sábado, 15 de novembro de 2008

Fragmentos de leitura 3 - Uma videoperformance de Rodrigo Castro de Jesus.



«Narciso no mijo», 6', 2006 - uma videoperformance de Rodrigo Castro de Jesus.

Em Transição: cíclopes, mutantes, apocalípticos - a nova paisagem artística no final do século XX, (Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 185), diz-nos Bernardo Pinto de Almeida : «Hoje o mundo está embutido em imagens [... há um] capital imaginário que o envolve em toda a parte. [...] Ora é sobre essa espessura da camada imaginária que recobre o mundo como se fosse uma pele que a nova arte age, ou tenta agir, procurando pensá-la, a essa realidade, a partir dos dados que ela fornece». A arte não perdeu pois o seu sentido crítico, embora se não dê já como utopia nenhuma forma de reconciliação entre a «realidade», que ela mesma questiona, e o que nela desponta como dobra saliente do sentido, da diferença ou do estranhamento. E nesse aspecto, ela não participaria já de qualquer nostalgia modernista.

Pergunta Gianni Vattimo, em A Sociedade Transparente (também citado por Bernardo Pinto de Almeida): «Teremos de contrapor a este mundo a nostalgia de uma realidade sólida, unitária, estável e 'autorizada'? Uma tal nostalgia corre o risco de se transformar continuamente numa atitude neurótica, no esforço de reconstruir o mundo da nossa infância, onde as autoridades familiares eram, ao mesmo tempo, ameaçadoras e tranquilizadoras» (VATTIMO, Gianni, A Sociedade Transparente, trad. de Isabel Santos e Hossein Shooja, Lisboa, Relógio d'Água, 1992, p. 14).

Vem esta nota de leitura a propósito de uma videoperformance que nos foi exibida recentemente. «Narciso no Mijo» foi um dos vários trabalhos que o Professor Jorge Laferla, da Universidade de Buenos Aires, nos mostrou, na sua conferência sobre «história da video-arte», pela qual lhe ficamos gratos. O nosso reconhecido agradecimento vai também para as Professoras Mirian Estela Nogueira e Gabriela Borges, graças às quais tal se tornou possível. Para procurarmos alinhar alguns dos assuntos da sua aula com o percurso que aqui temos vindo a fazer, a propósito da história e da semiologia da pintura, poderíamos começar por reter duas coisas. A primeira seria a descrição que ele mesmo faz, da performance de Rodrigo Castro de Jesus, no blog «Arte Contemporânea» (com textos importantes, de Jorge Laferla e Sergio Romagnolo; veja-se sobretudo o primeiro), ao qual se pode aceder pelo seguinte endereço :

1. A sua descrição é a seguinte: «Performance. O artista urina no chão e com o reflexo cria um auto-retrato. Fugindo do trágico fim do mitológico Narciso, o autor seca a urina com um ferro de passar, e sua imagem desaparece com o vapor.»

2. A segunda seria, no decurso do que dissemos em aulas anteriores, apoiados na leitura de CALABRESE, Omar, L'Art de l'Autoportrait: histoire et théorie d'un genre pictural, (trad. de Odile Ménégaux e Reto Morgenthaler, Paris, Mazenod & Citadelle, 2006), lembrar : a) o facto de a perspectiva ser, ela própria, um dispositivo especular; b) o facto de a figura de Narciso aparecer, no tratado da pintura de Leon Battista Alberti, de 1436 (Della Pittura) na sua versão italiana, inserida na sua definição como o inventor da pintura; c) as observações, feita por Daniel Arasse, no texto «La femme dans le coffre», sobre o quadro A Vénus de Urbino, da autoria de Tiziano Vecellio. Lá para o seu final, no diálogo entre o semiólogo e o historiador, onde lemos, acerca da definição de Alberti:


«[...]
(Semiólogo) - Lembrais-vos de Alberti? Bom, Lembrais-vos então de que ele fez de Narciso o inventor da pintura.
(Historiador) - Ele diz que retoma «o preceito dos poetas».
(Semiólogo) - Ele di-lo. Mas não se encontraram ainda esses poetas. A meu ver, eles não existem. Aliás ele diz isso «entre amigos». É uma conversa em privado. Não uma proposição erudita. De facto, é uma fantasia, uma invenção sua. Mas não é gratuita. Ela está de acordo com o que ele declara logo a seguir: ele não faz, como Plínio, uma história da pintura, mas um exame crítico muito novo da pintura, resumindo, ele funda uma nova arte de pintar.
(Historiador) - Avanti! per favore!
(Semiólogo) - Essa nova arte, estais de acordo que o seu fundamento é a perspectiva? Bom. Assim, Alberti inventa simultaneamente a perspectiva como base da pintura e Narciso como inventor da pintura. Dito de outro modo, ele faz de Narciso o inventor da perspectiva em pintura, da pintura em perspectiva.
(Historiador) - Belo raciocínio, nem mais.
(Semiólogo) - Não estejais de má fé. A relação entre Narciso e a pintura faz-se evidentemente através do espelho: o espelho da fonte em que Narciso se olha, e o plano de representação como espelho do mundo.
(Historiador) - Eu sei, eu sei: «a pintura será ela outra coisa que a arte de abraçar [o termo no texto de Arasse é «embrasser»] assim a surperfície de uma fonte»?
(Semiólogo) - Não achais bizarra, essa frase?
(Historiador) - Não, que tem ela?
(Semiólogo) - Mesmo assim, o termo «abraçar» a superfície da fonte é bizarro.
(Historiador) - Bizarro? Que tem ele de bizarro? Alberti sabia o que escrevia.
(Semiólogo) - Justamente. A palavra tem um ar natural mas ela é muito escolhida. Ele faz alusão primeiro à braça, quer dizer, como ele escreveu no Livro I, à medida base de toda a construção perspéctica do quadro. Mas ele diz também directamente o que ele diz, esse termo «abraçar» [embrasser]: «embrasser», tomar nos seus braços, tocar corpo a corpo, e mesmo dar beijos [donner des baisers].
(Historiador) - Mas não em italiano: embrasser é abbracciare; dar beijos, baciare.
(Semiólogo) - Exacto.
(Historiador) - E depois, precisamente, embrasser, é o que Narciso se recusa a fazer com Eco...
(Semiólogo) - E é também o que ele não pode fazer com a sua própria imagem reflectida no espelho da fonte. Ele não pode, nem tocar [«toucher»: cf. o contexto em que a palavra é usada a propósito de A Vénus de Urbino] nem beijá-la. Então ele perde-a, ele perde-se. Narciso é o inventor da pintura porque ele suscita uma imagem que ele deseja e que ele não pode nem deve tocar. Ele é sem cessar apanhado entre o desejo de a abraçar [«embrasser»], a essa imagem, e a necessidade de se manter à distância para poder vê-la. É isso a erótica da pintura que Alberti inventa, e é ela [a essa pintura] que Ticiano põe em cena em A Vénus de Urbino.[...]» (ARASSE, Daniel, On y voit rien: descriptions, Paris, Folio, 2000, pp. 171-172).

4. Assim, a videoperformance de Rodrigo Castro de Jesus parece-nos supor, neste contexto; a) não apenas uma afirmação derrisória do espelho e da perspectiva, dados como «excreções» de Narciso, mas também do que vai com ela de anti-humanismo, como diriam os pós-modernos, em contraponto com a noção de pintura que a Renascença italiana pensou, com a descoberta da perspectiva, ou a pintura flamenga e do Norte da Europa, com a noção de espelho, segundo Svetlana Alpers. Louis Marin, em «L'éloge de l'apparence», (De la représentation, Paris, Gallimard/Seuil, 1997, p. 242) examina criticamente as teses de Svetlana Alpers de uma forma que nos parece oportuno registar:

«Tudo se passaria [na pintura holandesa, segundo Svetlana Alpers], portanto, como se, sobre a superfície da tela, o mundo nas suas aparências, à sua própria superfície, se afectasse a si mesmo, se redobrasse de si mesmo para produzir a sua réplica exacta sob o olho fascinado e atento do espectador, do artista que não tem outra função, outra missão senão a de ser - à maneira pela qual Stendhal queria ser dois séculos mais tarde nos seus romances - um espelho passeado [promené] ao longo dos caminhos».

Embora espelho e perspectiva não sejam, evidentemente a mesma coisa, eles recobrem-se, do ponto de vista dos seus pressupostos, não apenas no facto de a perspectiva poder ser vista como «forma simbólica» (cf. para além de Panofsky, e do Daniel Arasse já mencionado, o magnífico ensaio de Gérard Wajcman, Fenêtre: chroniques du regard et de l'intime, Paris, Verdier, 2004), mas também pelo facto de - mesmo concebido, como uma «não-janela», superfície em que o lugar do espectador não é inscrito ou prescrito de forma estável - o espelho supor ainda a auto-afecção do mundo, do qual o sujeito faz parte, pela sua própria imagem na superfície retiniana, tomando-se o globo ocular como modelo de uma câmara escura.

Assim, de uma forma mais abrangente, com essa afirmação de Rodrigo Castro de Jesus iria também a afirmação de que toda a re-presentação de um objecto, compreendida a partir da relação entre o plano de representação e a superfície do espelho (ver o que Sócrates nos diz do espelho e da pintura, em A República, cap. X - essa imitação ou «execução dos objectos», diz Sócrates, «não é difícil [...] se quiseres pegar num espelho e andar com ele por todo o lado» - o que nos indica que Stendhal retoma a definição platónica, invertendo-lhe, contudo, o valor) é também representação de um abjecto; b) por outro lado, a afirmação da imagem-reflexo do rosto/corpo espelhado como veste (passada a ferro) ou como pele-imagem (em extensão) de um corpo des-realizado, projectado como exterior virtual que ao sujeito de contemplação se colasse, enquanto exterioridade que lhe fosse constitutiva, a fazer necessariamente desaparecer (evaporar), tanto quanto possível, o que retomaria a observação de Bernardo Pinto de Almeida com que iniciámos este estas notas de leitura. Observamos também, finalmente, que no video, c) aparecem, em dado momento, misturadas com os reflexos que ainda restam, o que diríamos serem as nuvens de um céu espelhado (como se esse céu surgisse «depois» ou «por detrás» da imagem de Narciso, na sequência da videoperformane, isto é, depois e por detrás, quer da imagem do rosto antes visto como reflectido, quer do gesto (já não apenas reflectido no espelho, mas também registado pela câmara e como que suscitado pelo espelho) da personagem e, então, um céu a sobrepor-se-lhe, bem como a interpor-se-lhe, em relação à sua imagem, com todas as sugestivas implicações que isso desencadearia, para a sua leitura)... Em resumo, desde que há «jogo» entre todas as possibilidades de leitura que o video nos parece suscitar, desde que elas, entre si e de modo dinâmico, se põem em jogo, Narciso, de facto desaparece da sua imobilidade, da sua suposta «presença a si» e como que se dissolve... Sem contudo desaparecer inteiramente. Diria Vattimo, em A Sociedade Transparente:

«Assim, se com a multiplicação das imagens do mundo perdemos «o sentido da realidade», como se diz, tal isso não seja afinal uma grande perda. [...] Aqui a emancipação consiste mais no desenraizamento, que é também, e ao mesmo tempo, libertação das diferenças, dos elementos locais [...]. Derrubada a ideia de uma realidade central da história, o mundo da comunicação generalizada explode como uma multiplicidade de racionalidades locais - minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais e estéticas - que tomam a palavra, finalmente já não silenciadas pela ideia de que só existia uma forma de verdadeiramente a humanidade a realizar, com prejuízo de todas as peculiaridades, de todas as realizações limitadas, efémeras, contingentes. Esse processo de libertação das diferenças, diga-se de passagem, não é necessariamente o abandono de todas as regras, a manifestação informe da demarcação: [...]. A libertação das diversidades é um acto com que elas «tomam a palavra», se apresentam, se «põem em forma» de modo a poderem tornar-se reconhecidas: de modo algum uma manifestação bruta de imediato. [...] Viver neste mundo significa fazer experiência da liberdade como oscilação contínua entre pertença e desenraizamento» (VATTIMO, Gianni, A Sociedade Transparente, trad. de Isabel Santos e Hossein Shooja, Lisboa, Relógio d'Água, 1992, pp. 14-15)

Sugestões de (re)leitura : As Metamorfoses, de Ovídio; o excelente livro de ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Transição: cíclopes, mutantes, apocalípticos - a nova paisagem artística no final do século XX, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002; MEDEIROS, Margarida, Fotografia e Narcisismo: o auto-retrato contemporâneo, Lisboa, Assírio e Alvim, 2000; BROOKER, Peter; BROOKER, Will, Postmodern After-images: a reader in film, television and video, London/New York/Sydney/Auckland, 1997 (com textos de Jean Baudrillard, Christopher Norris, Jim Collins, Fredric Jameson, Douglas Kellner, e outros); a parte da obra de Omar Calabrese sobre o «auto-retrato» na arte contemporânea.

Ficha biográfica do autor da videoperformance (retirada do site já mencionado acima): «Rodrigo Castro de Jesus nasceu em Osasco/SP, em 1983. Formado em Artes Visuais, em 2006, pela Faculdade Santa Marcelina, na capital paulista, o artista reside atualmente em Belo Horizonte. Desde 2003, participa de mostra de vídeos e exposições com destaque para a Medelin Artes Digitales, Medelín, Colômbia (2008); 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC VIDEOBRASIL – Panoramas do Sul – Novos Vetores, São Paulo, SP (2007) e Rumos Itaú Cultural – Festival Corta Curtas, Cine Falcatrua, São Paulo, SP (2006). Ao todo, o artista participou de 22 exposições coletivas.»