quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Recapitulações - o quadro IX: a carne opaca da pintura

















Claude Monet, Le soleil levant, 1872.



I - 1. Num texto intitulado «Mimésis et description», da autoria de Louis Marin, abordam-se questões relacionadas, não apenas com o modo se olham os quadros, mas também relacionadas com o que aparece e o que (nos) acontece quando os olhamos. Trata-se ali de certos aspectos da sua manifestação, da sua acção e, por isso, também, do que poderíamos entender como uma «fenomenologia da pintura». No fim de contas, também do que, neles e com eles, uma vez olhados e quando olhados, acontece à forma como os olhamos...

Há, portanto, uma margem de «acontecimento» na recepção da (apresentação da representação em) pintura. A abertura à possibilidade do «acontecimento» que afectaria a nossa forma de olhar situa-se, para Louis Marin, justamente naquele instante inicial em que (como diria uma das prinipais figuras do Formalismo Russo - Shklovsky, em A Arte como Processo), a nossa percepção dura... É o instante do que Panofsky chama o pré-iconográfico, o plano do que se refere, para o fundador da iconologia, às «formas puras»: o momento que antecede, no seu sistema iconológico, a apreensão, quer do significado «convencional», quer do significado «intrínseco». É o «primeiro» instante, que se prolonga pela nossa contemplação, pela nossa «oscilação», quanto às ideias que nos parece que se poderia fazer do que «ali vemos»...

Parêntesis 1 [Cabe aqui um parêntesis preliminar, para dizer que reservaremos para um post independente, a questão das relações que, já suscitadas pelo anterior post, nos parecem merecer um tratamento à parte: elas referir-se-ão, grosso modo, às questões da mimesis e da distanciação, a propósito: 1. da teoria do Formalismo Russo; 2. às possíveis relações entre o conceito de desfamiliarização e o conceito de dessublimação, no âmbito do Freudo-Marxismo de Herbert Marcuse; 3. às relações possíveis entre essas duas concepções e, na abordagem desconstrutiva da arte, cujo exemplo nos parece ser o de Roland Barthes, no uso que faz do conceito de dessimbolização, a partir de conceitos respeitantes a uma teoria do sujeito conforme as distinções da tópica lacaniana]

Entretanto, fiquemos com esta nota prévia: «A imagem poética», dizia Shklovsky em A Arte como Processo, «é um meio de obter a impressão máxima». Essa impressão é «máxima» enquanto supõe, na sua opacidade reflexiva, a desvinculação dessa imagem em relação a um significado que lhe fosse previamente associado, pré-existente e pré-determinado (um significado «convencional» e «intrínseco», ou histórico-cultural e, também, simbólico). Trata-se, para ele, de um fenómeno da «visão», e não do «reconhecimento». De facto, este último é o momento que descreve como sendo o daquilo que «já se tornou». O que já se tornou, faz notar, «não interessa à arte». Se o aplicarmos à pintura teremos o seguinte: antes que as coisas pintadas se tornem «alguma coisa reconhecida» ou «reconhecível», há portanto também o que Shklovsky designa como um «obscurecimento da forma», que «prolonga a duração da percepção».

Parêntesis 2 [Lembremo-nos de que Roland Barthes nos dizia, numa das suas entrevistas, já em 1971, a propósito da palavra «Formalismo»:

«Não é certo que a palavra formalismo deva ser imediatamente liquidada, pois os seus inimigos são os nossos: os cientistas, os causalistas, os espiritualistas, os funcionalistas, os espontaneistas; [...] O formalismo em que eu penso não consiste em «esquecer», em «negligenciar», em «reduzir» o conteúdo («o homem»), mas só em não parar no patamar do conteúdo (conservemos provisóriamente a palavra); o conteúdo é precisamente o que interessa ao formalismo, pois a sua tarefa incansável é afastá-lo em cada ocasião (até que a noção de origem deixe de ser pertinente), deslocá-lo segundo um jogo de formas sucessivas. [...] O que é materialista não é a matéria, é o afastamento, a perda dos pontos de apoio; o que é formalista não é a «forma», é o tempo relativo, demorado, dos conteúdos, a precaridade das referências.» (BARTHES, Roland, «Digressões», O Grão da Voz, trad. de Teresa Meneses e Alexandre Melo, Lisboa, Edições 70, 1982, p. 111)]



II - Fechado este segundo parêntesis, podemos retomar o que dizíamos. Tudo se joga nesse primeiro e dilatado instante, nesse instante do como se fosse a primeira vez, nesse «tempo relativo, demorado dos conteúdos», como Roland Barthes ali dizia, no parêntesis que acabámos de fechar, em que o significado é afastado, deslocado por um jogo de formas sucessivas, em que «o objecto» da percepção permanece em devir (como diria Shklovsky): o momento do «pré-iconográfico», em que essa forma permanece sem nome definitivo e nos inquieta, a nós que a sondamos, «informe» na sua materialidade ou na sua perda, no seu afastamento, enfim, de pontos de apoio; um momento que seria infra-pré-iconográfico, como veremos, com Louis Marin...

Em relação a esse momento prolongado de contemplação, na pintura muitas vezes dita «figurativa» - Picasso dizia que não compreendia a expressão «figurativa», porque «toda a pintura é figurativa»... - é precisamente a «figura» o que, muitas vezes, o suspende e o interrompe, o corta e o trai. Ela funciona, assim, como um dado que determina, muitas vezes, o nosso modo mais comum de cegueira. «Reconhecidas» as figuras deixamos, muitas vezes, de olhar o quadro. A «figura» funciona, portanto, como uma espécie de logro, que produz um efeito de identificação plena e, com isso, bloqueia também o processo da leitura. Sobretudo quando «a pintura» é francamente «representacional», como ela o foi durante bastante tempo. A este propósito, é interessante lembrar o que dizia o pintor americano Mark Rothko, no seu A Realidade do Artista, a propósito da diferença entre espaço táctil e espaço ilusório na pintura, quanto a este último tipo de espaço. O «ilusório», precisamente. Diz-nos ele:


«Já o artista que cria o espaço ilusório interessa-se, pelo contrário, por transmitir a ilusão da aparência. Mas apesar desse verdadeiro esforço de fidelidade à aparência, ele não consegue dar ao ar [no sentido atmosférico] a mais ténue aparência real, e isto porque não nos é possível ver um gás. Deste modo, os objectos têm uma aparência de peso, mas o ar que os rodeia não. Por outras palavras: não há como representar a aparência desta substãncia invasora [o ar que respiramos], que sabemos que tem uma pressão de quinze libras por polegada quadrada. Consequentemente, a aparência que o artista ilusório cria é apenas a de coisas que se movem no vazio». (ROTHKO, Mark, A Realidade do Artista, trad. de Fernanda Mira Barros, Lisboa, Cotovia, 2007, p. 141).

O «espaço ilusório» aqui descrito é um bom exemplo do modo como o pretensamente «reconhecível» não pode ser totalmente concretizado, se o artista seguir, estrita e fielmente, o critério da representação dita «realista» (e dita, também e não menos confusamente), «figurativa» até ao fim. A mais «realista» das pinturas chocaria com esta impossibilidade: a de «dar o ar na sua aparência» porque «o ar» não «aparece» à percepção visual mais comum, a não ser quando misturado com outras substâncias. O que implica a impossibilidade de se ser exaustivamente «realista» segundo um conceito de representação que, como diria Leo Steiner, a propósito de Rauschenberg, pressupusesse a mais extrema fidelidade a «um acontecimento óptico prévio», o da nossa percepção visual pensada exclusivamente como tal. A mais «realista» das pinturas, neste sentido estrito, produziria o mais irreal e irrealista dos quadros: um quadro em que todos os objectos do mundo se moveriam ou repousariam no vazio. Não seria um «quadro». Seria, talvez, uma ilustração esquemática, um diagrama topológico, uma representação abstracta. Mas nem sequer seria uma representação fiel. Porque ela nos mostraria um mundo irrespirável, onde não nos manteríamos vivos a não ser alguns, muito breves, minutos... A pintura dita «ilusória» é, portanto, uma não-pintura da vida e do que é vivo. E neste caso, ela é «ilusória» também no sentido representacional do termo. Quer dizer, não chega a representar. É uma ilusão de pintura, uma ilusão de representação, etc. É uma ilusão de ilusão, para resumir.









Mark Rothko,
«nº 14», 1960













Parêntesis 3. [Para pensar melhor e mais especificamente sobre a pintura de Mark Rothko, veja-se o belíssimo texto intitulado: «Rothko: Os anunciadores e a imagem suicidária», de GIL, José, «Sem Título»: Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio d'Água, 2005)]


III - 1. Haveria, é claro, vários recursos possíveis, dir-nos-á Rothko. É certo. Mas todos eles insuficientes: a) pôr algum fumo a sair de algumas chaminés, na paisagem; b) simular, sobre os objectos, «os efeits visíveis que o ar surte» neles, dando-os numa certa neblina, mais ou menos densa consoante a distância; c) escurecer os contornos dos objectos mais distantes, etc. Dar, enfim, a gradação da distância através de uma variação de espessuras ou uma diferença de cinzentos de indefinição sobre os objectos, mas... O problema que se poria seria ainda o de ser incongruente darem-se esses cinzentos nos objectos sem, contudo, dar desse ar «alguma densidade que lhe fosse própria» ... Seria, talvez, o mundo posto numa redoma de vácuo transparente, iluminada por fora. Teria sido por essa razão, segundo Rothko, que alguns mestres:


«[...] impressionistas, e com isto queremos dizer: todos os pintores que tentaram provocar uma sensação de atmosfera empregando métodos ilusórios [...] cientes de que faltava solidez atmosférica a todas as pinturas em que o ar não estivesse representado, introduziram uma neblina, mas esta tinha que revestir não apenas a representação do objecto como também o ar envolvente, pois turvar um pouco o ar sem turvar também a figura seria, necessariamente, incorrer numa discrepância. É por isso que a pintura destes artistas escurece os contornos das silhuetas para que, assim, se obtenha o que se pode descrever como um efeito de névoa.» (ibidem).


Portanto, a mais «realista» das pinturas tornar-se-ia, segundo Rothko, necessariamente... impressionista, caso ela levasse a sério o seu propósito de «realismo» e deixaria, com isso, necessariamente de ser, não apenas «realista», mas também «ilusória», no sentido da reprodução fiel da nossa percepção visual mais comum. Seria, efectivamente, uma desilusão para quem esperasse iludir-se... De onde, de novo: a ilusão produzida pela representação tornar-se-ia, ela própria, uma vez mais, numa ilusão de ilusão.

2. Serviria isto para dizer o seguinte: a) que muito cedo se pressentiu, na pintura, este tipo de dificuldades:

A ideia de uma sensação puramente visual foi desenvolvida e sistematizada por Squarcione e Mantegna, que, tanto quanto sabemos, codificaram a perspectiva linear; e por Masaccio e por Leonardo, que acrescentaram as regras visuais do chiaroscuro. (op. cit., p. 133).

b) Que a figura, enquanto «ilusão» é, também ela, apenas a ilusão de uma ilusão, o que nos deveria fazer pensar que olhar um quadro não pode cingir-se ao reconhecimento dos dados da nossa experiência mais comum, sobretudo se eles forem exclusivamente assentes no «acontecimento óptico prévio», como diz Leo Steiner. Ou ainda, que o formalismo não é a forma, como nos dizia Roland Barthes acima. Quer dizer, em segundo lugar, que isto deveria lembrar-nos que o princípio da identificação «objectiva» e «automática» das «formas puras» de Panofsky (no momento «pré-iconográfico») é precisamente aquele que temos de suspender, se queremos abrir-nos à possibilidade de que o quadro nos diga alguma coisa, seja o que for que nós pensemos que ele nos pode querer dizer.

3. E ele só pode querer dizer-nos alguma coisa se o pensarmos/sentirmos com ele. A leitura de um quadro deveria assim significar, também, uma relação de «companheirismo» como chegará a dizer Mark Rothko. E isso depende, é claro, de ambas as partes, mas sobretudo da nossa, se queremos compreender e aprender (quer dizer, desaprender o que supomos saber). Portanto, não há-de ser nas figuras ou nas formas («puramente representativas») de objectos reconhecíveis enquanto tal, que poderemos procurar alguma qualidade distintiva da «pintura». O «puro» ou a «pureza» da forma seria já uma forma de impureza objectiva e um modo de projecção fantasmática, que diria mais acerca de nós, do que acerca dos quadros.

IV - 1. Haveria, no entanto, outras formas de abordar a questão da «ilusão» e do «figurativo». Picasso tem este desabafo, numa das entrevistas que dá:

[as figuras] elas reagem em nós de modo mais ou menos intenso. [...] Pensa que me importa que um determinado quadro meu represente duas pessoas? Embora essas duas pessoas tenham um dia existido para mim, elas já não existem. A «visão» delas suscitou-me uma emoção preliminar; depois, pouco a pouco, as suas presenças reais tornaram-se difusas; elas desenvolveram-se numa ficção e depois desapareceram conjuntamente, ou antes, transformaram-se em toda a espécie de problemas. Elas não são já duas pessoas, entende, mas apenas formas e cores; formas e cores que incorporam, entretanto, a ideia de duas pessoas e preservam a vibração das suas vidas (ZERVOS, Christian, «Conversation with Picasso», cit in PEREIRA, José Paulo, Uma Cartografia Transtornada: a Guernica de Carlos de Oliveira, Braga, Angelus Novus, 1999, p. 177).


2. Para acompanhar as suas afirmações temos, por ordem: a) uma «visão» de duas pessoas, quer dizer, uma percepção ; b) uma «reacção» por elas suscitada, uma emoção pela qual elas, pouco a pouco, se tornam «difusas»; essa «reacção» traduz-se: 1. numa ficção; 2. numa desaparição conjunta ou numa transformação numa série de problemas; finalmente: c) formas e cores, que preservam a vibração das suas vidas...

O primeiro aspecto a salientar seria talvez o da «emoção»; a) a «visão» não é um reconhecimento (embora ele lá esteja também: são «duas pessoas»), mas um momento de emoção - quer dizer: um momento de vibração no sujeito da percepção, e de vibração «com» uma vida que se lhe comunica. Essa «emoção» supõe que a «visão» o anima, de algum modo o atravessa e/ou o faz «reagir». Ela corresponde, portanto, a um movimento, e não a uma forma puramente exterior (não existe forma puramente exterior, porque, então, não haveria forma, sequer); b) essa (re)acção emotiva é, também, para o sujeito da percepção, um motor ficcional: imagina as duas pessoas - ficciona-as - no sentido de um como se de uma re-presentação e, ao mesmo tempo, de uma com-posição. Ficção enquanto modelação, segundo intuições e possibilidades que se lhe apresentam segundo relações com outras figuras, que mantém presentes ou latentes, na sua memória ou na sua imaginação.

3. Nesse momento, no entanto, essas «duas pessoas» (duas figuras) começaram já a desaparecer «enquanto tal». Interagindo com outras, em cujo contexto as acolho, elas relacionam-se e deslocam-se, porque interagem em várias direcções... Se nos lembrarmos aqui do conceito de «aura», de que Walter Benjamin nos fala, em «Sobre Alguns Motivos da Obra de Benjamin», essas figuras/imagens, no contexto de acolhimento da percepção, formam um campo associativo magnetizado por um determinado objecto percepcionado. Finalmente c): essas «duas pessoas» «transformam-se em toda a espécie de problemas» se, no seu sentido etimológico, um «problema» é precisamente o que surge, o que emerge, ao que é contrário. É nesse plano dessa relação e, consequentemente, desse movimento que elas se des-integram... Nessa altura: elas são já cores e formas em jogo (simultaneamente comuns a várias figuras e, ao mesmo tempo, diferenciadamente presentes em lugares distintos delas) que mantêm a vibração de vida que as levou até ali. Já não são duas pessoas. E contudo são o que, de vida, dessas duas pessoas se manteve, em formas e cores.

Parêntesis 4 [A este respeito talvez fosse bom lembrar, com bastante ênfase, o admirável livro de GIL, José, A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções: estética e metafenomenologia, 2ª ed., trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio d'Água, 2005 que aborda, na sua releitura crítica de Merleau Ponty, também a questão de que nos procuramos aproximar aqui mais modestamente. Ele dirá, por exemplo, em «Sem Título»: Escritos sobre Arte e Artistas:

«Não cabe aqui analisar a noção de aura segundo Benjamin. Os resultados de uma tal análise permitiriam articulá-la com as pequenas percepções leibnizianas e construir a noção de «atmosfera», como poeira de infinitas pequenas percepções. A atmosfera não tem forma, mas constitui um «meio» que anuncia a pré-formação da forma. [...] Assim se o quadro não é o que nele conheço ou reconheço primeiro, mas se as suas formas remetem para um «invisível» que se vê - e que não sendo formal nem não-formal, suporta as formas visíveis - então é precisamente na atmosfera e graças a ela, às pequenas percepções que a compõem, que se gera o visível. A aura não é mais do que esse conjunto de pequenas percepções que anunciam as formas visíveis; nelas se capta a invisibilidade visível - como num olhar - através da imperceptibilidade das pequenas percepções» (GIL, José, «Warhol: as metamorfoses da aura», «Sem Título»: Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio d'Água, 2005, pp. 138-139)]

4. A pintura suporia, então, na citação de Picasso, a interpenetração da percepção e da memória, a expansão da vibração emotiva suscitada pelo encontro de ambas, e correspondente à vida que dizemos ser «a sua», em formas e cores. Dissolvendo-se no sujeito da percepção «a» figura, como sob a influência de uma reacção química, essa «sua vida» (emotiva e ficcional) ser-nos-ia, ainda assim, sensível. A figura em nós sobreviveria, ainda assim, a si própria, na sua verdade mais inaparente. Ela sobreviveria em formas e cores. Em outros termos ainda: uma figura seria, para o sujeito da sua percepção e na «sua» verdade, formas e cores. E isto suporia, para voltarmos à questão da ilusão, a própria «figura» agora antecipadamente pensável como ilusão, se é verdade que é impossível dissociar a memória da percepção.

5. A «figura» é a ilusão perceptiva de um «todo» cuja vida é, em memória, des-integradamente constituído por diversos encontros de que não nos damos conta e tendemos a pensar como um só. Na verdade nunca vemos o «todo» de coisa nenhuma, muito menos de uma só vez. Como aliás Platão já notara. Por intermédio de Sócrates - ele, que condenava Homero, por falar na pele de outros (cf. Livro III da A República) - tem, no Livro X de A República, esta observação em forma de pergunta: «se olhares para uma cama de lado, se a olhares de frente ou de qualquer outro ângulo, é diferente de si mesma ou não difere nada, mas parece distinta? E do mesmo modo com os demais objectos?» Ao que o seu interlocutor responde: «É como dizes: parece diferente mas não é nada». E daí extrai ele o seguinte passo: «por conseguinte, a arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo facto de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição» (PLATÃO, A República, 4ª ed., trad. de Maria Helena Rocha Pereira, Lisboa, Gulbenkian, 1983, p. 457).

6. O que nos indica que Platão intui o carácter irredutivelmente espectral de todo o fenómeno (assunto que, todavia, requereria bastante mais espaço, para uma referência a DERRIDA, Jacques, Spectres de Marx; cf. PEREIRA, José Paulo, O Exercício da Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007). Assim como desta «condicionante»: a de a nossa percepção ser, «ao que parece», como diz Platão, sempre parcial. O objecto da nossa «visão» é sempre um «objecto parcial». Não «parcial» apenas do ponto de vista emotivo (e libidinal)... Nesse sentido falar-se-ia de «parcial» no sentido daquilo de/em que se toma ou é parte, de/em que se não é distanciado, neutro, etc. Mas «parcial», também, do ponto de vista da relação do sujeito com o aparecer de alguma coisa, com o que vem ao seu encontro e a que se acolhe, segundo dados de uma experiência, de uma memória («involuntária»), de um campo de relação que põe em jogo o sujeito que se é. Em face desta condicionante das artes «imitativas», o discurso filosófico e, em particular, o exercício da dialéctica, representavam, para Platão, a possibilidade lógica de um acesso ao todo (um acesso gradual e ascendente; cf. a reticência de Sócrates, em definir a ideia do Bem, n'A República), à ideia Una e Nua, primordial e singular, como só a do supremo Bem que a visão do Sol - filho do Bem, astro solitário e milionário e visto à sua imagem - lhe promete n'A República.

7. Em compensação, é um facto relativamente banal, hoje, o da constatação e verificação experimental de que o movimento complexo da percepção é irredutível à unidade de um só instante. Mesmo supondo, todavia, que de cada relance captássemos ainda uma figura da (suposta) figura - uma figura parcial, é certo, mas uma figura, mesmo assim - teríamos, no entanto, de observar o seguinte. Quando olhamos alguma coisa não apenas os olhos se movem. Neles e com eles, também o corpo. Afasto-me e/ou abeiro-me, talvez olhe agora mais este detalhe, ou mais tarde reveja certa ligação, ou ainda, então e de novo, regresse a um certo ponto de distância, tentando compreender, segundo nexos que se cruzam e dispersam, no movimento em que sondo a imagem, no que dela se furta à minha compreensão. Ouçamos o que nos diz Roland Barthes, em O Prazer do Texto, a propósito de como lemos, e do que está implicado na leitura do texto:

[na leitura do texto] o que é ultrapassado, quebrado é a unidade moral que a sociedade exige a qualquer produto humano. Lemos um texto tal como uma mosca voa no volume de um quarto: em inflexões bruscas, falsamente atarefadas e inúteis (BARTHES, Roland, Le Plaisir du texte, Paris, Seuil, 1973, p. 52).

É também o que nos diz Walter Benjamin, no «Prólogo-Epistemológico-crítico» do seu A Origem do Drama Trágico Alemão:

«O pensamento volta continuamente ao princípio, regressa com minúcia à própria coisa. Este infatigável movimento de respiração é o modo de ser específico da contemplação. De facto, seguindo, na observação de um único objecto, os seus vários níveis de sentido, ela recebe daí, quer o impulso para o arranque constantemente renovado, quer a justificação para a intermitência do seu ritmo. E não receia perder o ímpeto, tal como um mosaico não perde a sua majestade pelo facto de ser caprichosamente fragmentado. Ambos [contemplação e mosaico] se compõem de elementos singulares e diferentes; nada poderia transmitir com mais veemência o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade. [...] A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo de verdade (Warheitsgehalt) se deixa apreender apenas através da mais exacta descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt).» BENJAMIN, Walter, «Prólogo Epistemológico-Crítico», A Origem do Drama Trágico Alemão, trad. de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, pp. 14-15)

8. Ora, seria aqui possível juntar também o testemunho de Louis Marin, em «Mimésis et description»... Agora com uma nota suplementar: acerca do que acontece à forma como olhamos, nesse movimento. Diz-nos ele:

«Mas quereis em definitivo descrever, ver com exactidão? Aproximai-vos. Não deixai de vos aproximardes, isto são casas, telhas, ervas, formigas... que o vosso olhar seja o de um míope, de um hipermíope... isto não são já telhas, ervas, formigas que vêm preencher a lista de predicados do nome (do título do quadro)... mas pequenas gotas de vermelho, de verde, e de branco, grandes empastamentos de azuis e amarelos, de esbatimentos suaves, fragmentos, um pequeno retalho de amarelo, curtos traços coloridos... o informe em instância de figurabilidade, todo o trabalho das pinceladas, dos pêlos do pincel, os gestos da mão, o corpo do pintor em pintura: [...] (MARIN, Louis, «Mimésis et description», De la représentation, cit. in PEREIRA, José Paulo, Uma Cartografia Transtornada: a Guernica de Carlos de Oliveira, Braga, Angelus Novus, 1999, p. 77).

9. Eis «o informe em instância de figurabilidade». Ou o que seria preciso designar como o movimento de uma oscilação ao nível «infra-pré-iconográfico» da imagem. De súbito, mudamos de plano de percepção. Poderíamos aqui retomar o que nos dizia, no começo desta nota de leitura, Mark Rothko. Pois mudamos de um espaço «ilusório» - «casas, telhas, ervas, formigas» - para um espaço «táctil» - pequenas gotas de vermelho, empastamentos de azuis e amarelos, de esbatimentos suaves, fragmentos, um pequeno retalho de amarelo, curtos traços coloridos... o informe em instância de figurabilidade... Daquele pressuposto pelo «espaço ilusório» para aquele espaço «táctil», entramos no domínio do informe, mas de um informe em movimento de figurabilidade, de um informe em movimento de corpo. O corpo dos nossos olhos, nos olhos do nosso corpo. O corpo do pintor no nosso corpo e nos nossos olhos: «pequenas gotas de vermelho, de verde, e de branco, grandes empastamentos de azuis e amarelos, de esbatimentos suaves, fragmentos, um pequeno retalho de amarelo, curtos traços coloridos... o informe em instância de figurabilidade, todo o trabalho das pinceladas, dos pêlos do pincel, os gestos da mão, o corpo do pintor em pintura».

10. E a primeira constatação óbvia seria esta. O corpo do pintor na pintura não é um corpo anatómico. A «pintura» não é a representação anatómica de um corpo que pinta: é um corpo sem acontecimento óptico prévio, para lembrar aqui Leo Steiner. Quer dizer, ao mesmo tempo, tocamos aí o corpo da pintura, na sua carne opaca... E não na sua carne «ilusória». O corpo onde vibra, entre opacidade e transparência, a vida de seres outrora «vistos», a vida agora sobrevinda em formas e cores, como diria Pablo Picasso. Uma das coisas que a pintura nos revela, nesse seu movimento, é precisamente aquilo que, com Jacques Derrida, poderíamos chamar a dimensão irredutivelmente fantasmática de todo o fenómeno (pictórico ou não; de novo, cf. Spectres de Marx). Dito de outra forma: ela revela-nos, do sujeito, não apenas a sua presença sem que ela se cristalize num presente, mas o corpo-a-corpo do seu corpo no nosso e do nosso corpo no dele. Como se movimenta esse «nosso» corpo? Eis o exemplo de Louis Marin, que nos é fornecido na relação entre estes dois quadros de Leonardo Da Vinci: o retrato de «Ginevra de Benci» e esta «Paisagem do Dilúvio»:

«De perto... De longe», eu gostaria, para concluir, de vos propor duas imagens que extraio da Obra de Vinci. De perto, de demasiado perto, este detalhe da cabeleira do Retrato de Ginevra de Benci; de longe, de demasiado longe, este desenho de Paisagem do Dilúvio. [...] Para um olho que seria o de Deus, de muito alto, de muito longe, a representação da catástrofe cósmica é precisamente uma cabeleira de mulher. Para um olho que seria o de um insecto, [...] de muito perto, a imagem de um anel de cabelos é exactamente o turbilhão do dilúvio. (MARIN, Louis, «Mimésis et description», op. cit., p. 265-266).

Entre o ponto de vista de Deus (Saramago, a alguns mil pés de altura do solo, a bordo de um avião, diria aproximadamente isto, nos seus Cadernos de Lanzarote: «percebo agora porque Deus permanece impávido; de cá de cima, tudo parece muito calmo...»), para o qual o dilúvio é simplesmente uma cabeleira de mulher e o ponto de vista de um insecto, para um anel de cabelos de mulher é uma Vaga imensa e encrespada de inúmeras vagas do mar, nessa catástrofe cósmica, eis o movimento do nosso corpo no corpo do pintor. O que seria evidentemente também igualmente verdade, no caso da pintura moderna depois de Cézanne e de Manet, se pensarmos, com Louis Marin que:

«O que pôde dizer-se, e repetir-se, da pintura moderna depois de Cézanne, a prova do indecidível e do inominável, feita pelos discursos sobre ela sustentados, porque ela própria, propondo-se a exploração criadora das condições de possibilidade da representação, trabalhando no espaço da síncope da opacidade e da transparência, se subtraía de tudo o que a predispunha à linguagem, a desaparição desse núcleo verbalizável, descritível, que a imagem e a figura faziam crescer na materialidade da pintura, tudo isso, uma teoria mais rigorosa da descrição o encontra numa construção teórica mais precisa e numa prática de análise mais atenta da representação pictórica» (MARIN, Louis, «Le cadre de la representation et quelques-unes de ses figures», De la représentation, op. cit., p. 264)

12. Porque:


Tornado legível pela sua abertura à multiplicidade dos textos, tornado texto na leitura [...] o quadro desaparece enquanto figura. É por isso que o percurso do sentido não visa descobrir os significados, mas constituir os significantes: ler um quadro não consiste em decifrar significados nos e através dos significantes. O processo é inverso e reside aí o sentido da leitura pelos seus confins [isto é, os limites que são estabelecidos pelo «quadro»]. (MARIN, Louis, «Textes en représentation: Titres», Études sémiologiques: écritures, peintures, cit. in PEREIRA, José Paulo, op. cit., p. 81).


13. O quadro desaparece, no processo de constituição dos significantes a partir da abertura e do reenvio das figuras a uma multiplicidade de (con)textos. Dito de outro modo, eles constituem-se na demora, no tempo relativo, que não pára no conteúdo, próprio do processo de afastamento das significações a partir da sua abertura e reenvio... É um processo de des-figuração... De interrogação ou questionação da figura a partir da sua memória. Uma figura é uma constelação micrológica de formas e de cores. Uma forma é ... uma precipitação estelar de reenvios, uma constelação de traços, de vestígios... «A perder de vista»... no processo da «visão» e não do «reconhecimento»...