em torno do belo e da harmonia que este supõe, entre o jogo livre das nossas faculdades e o sentimento de prazer suscitado pelo objecto, tomado fora da sua existência, suspendido da sua determinação enquanto existente, da sua finalidade prática e dos seus «atractivos»]. Pode-se dizer que são impresentificáveis. [...] Fazer ver que há algo que se pode conceber e que não se pode ver nem fazer ver: eis o propósito da pintura moderna. Mas como fazer ver que há algo que não pode ser visto? O próprio Kant indica a direcção a seguir, nomeando o informe, a ausência de forma, um indício possível d impresentificável. Também diz da abstracção vazia que sente a imaginação à procura de uma presentificação do infinito (outro «impresentificável») que essa abstracção em si mesma é como a «presentificação» negativa. Cita o «Não farás para ti imagem de escultura, etc.» (Êxodo, 2,4) como a passagem mais sublime da Bíblia, no sentido em que proíbe qualquer «presentificação» do absoluto. (LYOTARD, Jean-François, op. cit., pp. 22-23)

A que se deverá então um título como Vir Heroicus Sublimis (homem heróico e sublime)? Há uma passagem curiosa da vida de Newman que é relatada também por Fineberg (tal como pela maioria dos autores). Lyotard reconta-a assim:

«Newman conta que no mês de Agosto de 1948, visita os túmulos (os «mounds») dos Índios Miami, no Sudoeste do Ohio e a fortificação indiana de Newark, Ohio. «De pé diante dos túmulos de Miamisburg [...] fiquei confundido, escreve ele, pelo carácter absoluto da sensação, por essa simplicidade natural». Numa conversa ulterior narrada por Hess, glosa este acontecimento do lugar sagrado. Olha-se o sítio e pensa-se: «Eis-me aqui... e além, lá longe, (para além dos limites do sítio), é o caos, a natureza as ribeiras, as paisagens... Mas, aqui, adquirimos o sentido da nossa própria presença... Veio-me a ideia de tornar o espectador presente, a ideia de que o homem está presente...». [...] A arte não é um género definido por um fim (o prazer do destinatário), menos ainda um jogo, cujas regras deveriam ser descobertas; leva a cabo uma tarefa ontológica, ou seja «cronológica». Cumpre-a sem acabar. É necessário recomeçar sem fim o testemunho da ocorrência. [...] A obra ergue-se no instante, mas o raio do instante descarrega sobre ela como um comando minimal: .» (LYOTARD, Jean-François, «O Instante Newman», op. cit., pp. 92-94)

«Diante dos túmulos» que se guardam no lugar sagrado - e da morte - o caos afasta-se: condição para que possamos aceder à nossa presença: «o quadro representa a presença o seu oferecer-se aqui e agora». Ele não conta: ele é o acontecimento que ele mesmo se recusa a contar, pois esse é o seu testemunho da ocorrência. Que haja quadro e não o nada (que haja enquadramento e sujeito, visto que um não vai sem o outro, mesmo se para dizer o não-quadrável ou o impresentificável e, por conseguinte, a interrogação de um e de outro e nela a afirmação da existência no tempo) é, finalmente, no confronto com o impresentificável do Tempo, o seu mistério e o da criação, a sua criação como incisão no espaço. O quadro de Newman é aí uma espécie de performativo, de gesto de um dizer que é já acção de produzir. E nele uma convocação do espectador a esse devir do sujeito/quadro em lugar do nada, a essa presença do impresentificável que é o passo sobre/sob o seu abismo contemplativo. Mas a descrição de Newman da experiência associada à sua visita dos túmulos de Miamisburg, e à intenção de tornar o espectador presente, sugere também que o quadro é posto no lugar da sepultura. Sepultura do caos, da natureza - além - que se afasta, o quadro é também um lugar do sagrado, do separado (precisamente o que sagrado significa). O lugar em que a instância do terceiro se abre à experiência do Outro. Talvez por isso mesmo, quando é convidado a pensar no interior de uma sinagoga, em colaboração com um arquitecto, Newman venha a dizer, num texto que escreve em 1963:

«Aqui, nesta sinagoga, cada homem está sentado, isolado no seu «dugout», esperando que seja chamado, não para subir a um estrado, mas para escalar uma colina onde, sob a tensão do Tzimtzum que cria a luz e o universo, ele pode tomar consciência do sentido total da sua personalidade diante da Tora e do seu nome». [E, comenta Lyotard] A «colina» central onde se lê a Tora, está [no texto de Newman] escrita sob o nome de «mound» [o nome dos túmulos de Miamisburg], sobre os esboços e o plano. Esta condensação do espaço índio e do espaço judaico tem a sua origem e o seu fim numa tentativa de captar «a presença». A presença é o instante que interrompe o caos da história e lembra ou chama apenas, que «há» antes de qualquer significado daquilo que há.» (LYOTARD, Jean-François, «O Instante Newman», op. cit., p. 93)

Ora, «a presença» é o nome do impresentificável (tal como a Ideias de mundo, ou de simples, ou de absolutamente grande), do que não pode ser abarcado na sua totalidade, «sob a tensão do Tzimtzum que cria a luz do universo». Olhando para o quadro, e seguindo os elementos de Lyotard e os apoios de Fineberg, observam-se ali esses raios de imperativo ontológico, de um urgente «presente», como se eles se descarregassem, a distâncias variáveis, num espaço cuja profundidade é impossível de determinar, mas que vem precisamente a invadir o espaço do espectador. É nessa distância variável e indecidível que eles acolhem o espectador na sua presença. A dimensão épica (o heróico: lembremo-nos, simultaneamente, da sugestão de Fineberg, estabelecendo a analogia entre os onement de Newman e as figuras de Giacometti) é ali a de uma presença sempre retomada e fulgurante do mesmo acontecimento de divisão, da mesma presentação (negativa) do mesmo «onement», do mesmo raio de luz em instantes diversos e dispersos (o que não significa desordenados: Newman media cuidadosamente as distâncias no quadro, calculava-as obsessivamente; mas também não significa que sejam «successivos») e sem espécie nenhuma de sequência ou continuidade, uns mais à frente que outros, outros mais indiscerníveis que alguns deles, do vermelho de que emergem e em que submergem, mas afastados entre si, nessa espécie de vibração enérgica do seu sem-fundo.