1. Viu-se, na abordagem introdutória feita nos dois textos anteriores de Recapitulações (VII e VI), que a menção da noção de «instalação» nos levava a falar, a certa altura, no que se referia ao Maneirismo (no caso de Velázquez), da teatralidade da pintura. E ela vinha ali a propósito, quer da abertura do plano de representação (quarta parede frontal do cubo cenográfico, que o trompe l'oeil tornava imediatamente sensível, em outros casos que não o de Velázquez, é bom lembrar), quer da projecção frontal do espaço da representação pictórica (era, este sim, o caso de Velázquez) pelo jogo dos olhares dirigidos para o fora-de-campo de um lugar (do espectador) apenas entrevisto, (pela inscrição do reflexo sobre o espelho de fundo em Las Meninas, assim como pela interpelação exercida pelo engodo dos olhares), quer ainda pelo corte da pirâmide visiva simetricamente projectada na perspectiva, instauradora de um espaço sem fundo ou de um espaço onde a profundidade de campo da pintura renascentista desaparecia. Bernardo Pinto de Almeida chamava a nossa atenção para o facto de essa teatralidade afectar sobretudo a pintura de cenas no interior de casas burguesas, onde o espírito da época maneirista implicava, num mundo burguês do como se, que invadia o espaço de representação.
A correlação desses dois elementos na pintura - o corte transversal da pirâmide perspéctica e a abertura sensível do plano de representação pelo jogo dos olhares - equacionava o que aí se entendia por teatralidade na representação pictural. Antes de entrarmos na questão da teatralidade como qualidade definidora do que diferencia o teatro das restantes artes, procurando um elo semiológico de passagem entre eles, tínhamos já, portanto, dois elementos da estrutura representacional do espaço pictórico indicativos da sua presença e dos seus efeitos. A acrescentar-se-lhes havia, no texto dedicado por Roland Barthes a «Diderot, Brecht, Eisenstein», um terceiro elemento, que fazia do teatro uma arte da refracção, a par de outras (o cinema, a escrita, a pintura, etc.), para a qual a noção de «quadro» era essencial. E, do ponto de vista de Louis Marin, vimos também que se tratava sempre de pensar a representação pictural a partir do dispositivo de compreensão estrutural a que dava o nome de cubo cenográfico (que poderíamos usar, de resto, também no caso da instalação, dada como «câmara sensorial» por Florence Mèredieu).
A correlação desses dois elementos na pintura - o corte transversal da pirâmide perspéctica e a abertura sensível do plano de representação pelo jogo dos olhares - equacionava o que aí se entendia por teatralidade na representação pictural. Antes de entrarmos na questão da teatralidade como qualidade definidora do que diferencia o teatro das restantes artes, procurando um elo semiológico de passagem entre eles, tínhamos já, portanto, dois elementos da estrutura representacional do espaço pictórico indicativos da sua presença e dos seus efeitos. A acrescentar-se-lhes havia, no texto dedicado por Roland Barthes a «Diderot, Brecht, Eisenstein», um terceiro elemento, que fazia do teatro uma arte da refracção, a par de outras (o cinema, a escrita, a pintura, etc.), para a qual a noção de «quadro» era essencial. E, do ponto de vista de Louis Marin, vimos também que se tratava sempre de pensar a representação pictural a partir do dispositivo de compreensão estrutural a que dava o nome de cubo cenográfico (que poderíamos usar, de resto, também no caso da instalação, dada como «câmara sensorial» por Florence Mèredieu).
2. Se se compreende preliminarmente, na pintura, a teatralidade da representação a partir da sua projecção imaginária frontal (o «teatro» é o lugar de onde se assiste ao desenrolar de uma cena que assim se estenderia pela sua totalidade), destinada a envolver o espectador no avanço do espaço representado, dever-se-ia, ainda, procurar compreender, em contraponto, em que consistiria uma eventual «pictorialidade», enquanto qualidade que distinguiria, por outro lado, a pintura de outras artes. É claro que o exemplo da teatralidade na pintura mostra que, nem num caso, nem noutro (o da pictorialidade) se está perante qualidades exclusivas, exactamente como foi possível, nos estudos literários, discernir a função poética, ou a literariedade, em textos não literários. Da mesma forma, a «teatralidade» na pintura deve poder ter, como contrapartida, uma «pictorialidade» susceptível de ser encontrada em outros géneros ou modalidades artísticas. Para dar aqui apenas um exemplo, a propósito da fotografia, socorramo-nos de Roland Barthes, que nos fala de um certo «pictorialismo» nela praticado:
«O primeiro homem a ver a primeira fotografia (se exceptuarmos Niepce, que foi quem a fez) deve ter pensado que se tratava de uma pintura: o mesmo enquadramento, a mesma perspectiva. A Fotografia foi e ainda é atormentada pela pintura (Mapplethorpe representa um ramo de íris como o poderia ter feito um pintor oriental); ela faz dela, através das suas cópias e das suas contestações, a Referência absoluta, paternal, como se tivesse nascido do Quadro (é verdade, de um ponto de vista técnico, mas apenas em parte, porque a camera obscura dos pintores é apenas uma das causas da Fotografia; o essencial, talvez, foi a descoberta química). Neste ponto da minha investigação, nada distingue eideticamente uma fotografia, por muito realista que seja, de uma pintura. O «pictorialismo» não é mais do que um exagero daquilo que a Fotografia pensa de si própria. Não é, no entanto, parece-me pela Pintura que a Fotografia participa da arte, é pelo Teatro. [...] A camera obscura, em suma, produziu simultaneamente o quadro perspectivado, a Fotografia e o Diorama, que são todos três, artes do palco» (BARTHES, Roland, A Câmara Clara, trad. de Manuela Torres, Lisboa, Edições 70, p. 52).
É claro, como o próprio Barthes se encarregará de sublinhar, embora o enquadramento e a perspectiva, na fotografia e na pintura, sejam os mesmos, há imediatamente uma diferença fundamental: enquanto que o pintor compõe os elementos da representação - ou, seja-nos permitida aqui uma espécie de neologismo, que não é de resto nosso, os confeiçoa - o fotógrafo, esse não os poderia compor a não ser em atelier, dispondo cenograficamente os elementos a fotografar, ou comandando a pose, o ângulo e a iluminação da exposição conforme os seus desejos - o que seria verdade, por exemplo, para a fotografia de publicidade, onde o «lugar olhado» das coisas é mais importante por razões que se prendem com a sua conotação (assunto a que regressaremos mais tarde)... De resto, no mais dos casos, o instantâneo fotográfico supõe uma espécie de impotência compositiva que o dissocia da pintura e do teatro: a fotografia enquadra, recebe em perspectiva, dá de si o testemunho da sua presença, mas não compõe, excepto quando é sobre uma encenação prévia que ela capta o seu instante premente...
«[...](como teria podido Kersetz «separar» [trata-se da foto de A. Kersetz, A Balada do Violinista] a calçada do violinista que nela passeia?) A visão do fotógrafo não consiste em «ver», mas em estar lá.» (BARTHES, Roland, op. cit., p. 74)
3. E se ela é uma «arte do palco», como diz Roland Barthes, é através da sua relação com a Morte: o que ela fixa é o irrepetível do aqui e agora, o contingente do seu hic et nunc, solto como um corte transversal do momento, folha volante de um instante premente, lâmina cortante de um tempo decepado, lançada na espiral de uma deriva inantecipável. Nisso teria a fotografia, com o Teatro, uma cumplicidade que remontaria a tempos antigos: «é conhecida a relação original entre o teatro e o culto dos mortos; os primeiros actores distinguiam-se da comunidade ao desempenhar o papel de mortos; caracterizar-se era apresentar-se como um corpo simultaneamente vivo e morto (ibidem, p. 53)». No entanto, se estas relações aproximam a fotografia do teatro, ficar-nos-ia por procurar estabelecer as primeiras distinções quanto à «pintura». Diferentemente da fotografia, ela mantém uma diferença entre original e cópia que, no caso da fotografia, tanto quanto no teatro, seria bastante mais difícil de estabelecer. Qual das representações de uma peça é a mais autêntica ou mais original? E da fotografia, qual das cópias, feitas a partir do mesmo negativo (hoje a partir do mesmo positivo pixelizado) é a primeira? Ora, o que a pintura capta no retrato, segundo Roland Barthes, que tem por referência a pintura clássica e o sujeito comum, é uma textura moral fina:
«Se eu pudesse sair no papel [da fotografia] como numa tela clássica, com um ar nobre, pensativo, inteligente, etc.! Em suma, se eu pudesse ser «pintado» (por «Ticiano») ou «desenhado» (por «Clouet»)! Mas como aquilo que eu gostaria que fosse captado é uma textura moral fina, e não uma mímica, e como a Fotografia é pouco subtil, salvo em muito bons retratistas, não sei como agir do interior sobre o meu aspecto. » (BARTHES, Roland, op. cit., pp. 26-28)
De resto, acerca da «pintura», Roland Barthes não nos diz tanto quanto acerca do teatro ou da fotografia ... O volume dos seus escritos dedicados ao teatro (uma das suas paixões mais persistentes foi justamente o teatro de Brecht; cf. as suas Oeuvres complètes) é bastante superior ao dos que dedicou à pintura (textos sobre André Masson, Arcimboldo, Réquichot, Twombly...). Um dos seus textos acerca da pintura, contudo, nos parece bastante interessante, antes de entrarmos na referência a Louis Marin, e àquilo que este último designa por carne opaca da pintura.
4. É um texto dedicado à arte «Pop». Além disso, do seu ponto de vista (o de uma «teoria do texto» que representou, no seu caso, uma apropriação particular da semiologia, operada pela via da influência conjugada da filosofia e da psicanálise, tal como elas eram abordáveis pela «desconstrução») o que que faria sentido não seria manter as artes separadas por uma diferenciação e uma classificação substanciais (tradicionais) da sua expressão, visto que as distinções se revelam, as mais das vezes, falíveis, a braços com a inexistência de critérios absolutamente nítidos e exclusivos. Era antes o de as abordar do ponto de vista da significância e da textualidade. É o que ele propõe em S/Z, no momento em que trata das relações entre a pintura e a literatura, na secção intitulada «O Modelo da Pintura»:
«E de resto, se literatura e pintura deixam de ser apreciadas com uma reflexão hierárquica [pois a pintura fôra, durante muito tempo, uma forma de transpôr temas literários; no caso da pintura renascentista, isso é muito patente, por exemplo no facto de ela assumir ainda temas predominantemente religiosos, retirados das Sagradas Escrituras: assim, a «reflexão hierárquica» supõe, aqui, a inscrição do reflexo de uma outra arte considerada superior, e portanto a dependência de cada uma delas, revezadamente, em relação a um modelo exterior, que a outra representaria; por exemplo, no caso da literatura realista do século XIX, esses papéis invertem-se, e é a literatura a seguir «o modelo da pintura», como demonstra S/Z, ou ainda O Efeito de Real, em que é de Flaubert que se trata e da descrição de Rouen], sendo uma o retrovisor da outra [quer dizer, o espelho do que uma delas tem, como precedente e como referência modelar, na outra], para quê considerá-las por mais tempo como objectos simultaneamente solidários e separados, numa palavra: classificados? [...] Por que razão não se renuncia à pluralidade das «artes» para melhor afirmar a pluralidade dos «textos»? (BARTHES, Roland, «O Modelo da Pintura», S/Z, trad. de Ana Mafalda Leite e Margarida Santa Cruz, Lisboa, Edições 70, 1980, p. 48).
5. Independentemente do seu projecto de afirmação da pluralidade dos textos (há sempre «texto», em todas as «artes», mas também o há «fora» delas....), começaremos aqui por algumas observações suas, em relação à arte «Pop». Algumas características são ali levantadas, logo no início: 1) a arte Pop apropria-se de «imagens de massa», materiais antes mantidos na esfera da cultura, estereótipos culturais considerados indignos de inclusão na esfera da afirmação estética: a fotografia e a serigrafia (bem como o filme) fazem nela a sua entrada, e com elas o princípio da repetição que, como assinala Roland Barthes, «é um traço de cultura»; 2) com a repetição maquínica o que nela se anula, segundo Roland Barthes, é «o poder maléfico ou moral» do Duplo, que se torna «insignificante, portanto, irreligioso», conforme os poderes da reprodução analógica; 3) neste sentido, a arte Pop é já pós-duchampiana e o artista encontra nela o lugar de um operador de um agenciamento de objectos encontrados, numa sintaxe da repetição (melhor seria dizer, numa parataxe) cujo fim é o de uma despersonalização e de uma evacuação do estilo; 4) o que a arte pop elege é «a conformidade simples da representação com a coisa representada», o que é ainda coerente com o uso de meios de reprodução analógica, e com a promoção dos elementos produzidos pela cultura de massas.
Em resumo: promoção do descartável ou descartado, repetição-anulação da distinção entre o original e o duplo, despersonalização e evacuação do estilo, conformidade da representação com o representado - tudo aponta para uma certa des-subjectivação. E em todos estes aspectos, avulta um traço comum: a repetição (a citação) é, com efeito, um processo que a todos atravessa. Mas, ao invés de constituir aí um traço exclusivo de alienação (fôra esse o sentido da crítica de Herbert Marcuse, em A Dimensão Estética), pelo contrário, aqui a repetição é pensada por Barthes como um poder de distanciamento crítico e irónico, que é posto tão empenhadamente ao serviço da re-presentação que a subverterá. É esse aspecto que gostaria de começar por destacar, no texto de Roland Barthes. Diz ele:
«A repetição do retrato implica uma alteração da pessoa (noção simultaneamente civil, moral, psicológica e, bem entendido, histórica). A arte pop, também foi dito, toma o lugar de uma máquina; serve-se com predilecção dos processos de reprodução mecânica; por exemplo, ela petrifica a vedeta (Marylin, Liz, Elvis) na sua imagem de vedeta: já não há alma, nada mais do que um estatuto, propriamente imaginário, já que o ser da vedeta é o ícone. [...] A arte pop sabe muito bem que a expressão fundamental da pessoa é o estilo. Buffon dizia (frase célebre, outrora conhecida de todos os estudantes franceses): «o estilo é o homem». Retirem o estilo, e nada mais há do que o homem vulgar. A ideia do estilo, em todas as artes, esteve pois ligada a um humanismo da pessoa. [...] De resto, é preciso que nos entendamos: a arte pop despersonaliza, mas não torna anónimo: nada mais identificável do que do que Marylin, a cadeira eléctrica, um pneu, um vestido, vistos pela arte pop; aliás não são mais do que isso: imediatamente e exaustivamente identificáveis, ensinando-nos dessa maneira que a identidade não é a pessoa: o mundo futuro está em risco de ser um mundo de identidades (pela generalização mecânica dos ficheiros da polícia) mas não um mundo de pessoas». (BARTHES, Roland, «Essa velha coisa... a arte», O Óbvio e o Obtuso, trad. de Isabel pascoal, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 171).
Portanto, a repetição «altera» a pessoa (dá-a como «outra»: tiínhamo-lo visto a propósito da fotografia, mais acima) e, na reiteração de uma infinidade de variações (fantasmáticas), retira dela a sua alma, reduzindo-a, finalmente, por saturação, à sua mais depurada e indiferenciada exterioridade. Neste caso, ela «petrifica» a vedeta, no seu estatuto de «ícone», convertendo-a aos nossos olhos, precisamente naquilo que culturalmente são: objectos-fetiche em que se projectaria a nossa nostalgia do que nos falta (algo do corpo da Mãe fálica, diria a psicanálise: nostalgia de um objecto de desejo entretanto perdido). Com a repetição, a arte «pop» isola a identidade da personalidade, separando-as uma da outra. E faz isso com as vedetas, os ícones da cultura de massas.
6. Quer isso dizer que ela, segundo Barthes, nos ensinaria a não as confundir, e nos previniria contra uma ameaçadora redução, própria da sociedade capitalista e da cultura de massas, à identidade. Neste ponto, talvez não ficasse mal reforçar o que esta noção de «identidade» supõe de mortificação ou de subjugação. O que a fotografia aí faz é «executar» o sujeito, colando-o a uma imagem de si que se furta ao seu desejo, fixando-o ao vazio da sua exterioridade, pondo-o numa relação de não coincidência consigo próprio, pesando-lhe como o sentido que a expressão conota:
«Gostaria, afinal, que a minha imagem móvel, atormentada entre mil fotos mutáveis consoante as situações, a idade, coincidisse sempre com o meu «eu» (profundo, como se sabe); mas é o contrário que é preciso dizer: sou «eu» que nunca coincido com a minha imagem, porque a minha imagem é pesada, imóvel, obstinada (aquilo em que a sociedade se apoia), e sou «eu» que sou leve, dividido, disperso e que, como um ludião, não fico quieto, agitando-me no meu bocal.[...] Porque a Fotografia é o aparecimento de eu próprio enquanto outro, uma dissociação artificiosa da consciência da identidade. E ainda mais curioso: foi antes da fotografia que os homens mais falaram da visão do duplo.» (BARTHES, Roland, A Câmara Clara, op. cit., p. 27).
Portanto, a repetição «altera» a pessoa (dá-a como «outra»: tiínhamo-lo visto a propósito da fotografia, mais acima) e, na reiteração de uma infinidade de variações (fantasmáticas), retira dela a sua alma, reduzindo-a, finalmente, por saturação, à sua mais depurada e indiferenciada exterioridade. Neste caso, ela «petrifica» a vedeta, no seu estatuto de «ícone», convertendo-a aos nossos olhos, precisamente naquilo que culturalmente são: objectos-fetiche em que se projectaria a nossa nostalgia do que nos falta (algo do corpo da Mãe fálica, diria a psicanálise: nostalgia de um objecto de desejo entretanto perdido). Com a repetição, a arte «pop» isola a identidade da personalidade, separando-as uma da outra. E faz isso com as vedetas, os ícones da cultura de massas.
6. Quer isso dizer que ela, segundo Barthes, nos ensinaria a não as confundir, e nos previniria contra uma ameaçadora redução, própria da sociedade capitalista e da cultura de massas, à identidade. Neste ponto, talvez não ficasse mal reforçar o que esta noção de «identidade» supõe de mortificação ou de subjugação. O que a fotografia aí faz é «executar» o sujeito, colando-o a uma imagem de si que se furta ao seu desejo, fixando-o ao vazio da sua exterioridade, pondo-o numa relação de não coincidência consigo próprio, pesando-lhe como o sentido que a expressão conota:
«Gostaria, afinal, que a minha imagem móvel, atormentada entre mil fotos mutáveis consoante as situações, a idade, coincidisse sempre com o meu «eu» (profundo, como se sabe); mas é o contrário que é preciso dizer: sou «eu» que nunca coincido com a minha imagem, porque a minha imagem é pesada, imóvel, obstinada (aquilo em que a sociedade se apoia), e sou «eu» que sou leve, dividido, disperso e que, como um ludião, não fico quieto, agitando-me no meu bocal.[...] Porque a Fotografia é o aparecimento de eu próprio enquanto outro, uma dissociação artificiosa da consciência da identidade. E ainda mais curioso: foi antes da fotografia que os homens mais falaram da visão do duplo.» (BARTHES, Roland, A Câmara Clara, op. cit., p. 27).
7. Ao «charme» do que, justamente no caso da vedeta, é promovido, pela cultura de massas, como símbolo cultual (e aurático) do Único e do Insusbtituível, do Ímpar e do Singular, como é o caso de Marylin Monroe, de Liz Taylor e de Elvis Presley na cultura americana, a arte «pop» responderia com uma repetição, uma desintensificação da relação imaginária por efeito de uma aceleração repetitiva, destinada a fazer desaparecer «a alma» de cada um desses ícones, de forma a exibi-los aos nossos olhos, como quem os colocasse frente ao espelho da sua veneração. Inversão produzida pela acentuação, pela aceleração e a saturação da repetição da representação. Vírmos, com Bill Viola, que o ícone não é um objecto qualquer, mas um objecto investido de um poder sagrado. Repetindo-o, a arte pop desinveste-o, banaliza-o ou despe-o do que faz dele um ente Uno e Singular, Sagrado ou Separado, aquele que cultura de massas nele vê.
A esse nível, não há diferença nenhuma, para a arte pop, entre Marylin Monroe e uma lata de sopa Campbell. O ponto de vista do artista não pode ali, portanto, ser outro senão o de um observador que encontra, fascinadamente, perante a consagração massiva do ícone, o princípio mesmo da ironia que a sua repetição (a sua citação) potencialmente contém e através da qual deslocadoramente intervém. O «ícone» é um símbolo da cultura, no seu carácter repetitivo ou, para usar aqui uma expressão de Jean-Fraçois Lyotard, «no seu estado costumeiro». E a cultura é, neste sentido, também uma máquina encrática (impregnada, apossada e gerida, movida pelo poder) de repetição, de repisamento e de consolidação de estereótipos. O que a arte pop faz é abri-la do seu interior, e estender, contra ela mesma, o princípio repetitivo do seu próprio funcionamento. O interesse do texto de Roland Barthes vem, contudo, para nós, logo a seguir às passagens que dele acabámos de citar. Refere-se ao último traço que fixámos (o 4)) que, a propósito da repetição, é o da conformidade da representação com o objecto representado. Roland Barthes cita ali Rauschenberg:
«Eu não quero, diz Rauschenberg, que uma tela se pareça com o que ela não é. Quero que ela se pareça com o que ela é». A proposta é agressiva na medida em que a arte se realizou sempre por um desvio inevitável pelo qual tem de passar para dar a verdade da coisa. O que a arte pop quer é dessimbolizar o objecto, dar-lhe o matiz e a insistência obtusa de um facto (John Cage: «O objecto é facto, não símbolo»). Dizer que o objecto é assimbólico, é negar que ele dispõe de um espaço de profundidade e de avizinhamento, através do qual a sua aparição possa propagar vibrações de sentido: o objecto da arte pop (isto é uma verdadeira revolução da linguagem) não é nem metafórico nem metonímico; [...]»(BARTHES, Roland, O Óbvio e o Obtuso, op. cit., p. 172).
Em «Recapitulações - o quadro VI: o terceiro sentido ou o sentido obtuso» tínhamos visto a definição de «obtuso», na definição semiológica do terceiro sentido, e tínhamos acompanhado a ilustração do seu funcionamento, nos fotografamas do filme de Eisenstein - O Couraçado de Potemkin - que Barthes escolhera para tal. O «terceiro sentido» é precisamente aquele que escapa à relação de representação (ou de transitividade mimética, para usar de novo uma expressão de Louis Marin). A afirmação de Rauschenberg acentua, portanto, esta dimensão reflexiva da obra de arte, na qual a tela não se parece com o que ela não é, mas antes se dá com a insistência obtusa, inevitável, de um facto objectivo, insistente, que valeria por si mesmo... Nesse sentido, a obra de arte não copiaria objectos exteriores, mas constituí-los-ia ela própria, na dimensão da sua facticidade: «a tela» é um objecto, em lugar de representar um objecto que ela não é. O mesmo é dizer: a tela não é já «símbolo», à semelhança do que acontecia com o terceiro sentido no filme de Eisenstein, pois que todo o símbolo nos reenvia para o que ele não é, evocado ou recuperado de uma forma mais ou menos desviada ou refractada, nas artes «dióptricas».
8. Por isso, o objecto-(em-)tela de Rauschenberg já não seria, segundo Roland Barthes, nem metafórico (uma figura não estaria lá em vez de uma outra, ou de um objecto representado, numa substituição por semelhança) nem metonímico (uma figura não estaria lá dando-se como elemento significativo por contiguidade associativa). Percebe-se a fascinação de Barthes por esse objecto-«tela», tal como a fascinação da arte pop pelo objecto-trama. Ora, é nesse sentido não simbólico, não metafórico e não metonímico, que Roland Barthes nos falaria aqui de «uma verdadeira revolução da linguagem», numa expressão que lembra imediatamente Julia Kristeva. Porque «a tela» de Rauschenberg não é já nem símbolo, nem signo de uma realidade que lhe fosse exterior, e da qual a arte houvesse tido que se desviar, para nos dar a sua verdade acerca dele... Pelo contrário, a tela de Rauschenberg pretende ser «um objecto», apenas parecido com o que ela própria é, na malha aberta e inútil da sua pregnância.
10. Reenviando da pintura para si própria, essa «objectividade» representaria, postas assim as coisas, uma «ausência de profundidade», uma disposição horizontal e superficial, um achatamento do sentido, portanto. Visto que «a tela» deixa de reenviar para uma vivência ou para um sujeito, para uma convenção significativa ou para uma motivação prático-social, como acontece com os signos; visto que ela deixa de remeter para um certo conceito de «objecto-utensílio», ou de «objecto-signo», como acontece com a maior parte dos elementos do nosso quotidiano, que indicam e indexam uma cultura determinada, uma certa situação histórica, uma determinada condição psicológica, uma circunstância existencial, etc., o objecto que a tela é perde profundidade e desliga-se de relações de «avizinhamento» (de «convenientia», diria Louis Marin, leitor de Foucault) que definem o seu peso e o seu lugar ...
Dizer que a arte pop pretenderia «dessimbolizar o objecto», como Roland Barthes diz, não é dizer, no entanto, que a tela perde toda e qualquer significação. É, de resto, impossível produzir alguma coisa absolutamente desprovida de significação. Uma coisa «insignificante» seria já significativamente recuperada pela nossa linguagem e a nossa cultura, uma vez posta a seu lado, ou à margem delas. «Dessimbolizar o objecto» é antes desprendê-lo das amarras da sua significação simbólica, (no sentido lacaniano de «símbolo») desligando-o ou desenraizando-o, e dando-no-lo na obtusidade de um real que escapa, tal como «o terceiro sentido», à marcação de uma referência mais ou menos segura de intencionalidade de significação:
«[O objecto da arte pop] ele dá-se separado dos seus antepassados, e dos seus próximos; em particular, o artista não se mantém detrás da sua obra, e ele próprio é sem passado: ele não é mais que a superfície dos seus quadros: nenhum significado, nenhuma intenção, nenhuma parte. [...] já não é o facto que se transforma em imagem, é a imagem que se transforma em facto. A arte pop põe assim em cena uma qualidade filosófica das coisas, a que se chama factiticidade: o factício é o carácter do que existe enquanto facto e aparece desprovido de qualquer justificação: não somente os objectos representados pela arte pop são factícios, mas ainda incarnam o próprio conceito de facticidade - pelo que, apesar deles recomeçam a significar: eles significam que não significam nada.» (BARTHES, Roland, op. cit., p. 172).
Esse projecto de «dessimbolização» do «real» visaria pô-lo a descoberto - num Real lacaniano - fazê-lo emergir numa cultura em que tudo significa. E a fórmula de Roland Barthes é, como dissemos, tão lacaniana quanto a dessublimação seria marcuseana: dessimbolizar pressuporia dessublimar, regressar ao anterior à negatividade pressuposta pelo Símbolo, ao anterior à medida comum (ao anterior ao ícone), ao anterior à lei da linguagem e à ordem do discurso, à materialidade do que se desprende do signo, ou ao que mais fortemente se separa das injunções que lhe determinam as suas restrições de selecção. Leo Steinberg, em Other Criteria, dá-nos uma leitura do «quadro» de Rauschenberg, mostrado em cima, logo na abertura deste post:
«Talvez o gesto mais profundamente simbólico de Rauschenberg tenha vindo em 1955, quando ele agarrou na sua própria cama, manchou de tinta o seu travesseiro e a coberta acolchoada e a levantou contra a parede. Ali, na postura vertical da 'arte', [ela] continua a trabalhar na imaginação como a eterna companhia dos nossos outros recursos, a nossa horizontalidade, a cama plana [flatbed] na qual procriamos, concebemos, sonhamos. A horizontalidade da cama relaciona-se com o 'fazer', tal como o vertical do plano pictórico da Renascença se relacionava com o 'ver'. [...] O que ele sobretudo inventou foi, penso, uma superfície pictórica que deixou de novo entrar o mundo. Não o mundo do homem da Renascença, que olhava para as indicações do tempo pela janela, mas o mundo do homem que roda botões para ouvir uma mensagem gravada [...] electronicamente transmitida a partir de algum antro sem janelas. O plano pictórico da cama plana [flatbed] presta-se a qualquer conteúdo que não evoque um acontecimento óptico prévio». (STEINBERG, Leo, «Flatbed Picture Plane», Other Criteria, cit. in HARRISON, Charles; WOOD, Paul (eds.) Art in Theory: 1900-1990, Oxford, Blackwell, 1993, p. 952).
A esse nível, não há diferença nenhuma, para a arte pop, entre Marylin Monroe e uma lata de sopa Campbell. O ponto de vista do artista não pode ali, portanto, ser outro senão o de um observador que encontra, fascinadamente, perante a consagração massiva do ícone, o princípio mesmo da ironia que a sua repetição (a sua citação) potencialmente contém e através da qual deslocadoramente intervém. O «ícone» é um símbolo da cultura, no seu carácter repetitivo ou, para usar aqui uma expressão de Jean-Fraçois Lyotard, «no seu estado costumeiro». E a cultura é, neste sentido, também uma máquina encrática (impregnada, apossada e gerida, movida pelo poder) de repetição, de repisamento e de consolidação de estereótipos. O que a arte pop faz é abri-la do seu interior, e estender, contra ela mesma, o princípio repetitivo do seu próprio funcionamento. O interesse do texto de Roland Barthes vem, contudo, para nós, logo a seguir às passagens que dele acabámos de citar. Refere-se ao último traço que fixámos (o 4)) que, a propósito da repetição, é o da conformidade da representação com o objecto representado. Roland Barthes cita ali Rauschenberg:
«Eu não quero, diz Rauschenberg, que uma tela se pareça com o que ela não é. Quero que ela se pareça com o que ela é». A proposta é agressiva na medida em que a arte se realizou sempre por um desvio inevitável pelo qual tem de passar para dar a verdade da coisa. O que a arte pop quer é dessimbolizar o objecto, dar-lhe o matiz e a insistência obtusa de um facto (John Cage: «O objecto é facto, não símbolo»). Dizer que o objecto é assimbólico, é negar que ele dispõe de um espaço de profundidade e de avizinhamento, através do qual a sua aparição possa propagar vibrações de sentido: o objecto da arte pop (isto é uma verdadeira revolução da linguagem) não é nem metafórico nem metonímico; [...]»(BARTHES, Roland, O Óbvio e o Obtuso, op. cit., p. 172).
Em «Recapitulações - o quadro VI: o terceiro sentido ou o sentido obtuso» tínhamos visto a definição de «obtuso», na definição semiológica do terceiro sentido, e tínhamos acompanhado a ilustração do seu funcionamento, nos fotografamas do filme de Eisenstein - O Couraçado de Potemkin - que Barthes escolhera para tal. O «terceiro sentido» é precisamente aquele que escapa à relação de representação (ou de transitividade mimética, para usar de novo uma expressão de Louis Marin). A afirmação de Rauschenberg acentua, portanto, esta dimensão reflexiva da obra de arte, na qual a tela não se parece com o que ela não é, mas antes se dá com a insistência obtusa, inevitável, de um facto objectivo, insistente, que valeria por si mesmo... Nesse sentido, a obra de arte não copiaria objectos exteriores, mas constituí-los-ia ela própria, na dimensão da sua facticidade: «a tela» é um objecto, em lugar de representar um objecto que ela não é. O mesmo é dizer: a tela não é já «símbolo», à semelhança do que acontecia com o terceiro sentido no filme de Eisenstein, pois que todo o símbolo nos reenvia para o que ele não é, evocado ou recuperado de uma forma mais ou menos desviada ou refractada, nas artes «dióptricas».
8. Por isso, o objecto-(em-)tela de Rauschenberg já não seria, segundo Roland Barthes, nem metafórico (uma figura não estaria lá em vez de uma outra, ou de um objecto representado, numa substituição por semelhança) nem metonímico (uma figura não estaria lá dando-se como elemento significativo por contiguidade associativa). Percebe-se a fascinação de Barthes por esse objecto-«tela», tal como a fascinação da arte pop pelo objecto-trama. Ora, é nesse sentido não simbólico, não metafórico e não metonímico, que Roland Barthes nos falaria aqui de «uma verdadeira revolução da linguagem», numa expressão que lembra imediatamente Julia Kristeva. Porque «a tela» de Rauschenberg não é já nem símbolo, nem signo de uma realidade que lhe fosse exterior, e da qual a arte houvesse tido que se desviar, para nos dar a sua verdade acerca dele... Pelo contrário, a tela de Rauschenberg pretende ser «um objecto», apenas parecido com o que ela própria é, na malha aberta e inútil da sua pregnância.
10. Reenviando da pintura para si própria, essa «objectividade» representaria, postas assim as coisas, uma «ausência de profundidade», uma disposição horizontal e superficial, um achatamento do sentido, portanto. Visto que «a tela» deixa de reenviar para uma vivência ou para um sujeito, para uma convenção significativa ou para uma motivação prático-social, como acontece com os signos; visto que ela deixa de remeter para um certo conceito de «objecto-utensílio», ou de «objecto-signo», como acontece com a maior parte dos elementos do nosso quotidiano, que indicam e indexam uma cultura determinada, uma certa situação histórica, uma determinada condição psicológica, uma circunstância existencial, etc., o objecto que a tela é perde profundidade e desliga-se de relações de «avizinhamento» (de «convenientia», diria Louis Marin, leitor de Foucault) que definem o seu peso e o seu lugar ...
Dizer que a arte pop pretenderia «dessimbolizar o objecto», como Roland Barthes diz, não é dizer, no entanto, que a tela perde toda e qualquer significação. É, de resto, impossível produzir alguma coisa absolutamente desprovida de significação. Uma coisa «insignificante» seria já significativamente recuperada pela nossa linguagem e a nossa cultura, uma vez posta a seu lado, ou à margem delas. «Dessimbolizar o objecto» é antes desprendê-lo das amarras da sua significação simbólica, (no sentido lacaniano de «símbolo») desligando-o ou desenraizando-o, e dando-no-lo na obtusidade de um real que escapa, tal como «o terceiro sentido», à marcação de uma referência mais ou menos segura de intencionalidade de significação:
«[O objecto da arte pop] ele dá-se separado dos seus antepassados, e dos seus próximos; em particular, o artista não se mantém detrás da sua obra, e ele próprio é sem passado: ele não é mais que a superfície dos seus quadros: nenhum significado, nenhuma intenção, nenhuma parte. [...] já não é o facto que se transforma em imagem, é a imagem que se transforma em facto. A arte pop põe assim em cena uma qualidade filosófica das coisas, a que se chama factiticidade: o factício é o carácter do que existe enquanto facto e aparece desprovido de qualquer justificação: não somente os objectos representados pela arte pop são factícios, mas ainda incarnam o próprio conceito de facticidade - pelo que, apesar deles recomeçam a significar: eles significam que não significam nada.» (BARTHES, Roland, op. cit., p. 172).
Esse projecto de «dessimbolização» do «real» visaria pô-lo a descoberto - num Real lacaniano - fazê-lo emergir numa cultura em que tudo significa. E a fórmula de Roland Barthes é, como dissemos, tão lacaniana quanto a dessublimação seria marcuseana: dessimbolizar pressuporia dessublimar, regressar ao anterior à negatividade pressuposta pelo Símbolo, ao anterior à medida comum (ao anterior ao ícone), ao anterior à lei da linguagem e à ordem do discurso, à materialidade do que se desprende do signo, ou ao que mais fortemente se separa das injunções que lhe determinam as suas restrições de selecção. Leo Steinberg, em Other Criteria, dá-nos uma leitura do «quadro» de Rauschenberg, mostrado em cima, logo na abertura deste post:
«Talvez o gesto mais profundamente simbólico de Rauschenberg tenha vindo em 1955, quando ele agarrou na sua própria cama, manchou de tinta o seu travesseiro e a coberta acolchoada e a levantou contra a parede. Ali, na postura vertical da 'arte', [ela] continua a trabalhar na imaginação como a eterna companhia dos nossos outros recursos, a nossa horizontalidade, a cama plana [flatbed] na qual procriamos, concebemos, sonhamos. A horizontalidade da cama relaciona-se com o 'fazer', tal como o vertical do plano pictórico da Renascença se relacionava com o 'ver'. [...] O que ele sobretudo inventou foi, penso, uma superfície pictórica que deixou de novo entrar o mundo. Não o mundo do homem da Renascença, que olhava para as indicações do tempo pela janela, mas o mundo do homem que roda botões para ouvir uma mensagem gravada [...] electronicamente transmitida a partir de algum antro sem janelas. O plano pictórico da cama plana [flatbed] presta-se a qualquer conteúdo que não evoque um acontecimento óptico prévio». (STEINBERG, Leo, «Flatbed Picture Plane», Other Criteria, cit. in HARRISON, Charles; WOOD, Paul (eds.) Art in Theory: 1900-1990, Oxford, Blackwell, 1993, p. 952).
10. É necessária, aqui, uma precisão. O que aqui traduzimos por «cama plana» é a expressão recolhida por Leo Steiner de uma definição contida no dicionário Webster: «flatbed printing press», diz o dicionário consultado e citado (ibidem, p. 949), é «a horizontal bed on which a horizontal printing surface rests» e referia-se ao dispositivo, de suporte de plano, das máquinas de impressão de jornais. Ora, Leo Steiner usa a expressão para pensar a Bed de Rauschenberg como lugar de um corpo e de um sujeito, de uma memória (procriar, sonhar, conceber é sobre-viver) dando-os enquanto superfície de inscrição, (num mundo que é o dos media e o da transmissão de mensagens de gravação, cujo tempo dito «real» é, antes, muito mais actu(virtu)al, muito mais artefactual e interferido, muito mais mediado e mediatizado do que as miragens do «em directo» poderiam sugerir; cf. o texto de DERRIDA, Jacques; STIEGLER, Bernard, Échographies de la télévision: entretiens filmés, Paris, Galilée, 1996)...
E se a cama é o lugar do fazer é porque ela é o plano apropriado a uma escapada à ordem do discurso, num movimento que é, neste caso, horizontal, sintagmático (o mesmo Roland Barthes, nos seus Elementos de Semiologia, nos lembraria ser precisamente o eixo sintagmático aquele que se abre ao excesso que desloca o paradigmático)... A leitura de Leo Steinberg, poderia, em retrospecção do que nas aulas fomos observando, ser colocada num plano de sucessão temporal em que, do momento mais remoto da Vénus Adormecida de Giorgione à Olympie de Édouard Manet, passando pela Vénus de Urbino de Tiziano, para depois, por intermédio de Une Olympie moderne de Cézanne, se procurar chegar à Bed de Rauschenberg, se observaria o seguinte: que a profundidade de campo se vai reduzindo, por cortes transversais à pirâmide perspéctica, que são cada vez mais próximos do plano do nosso olhar, para vir a culminar numa superfície plana (de inscrição) - isto objectivamente, «sem profundidade»: o «plano pictórico de uma cama» (diz Leo Steiner) posta ao alto, plano de apresentação da representação, tão opaco como o lugar de um sonho sem janelas, o lugar de uma espessura do significante que tem a realidade do que, obtusamente, reenvia a si próprio (e assim se abre a um exteriorior para lá de qualquer janela). Um espaço inteiramente aberto, mas apenas a tudo o que não seja «um acontecimento óptico prévio», como diz Leo Steiner.
11. Nessa progressiva retracção da profundidade de campo, (em que a pintura de Mark Rothko nos recorda, pelo meio desta história da pintura, a sua fascinação pelas janelas muradas da sala da biblioteca de Miguel Ângelo que vira em Roma, enquanto descansava do trabalho nos painéis para o Four Seasons) é a própria janela albertiana que, perdendo a sua disposição (bin)ocular, se verticaliza e opacifica, se aplana em cama, à medida em que a verticalidade mesma do contemplador renascentista se torna, no mundo dos media (mundo descentrado, onde os «paradigmas» se dispersam ou deslocam horizontalmente) na horizontalidade do sonhador, e a sua visão de outrora desce (como uma pálpebra côncava, internamente revestida por um espelho que lhe cobrisse o olho) sobre a sua própria condição. Jonathan Fineberg diz-nos, em Art Since 1940: Strategies of Being, citando-o:
«Robert Rauschenberg foi pioneiro de um estilo de arte que deixou de se apoiar na «história», no «enredo», na «continuidade» [...]. «[Diz Rauschenberg] Havia alguma coisa acerca da auto-confissão e da auto-confusão no expressionismo abstracto - como se o homem e a obra fossem o mesmo - que pessoalmente sempre me afastava porque na altura o meu foco estava na direcção oposta». [...] «Eu não ando a brincar por aí com o meu inconsciente. Tento manter-me bem desperto». Rauschenberg explicou [diz Jonathan Fineberg]: «A pintura é sempre mais forte quando apesar da composição, da cor, etc., aparece como um facto, ou uma inevitabilidade, enquanto oposta a uma recordação [souvenir] ou um arranjo. A pintura relaciona-se com a arte e a vida. Nenhuma [delas] pode ser feita [made]. (Eu tento actuar no intervalo entre as duas).» (FINEBERG, Jonathan, Art Since 1940: Strategies of Being, London, Lawrence King, 1995, pp. 176-179).
Ora, nessa «pintura» o que há de «pigmento «pictórico»» é inexistente. A pintura «pop» (Andy Warhol chamaria a atenção para a confusão entre o designado por «pop» e o neo-dadaísmo praticado por Jasper Johns e por Rauschenberg: ) seria, portanto, coisa obtusamente factícia, coisa não feita, oferecida como uma inevitabilidade, situada no intervalo entre a vida e a arte. Ora, o que é que acontece, entre a arte renascentista e a arte do pós-Guerra, que nos surge aqui como uma espécie de abrir e fechar de olhos? Ouçamos Rauschenberg, de novo e uma última vez, desta vez numa entrevista concedida a Barbaralee Diamonstein:
E se a cama é o lugar do fazer é porque ela é o plano apropriado a uma escapada à ordem do discurso, num movimento que é, neste caso, horizontal, sintagmático (o mesmo Roland Barthes, nos seus Elementos de Semiologia, nos lembraria ser precisamente o eixo sintagmático aquele que se abre ao excesso que desloca o paradigmático)... A leitura de Leo Steinberg, poderia, em retrospecção do que nas aulas fomos observando, ser colocada num plano de sucessão temporal em que, do momento mais remoto da Vénus Adormecida de Giorgione à Olympie de Édouard Manet, passando pela Vénus de Urbino de Tiziano, para depois, por intermédio de Une Olympie moderne de Cézanne, se procurar chegar à Bed de Rauschenberg, se observaria o seguinte: que a profundidade de campo se vai reduzindo, por cortes transversais à pirâmide perspéctica, que são cada vez mais próximos do plano do nosso olhar, para vir a culminar numa superfície plana (de inscrição) - isto objectivamente, «sem profundidade»: o «plano pictórico de uma cama» (diz Leo Steiner) posta ao alto, plano de apresentação da representação, tão opaco como o lugar de um sonho sem janelas, o lugar de uma espessura do significante que tem a realidade do que, obtusamente, reenvia a si próprio (e assim se abre a um exteriorior para lá de qualquer janela). Um espaço inteiramente aberto, mas apenas a tudo o que não seja «um acontecimento óptico prévio», como diz Leo Steiner.
11. Nessa progressiva retracção da profundidade de campo, (em que a pintura de Mark Rothko nos recorda, pelo meio desta história da pintura, a sua fascinação pelas janelas muradas da sala da biblioteca de Miguel Ângelo que vira em Roma, enquanto descansava do trabalho nos painéis para o Four Seasons) é a própria janela albertiana que, perdendo a sua disposição (bin)ocular, se verticaliza e opacifica, se aplana em cama, à medida em que a verticalidade mesma do contemplador renascentista se torna, no mundo dos media (mundo descentrado, onde os «paradigmas» se dispersam ou deslocam horizontalmente) na horizontalidade do sonhador, e a sua visão de outrora desce (como uma pálpebra côncava, internamente revestida por um espelho que lhe cobrisse o olho) sobre a sua própria condição. Jonathan Fineberg diz-nos, em Art Since 1940: Strategies of Being, citando-o:
«Robert Rauschenberg foi pioneiro de um estilo de arte que deixou de se apoiar na «história», no «enredo», na «continuidade» [...]. «[Diz Rauschenberg] Havia alguma coisa acerca da auto-confissão e da auto-confusão no expressionismo abstracto - como se o homem e a obra fossem o mesmo - que pessoalmente sempre me afastava porque na altura o meu foco estava na direcção oposta». [...] «Eu não ando a brincar por aí com o meu inconsciente. Tento manter-me bem desperto». Rauschenberg explicou [diz Jonathan Fineberg]: «A pintura é sempre mais forte quando apesar da composição, da cor, etc., aparece como um facto, ou uma inevitabilidade, enquanto oposta a uma recordação [souvenir] ou um arranjo. A pintura relaciona-se com a arte e a vida. Nenhuma [delas] pode ser feita [made]. (Eu tento actuar no intervalo entre as duas).» (FINEBERG, Jonathan, Art Since 1940: Strategies of Being, London, Lawrence King, 1995, pp. 176-179).
Ora, nessa «pintura» o que há de «pigmento «pictórico»» é inexistente. A pintura «pop» (Andy Warhol chamaria a atenção para a confusão entre o designado por «pop» e o neo-dadaísmo praticado por Jasper Johns e por Rauschenberg: ) seria, portanto, coisa obtusamente factícia, coisa não feita, oferecida como uma inevitabilidade, situada no intervalo entre a vida e a arte. Ora, o que é que acontece, entre a arte renascentista e a arte do pós-Guerra, que nos surge aqui como uma espécie de abrir e fechar de olhos? Ouçamos Rauschenberg, de novo e uma última vez, desta vez numa entrevista concedida a Barbaralee Diamonstein:
«Eu não penso que qualquer artista honesto se proponha de início a fazer arte [sets out to make art]. Tu amas a arte. Tu vives a arte. Tu és arte. Tu fazes arte. Mas tu estás apenas a fazer alguma coisa. Tu estás a fazer o que ninguém te pode privar de fazer. E assim, não tem de ser arte e isso é a tua vida. Mas tu também não podes fazer a vida e assim há alguma coisa aí no intervalo porque porque tu flirtas com a ideia de que é arte. A definição da arte teria de ser sobre o quanto de uso podes dela fazer. Porque se tentas separar as duas, a arte pode ser muito auto-consciente [auto-restringida, self-conscious], um facto que cega [a blinding fact]. Mas a vida não precisa realmente dela e assim é outro facto que cega [another blinding fact].» (RAUSCHENBER, Robert, «Interview with Barbaralee Diamonstein», SELZ, Peter; STILES, Kristine (eds.), Theories and Documents of Contemporary Art: a Sourcebook of Artist' Writings, California UP, 1996, pp. 322-323)
12. O que é que isto nos poderá dizer, acerca de uma «pintura» levada ao seu limite? (Separar não é ainda «classificar», como lembrava Barthes, em S/Z, a propósito da diferenciação tradicional entre as artes? Entre escultura e pintura, entre a arte e a vida, como situar a Bed de Rauschenberg? O que é que esta heterodidáctica entre a vida e a arte, uma e outra separadamente cegas (ou self-conscious) nos ensina, na zona intervalar de intercomunicação das suas cegueiras?) O «alguma coisa» que não a arte, que «tu fazes» e ao mesmo tempo «não podes fazer», enquanto medida do acontecimento e da facticidade, não nos insinaria ele uma outra historicidade, que nos deslocaria necessariamente da pergunta acerca da «pictorialidade»? Que poderíamos nós encontrar, mais para trás, em Louis Marin, que temos acompanhado, acerca de uma «carne opaca da pintura» que teria antecedido, (numa espécie de «profecia», para usar um termo caro a Walter Benjamin), esta objectividade? (Como é que, desde Cézanne, por exemplo, ela se teria afirmado progressivamente? Um dos pontos de apoio, para esse percurso em diagonal, poderia ser o excelente livro, vivamente recomendável, de Bernardo Pinto de Almeida, O Plano de Imagem: espaço de representação e lugar do espectador, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996).