quinta-feira, 16 de abril de 2009

Exercícios do Olhar 1: o «Jardim do Interrogador» - de Paula Rego



















Paula Rego, O Jardim do Interrogador.


Há imagens inóspitas. Algumas, verdadeiramente inquietantes. Capturam-nos, com a força arrebatadora da sua voragem, como se nos absorvessem para um qualquer vórtice do seu interior, e nos precipitassem sobre os seus mais escuros abismos. Precipitam-nos aí no confronto com o «intimamente estranho».

Na iconografia de Paula Rego, essa sua indisposição para com a complacência, num mundo densamente fantasmático como o nosso, e cuja estereotipia vai formando uma camada espessa de lugares comuns, elas põem-se-nos à frente. Saem-nos ao caminho, desafiadoramente. Certas delas despertam-nos associações inesperadas.

O Jardim do Interrogador, de Paula Rego, é um título irónico. A relação entre o título e o quadro é selectiva e generalizante. E, ao mesmo tempo, inesperadamente inversora. Na sua lógica amplificante, ele coloca em posição de foco aquilo que no quadro se reduz à proporção minúscula e irrisória de um pequeno vaso, pousado sobre o chão cinzento, para se lhe referir pelo que designaria a sua multiplicação. As flores desse, no fim de contas, invisível jardim dispersam-se depois, aqui e ali, por vários lugares: flores violetas, flores brancas. Brotam, no seu despontar, quer de (perto de) um dos sacos, que ali se diriam de algum suposto adubo, quer daquele lugar invisível ao nosso olhar, por detrás da mão enluvada da figura do interrogador.

Ironia do título: não se trataria já sobretudo do «interrogador» - num jardim, por exemplo: sabe-se como os jardins podem ser o signo do poder e da opulência - mas justamente do seu jardim, o que o ressitua, imediatamente numa espécie de reversão de escala, e de torsão irónica do sentido. O interrogador é aqui abordado na sua intimidade, sob uma forma que o dissocia do exercício do seu poder. Mas o seu jardim é então uma metáfora política. Ele diz bem do seu jardineiro. Como diria Brecht, numa nota inserida no seu Diário de Trabalho: «o que faço voluntariamente é a rega do jardim. estranho como a consciência política política influi em todas essas operações quotidianas. de onde vem senão dela o medo que um pedaço de relva possa ser esquecido, que a pequena planta ali possa nada receber ou receber menos, que a velha árvore além possa ser negligenciada, tanto ela tem um ar robusto. e má erva ou não, tudo o que é verdura tem necessidade de água, e descobre-se tanta verdura em terra, a partir do momento em que se nos pomos a regar» (BRECHT, Bertolt, Journal de travail: 1938-1955, trad. de Philippe Ivernel, Paris, L'Arche, 1976, p. 325).

O sentido que a palavra «interrogador» traz, com a sua memória histórica associada à tortura, à violência e à degradação da condição humana, dá o interrogador não como reduzido, mas como ironizado. Ele é, finalmente, o jardineiro deste jardim impossível. O que nos indica, também, que o título é duplamente deslocador. Não apenas sinedóquico na relação que se estabelece, entre a referência figurativa do elemento que selecciona e extrai do quadro e o todo (do quadro) que ele nomeia - o título destaca uma parte quadro pela nomeação de um todo que ele não chega a figurar - mas também metonímico e oximorónico, na relação que se estabelece em si próprio. Não há jardim. Se há é o prodígio de uma floração invisível, detida na fantasmática projecção do que lá não está.

«O jardim» pode ser, no título, «do» interrogador em duas orientações distintas, relativamente antagónicas: a) na da posse ou relação de pertença, b) na de uma origem, ou de uma proveniência (é o jardim que o interrogador cultiva, mantém, etc); na de um sentido c) locativo - o jardim em que ele está - mas também d) espacializante, objectivador e metaforicamente constitutivo: o jardim que lhe é próprio, que representa o espaço de uma subjectividade que ali se marca, e que, por isso, o diz no que lhe é mais próprio, e não apenas o jardim dele.

Não se trata portanto apenas do «interrogador», em abstracto, figura ainda relativamente recente da nossa memória histórica portuguesa, mas do que há nele e dele projectado ou espacializado nesse «jardim» ausente que seria então o seu - qualquer coisa de mais abrangente, de exterior e envolvente, antecedente e consequente, ao mesmo tempo - o espaço circundante e, simultaneamente, originário - alguma coisa que o diz, numa metáfora espacial: o espaço em que ele foi possível ou se dá como possível, numa sua fantasmática e inusitada verdade: a de uma exígua floração, a de uma escassa criação e vida, a contrastar com os potenciadores de um crescimento que ali não se dá: adubos ensacados, fertilizantes.

Tudo ali é circunscrito. Uma ovelha presa por uma coleira e uma arreata, uma solitária e minúscula flor contida pelas margens cerces de um vaso que não é maior e que constitui ali a negação da envolvência dos jardins. Que espaço é esse, na verdade? No quadro tudo é uma espécie de inversão. As flores que ali dão-nos a impressão de rebentarem em qualquer sítio. De florirem à sua revelia. Nele há, pois, tudo menos um jardim. Ou melhor: desse jardim vêm-se apenas as flores exíguas que o escondem ou negam, que dele restam ou em que ele se resumiria.

1. Por outro lado, intersectando o campo de visão, nesse espaço qualquer, de umas quaisquer traseiras, há um muro, uma parede. A parede funciona ali como um segundo corte, oblíquo, em relação ao plano de representação. Como se do quadro descolasse uma segunda superfície, uma espécie de bastidor em rotativo, preso a um eixo vertical situado no fora-de-campo, para lá do lado esquerdo do quadro: um segundo plano, um muro a deslizar, lento como uma pesada porta, para o lado esquerdo, que nos permitisse entrever aquilo de que ela, de outro modo, por completo nos separaria.

A sugestão seria então a de um movimento: pelo seu socalco ou segundo enquadramento, o quadro de Paula Rego abre-nos para um espaço lateral apenas entrevisto. E esse espaço é o de um campo de searas, em cujo primeiro plano há uma mulher, a cruzá-lo transversalmente, na direcção do seu exterior. De comum com a figura de interrogador ela possui o facto de aparecer semi-nua, ao mesmo tempo, todavia, que parece emergir de um dos sacos que se vêem no pequeno pátio que há em primeiro plano. Como se por detrás dele, ela se evadisse do seu confinamento, ou dele emergisse. Como se desse jardim ela fosse uma floração inesperada, clandestina e invisível, sem que o jardineiro disso se pudesse dar conta.

2. Nesse seu movimento interno, determinado pela inscrição desse muro oblíquo, dir-se-ia então que somos «nós» que avançamos, no interior do quadro, para a visão de um espaço situado mais além do seu primeiro plano, o plano de representação. Mas dir-se-ia, também, que é a partir do espaço em que o espectador se encontra que ele agora entra no campo da sua própria visão. Pois o pequeno pátio oferece-se-lhe agora à sua visão, trazendo consigo a figura estranha e inesperada do interrogador. Dir-se-ia, então, que entramos no quadro à medida em que ele se desdobra no alçapão da sua profundidade de campo, e se desloca para dentro de si mesmo, abrindo, por essa sua rotação, por um lado, sobre aquele fundo campestre além dele, por outro lado sobre o que em primeiro plano se vê.

O que nos induz à noção de um descerramento. Pois aquele muro reinscreve, então, o plano de representação sob a forma de um fundo que forma a sua própria condição de possibilidade. Fundo de cena para o que se representa em primeiro plano, ele é no entanto uma superfície que atravessa a própria representação, para a dissociar em dois espaços relativamente distintos. Para cá dele estamos nós, frente à figura do interrogador. «Nós» então? «Nós» afinal, no jardim do interrogador? Nós os «interrogadores» - ou o que é o mesmo, o interrogador como uma figura da nossa própria alteridade? Eis que o quadro nos afronta, na sua súbita e momentaneamente inoponível violência, com o sentido do intimamente estranho. Posto que o olhar do interrogador nos interpela, como que ao espelho a nossa própria imagem. E nos absorve para o seu espaço, abrindo, na sua linha de olhar, o seu prolongamento para cá da tela.

Ou então no movimento reverso: o muro agregado ao chão, a rodar agora na nossa direcção, para o nosso espaço, situado aquém da tela e do campo sobre que ela abre, para nos trazer essa figura estranha, em que nos não reconhecemos. É um mundo estranho, desolado - marcado pelo enigma de que aquela mulher desensacada é o signo, no fundo para lá do muro, cruzando o espaço que por detrás dele se abre - esse mundo que se fecha sobre nós, e nos traz essa fantástica figura do «interrogador». Pois esse muro funciona também, associado ao chão que então avança até nós, e em que o interrogador nos olha, como a parede ou o fundo falso de uma espécie de palco giratório, de batente aberto para um outro cenário, coberto pelo sol que se estende pelas searas. Portanto, a sua função é dupla: ela abre, por um lado, para o espaço campestre de fundo, por outro lado, para o que a cenografia desta pintura aqui coloca em destaque, no primeiro plano da cena - ou na cena em primeiro plano - e traz até nós.

3. Nessa sua duplicidade ela é já indutora de um princípio de incerteza, ou de uma dupla implicação. Abrindo para o campo, ao fundo, ela abre também o quadro a si mesmo, cindido em quadro paisagem e em retrato. Põe nele a descoberto uma espécie de traseira, de bastidor de cena, que elege precisamente como cena. Mas na medida em que sobre aquela se fecha, vindo ao nosso encontro, corta-nos dela para nos devolver a uma espécie de segredo que esse campo longínquo esconderia. Qual é, então, a relação entre esses dois espaços? Nesse seu movimento incerto, o muro recorta-se como uma espécie de écrã ou de tela virtual, cujo desvio nos mostra, a sair por detrás dela, ao fundo, aquela mulher desensacada, em movimento para fora do campo do visível. E o elo de ligação isotópica entre palco, em primeiro plano e o fundo faz-se, aqui, creio, pelos sacos fechados, ali amontoados.

Da «ovelha» de fronte negra, encoleirada, - da ovelha que sendo branca tem o negro a marcar-lhe a fronte - ao estrume (ou aos corpos de cadáveres ensacados?), até ao saco de que, qual crisálida, sai a mulher do fundo, dir-se-ia que algum processo de metamorfose ocorre, no percurso do nosso olhar. Da mesma forma que o ancinho deposto sobre as pernas é o signo de uma mutação, posto em correlação com o casaco camuflado que veste. O de uma arma transformada em instrumento de jardinagem, na desmesura ironicamente reversora do que da História se esvaziou do seu anterior sentido. E no entanto, essa relação assim instaurada alarga-se aos restantes elementos desse espaço.

Mas também ele deveria ser legível em dois sentidos aparentemente antagónicos. Nessa espécie de alegoria da produção identitária, ele suscitaria também o seu sentido reverso: aquela mulher ao fundo dir-se-ia libertar-se. E no entanto, não sendo já a ovelha «negra», ou o informe latente do enigma sob a forma da sua vida em potência, é todavia um ser plenamente formado. Vinda das traseiras do muro, ela desloca-se para fora do campo de visão, num movimento que sugere aqui o sentido de uma evasão. Ela entra aí em correlação com a metamorfose do interrogador. Ora, é aqui que nos ocorre o seguinte. Michel Foucault, no seu A Vontade de Saber, diz-nos a certa altura, a propósito da Modernidade, que:

«a confissão de verdade inscreveu-se no coração dos processos de individua-lização pelo poder» (FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade – I: A Vontade de Saber, trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d’Água, 1994, p. 63); e se, portanto, nos tornámos «[...] então [n]uma sociedade singularmente confidente» (ibidem) – «o homem, no Ocidente, tornou-se um animal de confissão» (ibidem, p. 64) – numa conversão que se marcaria, antes de mais, na evolução semântica do próprio termo – «da «confissão» como garantia de estatuto, de identidade e de valor concedido a alguém pela sua inserção no círculo de outrem, passou-se à «confissão» como reconhecimento por alguém das suas próprias acções» (ibidem, p. 63) como forma de autentificação, já não pela sua pertença ou «pela referência dos outros e a manifestação da sua ligação a outrem (família, obediência, protecção)», mas pelo «discurso de verdade de que ele era capaz ou que era obrigado a proferir sobre si próprio» (ibidem) – a verdade é que se trata aí, para Michel Foucault, simultaneamente, do movimento de uma não menos desintegradora inapreensão. Vejamos o que ele nos diz:

«Daí, sem dúvida, uma metamorfose na literatura: de um prazer de contar e de ouvir, que estava centrado na narração heróica ou maravilhosa das «provas» de bravura ou de santidade, passou-se para uma literatura ordenada à tarefa infinita de fazer erguer do fundo de cada um, entre as palavras, uma verdade que a própria forma da confissão faz cintilar como sendo o inacessível. Daí também, uma outra maneira diferente de filosofar: procurar a relação fundamental com o verdadeiro, não simplesmente em si próprio – em qualquer saber esquecido ou num certo vestígio originário – mas no exame de si próprio, que revela, através de tantas impressões fugitivas, as certezas fundamentais da consciência». (ibidem, p. 64)

Trata-se aqui do que se assume como a face visível de uma espécie de abertura ou de transversal configuração epocal, actuante não apenas nos domínios da filosofia e da literatura – bem como, em particular, do romance – mas também nos das ciências ditas humanas em geral. E deveria afectar uma modernidade pautada, tanto no plano científico‑pedagógico e no informativo‑mediático, quanto histórico-político e jurídico, quer pelo pressuposto da inexistência de uma vida sem forma, uma vida informe, quer do pressuposto do desenvolvimento e da moldagem identitária e das formas de adestramento, quer ainda pela acentuação da necessidade de uma vigiada conformação ideológica. Continua Foucault:

O que se visa, em relação ao sujeito, é «o crescimento das suas aptidões, a extorsão das suas forças, o crescimento paralelo da sua utilidade e da sua docilidade, a sua integração em sistemas de controlo eficazes e económicos, tudo isso [...] assegurado por processos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano» (ibidem, p. 143) e, através dele, um investimento da vida «de ponta a ponta», exercido «sobre o corpo atravessado pela mecânica do vivo e que serve de suporte aos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível da saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-las variar; a sua assunção opera-se por toda uma série de intervenções e de controlos reguladores: uma biopolítica da população» (ibidem, pp. 143-144) e mantido na esfera de uma hábil gestão da sua expansão...

Pois:

«A introdução no decurso da idade clássica desta grande tecnologia de face dupla – anatómica e biológica, individualizante e especificante, virada para as possibilidades do corpo e contemplando os processos da vida – caracteriza um poder cuja mais alta função talvez já não seja agora matar, mas investir a vida de ponta a ponta. [...] Abre-se assim a era de um «biopoder». (ibidem, pp. 143-144). A mecânica do poder que persegue toda esta variedade [a da especificação identitária do sujeito na sua diferença] não pretende suprimi-la senão atribuindo-lhe uma realidade analítica, visível, e permanente: ela enfia-a nos corpos, fá-la deslizar para debaixo dos comportamentos, faz dela um princípio de classificação e de inteligibilidade, constitui-a como razão de ser e ordem natural da desordem. Exclusão dessas mil e uma sexualidades aberrantes? Não, mas especificação, solidificação regional de cada uma.»

Trata-se, disseminando-as, de as semear ou inscrever no real e de as incorporar no indivíduo. As ciências humanas, postas ao serviços das tecnologias da produção identitária do sujeito. Poder-se-ia pois perguntar se «o interrogador» não seria, então, precisamente a figura histórico-alegórica deste biopoder, destinado a arrancar do fundo do sujeito e da sua confissão a verdade da sua identidade e do seu destino, assim o submetendo a uma verdade que lhe surgiria então como vinda de «si próprio».

O que o quadro nos mostraria, nesse seu «jardim» - aqui a entender em sentido extensivo como o lugar de um fazer: o do evasamento, o do enchimento dos sacos, o da contenção do animal que a ovelha «negra» é - seria portanto, a esta luz, uma metáfora espacial dessa extorsão da identidade. Mas não só: nesse processo, alguma coisa se teria perversamente revertido numa metamorfose que atinge as instâncias do seu poder. A mulher que ao fundo se evade é agora signo da metamorfose que liberta, no interrogador, uma alteridade que o nega a si mesmo.
Essa linha de sentido deveria tornar patente o nexo que ali se constrói entre «a ovelha negra», os sacos de adubo como símbolo de um encerramento do «informe» de uma vida orgânica «em potência», de um informe respeitante à temporalidade do ser, e finalmente, numa sociedade patriarcal, o que deles emerge já marcado de uma identidade (sexual, na figura da mulher). Mas também a reversão irónica a que conduz. Tudo no interrogador resulta numa indicação irónica e corrosivamente redutora: as imensas luvas que enverga, as botas de tacão alto, o camuflado, o chapéu, são signos de uma paramentação colocada aqui em contraste com a modéstia e a domesticidade da tarefa: tratar da terra, semear ou cuidar das flores... de um jardim inexistente.

O que resultaria, então, como deliciosamente irónico, no quadro de Paula Rego, seria precisamente a figura semi-nua e semi-travestida do interrogador, cujo «traje menor» visivelmente o associa à metamorfose de que resulta a mulher que se vê ao fundo. De casaco camuflado e chapéu alto, a lembrar-nos ainda uma figura de militar que a nossa memória rapidamente associa às ditaduras (a começar pela do salazarismo, pela do nazismo hitleriano, etc. passando pelas dos generais de todas as «américas latinas» do nosso imaginário) ele posa, em cuecas, ou mesmo sem elas, com a dignidade impante, o porte triunfal e pacóvio, na desproporção da pose farta dos caçadores junto da sua presa ou do seu troféu, agora ali, nas traseiras de uma casa de campo de geografia incerta, limitado a exibir o signo do seu ínfimo biopoder.

E dir-se-ia ter incorporado, nele próprio, alguns dos traços dos mesmos seres que ele se encarrega de informar/conformar (a uma identidade moldada pelos preceitos da heterossexualidade), tornando-se, todavia, ele mesmo na figura perversa da introjecção da metamorfose que o sistema - ou a tecnologia de subjectivação que o poder moderno estabelece, como princípio de construção identitária do outro - implica, no seu manuseamento. Essa perversidade aparece ali sublinhada pelo tacão alto das botas, que lhe sublinham o «feminino», nas pernas nuas e nas luvas de plantio. E reinscreve-se no movimento interpelador do seu olhar.

Uma metáfora do Ocidente e da modernidade, em tempos de «contra-modernidade», mas também do Portugal de outrora-agora? E, com ela, esta noção de passividade / vegetalidade própria à concepção do ser pensado segundo os pressupostos desse biopoder? Mas não só: precisamente também a parede cega como reinscrição, no quadro, de um outro quadro, que ao primeiro glosa, como sua negação: aquele que nos desvendaria precisamente a nossa «verdade».

Haverá coisa mais afastada da «representação» do que esse muro que, por metonímia, nos abre para a visão de um fundo a perder de vista? A linha que demarca aquela espécie de seara /savana e se perde ao fundo, marginando a floresta densa, traça um movimento que desemboca na partição dos espaços que nos dá a ver o cenário da pose do «interrogador»: Um interrogador disseminado, portanto, por todo o sujeito? O interrogador que há em nós?

Valeria a pena pensar melhor e mais demoradamente nisto... Sobre a curva se desdobra o articulador formal do pressuposto dessa metáfora do ser em devir «a partir» de «si mesmo» e da sua morte, na sua matriz. «A ovelha negra»-«os sacos de estrume/cadáveres»-«a mulher desensacada (uma outra espécie de flor)» seriam a inscrição de um processo de mortificação e de conformação, o rasto da inscrição do trabalho de uma tecnologia da subjectividade.

E «o interrogador» aí estaria como uma espécie de operador, na sociedade patriarcal, da sua irrisória e ao mesmo tempo ameaçadora maiêutica. Moderna extorsão de uma espécie de diferença que se rebela contra si mesma... O dito «jardim do interrogador» seria, então, o que resta de uma espécie de fábrica identitária... E «o interrogador» uma figura marcada pelos efeitos da ontologia biopolítica de que ele mesmo seria agente e inadvertido paciente. Penso nisto e volto ao quadro. É preciso voltar, a todo o custo. Uma e outra vez, aos interrogadores que nos cercam, e com quem nos cruzamos todos os dias, os que há ainda algures dentro de nós.

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