À esquerda, em cima: Francesco del Cossa, Anunciação, 1486.
À esquerda, em baixo: Caravaggio, A Decapitação
de São João Baptista, 1608. Ao meio: Carlo Crivelli, Anunciação,
1486. À direita: Giovanni Battista Tiepolo, A Virgem Aparecendo
a Santos Dominicanos, 1747-1748.
1. O terceiro elemento do cubo cenográfico é o que Louis Marin designa por «palco». Abordámos já o quadro e o fundo. No entanto, situado entre o fundo e o plano de representação, o palco é o espaço representado como espaço de apresentação ou da ostensão da representação em pintura. É uma das paredes do cubo cenográfico, a sua parede horizontal inferior. Se o fundo é, tal como o quadro, um elemento de apresentação da representação, o palco é também o seu espaço, situado entre o fundo e o plano de representação (o quarto elemento), este último uma espécie de quarta parede frontal-transparente do cubo cenográfico.
Enquanto espaço-suporte, o palco é ainda um outro operador de visibilidade-legibilidade do representado ou do que nele há em representação. Se o «quadro» nos fornece uma espécie de «boca de cena», além da qual vemos um palco e um fundo que, por outro lado, nos escapa enquanto tal, o plano de representação abre, na sua transparência, para o palco em que a acção se «desenrola» ou um certo estado de coisas «tem lugar». Do fundo e em direcção ao olhar observador ou do espectador, o palco situa-se sobre um fundo, e é igualmente visto à transparência do plano de representação.
Enquanto espaço-suporte, o palco é ainda um outro operador de visibilidade-legibilidade do representado ou do que nele há em representação. Se o «quadro» nos fornece uma espécie de «boca de cena», além da qual vemos um palco e um fundo que, por outro lado, nos escapa enquanto tal, o plano de representação abre, na sua transparência, para o palco em que a acção se «desenrola» ou um certo estado de coisas «tem lugar». Do fundo e em direcção ao olhar observador ou do espectador, o palco situa-se sobre um fundo, e é igualmente visto à transparência do plano de representação.
No quadro de Giovanni Battista Tiepolo, é o efeito de trompe l'oeil que nos torna sensível o plano de representação. Em A Virgem aparecendo a Santos Dominicanos, (imagem vertical à direita) vemos, sobre o bordo da varanda, a freira a olhar para baixo, numa expressão que sugere a sua vertigem, a de quem teme cair dali abaixo... Numa nota de humor, em que a vemos mais preocupada consigo, e com as possíveis consequências de uma queda, do que com a Virgem (aparecida), é a quarta parede frontal-transparente que corresponde ao plano de representação que se nos torna imediatamente palpável, no seguimento da linha do seu olhar.
2. Pelo contrário, o palco é bem representado pela Decapitação de São João Baptista (imagem à esquerda), de Caravaggio, que inclui, por detrás das grades da janela à direita do quadro, a figura delegada de dois espectadores (e de um terceiro: a mulher que no grupo leva as mãos à cabeça) ao mesmo tempo fascinados pelo espectáculo do crime que ali tem lugar e suspensos do desfecho dessa tragédia de uma morte inocente e premeditada (Salomé estende a bandeja onde deve ficar a cabeça decapitada), bem como do horror que dela dimana, num espaço em que todas as aberturas são fechadas (a janela, pelas grades; a porta cega, pela parede que a tapa; a bandeja, pela cabeça que nela cairá; o espaço da vítima, pelo círculo dos que a rodeiam, seus mandatários - o soldado - e executores - o carrasco - aqueles que a matam, e aqueles que aí são cúmplices da sua morte).
Em «Diderot, Brecht, Eisenstein» Roland Barthes lembra-nos, a propósito do que Diderot escreve no artigo «Composição» que «a cena oferece ao espectador «tantos quadros reais quantos os momentos favoráveis ao pintor que há na acção. [...] Um quadro bem composto é um todo encerrado sob um único ponto de vista, em que as suas partes se dirigem para um mesmo fim e formam pela sua correspondência mútua um conjunto tão real quanto o dos membros num corpo animal; de maneira que um pedaço de pintura feito com um grande número de figuras lançadas ao acaso, sem proporção, sem inteligência e sem unidade, não merece o nome de verdadeira composição, tal como os estudos esparsos de pernas, de narizes, de olhos, no mesmo cartão, não merecem o de retrato ou mesmo de figura humana.»» (BARTHES, Roland, «Diderot, Brecht, Eisenstein», O Óbvio e o Obtuso, trad. de Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 82)
E Louis Marin lembra-nos, igualmente, de um outro aspecto da concepção da «estética teatral de Diderot», a que Roland Barthes acima se referia:
«O plano de representação, [é o] segundo elemento do quadramento da representação que se desdobra por todo o quadro [qui s déploie all over], de bordo a bordo, da esquerda à direita, de alto a baixo, sobre toda a obra, tanto mais esquecido quanto mais ele é perfeitamente transparente, quarta parede frontal do cubo cenográfico, aquela que Micheal Fried evoca a propósito de Diderot, que exigia que a supuséssemos fechada sobre a cena para que as figuras da narrativa aí se comportassem como se elas não fossem olhadas, em representação e na representação, totalmente presentes aos seus actos; [...]. A menos que, inversamente, esse plano-quadro apareça obliquamente ao olho pelo excesso que aí depõe a gota de água de um trompe l'oeil ou a mosca de uma natureza morta, excesso que faz apontar assim o pepino algo obsceno da Anunciação de Crivelli» (MARIN, Louis, «Le cadre de la représentation et quelques-unes de ses figures», De la représentation, Paris, Gallimard/Seuil, 1994, pp. 344-345).
Ora, esse algo obsceno pepino vê-se (imagem do meio) no quadro de Crivelli, no rebordo do espaço que define a esquina do degrau. O processo é o mesmo do quadro de Giovanni Battista Tiepolo. A história da pintura está repleta de exemplos de «trompe l'oeil» nos quais, de súbito o plano de representação, que é frontal e transparente, esse plano-quadro, plano que recobre a totalidade da superfície do quadro, aparece ao olho, oblíquamente, como diz Louis Marin, no sentido em que, finalmente, dando-nos conta dele, é como se a sua transparente presença se nos tornasse perceptível pelo facto de ele, intersectado, se deslocar da sua frontalidade para uma espécie de meio perfil apercebido, visto que vemos a sombra do pepino projectada e a sua saliência em relação ao limite que ele corta, na nossa direcção. Digamos que o trompe l'oeil abre a quarta parede precisamente onde Diderot a requeria fechada (como se por uma montra de vidro, diríamos nós hoje), para que as personagens em cena - sobre o palco - se não distraíssem da sua acção pela nossa presença...
Assim, no quadro de Caravaggio, os espectadores que assistem ao espectáculo através de uma janela gradeada (a tese de Gérard Wajcman, em Fenêtre: chronique du regard et de l'intime é a de que a janela à altura do olhar do espectador foi ela mesma uma invenção de Alberti, no seu De Pictura: segundo Wajcman, as primeiras janelas desse tipo surgem, na arquitectura de Florença, justamente no rés-do-chão e são, na segunda metade do século XV, ainda gradeadas, posto que a indústria do vidro, na Flandres, só no século XVI viria a produzi-lo com qualidades de transparência óptica necessárias à sua adaptação a janelas deste tipo: aquelas que dão lugar ao «ver sem ser visto», que Wajcman dá como correlato do advento do sujeito voyeur, próprio da Modernidade) são-lhe tão exteriores quanto aparentemente ausentes da acção e impotentes para nela intervir, embora a presença da metafigura do espectador-comentador (o admonitor de Alberti) ali se reparta, também, pela figura da mulher (não menos impotente, embora igualmente cúmplice, quanto mais não seja no seu horrorizado fascínio) que assiste ao crime, integrada no círculo dos seus perpetradores. O que obliquamente vemos, no quadro de Caravaggio, é uma cena apenas em trompe l'oeil para aqueles que a ela assistem, e que os coloca em situação: o gradeamento da janela é simultaneamente um espaço de extensão do espaço do crime a que assistem, sem que todavia os assassinos se dêem conta da sua presença, ou queiram dela saber.
Por outro lado, a estética «teatral» de Diderot, acerca da pintura, é nitidamente de inspiração albertiana, no que diz respeito à proporção e à unidade de acção na composição. A metáfora orgânica usada para descrever a coerência da composição e a conveniência da proporção é a mesma de que Alberti se serve, no seu tratado, e lembra algumas distinções de Aristóteles, na Poética, acerca da extensão do espectáculo e da coerência da trama da acção. Ora, o trompe l'oeil, por seu lado, que torna visível o que nos é invisível pela sua transparência, foi muitas vezes usado como elemento plástico de ironia acerca do que, ao pintor, lhe era encomendado. Note-se por exemplo, aquele caracol que, na Anunciação de Francesco del Cossa, atravessa o espaço que a coluna divide (primeiro quadro em cima à esquerda). Daniel Arasse sublinha a lógica quiasmática da distribuição das figuras nesse quadro a linha que une o olhar do anjo à virgem atravessa a coluna vertical e é cortada pela linha que une a aparição de Deus, sobre uma nuvem, ao caracol. Veja-se a descrição de Daniel Arasse:
«[...] uma das questões que preocupavam os exegetas medievais é a insuportável extensão da demora que separa a queda de Adão e Eva e a Anunciação, demora que coloca, entre outras, a questão dos Limbos e da multidão infeliz daqueles que aí esperam a vinda do Salvador - o qual, aliás para aí se dirige, segundo Santo Agostinho, antes de mesmo da ressurreição. [...] A ideia de que o caracol lembrava a insondável lentidão de Deus a encarnar-se era sedutora. Poder-se-ia imaginar que Cossa teria utilizado o caracol, [...] para dar igualmente figura a Deus. Ele teria operado, de algum modo, uma condensação entre os dois e o caracol tornar-se-ia, por si mesmo, o símbolo da encarnação. [...] Para Cossa, a perspectiva constrói a imagem de um mundo comensurável, em si mesmo e em relação àquele que olha, em função do seu ponto de vista. Só Deus é infinito. O mundo de Cossa permanece finito, fechado, à medida do homem. [...] Sobre o bordo da construção perspética, sobre o seu limiar, a anomalia do caracol faz-vos sinal; ela apela a uma conversão do olhar e dá-vo-lo a entender: vós não vedes nada no que contemplais, porque, na expectativa daquilo para que olhais: o invisível vindo à visão.» (ARASSE, Daniel, On y voit rien: descriptions, Paris, Denoël, 2000, pp. 40-55).
Eis, portanto, sobre o bordo limiar do plano-quadro, o operador de visibilidade-legibilidade que o pintor inscreve, como comentário irónico à Anunciação: é impossível pintar o que apenas na lentidão de um majestoso e enorme caracol (note-se a sua proporção em relação à palma do pé do anjo) desliza, lentamente, entre os espaços do anjo e da Virgem. Deus, de quem se esperaria que se demorasse menos a incarnar-se, demora-se, na sua Anunciação e na sua Encarnação. E o comentário de Cossa todo ele se joga nesse ténue limite que é o do rebordo inferior do plano-quadro, o bordo inferior do quadro-plano de representação. Figura do limiar, o caracol é simultanea-mente um marcador da necessidade da conversão do nosso olhar à escala do espaço-tempo de Deus, e ao mesmo tempo, o operador de uma glosa irónica, pela qual o espectador é assim colocado numa espécie de Limbo, onde aguarda, na multidão dos infelizes que aí esperam pela salvação, o que o quadro não mostra, porque não poderia mostrá-lo, embora o represente: a Anunciação, precisamente.