Jacques Lacan
(Eis a segunda parte de «Do testemunho e da ficção: experiência e aporia» - ver começo em Fragmentos de leitura 14: Do testemunho e da ficção - experiência e aporia I, aqui no blogue. O que significa que a leitura deste texto, não devendo ser autónoma do primeiro, deve ao mesmo tempo, ser-lhe encadeada, com ele formando um todo).
II – Do testemunho e da ficção - experiência e aporia II
1. A arte como pensamento do exterior
Para abordarmos a questão do terceiro, aparentemente «excluído» no sistema de Benveniste, do lado da psicanálise, convir‑nos-ia proceder aqui a uma espécie de recuo. Sempre que, em Lacan, se fala do ‘outro’, uma distinção se impõe, no que resulta da sua reapropriação do legado de Freud: trata‑se, por um lado, do petit autre – que é, na relação imaginária, o objecto de um desejo que se dá sempre como desejo do desejo do outro.
Na primeira etapa da constituição do imaginário, inaugurada e decorrente na e da fase do espelho, a relação com a mãe é uma relação de dualidade imediata : por um lado – a) a Gestalt recorta a figura do corpo reunido e destaca-a do contínuo de qualquer fundo; por outro lado – b) o sujeito não se dissocia ou discerne ainda distintamente desse seu outro. E será pela via dessa não‑dissociação[1] que a introjecção das primeiras verbalizações decorre.
O que nos coloca perante uma lógica diferente, pois a lei do simbólico, ditada pela instância do terceiro, é ela própria constitutiva do sujeito. Ao sujeito, não se pode concebê-lo dele dissociado. E isso, até na medida em que é a sua béance primitiva que, na teoria de Lacan, se dará como lugar da sua suplementar colmatação, sobreposição ou precipitação. O que, no entanto, não evitará que, quanto ao que diz respeito ao «eu», uma ambivalência ali se produza. Como lembra Rosalind Krauss, a psicanálise inscreve, na instância do sujeito, um duplo funcionamento do eu (veja-se, aqui no blogue, Fragmentos de leitura 9: mito e personagem II:
«Em outro ensaio Lacan formulou a regra deste sujeito linguístico [...] que se lê todo o x é uma função do falo, com o falo entendido como significante mestre na cadeia linguística. [...] Mas dá-se também o caso de que todo o sujeito humano tem um ego, ou sentido (autónomo) de si, que quer manter-se fora dessa fórmula e se organizaria, em vez disso em outros termos, directamente opostos: [...] há um x que não é função do falo.» (KRAUSS, Rosalind, «Cindy Sherman, Untitled», Bachelors, Cambridge / Massachussets / London, MIT, 2000, pp. 127-128).
Essa dupla dimensão do eu, em intersecção e em diferença com a instância do terceiro (ele), vê-la-emos aqui tratada, mais adiante, por Lacoue-Labarthe. Para começar a desdobrar as implicações da concepção de Lacan, notemos simplesmente o que nos lembra Roland Barthes, a propósito da constituição do sujeito lacaniano:
[…] a criança entra, diz-nos Lacan, logo no simbólico ao descobrir a sua imagem no espelho aos seis meses de idade. É o estádio do espelho, ou seja, o momento em que pela primeira vez, ela capta a imagem do seu corpo reunido. [...] A partir desse momento começa a aventura da intersubjectividade, da construção imaginária do eu’[2]
Ver-se-á que essa «entrada no simbólico» pressupõe uma experiência do símbolo ainda anterior à Metafora Paterna que o vem fixar a uma significação estável e, por conseguinte, que ela supõe uma experiência prévia, em relação à determinação identitária desencadeada pela introjecção`de uma lei, à saída do Édipo. Essa entrada «no simbólico» supõe, a princípio, apenas, o desdobrar das primeiras vocalizações, ainda na relação imaginária, e portanto ainda antes do advento do Simbólico, até que, sob a ameaça da castração, finalmente este último, enquanto medida comum do «como um», se imponha.
Ora, é ainda no decurso desse primeiro desdobramento, dessa primeira experiência dos símbolos que, numa segunda etapa dessa sua aventurosa constituição de sujeito, o inquietante movimento de um vai-vém, de um Fort-Da ou de uma presença-ausência do Outro (a mãe), desencadeia, não apenas o que Lacan chamará, em ‘O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu’, de ‘ciúme primordial’:
‘[...] esse momento em que se completa o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e o drama do ciúme primordial […] a dialéctica que desde logo liga o eu a situações socialmente elaboradas’[3]
Mas trata-se também da questão, por um lado: a) da significação que lhe está adstrita e, por outro lado: b) da sua auto-certificação, quanto ao seu valor e à sua expectativa. Tudo aí se passaria então como se, na criança, a seguinte posição se pudesse projectar: «que significa a presença-ausência da mãe ? Que(m) sou eu, para além daquela posição, por um lado, de centralidade fálica, por outro de continuidade e extensão, que a relação imaginária supõe ?»
Como se a descoberta que opera como instauradora da constituição do «sujeito», na sua identitária e normativamente aceite «normalidade», começasse por ser a de que o Falo estará, imperturbavelmente, na sua isenta impassibilidade, fora do seu alcance. Um falo que é, portanto, exterior e sem mistura, e prevaleceria sempre «algures», preciamente no horizonte desse movimento do desejo do Outro: ele oscila, (O Outro, a mãe, termo das suas primeiras incursões no simbólico) vai e vem.
Esse é o movimento que Freud discernirá como estando na origem do estranho jogo que presencia, na figura do neto que brinca com o carretel de linhas, e que ele interpreta como o jogo de duas vocalizações - ôôô / aaaa - que abreviam essas duas palavras em alemão, e pelo qual a criança procura controlar, colocando-se na posição do sujeito que decide e concede a ausência, revendo-se, portanto, transitivamente, na posição do seu Outro.
Ora, enquanto tal, ela indica já o facto de que só aparentemente, essa instância do Outro, se situará fora dessa relação eu-tu, sobretudo em se tratando aqui de um Pai simbólico (e não como veremos do pai real), cada vez mais constituinte e, para a psicanálise, desejavelmente imanente à regulação inerente às primeiras verbalizações. Dir-nos-á Lacan:
A primeira dialéctica da simbolização da relação da criança com a mãe é feita, essencialmente, com respeito ao que é significável, ou seja, ao que nos interessa. Há, sem dúvida, outras coisas além disso – há o objecto que a mãe pode representar, como portadora do seio, há as satisfações imediatas que ela pode dar à criança – mas se houvesse apenas isso, não existiria nenhuma espécie de dialéctica, nenhuma abertura no edifício. Na sequência, a relação com a mãe não é simplesmente feita de satisfações e de frustrações, mas da descoberta do que é o objecto do desejo dela. O sujeito, essa criança pequena que tem de se constituir em sua aventura humana e ter acesso ao mundo do significado, deve, com efeito, fazer a descoberta do que significa para ela o seu desejo. Ora, o que sempre criou problemas na história analítica [...] foi saber por que [razão], nesse ponto, aparece a função privilegiada do falo.[4]
Que descoberta é essa? Enquanto desejo do desejo do outro, o desejo da criança é refém de todas as oscilações que o afectem, pela sua dependência[5] desse desejo outro:
‘[…] é a aventura primordial do que se passou em torno do desejo infantil, do desejo essencial, que é o desejo do desejo do Outro, ou o desejo de ser desejado. […] Eis o que vai ser inscrito, conforme a história do sujeito, em sua estrutura: são as peripécias, os avatares da continuação desse desejo, na medida em que ele está submetido à lei do desejo do Outro. É isso que faz do mais profundo desejo do sujeito, daquele que permanece suspenso no inconsciente, a soma, a integral, diríamos, desse D maiúsculo que é o desejo do Outro. […] O importante, com efeito, não é apenas a frustração como tal, ou seja, um mais ou um menos de real que tenha ou não sido dado ao sujeito, mas é aquilo pelo qual o sujeito almejou e identificou o desejo do Outro que é o desejo da mãe’[6].
Portanto, é pelo facto de ser desejo do desejo do outro, bem como pelo facto de este último se vir a revelar, afinal, como desejo de um Outro, que o desejo infantil se tornará, extensiva e transpositivamente, desejo de um desejo a que aqui chamaríamos desejo Outro, porque ele não respeita o que ela esperaria, e cuja marca indelével implicará, no desejo infantil, um inexorável deslocamento. Retomemos então, para a questão da descoberta de que aqui se trata, o que Lacan nos diz acerca do estádio do espelho:
Ce moment où s’achève le stade du miroir inaugure, par l’identification à l’imago du semblable et le drame de la jalousie primordiale (si bien mis en valeur par l’école de Charlotte Bühler dans les faits de transitivisme infantin) la dialectique qui dès lors lie le je à des situations socialement élaborées. C’est ce moment qui décisivement fait basculer tout le savoir humain dans la médiatisation par le désir de l’autre, constitue ses objets dans une équivalence abstraite par la concurrence d’autrui, et fait du je cet appareil pour lequel toute poussée des instincts sera un danger, répondît-elle à une maturation naturelle – la normalisation même de cette maturation dépendant dès lors chez l’homme d’un truchement culturel : comme il se voit pour l’objet sexuel dans le complexe d’Œdipe.[7]
Esse truque cultural consiste em substituir a relação com o objecto pelo seu reconhecimento como exterior. Esse sentido da exterioridade decorre já da experiência da sua alernância entre presença e ausência. O Fort-Da constituirá, então, nesse ponto, a encenação e o jogo que sintomatiza, aos olhos de Lacan, para além daquela transposição significante que indica o acesso à linguagem como sistema, e a introdução do sujeito na posição ou no lugar do agente da sua própria afecção, aquela dilaceradamente experienciada oscilação do desejo da mãe, enquanto desejo desejado[8].
Entre o desejo da mãe, inicialmente tido, pela criança, como desejo que lhe seria exclusivamente correspondente - ou desejo do seu desejo - e a crise instaurada pelo e no desejo da mãe tido, agora, em simultâneo, como desejo de um Outro, é toda uma vida que se joga no limiar de uma morte que essa mesma vida se verá forçada a acolher e em si inscrever:
É a mãe que vai e vem. É por eu ser um serzinho já tomado pelo simbólico, e por haver aprendido a simbolizar, que podem dizer que ela vai e que ela vem. Em outras palavras eu a sinto ou não sinto, o mundo varia com a sua chegada e pode desaparecer[9].
Iminência da morte, pela concorrência de Outro e pela privação que ela virá a desencadear. Por um lado, a morte iminente, a iminência da morte que é, afinal, iminência do que já terá tido lugar:
‘[...] também nós já estamos mortos em relação ao movimento da vida. […] O homem é esse animal preso e articulado num sistema significante que lhe permite dominar [a] sua imanência de vivente e perceber-se como já morto’[10].
Por outro lado, trata-se também do esquecimento ou do recalcamento, que me assegurará a vida enquanto sobrevivência: eis, em se tratando do testemunho, o fulcro da questão… Aproximamo-nos, assim, pouco a pouco, das premissas do discurso sobre o testemunho, em Jacques Derrida: o testemunho, dizia-nos ele, supõe sempre a sobrevivência e, nessa medida, a irredutível compossibilidade da ficção nele inscrita. Sobretudo se um certo sentido de ficção supuser nela a modelação, a figura do corpo inteiro, a imposição de um limite estanque, o conceito no lugar do afecto, o recorte nítido do que é testemunhado.
Percebermo-nos é, portanto, para Lacan, vermo-nos já pela via do Significante - isto é, não apenas pela via do símbolo das primeiras verbalizações, mas também pela instauração da metáfora paterna, que as regulará, a partir do Édipo - o qual, todavia, nos permanecerá, enquanto tal, velado.
Para a inscrição dessa lei, ou para o advento da metáfora paterna, é necessário que a sua maiusculação (Significante), ou a sua sublimação, se instaure a partir da fantasmatização da possibilidade de uma reversão daquele desejo infantil da desaparição do pai, fantasia imaginariamente projectada na criança como condição da sua exclusividade, na relação com a mãe. Ve-lo-emos já de seguida. A este respeito, tudo parte, portanto, do «pai morto», que o desejo (isto é, «o desejo do desejo do Outro», do Outro que a mãe, ainda enquanto mãe fálica, representa) supõe.
[…] o Pai, com P maiúsculo, nunca é apenas um pai, mas antes o pai morto, o pai como portador de um significante, significante em segundo grau, que autoriza e fundamenta todo o sistema dos significantes, e que faz com que o primeiro Outro, isto é, o primeiro sujeito a quem o indivíduo falante se dirige, seja, ele mesmo, simbolizado. É unicamente no nível do Outro, do Outro da lei propriamente dita, e de uma lei […] encarnada, que o mundo articulado, humano, pode adquirir [a] sua dimensão própria.[11]
Ora, a descoberta de que aqui se trata é a de que alguma coisa mexe com a mãe, a mobiliza enquanto Outro que dá ou recusa a presença ou a ausência, fazendo com que ela nem sempre corresponda às expectativas (de centralidade fálica), ou corresponda cada vez menos, em que a relação imaginária (que é de não discernimento do seu outro) coloca a criança:
‘ [...] a pergunta é: qual [é] o significado? O que quer essa mulher aí? Eu bem gostaria que fosse a mim que ela quer, mas está muito claro que não é só a mim que ela quer. Há outra coisa que mexe com ela – é o x, o significado [do seu desejo, para mim]. E o significado das suas idas e vindas é o falo’[12].
O seu «desejo do desejo do Outro» imporá, nesse processo da angustiante experiência do seu vai-vem, dessa sua afirmada prerrogativa da doação/privação da presença, a necessidade da inscrição da metáfora paterna e/ou do Nom-du-Père, promissora da possibilidade da posição genital em que, um dia, à criança lhe será possível «realizar o seu desejo», num outro lugar, por analogia. Ao mesmo tempo ele abre, quer para o recalcamento, no sujeito a constituir-se, e portanto para «a formação do inconsciente» (nome de um dos seminários de Lacan que aqui lemos) quer, do mesmo passo, para o sujeito produzido, pela via do seu acesso à linguagem, enquanto ser barrado ou clivado.
Para retomarmos as coisas desde a sua «entrada no simbólico», ponto em que Barthes nos tinha deixado, dir-se-ia então que, como nos diz Lacan: ‘O significante chega […] no Outro. […] O desejo […] encontra o Outro, disse-lhes eu, não como uma pessoa, mas […] como tesouro significante, como sede do código’[13]: ‘ o pai é – portanto – um significante que substitui um outro significante’ - eis a metáfora paterna - no decurso da primeira dialéctica das simbolizações da criança: a ‘função do pai no complexo de Édipo é [a de] ser um significante que substitui um primeiro significante introduzido na simbolização, [em relação a] o significante materno […] o pai vem [agora] no lugar da mãe’ pela via da descoberta do desejo da mãe como desejo (do) Outro.
Essa descoberta é, portanto, a descoberta de um pólo exterior à relação imaginária, que a coloca na dependência do que lhe é exterior, que a «expõe» precisamente ao lugar de onde provém o motivo do vai-vem ou da alternância da presença/ausência da Mãe. Essa posição de exterioridade, e de «isenção» do Outro (não daquele com que se estabelece a relação imaginária, mas daquele que será Outro do Outro) em relação ao imaginário, é precisamente a do Falo, motivo das idas e vindas desse Outro, razão da sua crescente impermanência na relação que consagraria ou ratificaria a posição de centralidade fálica da criança e que, na verdade, é ainda a posição consentida pela fase do espelho, na medida em que ela supõe o seu não discernimento do seu Outro. A fase do espelho é, portanto, a que transitivamente consagra a possibilidade do «Je est un autre», que aqui descreveria a relação imaginária sem a qual o simbólico não teria lugar.
Ora, na sua exterioridade, o grand Autre (lugar do código) é o que garante a suspensão dessa dualidade especular, implicando a necessidade e a possibilidade do reconhecimento do Outro e da auto-referência do eu. Mas implicando-a, no processo da introjecção da lei do Significante, ele não trará consigo nenhuma eliminação pura e simples do imaginário. A relação entre Simbólico e imaginário é de sobreposição, como se verá mais adiante e, de resto a expressão metáfora paterna suporá, mas não de pura e simples exclusão.
Ora, com o falo, trata-se da função mais geral que existe. Permitam-me uma fórmula concisa, que lhes parecerá muito audaciosa, mas à qual não teremos de voltar se vocês tiverem a bondade de admiti-la por um instante por seu uso operacional. Assim como [...], no interior do sistema significante, o Nome-do-Pai tem a função de significar o conjunto do sistema significante, de autorizá-lo a existir, de fazer dele a lei, direi que, frequentemente, devemos considerar que o falo entra em jogo no sistema significante, a partir do momento em que o sujeito tem de simbolizar, em oposição ao significante, o significado como tal, isto é, a significação. [...] Esse falo é velado e permanecerá velado até ao fim dos séculos, por uma razão simples: é que ele é um significante último na relação do significante com o significado. Com efeito, há pouca probabilidade de que venha jamais a revelar-se senão em sua natureza de significante, ou seja, de que venha realmente a revelar, ele mesmo, aquilo que, como significante, ele significa.[14]
O «Falo» só pode ser, portanto, no momento em que vem a desempenhar a sua função de instaurador do sistema da linguagem na sua «existência», no momento da sua precipitação, ainda imaginário: ele insere-se precisamente, na sua autonomia, tal como se verá já a seguir, no horizonte de uma relação projectiva. E é aqui que nos parece residir o mais interessante, naquilo que nos dirá respeito, quanto à ambivalência da relação que subtende a utilização do pronome «eu». Com efeito, a descrição que Lacan nos fornece da relação de forças e da experiência em que a triangulação edipiana assenta diz-nos o seguinte:
O que é esse medo da castração? Por que vértice abordá-lo? Nós o abordamos na primeira experiência do complexo de Édipo, mas sob que forma? Como uma represália no interior de uma relação dual‑agressiva. Essa agressão parte do filho, na medida em que o seu objeto privilegiado, a mãe, lhe é proibido, e se dirige ao pai. E retorna para ele em função da relação dual, uma vez que ele projeta imaginariamente no pai intenções agressivas equivalentes às suas, mas que têm como ponto de partida as suas próprias tendências agressivas.’ [15]
Eis, pois, que é precisamente pela projecção ou pelo transitivismo infantil daquela inicial agressividade[16] inerente à relação dual-narcísica que o Édipo atingirá, também, diz Deleuze, o ponto da sua auto-crítica. A relação imaginária abre aqui para uma fantasmatização reflexa em que a criança é colhida pela sua própria pulsão, pela sua própria agressividade, aquela agressividade que é o correlato da sua própria dependência do desejo do Outro.
O Édipo será já, nesse ponto[17], da ordem da ‘ficção’ como nos diriam Gilles Deleuze e Félix-Guattari, em O Anti-Édipo, a propósito de Lacan. Pois o que a descrição lacaniana lhes parece mostrar é que o inconsciente é a própria condição de possibilidade da lei que o funda e, portanto, é irredutível à estrutura da relação edipiana. (O que, de resto, Freud se teria encarregue de sugerir, por exemplo em «o ego e o superego (o ideal do ego)», como verificaremos adiante). Eis o que eles nos dizem:
Mas é também aqui que o trabalho de Lacan se apresenta em toda a sua complexidade, porque ele não encerra o inconsciente numa estrutura edipiana. Mostra, antes que o Édipo é imaginário, apenas uma imagem, um mito; e que essa ou essas imagens são produzidas por uma estrutura edipianizante; que essa estrutura só actua na medida em que reproduz o elemento da castração que, esse sim, não é imaginário mas simbólico. São estes os três grandes planos de estruturação, que compreendem os grandes conjuntos molares: […] e todos os três são necessários, precisamente para levar o Édipo ao ponto da sua auto-crítica. Levar o Édipo a esse ponto foi o que Lacan fez. […] Mas o que é o ponto de auto-crítica? É aquele em que a estrutura, para lá das imagens que a preenchem e do simbólico que a condiciona na sua representação, mostra que o seu reverso é um princípio positivo de não-consistência que a dissolve.[18]
Ora, «uma estrutura «edipianizante»» faz necessariamente intervir «a ameaça da castração». Mas ela só poderia ser compreensível ainda no domínio da mesma pulsão que preside àquela fantasia reflexa, em que a criança fantasmatiza a posição do outro como idêntica à sua e, nisso, ameaçadoramente inquietante ou angustiante.
Além disso, «um princípio positivo da não consistência» não apenas seria, aqui, a condição de possibilidade ou o princípio fundamental da precipitação do simbólico no sujeito, mas também aquilo que estaria em causa, não apenas já no real, mas também no imaginário. Se a economia da constituição do sujeito é movida pulsionalmente pela sua determinante dependência do desejo do outro (em relação ao qual o seu desejo se formula), essa economia última só se poderia explicar por ser exigida pela aneconomia de um «princípio positivo da não consistência».
Por outro lado, se o Nome-do-Pai ‘tem a função de significar o conjunto do sistema significante, de autorizá-lo a existir, de fazer dele a lei’, isso só se tornaria necessário sobre o fundo de alguma vacilação ou ilimitação e o que se verifica é também que, para Lacan, isso se dá já depois da entrada «no simbólico» das primeiras verbalizações, «no interior» de um significante que ainda não faz «sistema», que ainda «não faz um consigo mesmo», que ainda não é metaforizado ou substituído no seu conjunto, pelo Nome do pai.
É tendo, também, isto em conta que se pode compreender a afirmação deleuziana de que se trata, aqui, de levar o Édipo ao ponto da sua auto-crítica: tudo aqui parece decorrer, com efeito, na lógica da sua suplementação, de um princípio de não consistência que nos imporia a sua necessidade.
Ler-se-ia, de resto, n’O Anti-Édipo: ‘o inconsciente da esquizo-análise não conhece pessoas, conjuntos ou leis: imagens, estruturas ou símbolos. É órfão, anarquista e ateu. […] Não é estrutural nem simbólico, porque na sua produção e até na sua inorganização, a sua realidade é o Real. Não é representativo, mas simplesmente maquínico e produtivo’[19].
Repetição e diferença, portanto, já no Real - se o concebermos aqui concebido como espaço desse princípio positivo da não consistência, o que não se desadequaria ao que diz Lacan: que o Real é inacessível ao símbolo. E Lacan observa, quanto ao que aqui nos interessa: ‘[…] vocês não podem absolutamente deixar de ver na célebre frase de Picasso, Eu não procuro, acho, o que é o achar, o trobar dos trovadores [...], de todas as retóricas, que toma a dianteira em relação ao procurar. É claro, o que é achado é procurado, mas procurado [já] nas vias do significante. Ora essa busca é, de alguma forma, uma busca antipsíquica [...]’[20].
Deveríamos, aqui, perguntarmo-nos: porquê ‘anti-psíquica’? Precisamente porque o que é procurado por essa via – a do significante – que não é senão a via daquele reenvio entre significantes a que toda a interpretação interminavelmente se abre, (pela reversibilidade do ‘significado’ em significante: ‘o dicionário […só] pára em Deus’[21], como nos diria Barthes) – é, afinal, procura do que seria sempre anterior e interior, anterior e condição de possibilidade do efeito constitutivo de qualquer Significante (maiusculado).
Já anterior e interior, e em cuja abertura ele se inscreverá, irremediavelmente, no e para o sujeito clivado (que, enquanto tal, se vê, para sempre, privado de o re-encontrar, na forma do ‘o que’)[22]. E, nessa medida, trata-se, na arte, de uma procura des-simbolizante, projectada a partir do pano de fundo de uma certa irredutibilidade do (real-)imaginário ao simbólico que, com a nossa morte impossível necessária, se lhe imporia.
Seria, também por aqui que se poderia retomar o que nos afirmaria Roland Barthes, em o Prazer do Texto: ‘o texto é (deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao Pai Político’[23]; há, portanto, quanto àquela relação dual-agressiva em que o simbólico surgiria como exigência e como inter-ferência, que prestar uma suplementar atenção. Como nos diz Jacques Lacan, em ‘Au-delà de l’imaginaire, le symbolique’, em consonância com o que, a propósito da crítica derridiana do conceito fenomenológico do sentido da expressão, e da estrutura testamentária do signo em geral, observámos já:
En fin de compte, il y a entre le sujet-individu et le sujet décentré, le sujet au-delà du sujet, le sujet de l’inconscient, une espèce de rapport en miroir. Le moi est lui-même un des éléments significatifs du discours commun, qui est le discours inconscient. Il est en tant que tel, en tant qu’image, pris dans la chaîne des symboles. Il est un élément indispensable de l’insertion de la réalité symbolique dans la réalité du sujet, il est lié à la béance primitive du sujet. En cela, en son sens originel, il est dans la vie psychologique du sujet humain l’apparition la plus proche, la plus intime, la plus accessible, de la mort.[24]
Nestes termos, a condição de possibilidade do sujeito-indivíduo é, precisamente, a sua divisão, o seu não menos constitutivo descentramento, (o seu princípio positivo de não consistência), a sua inicial ou primitiva abertura ou a sua inaugural hiância, o espaço em que se virá inscrever a sua ob‑jectivação imaginária de sujeito individuado, de sujeito diferenciado, a partir da imagem do corpo reunido. Ora, ela não supõe, pelo facto de se referir ao corpo reunido, a auto-referência a não ser enquanto outro. Um «Auto» que não é senão um «hetero». E um «hetero» que será a condição de possibilidade de todo o «auto», dando-nos o sujeito como constitutivamente espectral. O terceiro intervém aí - na relação imaginária, abrindo para uma divisão e uma clivagem do sujeito, na medida em que precipita a sobreposição do simbólico:
O que é um sujeito? Será alguma coisa que se confunde, pura e simplesmente, com a realidade individual que está diante de seus olhos, quando vocês dizem o sujeito? Ou será que, a partir do momento em que vocês o fazem falar, isso implica necessariamente uma outra coisa? Quero dizer, será que a fala é como que uma emanação que paira acima dele, ou será que ela desenvolve, que impõe, por si só, sim ou não, uma estrutura como aquela que tenho comentado longamente, à qual os habituei? – e que diz que, quando há um sujeito falante, não há como reduzir a um outro, simplesmente, a questão de suas relações com alguém que fala, mas há sempre um terceiro, o grande Outro, que é constitutivo da posição do sujeito enquanto alguém que fala, isto é, também como o sujeito que vocês analisam[25].
É ainda, o que Lacan reitera, a propósito do Édipo:
Le complexe d’Oedipe veut dire que la relation imaginaire, conflictuelle, incestuese elle-même est vouée au conflit et à la ruine. Pour que l’être humain puisse établir la relation la plus naturelle, celle du mâle à la femelle, il fallut qu’interviennent un tiers, qui soit l’image de quelque chose de réussi, le modèle d’une harmonie. Ce n’est pas assez dire – il faut une loi, une chäine, une ordre symbolique, l’intervention de l’ordre de la parole, c’est à dire du père. L’ordre qui empêche la collision et l’éclatement de la situation dans l’ensemble est fondé sur l’existence de ce nom du père. J’insiste – l’ordre symbolique doit être conçue comme quelque chose de superposé, et sans quoi il n’y aurait pas de vie animale possible pour ce sujet biscornu qu’est l’homme.[26]
Ora, que o discurso comum seja o discurso do inconsciente, isso pressupõe que uma tal sobreposição se deu já. Deveria, então, ler‑se isto no duplo sentido de que: a) por um lado, é no discurso comum que o inconsceinte se inscreve, como quereria mostrar a experiência analítica, o que relevaria do inconsciente e/ou da descentração; por outro lado: b) de que é dele que se trata, quanto ao que pertence à ordem daquela inconsciência desse inconsciente que o simbólico arrasta consigo.
Nessa relação em espelho, entre inconsciente e símbolo, entre real e simbólico, entre o sujeito do inconsciente e o sujeito da linguagem colocam‑se, pois em reenvio. O que se manteria como fundo suposto seria, ainda aqui, «um princípio positivo de não consistência». Voltaremos a ele. Aqui chegados poderíamos, antes de mais – retomando o que atrás se mostrou, quanto à inscrição da morte no presente vivo, que é antecipada, do lado da psicanálise, nessa abertura inaugural do meu ser fragmentário primitivo – sublinhar o que haverá, no eu puro da fenomenologia, desta vez, de um ‘ele’ que dele erradica toda a possibilidade de qualquer certeza apodíctica e, portanto, o mostrará já refém, quer do signo (e da linguagem na sua iterabilidade), quer do que a psicanálise designaria por Nom-du-Père, enquanto elemento, não apenas determinante da linguagem na sua «existência», mas também enquanto significante.
(Continua em Fragmentos de leitura 16: Do testemunho e da ficção - experiência e aporia III)
[1] Note-se, a este respeito, a menção de Lacan, entre parêntesis, ao transitivismo infantil, já demonstrado por Charlotte Bühler, na seguinte passagem de ‘Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique’, Écrits – I, Paris, Seuil, 1966, p. 97 : ‘Ce moment où s’achève le stade du miroir inaugure, par l’identification à l’imago du semblable et le drame de la jalousie primordiale (si bien mis en valeur par l’école de Charlotte Bühler dans les faits de transitivisme infantin) la dialectique qui dès lors lie le je à des situations socialement élaborées.’ Veja-se também, por exemplo, em ‘A Lógica da Castração : ‘A Fantasia para além do Princípio do Prazer’’, As Formações do Inconsciente: o Seminário – livro 5, trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, pp. 244-247. Aí se trata da fantasia Bate-se em uma criança, na qual quem bate se queixa de lhe haverem, aquele a quem bate, batido: ‘a criança que está sendo espancada […] é um parente próximo, um irmãozinho ou uma irmãzinha, em quem o pai bate. […] Estamos antes do Édipo e mesmo assim o pai presente’ (sublinhado nosso). Aquele que é apontado como autor da agressão, diz Lacan, ‘longe de assimilá-lo ao pai, convém situá-lo no para-além do pai, isto é, naquela categoria do Nome-do-Pai que tomámos o cuidado de distinguir das incidências do pai real’. Esse gesto é, pois, signo e veículo de uma relação de continuidade, de não discernimento, entre a criança e o seu Outro.
[2] BARTHES, Roland, ‘«L’Express» vai mais longe com... Roland Barthes’, O Grão da Voz: entrevistas – 1962-1980, trad. de Teresa Menezes e Alexandre Melo, Lisboa, Edições 70, 1982, p. 95 (sublinhado nosso).
[3] LACAN, Jacques, ‘Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique’, Écrits – I, Paris, Seuil, 1966, p. 97.
[4] LACAN, Jacques, ‘A Lógica da Castração : ‘A Fantasia para Além do Princípio do Prazer’’, As Formações do Inconsciente: o Seminário – livro 5, op. cit., pp. 247-248 (sublinhados nossos).
[5] LACAN, Jacques, ‘A Dialética do Desejo e da Demanda: ‘Tu és Aquele a quem Odeias’’, op. cit., p. 512-513: ‘Que temos aí, no nível do Outro primário e das primeiras demandas? Temos o fenómeno a que se chamou dependência. Tudo o que acontece com o supereu materno articula-se em torno disso. […] Na realidade, há desde sempre a estrutura em dois patamares que vemos aqui, porque é preciso admitir desde a origem que, pelo simples facto de se tratar do significante, existem dois horizontes da demanda. […] mesmo por detrás da demanda mais primitiva, a do seio e do objeto que representa o seio materno, há o desdobramento criado na demanda pelo fato de ela ser demanda de amor, demanda absoluta, demanda que simboliza o Outro como tal, que distingue o Outro, portanto, como objeto real capaz de proporcionar uma dada satisfação, do Outro como objeto simbólico que dá ou recusa a presença ou a ausência […].’
[6] LACAN, Jacques, ‘O Valor de Significação do Falo: ‘a Menina e o Falo’’, op. cit., pp. 282-283 (sublinhados nossos).
[7] Ibidem, p. 97 (sublinhados nossos).
[8] LACAN, Jacques, ‘O Valor de Significação do Falo: As Máscaras do Sintoma’, op. cit., p. 342: ‘O que constitui a demanda? Não vou refazer a dialética do Fort-Da. A demanda está ligada, antes de mais nada, a algo que está nas próprias premissas da linguagem, isto é, à existência de uma invocação, que ao mesmo tempo é princípio da presença e termo que permite repeli-la, jogo de presença e ausência. […] O objecto de que se trata é o parêntese simbólico da presença.’
[9] LACAN, Jacques, ‘A Lógica da Castração : ‘A Metáfora Paterna’’, op. cit., pp. 180-181 (sublinhado nosso).
[10] LACAN, Jacques, ‘A Dialética do Desejo: Os Circuitos do Desejo’, op. cit.,p. 476 (sublinhado nosso).
[11] Ibidem, p. 474 (sublinhado nosso).
[12] LACAN, Jacques, ‘A Lógica da Castração : ‘A Metáfora Paterna’’, op. cit., p. 181.
[13] LACAN, Jacques, ‘A Lógica da Castração : ‘A Foraclusão do Nome-do-Pai’’, op. cit., p. 154.
[14] LACAN, Jacques, ‘A Lógica da Castração : ‘A Fantasia para Além do Princípio do Prazer’’, op. cit., p. 248-249 (sublinhados nossos).
[15] LACAN, Jacques, ‘A Metáfora Paterna’, op.cit., p. 175 (sublinhado nosso).
[16] LACAN, Jacques, ‘A Dialética do Desejo: Os Circuitos do Desejo’, op. cit.,p. 483: ‘Lembrem-se, no caso do Homem dos Ratos, do episódio de cólera furiosa de que ele é tomado contra o pai, aos quatro anos de idade […]. Ele se atira ao chão, chamando-o de tu guardanapo, tu prato etc. […] A litania de substantivos mobilizada na ira do menino deixa bem claro que não se trata de saber se o pai é uma lâmpada, um prato, um guardanapo, mas de fazer o Outro descer à categoria do objeto, e de destruí-lo’.
[17] BAILLY, A., Abrégé du dictionnaire Grec-Français, Paris, Hachette, 1901, p. 806 : ‘στιγμη: «um ponto, um nada, […] um instante»’; ‘στιγμός: «picada»’ ; ‘στιζω: «imprimir uma marca com um instrumento agudo ou em brasa; tatuar, marcar com o ferro vermelho; imprimir marcas a golpes»’.
[18] DELEUZE, Gilles, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia-I, trad. de Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 324.
[19] Ibidem, p. 250.
[20] LACAN, Jacques, O Seminário – Livro 7: A Ética da Psicanálise, trad. de António Quinet, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, pp. 149-150 (sublinhado nosso).
[21] BARTHES, Roland, O Grão da Voz, trad. de , Edições 70, 1982, p. 100.
[22] LACAN, Jacques, ‘A Dialética do Desejo: Os Circuitos do Desejo’, As Formações do Inconsciente: o Seminário – Livro 5, op. cit.,p. 475: ‘O Outro não é, pura e simplesmente, o lugar desse sistema perfeitamente organizado. […] O Outro, o Pai, no caso, o lugar onde se articula a lei, está submetido, ele mesmo, à articulação significante e, mais do que submetido à articulação significante, é marcado por ela, com o efeito desnaturalizante que a presença do significante comporta’.
[23] BARTHES, Roland, O Prazer do Texto, trad. de Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 98 (sublinhado nosso).
[24] LACAN, Jacques, ‘Au-delà de l’imaginaire, le symbolique : ‘questions à celui qui enseigne’’, Le séminaire – livre II : Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, op. cit., p. 286 (sublinhado nosso).
[25] LACAN, Jacques, ‘A Lógica da Castração : ‘Os Três Tempos do Édipo’’, As Formações do Inconsciente: o Seminário – livro 5, op. cit., pp. 185-186 (sublinhado nosso).
[26] LACAN, Jacques, ‘La dissolution imaginaire’, Le séminaire – livre III : les psychoses – 1955-1956, op. cit., p. 111 (sublinhado nosso).
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