sábado, 15 de novembro de 2008

Fragmentos de leitura 1 - Baudelaire e Cesário Verde




O poema «À une passante», retirado dos «tableaux parisiens», é citado por Walter Benjamin, no ensaio «Sobre Alguns Motivos na Obra de Baudelaire». Um exemplo literário, ilustrativo da experiência do «choque», sobre a qual o seu texto reflecte (ver aqui no blogue Fragmentos de leitura 2: Walter Benjamin e a teoria do «choque»). Trata-se de uma experiência própria da modernidade, tal como podia já então ser vivida, no tumulto das grandes cidades, como Paris. Precisamente a experiência que levara Baudelaire a dizer: «a modernidade, é o transitório, o fugitivo, o contingente, o quinhão da arte, cuja contrapartida é o eterno e o imutável».

Nela, o «eu» é colhido de surpresa, atingido na «experiência cegante» da época da grande indústria, que se caracterizava, quer pela impossibilidade de assimilação, na memória individual, dos acontecimentos em qualquer processo mais vasto que os ligasse entre si, quer pela inevitabilidade, para o sujeito, de um recomeço constante, como diz Walter Benjamin. Ele expõe-se ao golpe desferido pela súbita visão do que, sobre o lenço escuro e ondulante da mole imensa dos que passam, se destaca e vibra: quer no instantâneo da visão, quer no instante luminoso do poema. Em «À une passante», esse véu de luto que o envolve, separando-o de si mesmo e dos outros, no fundo da sua insondável noite parisiense, rasga-o, num relâmpago, a figura dessa mulher, que dele emerge para logo desaparecer sem que se saiba dela o seu destino.

Um cotejo com a poesia de Cesário sublinharia os pontos de contacto e algumas diferenças. Leia-se, por exemplo, o poema de Baudelaire, bem como a sua tradução, por Maria Gabriela Llansol e, a seguir, o poema «A Débil», de Cesário.

No primeiro terceto de «À une passante», aquela figura «alta e esguia», «ágil e nobre», que vemos na câmara lenta que lhe circunscreve o gesto, (no gerúndio, nas primeiras duas estrofes do poema), atinge então o olhar, como um raio que cruzasse o dorso da noite com a sua vergasta, marcando-o com o impacto e o traçado veloz da impressão que o fere e perdura, tatuado na sua memória. É o choque, tal como Benjamin o descreve. Leia-se a sua descrição:

«No véu da viúva, envolta no seu silêncio e arrastada pela multidão, uma desconhecida cruza o olhar do poeta. [...] É deste modo que o soneto apresenta a figura do choque, e mesmo de uma catástrofe. Mas, ao se apoderar do sujeito, ela atinge também o cerne da sua emoção. O que faz estremecer o corpo como num espasmo - «crispado como um excêntrico», diz o texto - não é a beatitude de tudo aquilo que cede ao apelo erótico em todos os meandros do ser; tem mais a ver com o choque sexual que pode acometer um solitário.» (BENJAMIN, Walter, «Sobre Alguns motivos da Obra de Baudelaire», in BARRENTO, João (org.), A Modernidade: Obras escolhidas de Walter Benjamin, trad. de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 120)

Colhido de surpresa, o sujeito permanece alumbrado na sua experienciação da noite anómica que o envolve. Ela é, pois, no poema de Baudelaire, sem outro desenvolvimento, nem remissão a não ser os de uma experiência que é, em simultâneo, a de um impacto e a de uma distanciação: a fugaz e marcante experienciação do «transitório» e do «contingente», que caracteriza a Modernidade. E a «ex-centricidade» do sujeito é já, na sociedade que Benjamin apreende sob a noção de um desenraizamento constitutivo, bem a medida de um descentramento a vir que a «Pós-modernidade» consagrará como espaço sem saída. Em Cesário, pelo contrário, o eu do poema segue-a (como no conto de Poe, The Man of the Crowd, a que Baudelaire se refere, em O Pintor da Vida Moderna) mas é também para a perder, justamente no instante da sua apreensão como «visão» poética. O seu carácter de «visão», de corpo-imagem, é assinalado, no final do poema, pelo modo como o seu olhar se detém, na transfiguradora in(de)cisão que o desprende do real: «E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,/ Julguei ver, com a vista de poeta,/ Uma pombinha tímida e quieta / Num bando ameaçador de corvos pretos».

De facto, a figura daquele «eu» que, no poema de Baudelaire, «bebia, crispado como extravagante» - sob o efeito do choque produzido por essa súbita visão, segundo Benjamin - tem como contraponto aquela outra que, no poema de Cesário, «bebia cálices de absinto», de um «olhar humilde e suspirando» e «Sentado à mesa dum café devasso».

Mas a nota própria da poesia de Cesário reside na modalização, quer do «eu» que ali suspira, quer dessa figura feminina que cruza o seu campo de visão - «via-te pela porta envidraçada» - (e que contrasta com o fausto enlutado e com a majestade sensual dessa figura de mulher que, em «À une passante» é, finalmente, uma súbita e espectral aparição, corporizada no instantâneo de um relâmpago), quer do tempo-espaço, que em «A Débil» é dotado da profundidade e de uma pormenorização que em «À une passante» não há.

Em Cesário, ela aparece: «Com elegância e sem ostentação, [...] branca, esvelta e fina» e, em lugar da noite interior, inexorável, brutal e densa, no poema de Baudelaire, em «A Débil» há um «soberbo dia», sobre cujo luminoso fundo, não apenas o seu corpo «alegre e brando» «pulsa, nos seus linhos matinais», mas também se vão recortando os detalhes de um espaço mais pormenorizado.

Ali o imperfeito do indicativo marca, num tempo mais lento (o de uma Lisboa ainda relativamente provinciana), o olhar atento e prospectivo de quem a segue, no cuidado e no sobressalto, que se assinala, depois, pelo condicional: «Avultava, num largo arborizado,/ Uma estátua de rei num pedestal» e ali «Sorriam nos seus trens os titulares», ou acolá «Uma chusma de padres de batina,/ E de altos funcionários da nação»... «"Mas se a atropela o povo turbulento! / Se fosse, por acaso, ali pisada!"» ? ...

Ora, leiam-se os poemas:

À une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet ;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son œil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis ta nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité ?

Ailleurs, bien loin d'ici ! trop tard ! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais !

Charles BAUDELAIRE, 1821-1867
Tableaux Parisiens - Les fleurs du mal


A uma transeunte

A rua ensurdecedora em meu redor berrava
Alta, esguia, de luto carregado, dor majestosa,
Um mulher passou, com sua mão faustosa
Erguendo, baloiçando o ramo e a bainha

Ágil e nobre, com sua perna de estátua,
Eu bebia, crispado como extravagante,
No seu olhar, céu lívido onde nasce o furacão,
A doçura que fascina e o prazer que mata

Um raio… em seguida, a noite! __ Beleza fugitiva
Cujo olhar me fez repentinamente renascer,
Só voltarei a ver-te na eternidade?

Algures, bem longe daqui! Demasiado tarde! Nunca talvez!
Eu não sei para onde fugiste, tu não sabes para onde vou,
Tu que eu teria amado, tu que sabias que sim!



(Trad. de Maria Gabriela Llansol)


Agora o poema de Cesário Verde:

A Débil

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

"Ela aí vem!" disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, humilde e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais,

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que não o suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça,
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável!Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam nos seus trens os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia!Impunha-me respeito
A limpidez do teu sembalante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esvelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

(Lisboa, 1875. Publicado na "Evolução",
no.2, Coimbra, Novembro de 1876)