sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Recapitulações - o quadro VI: o palco e o plano de representação















À esquerda, em cima: Francesco del Cossa, Anunciação, 1486.
À esquerda, em baixo: Caravaggio, A Decapitação
de São João Baptista, 1608. Ao meio: Carlo Crivelli, Anunciação,
1486. À direita: Giovanni Battista Tiepolo, A Virgem Aparecendo
a Santos Dominicanos, 1747-1748.


1. O terceiro elemento do cubo cenográfico é o que Louis Marin designa por «palco». Abordámos já o quadro e o fundo. No entanto, situado entre o fundo e o plano de representação, o palco é o espaço representado como espaço de apresentação ou da ostensão da representação em pintura. É uma das paredes do cubo cenográfico, a sua parede horizontal inferior. Se o fundo é, tal como o quadro, um elemento de apresentação da representação, o palco é também o seu espaço, situado entre o fundo e o plano de representação (o quarto elemento), este último uma espécie de quarta parede frontal-transparente do cubo cenográfico.

Enquanto espaço-suporte, o palco é ainda um outro operador de visibilidade-legibilidade do representado ou do que nele há em representação. Se o «quadro» nos fornece uma espécie de «boca de cena», além da qual vemos um palco e um fundo que, por outro lado, nos escapa enquanto tal, o plano de representação abre, na sua transparência, para o palco em que a acção se «desenrola» ou um certo estado de coisas «tem lugar». Do fundo e em direcção ao olhar observador ou do espectador, o palco situa-se sobre um fundo, e é igualmente visto à transparência do plano de representação.

No quadro de Giovanni Battista Tiepolo, é o efeito de trompe l'oeil que nos torna sensível o plano de representação. Em A Virgem aparecendo a Santos Dominicanos, (imagem vertical à direita) vemos, sobre o bordo da varanda, a freira a olhar para baixo, numa expressão que sugere a sua vertigem, a de quem teme cair dali abaixo... Numa nota de humor, em que a vemos mais preocupada consigo, e com as possíveis consequências de uma queda, do que com a Virgem (aparecida), é a quarta parede frontal-transparente que corresponde ao plano de representação que se nos torna imediatamente palpável, no seguimento da linha do seu olhar.


2. Pelo contrário, o palco é bem representado pela Decapitação de São João Baptista (imagem à esquerda), de Caravaggio, que inclui, por detrás das grades da janela à direita do quadro, a figura delegada de dois espectadores (e de um terceiro: a mulher que no grupo leva as mãos à cabeça) ao mesmo tempo fascinados pelo espectáculo do crime que ali tem lugar e suspensos do desfecho dessa tragédia de uma morte inocente e premeditada (Salomé estende a bandeja onde deve ficar a cabeça decapitada), bem como do horror que dela dimana, num espaço em que todas as aberturas são fechadas (a janela, pelas grades; a porta cega, pela parede que a tapa; a bandeja, pela cabeça que nela cairá; o espaço da vítima, pelo círculo dos que a rodeiam, seus mandatários - o soldado - e executores - o carrasco - aqueles que a matam, e aqueles que aí são cúmplices da sua morte).

Em «Diderot, Brecht, Eisenstein» Roland Barthes lembra-nos, a propósito do que Diderot escreve no artigo «Composição» que «a cena oferece ao espectador «tantos quadros reais quantos os momentos favoráveis ao pintor que há na acção. [...] Um quadro bem composto é um todo encerrado sob um único ponto de vista, em que as suas partes se dirigem para um mesmo fim e formam pela sua correspondência mútua um conjunto tão real quanto o dos membros num corpo animal; de maneira que um pedaço de pintura feito com um grande número de figuras lançadas ao acaso, sem proporção, sem inteligência e sem unidade, não merece o nome de verdadeira composição, tal como os estudos esparsos de pernas, de narizes, de olhos, no mesmo cartão, não merecem o de retrato ou mesmo de figura humana.»» (BARTHES, Roland, «Diderot, Brecht, Eisenstein», O Óbvio e o Obtuso, trad. de Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 82)


E Louis Marin lembra-nos, igualmente, de um outro aspecto da concepção da «estética teatral de Diderot», a que Roland Barthes acima se referia:

«O plano de representação, [é o] segundo elemento do quadramento da representação que se desdobra por todo o quadro [qui s déploie all over], de bordo a bordo, da esquerda à direita, de alto a baixo, sobre toda a obra, tanto mais esquecido quanto mais ele é perfeitamente transparente, quarta parede frontal do cubo cenográfico, aquela que Micheal Fried evoca a propósito de Diderot, que exigia que a supuséssemos fechada sobre a cena para que as figuras da narrativa aí se comportassem como se elas não fossem olhadas, em representação e na representação, totalmente presentes aos seus actos; [...]. A menos que, inversamente, esse plano-quadro apareça obliquamente ao olho pelo excesso que aí depõe a gota de água de um trompe l'oeil ou a mosca de uma natureza morta, excesso que faz apontar assim o pepino algo obsceno da Anunciação de Crivelli» (MARIN, Louis, «Le cadre de la représentation et quelques-unes de ses figures», De la représentation, Paris, Gallimard/Seuil, 1994, pp. 344-345).


Ora, esse algo obsceno pepino vê-se (imagem do meio) no quadro de Crivelli, no rebordo do espaço que define a esquina do degrau. O processo é o mesmo do quadro de Giovanni Battista Tiepolo. A história da pintura está repleta de exemplos de «trompe l'oeil» nos quais, de súbito o plano de representação, que é frontal e transparente, esse plano-quadro, plano que recobre a totalidade da superfície do quadro, aparece ao olho, oblíquamente, como diz Louis Marin, no sentido em que, finalmente, dando-nos conta dele, é como se a sua transparente presença se nos tornasse perceptível pelo facto de ele, intersectado, se deslocar da sua frontalidade para uma espécie de meio perfil apercebido, visto que vemos a sombra do pepino projectada e a sua saliência em relação ao limite que ele corta, na nossa direcção. Digamos que o trompe l'oeil abre a quarta parede precisamente onde Diderot a requeria fechada (como se por uma montra de vidro, diríamos nós hoje), para que as personagens em cena - sobre o palco - se não distraíssem da sua acção pela nossa presença...


Assim, no quadro de Caravaggio, os espectadores que assistem ao espectáculo através de uma janela gradeada (a tese de Gérard Wajcman, em Fenêtre: chronique du regard et de l'intime é a de que a janela à altura do olhar do espectador foi ela mesma uma invenção de Alberti, no seu De Pictura: segundo Wajcman, as primeiras janelas desse tipo surgem, na arquitectura de Florença, justamente no rés-do-chão e são, na segunda metade do século XV, ainda gradeadas, posto que a indústria do vidro, na Flandres, só no século XVI viria a produzi-lo com qualidades de transparência óptica necessárias à sua adaptação a janelas deste tipo: aquelas que dão lugar ao «ver sem ser visto», que Wajcman dá como correlato do advento do sujeito voyeur, próprio da Modernidade) são-lhe tão exteriores quanto aparentemente ausentes da acção e impotentes para nela intervir, embora a presença da metafigura do espectador-comentador (o admonitor de Alberti) ali se reparta, também, pela figura da mulher (não menos impotente, embora igualmente cúmplice, quanto mais não seja no seu horrorizado fascínio) que assiste ao crime, integrada no círculo dos seus perpetradores. O que obliquamente vemos, no quadro de Caravaggio, é uma cena apenas em trompe l'oeil para aqueles que a ela assistem, e que os coloca em situação: o gradeamento da janela é simultaneamente um espaço de extensão do espaço do crime a que assistem, sem que todavia os assassinos se dêem conta da sua presença, ou queiram dela saber.

Por outro lado, a estética «teatral» de Diderot, acerca da pintura, é nitidamente de inspiração albertiana, no que diz respeito à proporção e à unidade de acção na composição. A metáfora orgânica usada para descrever a coerência da composição e a conveniência da proporção é a mesma de que Alberti se serve, no seu tratado, e lembra algumas distinções de Aristóteles, na Poética, acerca da extensão do espectáculo e da coerência da trama da acção. Ora, o trompe l'oeil, por seu lado, que torna visível o que nos é invisível pela sua transparência, foi muitas vezes usado como elemento plástico de ironia acerca do que, ao pintor, lhe era encomendado. Note-se por exemplo, aquele caracol que, na Anunciação de Francesco del Cossa, atravessa o espaço que a coluna divide (primeiro quadro em cima à esquerda). Daniel Arasse sublinha a lógica quiasmática da distribuição das figuras nesse quadro a linha que une o olhar do anjo à virgem atravessa a coluna vertical e é cortada pela linha que une a aparição de Deus, sobre uma nuvem, ao caracol. Veja-se a descrição de Daniel Arasse:


«[...] uma das questões que preocupavam os exegetas medievais é a insuportável extensão da demora que separa a queda de Adão e Eva e a Anunciação, demora que coloca, entre outras, a questão dos Limbos e da multidão infeliz daqueles que aí esperam a vinda do Salvador - o qual, aliás para aí se dirige, segundo Santo Agostinho, antes de mesmo da ressurreição. [...] A ideia de que o caracol lembrava a insondável lentidão de Deus a encarnar-se era sedutora. Poder-se-ia imaginar que Cossa teria utilizado o caracol, [...] para dar igualmente figura a Deus. Ele teria operado, de algum modo, uma condensação entre os dois e o caracol tornar-se-ia, por si mesmo, o símbolo da encarnação. [...] Para Cossa, a perspectiva constrói a imagem de um mundo comensurável, em si mesmo e em relação àquele que olha, em função do seu ponto de vista. Só Deus é infinito. O mundo de Cossa permanece finito, fechado, à medida do homem. [...] Sobre o bordo da construção perspética, sobre o seu limiar, a anomalia do caracol faz-vos sinal; ela apela a uma conversão do olhar e dá-vo-lo a entender: vós não vedes nada no que contemplais, porque, na expectativa daquilo para que olhais: o invisível vindo à visão.» (ARASSE, Daniel, On y voit rien: descriptions, Paris, Denoël, 2000, pp. 40-55).


Eis, portanto, sobre o bordo limiar do plano-quadro, o operador de visibilidade-legibilidade que o pintor inscreve, como comentário irónico à Anunciação: é impossível pintar o que apenas na lentidão de um majestoso e enorme caracol (note-se a sua proporção em relação à palma do pé do anjo) desliza, lentamente, entre os espaços do anjo e da Virgem. Deus, de quem se esperaria que se demorasse menos a incarnar-se, demora-se, na sua Anunciação e na sua Encarnação. E o comentário de Cossa todo ele se joga nesse ténue limite que é o do rebordo inferior do plano-quadro, o bordo inferior do quadro-plano de representação. Figura do limiar, o caracol é simultanea-mente um marcador da necessidade da conversão do nosso olhar à escala do espaço-tempo de Deus, e ao mesmo tempo, o operador de uma glosa irónica, pela qual o espectador é assim colocado numa espécie de Limbo, onde aguarda, na multidão dos infelizes que aí esperam pela salvação, o que o quadro não mostra, porque não poderia mostrá-lo, embora o represente: a Anunciação, precisamente.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Recapitulações - o fundo I: a «figurabilidade» do informe






À esquerda: P. de Champaigne, Vanitas, (ou Memento mori, séc. XVII); à direita: Matthias Grünewald, Cristo Ressuscitado, 1515.

I - O segundo elemento estrutural da apresentação da representação pictórica, (na ordem dos enumerados em Recapitulações - o quadro I: O operador de visibilidade-legibilidade, aqui no blogue) mencionado por Louis Marin (em breve se verá que estas observações se estendem, na linha das afirmações de Roland Barthes, a outras artes: o teatro, etc.) é o seu fundo. O que é o fundo? O fundo, num quadro ou o fundo de um quadro? Será exactamente a mesma coisa? Será o fundo quadrável, enunciável, nominalizável?

Trata-se, com a questão do fundo, de uma noção problemática em muitos outros campos de reflexão. O da filosofia - ou, em particular, o da ontologia - assim como o da ética, bem como o da psicanálise, o do político, etc. Neles há uma questão de fundo sempre que se fala no fundo. O que justificaria aqui um parêntesis (com ele fecharemos este post), com alguma indicação sinóptica, um memorandum instrumental ou uma orientação rápida e necessariamente diagonal, acerca de alguns dos caminhos por onde reencontrá-la. Com efeito, o pensamento contemporâneo tem pressuposto uma questionação do fundo e dos «fundamentos» (do que permanece como interrogação do «fundo»). Abriremos esse parêntesis no final, para evitar dispersarmo-nos.

1. A situação dita (mal designada, a nosso ver) «pós-moderna» (por razões que não interessarão aqui: cf., por exemplo, a este respeito, NORRIS, Christopher, The Truth about Post-Modernism, Oxford/Cambridge, Blackwell, 1993) supõe, justamente, uma questionação do fundo e do fundamento, do princípio e da origem, da arché e da ousia, etc. Regressemos quadro de Champaigne - Vanitas, ou Memento mori. Se se escolhe este quadro, a Vanitas de Champaigne, talvez isto sirva de uma primeira ilustração : a) não apenas ao tipo de problemas que se levantam, na abordagem dessa noção, do ponto de vista da semiologia da pintura; b) mas também de ilustração ao modo como ela ressoa por todo o pensamento crítico contemporâneo... Que é pois o fundo, pensado aqui retrospectiva e transdisciplinarmente sobre o fundo de uma estética da experiência, da oscilação e do desenraizamento... Sigamos, aqui, uma vez mais a interrogação de Louis Marin. Como caracterizar o «fundo» no/do quadro de P. de Champaigne? Eis a sua reflexão:


«Questão: que dizer do fundo sobre o qual as figuras se elevam, sobre o qual os nomes figurados se destacam em lista? Que dizer do fundo que as faz destacarem-se em lista figurada, lista que não funciona em figura de lista senão em função dele, ele que as apresenta como tais? Um fundo negro. Seja, mas que representa esse fundo negro? Nada. Sem dúvida que posso reconduzir [essa questão] à nomeação, nominalizando «nada» como «o nada»: um nome que não nomeia, que não é mais que um nome: nome do inominável, lugar do apagamento da lista [de nomes que desfilam, na descrição que nomeia, na ostensão da representação dos objectos que o quadro expõe], mas cuja anulação é de algum modo a condição da produção visual e verbal; [...] (MARIN, Louis, «Mimésis et description», De la représentation, Paris, Gallimard/Seuil, 1994, p. 259)


2. Portanto, o fundo opera exactamente como o quadro enquanto corte. O que é o quadro, o limite que circunscreve uma dada representação? Em si mesmo não existe. Ele é função do que ele apresenta em representação. O limite de alguma coisa precisa dela para se dar como «limite». Neste sentido, o limite não é, em si mesmo, «nada». E no entanto, visto que sem ele não há apresentação da representação, ele persiste, resta, permanece, nessa sua posição limítrofe, sem que o possamos incluir como pertencente à representação. Apresentando a representação ele, no entanto, não lhe pertence exclusivamente. E é por isso que «resta», que permanece em excesso, em relação àquilo que delimita. É o que nos diz Louis Marin:


[o fundo é] um nada que é um resto; um resto que é excesso do poder de nomeação [isto é, que o excede], mas onde esse poder [de nomeação] encontra o seu impulso. Mas se esse fundo não representa nada, ele apresenta-se, em contrapartida como nada; ele apresenta-se não como representando alguma coisa: ele apresenta-se. É nessa auto-apresentação pura que o quadro de Champaigne pode representar com essa [sua] força os três objectos que ele representa para a sua imediata tradução numa lista de nomes. Dito de outro modo, o olhar descritor assiste à cisão entre opacidade e transparência». (ibidem).


Aqui está, então, o problema do fundo. Poderíamos segui-lo assim: a representação tem aqui, como fundo, uma apresentação. Aquilo que aí se apresenta, a nada reenvia a não ser a si próprio. Mas o que é esse «si próprio», essa apresentação em que a representação se anula e que, no entanto, mesmo enquanto negação da representação, constitui a própria condição de possibilidade de toda a representação? Sem esse nada, que não é «o nada», porque, mesmo representando-o, ele se lhe furta enquanto tal, nada se representaria, na Vanitas de Champaigne. Visto que é sobre esse nada de fundo que as coisas aí exibidas desfilam, na corrente enumerativa dos nomes, que designam os objectos assentes sobre essa espécie de peitoril, de mesa de pedra que dá para (o)... nada em que, ao mesmo tempo, se sustenta. Notem-se os itálicos de Louis Marin. As figuras destacam-se sobre esse fundo. O fundo fá-las destacarem-se, desprenderem-se, desligarem-se, elevarem-se...


3. Em outros termos, toda a representação depende daquilo em que precisamente ela se nega a si mesma. Quer dizer, ainda de outro modo: não há representação que não seja dividida, clivada, entre «o nada» da sua nominalização e a impossibilidade mesma de uma sua definitiva nomeação. Eis uma situação aporética, sem saída, sem «solução de continuidade». E nesse caso, fará ainda sentido dizer «o fundo», nominalizando, portanto, o que é, por outro lado, sem substância e sem nome, em recuo, até perante «o nada» com que se pretenderia nomeá-lo? Sobre que é que o nome aí se suspenderia então? Em que consiste essa ausência sobre que o nome paira, na (im)possibilidade do seu próprio desdobramento, suspenso de si mesmo, ou a despenhar-se sobre o abismo do seu seu próprio furo? Em resumo, somos aqui confrontados com a cisão entre a transparência e a opacidade, como diz Louis Marin: «fundo negro» é uma expressão plástica/verbal simultaneamente transparente e opaca, exactamente como o que se supõe que ela designa: trata-se, nesse «fundo», de um fundo e de uma superfície do que escapa à nomeação, escapando como que pelos fundos da linguagem e da percepção. Eis o seu comentário:


«Esse fundo inominável, de que é ele o fundo? De três objectos que a representação pictórica dá a ver e a ler? Ou será ele o fundo do próprio quadro, o fundo suporte do fundo sobre o qual as três figuras se elevam à vista acedendo à linguagem? Sem dúvida que um e outro. A síncope entre opacidade e transparência converte-se , nesse lugar dessa obra, na fusão ambivalente do fundo e da superfície, do quadro e da representação, conversão histérica - se se pode dizer - da representação em pintura. [...]» (MARIN, Louis, op.cit., p. 260).


4. As perguntas de Louis Marin indicam aqui um problema sobre que nos convém parar um pouco. Qual seria a diferença entre «fundo-suporte de fundo» e «fundo»? Em que sentido se pode falar da diferença entre «o fundo do próprio quadro» e o fundo no quadro? É uma questão interessante. Na verdade ela chama a si uma série de questões que poderíamos começar por pensar, por exemplo, do ponto de vista psicanalítico. Qual seria o equivalente psicanalítico de um quadro? Vimo-lo já com Roland Barthes, em «Diderot, Brecht, Eisenstein» (aqui no blogue em Recapitulações - o quadro III: a recordação de cobertura).

Observámos nessa altura que, enquanto operador de selecção-exclusão o seu equivalente era o recalcamento. Em que consiste enquadrar, circunscrever, terminar um «quadro» ou um «enunciado»? Em operar um corte, um recalcamento (refoulement) do que não entra no seu campo e consagrar, promover à visibilidade a expressão de um significado. Ora, qual será o fundo dessa negação-exclusão? Em que se baseia essa selecção-exclusão pressuposta pelo «quadro»? A descrição freudiana situa-a no momento chave do édipo, o da introjecção da norma na construção do sujeito. Há, por outro lado, um processo de framing naquilo a que Jacques Lacan chama a Metáfora Paterna. O que ela gera é o efeito de um sentido arpoado, fixado como um insecto por um alfinete. Essa fixação do sentido é, na verdade, a condição básica de toda a comunicação. Sem ele não há nenhum entendimento recíproco possível entre sujeitos. Embora ele não passe de um efeito de enquadramento.


5. Digamos, para retomar o que atrás dissemos, que o «fundo-suporte» de um fundo (de um enunciado, um quadro, qualquer que ele seja) é o próprio universo dos símbolos partilhados, a própria Lei. Esse fundo-suporte entra em nós sob a forma do que Freud designa por «superego» e Lacan designa por «Simbólico». Ele representa em nós um dos alicerces do «subjectus», do que é lançado como fundação do sujeito. Mas não pode ser pensado como dissociado do que ele mesmo instaura: o inconsciente. Nesse sentido, todo o sujeito pressupõe, enquanto «subjectus» - aquele que é submetido à ordem do discurso, que nele implica as restrições próprias a uma certa amplitude de movimento, pois a palavra discurso implica precisamente isso: movimento para cá e para lá - um «quadro» ou um «quadramento». Ora, se o «quadro» é um dos equivalentes pictóricos do que, na ordem verbal, são os «enunciados», o «fundo-suporte» dos enunciados que produzimos é, de uma forma geral, a linguagem.


Sabemos, no entanto, também, que a descrição freudiana situa o «superego» no «id», do qual, do ponto de vista do ego, contudo, nada sabemos, a não ser pelo facto de ele emergir no deslocamento-condensação das nossas formas de percepção e de reconhecimento. Quer isso dizer que, a esse fundo-suporte (de um fundo determinado, de um quadro específico), não é possível distingui-lo daquilo de que ele é suporte: precisamente este fundo, o de um determinado enunciado/quadro. Como é que em nós se desencadeia esse efeito de en-quadramento, esse fundo-suporte de qualquer fundo determinado, segundo a psicanálise?


Eis o que Lacan nos diz, acerca da forma como tudo (em nós) se desencadeia, nessa precipitação pela qual a Lei em nós se incorpora, no momento da angústia da castração, para vir a constituir-nos em sujeitos (subjetus). O ponto de partida é um fenómeno de fantasia reflexa: «o que é esse medo da castração? Porque vértice abordá-lo? Nós o abordamos na primeira experiência do complexo de Édipo, mas sob que forma? Como numa represália, no interior de uma relação dual-agressiva. Essa agressão parte do filho, na medida em que o seu objecto privilegiado, a mãe, lhe é proibido, e se dirige ao pai. E retorna para ele [filho] em função da relação dual, uma vez que ele projecta imaginariamente no pai intenções agressivas equivalentes às suas, mas que têm como ponto de partida as suas próprias tendências agressivas» (LACAN, Jacques, «A Metáfora Paterna», As Formações do Inconsciente: o Seminário - Livro 5, trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p. 175).


Ora, essa lei é uma lei de linguagem. A linguagem escande, divide, parametriza, estrutura as nossas distinções no âmbito de uma ordem do discurso. Ela envolverá, também, nomes-categoria cuja função distintiva é simbolicamente partilhada e nos fornece uma espécie de medida comum. Nunca prescindimos deles, mesmo quando é preciso questioná-los, ou pelo contrário, encontrá-los na descrição das coisas. Por exemplo, o «fundo-suporte» do fundo é, como diz Louis Marin, um nome-categoria, tal como o seriam «quadro», etc. E aqui se joga o paradoxo da descrição: quanto mais de perto queremos colar o discurso à imagem, na sua adequação representativa, mais somos obrigados a gerar nomes cuja referência é necessária e fundamentalmente abstracta: «nomes-categorias», que operam distinções de conjuntos alargados. É com eles que lidamos com aquilo que na pintura resiste à significação unívoca. Veja-se, de novo, o que nos diz Louis Marin:


«No próprio esforço do discurso descritivo de se «colar» ao mais próximo da mimética transitiva da representação, o olhar descritivo foi levado a elaborar sobre o quadro nomes-categorias que se encontram a comandar a lista daqueles que o olhar perceptivo produzia imediatamente, transformando as sínteses de objectos da sua experiência no reconhecimento dos nomes que significavam essas sínteses: vaso de cristal, tulipa, crâneo, relógio de areia. Esses nomes-categorias (ou conceitos) - «suporte-fundo», «superfície-plano», «bordo-rebordo», «não figural-figura», etc. [...] - esses conceitos tentam articular, no discurso do conhecimento, não uma inefabilidade da pintura, mas apenas a opacidade da apresentação da representação». (MARIN, Louis, op.cit., p. 260).


6. Eis, portanto, a questão. O «fundo negro» dessa apresentação da representação, não será afinal também o nosso próprio fundo? O da linguagem em nós? A sua lei não representa em nós precisamente a pulsão que ela se supõe controlar, como sugeria Freud (cf. «O ego e o superego (o ideal do ego)»)? Não representará ele, também, o fundo do nosso ser de sujeitos? E como situá-lo e contê-lo no quadro, tal como na palavra? Não será ele antes fundo do próprio quadro que se diria aqui contê-lo? O fundo levanta-nos, portanto, a questão da reversão e da reversibilidade... Do «quadro» em sujeito, por exemplo, no que nele há de subjectus. Do fundo da representação em superfície (o fundo não será, também, uma superfície pintada, que é a do próprio quadro?), do significado no significante, da transparência transitiva em opacidade reflexiva, do quadro no sujeito que o contempla, enfim. Numa palavra, o fundo levanta-nos aqui a questão do informe em instância de figurabilidade (do inconsciente da forma/da palavra, do anterior e posterior ao sistema de conversão que o sujeito é, e à lei que o gere)...


7. No quadro de P. de Chamaigne, a caveira olha-nos de frente, ladeada pelo recipiente de cristal que contém a tulipa e pelo relógio de areia. Nessa sua interpelação reconhecemos uma das modalidades do retrato. O quadro-sujeito «olha-nos». Nessa sua condição, o que dele vemos é precisamente a caveira. Ela supõe ali uma sinédoque do quadramento, da delimitação do quadro, a par do envasamento da tulipa. E a posição de simetria em que, nele, a caveira nos olha, em relação ao nosso olhar, inscreve aí uma afirmação, a partir da relação entre o espelho e o plano de representação. Essa caveira não seríamos também nós, objectos de uma ordem do discurso, na nossa condição de sujeitos? Nesse sentido, o quadro de P. de Champaigne re-inscreve a cena da auto-contemplação de Narciso, para nos sugerir o que há de vão, na nossa Vanitas. E o nosso fundo, o fundo-suporte do «quadro» que em nós há, enquanto sujeitos, é-nos tão obscuramente inconsciente ou insondável quanto aquele fundo negro que vemos no quadro. Diz Omar Calabrese, acerca do retrato de frente:


«Não é um mero acaso se são os retratos de frente que, na Idade Média, sem a menor preocupação com a semelhança, estabelecem a garantia do poder e da lei. [...] O retrato de frente é o do homem reinante, quer ele seja laico, quer ele seja religioso. [...] O retrato de frente implica a simultaneidade entre a pose e o espectador. Há uma personagem que nos olha: nós podemos identificar o facto de que ele nos olha unicamente enquanto o olhamos; nós reproduzimos, fazendo isso, a situação da troca verbal [de l'échange verbal]. [...] Examinemos mais de perto a significação da representação frontal. A noção de «frontalidade» implica a co-existência do observador (que está fora do quadro) e do observado (que está no seu interior). Temos, em resumo, alguém que encara [fait face] alguém que é, ele mesmo, «afrontado», duas figuras solicitadas pela mesma pose. [...] O retrato frontal [...] generaliza em relação ao indivíduo que o contempla (CALABRESE, Omar, L'Art de l'autoportrait, trad. de Odile Ménégaux e Reto Morgenthaler, Paris, Citadelles & Mazenod, 2006, pp. 129-133)


8. No caso do quadro de Champaigne, esse «nós» é, pois, uma generalização. O que ele interpela é um «eu» naquilo que nele participa de um «nós». Revemo-nos ali, na nossa morte, na nossa finitude. E ela olha-nos, na posição do que nos garante a nossa Lei, a da nossa conformidade. A caveira é, nesse sentido, o signo de uma desfiguração do particular. Ela assinala também o que, em nós, espectadores-enunciadores há de indiferente e como tal permanece. É um signo do nosso limite. Nisso, o «fundo-suporte», tal como o fundo no quadro entra pelas figuras adentro, no quadro de Champaigne. Nós somos produzidos por um envasamento (o da tulipa), um quadramento, enquanto sujeitos. Isso é-nos mostrado pela mesa de pedra em que o jarro, a caveira e o relógio de areia se expõem. A mesa é, também, um operador de delimitação, de ostensão ou visibilidade-legibilidade: uma espécie de réplica interna do quadro, sob a form de palco. E somos assim produzidos, na nossa vã tentativa de transcender a nossa finitude, a nossa temporalidade, como sugere aquele relógio de areia. A troca verbal é, aqui, o espaço de uma espécie de interpelação-admoestação. Que nos diz a nossa morte (o nosso inconsciente, o do tempo), do fundo de nós mesmos, que é também, o fundo do quadro? Que ela nos é inescapável. Tanto mais inescapável quanto mais procuremos escapar-lhe. Que somos nós, nesse fundo do quadro/no quadro, que nós não conseguimos atravessar?


9. É claro, poderão sempre objectar-nos: essa leitura não pode corresponder à intenção de Champaigne, quando pintou o quadro, no século XVII. Bem, a nossa resposta poderia ser exactamente a que Didier-Huberman daria, lendo Walter Benjamin: que a história (como também diz Daniel Arasse, em «La femme dans le coffre») se deveria preocupar mais com o futuro. Pois o gesto pictórico da «unção», protagonizado por Fra Angelico no painel que se situa por baixo de Nossa Senhora das Sombras, a que Didier-Huberman faz referência, em Devant le temps, antecipa anacronicamente o de Jackson Pollock. E que a história deveria, também, ter em conta aquilo que, em determinada época a excede, para vir a produzir o contexto a partir do qual passa a poder ser lido. E é nesse sentido que a imagem exclusivamente tomada como reflexo de um contexto histórico determinado e definitivamente fixado se revela inútil. Ali, no quadro, ele (ou a recordação de cobertura) é um objecto que nos olha fixamente, com as suas órbitas vazias.


«Em resumo, o modelo dialéctico - no sentido não hegeliano que lhe dá Benjamin - deve fazer-nos renunciar a toda a história orientada: não há uma «linha de progresso», mas sequências omnidireccionais, rizomas de bifurcações onde, para cada objecto do passado, entra em colisão o que Benjamin nomeia a sua «história anterior» e a sua «história ulterior». [...] A «revolução coperniciana» da história teria consistido, em Benjamin, em passar de um ponto de vista do passado como facto objectivo para aquele do passado como facto de memória, quer dizer, como facto de movimento, facto psíquico tanto quanto material. [...] O inconsciente do tempo vem até nós nos seus vestígios [dans ses traces] e no seu trabalho». (DIDIER-HUBERMAN, Georges, Devant le temps: histoire de l'art et anachronisme des images, Paris, Minuit, 2000, pp. 102-104)

II - Retomemos a reflexão de Louis Marin. Ditas as coisas de outro modo, eis, na nossa relação com a Vanitas de Champaigne, a questão da significância... Para falar do significado de alguma coisa, tenho de me servir de significantes. O significado não chega nunca até mim a não ser como significante. Tal como o fundo não chega até mim a não ser como superfície. Se o fundo é ainda nominalizável como «o nada» da sua representação, essa expressão reenvia-nos, por seu turno, para a questão da impossibilidade de representar a ausência de representação, a impossibilidade de representar o irrepresentável. Se «o fundo negro» é o significante visual de «o nada», de que é que a expressão «o nada» é o significante? Como é que se representa ou nomeia aquilo que escapa a toda a representação, por definição, isto é, que lhe escapa por representação? E como é que se pode, então, nominalizá-lo, sem o fazer recuar em relação ao seu «si próprio», e portanto, em relação a toda a nomeação ou representação?


1. Primeira precisão necessária: tal como o «quadro», enquanto corte operador de ostensão (ou de apresentação da representação) em pintura, também o fundo é aí sem espessura que permita defini-lo de outro modo a não ser, a par do quadro, como condição de possibilidade da visibilidade-legibilidade da representação. E se o «quadro» supõe um corte delimitador enquanto condição de possibilidade da apresentação da representação, não apenas o «fundo», mas também o plano de representação, respectivamente atrás e à frente do palco (do peitoril ou da mesa, neste quadro) compõem, com ele, aquilo a que Marin chama o cubo cenográfico. O problema de fundo - aqui o problema do fundo - é portanto, o problema do limite da nomeação e da nomeação do limite. Ele põe-se, com muita acuidade, na sua crítica ao modelo iconológico de Panofsky. Antes de o abordarmos, lembremos aqui, no entanto, a observação de Daniel Arasse. Ele recorda-nos, em On y voit rien, de um pormenor que não é, sem dúvida, negligenciável, na obra de Panofsky. Vem a propósito de A Vénus de Urbino:


«Mas, em todo o caso, esta zona negra não é um cortinado como queria Panofsky que via no seu recorte vertical um «bord de rideau»; e nem a linha acastanhada é «o bordo do pavimento». Aparentemente, Panofsky o velho tinha-se esquecido do que tinha escrito Panofsky o jovem. Lembrais-vos do seu texto de 1932 sobre os problemas da descrição, quando ele diz que uma descrição «puramente formal» não deveria empregar palavras como «pedra», «homem» ou «rochedo»? [...] Ele diz que uma descrição «puramente formal» deveria não ver a não ser elementos de composição «totalmente desnudados de sentido» ou possuindo «uma pluralidade de sentidos» no plano espacial. Lembrais-vos? Para Panofsky, em 1932, dizer que tal corpo está situado «diante» de um céu nocturno (ele fala do Cristo ressucitado por Grünewald [veja-se a figura de cima, à direita]), é - eu cito-o - «reportar alguma coisa que representa a alguma coisa que é representada, um dado formal, plurívoco do ponto de vista espacial, a um conteúdo conceptual que é, ele, sem equívoco possível, tridimensional»...» (ARASSE, Daniel, On y voit rien: descriptions, Paris, Denoël, 2000, p. 140).


2. A questão é, portanto, também a que Louis Marin levantará, a propósito do modelo de Panofsky, logo a seguir à sua digressão sobre o quadro de Champaigne. Ela vem a propósito do fundo, num sentido que se prende com a questão da nomeação e do sentido. Panofsky, nos seus Estudos de Iconologia, distingue três níveis: o da «descrição pré-iconográfica», o da «análise iconográfica» e o da «interpretação iconográfica». Ora, Louis Marin, à semelhança de muitos outros autores (cf. a extraordinária análise de MICHELL, W. J. T., «The Pictorial Turn», Picture theory, Chicago UP, 1994) faz notar que ele desliza para uma identificação automática do «puramente formal».


Ouçamos Panofsky: «Quando identifico automaticamente esta configuração com um objecto... já passei os limites da pura percepção. [...] No caso de uma descrição pré-iconográfica, que se mantém nos limites do mundo dos motivos, o assunto parece bastante simples. Os objectos e acções cuja representação por linhas, cores, e volumes constitui o mundo dos motivos, podem ser identificados, como vimos, baseando-nos na nossa experiência. [...] A nossa experiência é indispensável e suficiente como material para uma descrição pré-iconográfica, mas não garante a sua exactidão» (PANOFSKY, Erwin, Estudos de Iconologia, 2ª ed., trad. de Olinda Braga de Sousa, Lisboa, Estampa, 1995, p. 19; 23). Ora, uma das objecções de Louis Marin é a seguinte:

«Todavia, quaisquer que sejam as precauções metodológicas e teóricas de Panofsky, não é menos verdade que uma descrição, aquela que ele chama puramente descritiva ou puramente formal, se encontra afastada da fenomenologia da obra pintada: «uma descrição verdadeiramente puramente formal deveria interdizer-se de empregar nomes como «pedra», «homem», «rochedo»», muito simplesmente porque o dispositivo mimético funciona demasiado perfeitamente na transparência transitiva para que as palavras, nomes substantivos e nomes predicativos não se imponham imediatamente, com risco de uma queda no insensato se ele delas se livrasse. É então que literalmente a obra assim dita não mais quereria dizer nada. Notar-se-á perfeitamente, no modelo de Panofsky, esse processo de ocultação da carne opaca da pintura, dos seus traços e das suas manchas, [...]» (MARIN, Louis, op.cit., p. 257). E é precisamente aí, na carne opaca da pintura, que irrompe a relação espectral pressuposta pela figurabilidade.


3. O que levaria Louis Marin a sublinhar a necessidade de um nível infra-pré-iconográfico, na descrição da pintura. Não seria precisamente isso que encontramos em Barthes, a propósito do terceiro sentido ou do sentido obtuso? Pensaremos nesta possibilidade mais adiante. Para já, ficamos com esta noção: não existe imaculada percepção, como precisamente Panofsky chega a dizer. E portanto não existe também nenhuma espécie de «identificação automática» ao nível pré-iconográfico, ao contrário do que ele pensa e pratica, assim como julga inevitável.

Parêntesis destacável:
[
Não são, apenas - aqui vão então alguns exemplos, de entre muitos outros possíveis, da questionação do fundo - a) os casos da crítica nietzscheana (com as noções, por exemplo, de «Vontade de Poder» e de uma «Genealogia da Moral» que designa, simultaneamente, «o valor da origem» e a «origem do valor», na versão quiasmática da leitura de DELEUZE, Gilles, Nietzsche et la philosophie, Paris, PUF, 1962) ou b) do pensamento heideggereano (acerca das noções de «ser» e de «tempo», pensadas ambas numa «diferença ôntico-ontológica» - em HEIDEGGER, Martin, «La parole d'Anaximandre», Chemins qui mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1962; ou em HEIDEGGER, Martin, «Le fond et la double ratio»; «L'être, le fond et le jeu», Le principe de la raison, Paris, Gallimard, 1962, para nos limiramos a estes - que, no entanto, DERRIDA, Jacques, «La Différance», Marges de la philosophie, Paris, Minuit, 1972, pensa ainda como «interior à metafísica»: veja-se PEREIRA, José Paulo, Uma Cartografia Transtornada: A Guernica de Carlos de Oliveira, Braga, Angelus Novus, 1999)... E também c) a desconstrução derridiana (na noção de suplemento de origem, de traço, sulco ou vestígio, de dupla inscrição, etc. noções indissociáveis das de différance e dissémination, tranversais a toda a sua reflexão e hoje consagradas, respectivamente, como «(não-)conceitos» cruciais na frente «pós-colonial», por exemplo em HALL, Stuart, «Quando foi o Pós-colonial? Pensando no Limite», Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais, trad. de Sayonara Amaral et alii, Belo Horizonte, UFMG, 2006, e em BHABHA, Homi K., «DissemiNation», Nation and Narration: time, narrative, and margins of the modern nation, New York, Routledge, 1990); assim como no conceito de uma irredutível espectralidade, anterior e interior a todo o «fenómeno»: confronte-se o seu Spectres de Marx: L'état de la dette, le travail du deuil et la nouvelle internationale, Paris, Galilée, 1993, bem como DERRIDA, Jacques, «Tenho o Gosto de Segredo» in DERRIDA, Jacques; FERRARIS, Maurizio, O Gosto do Segredo, trad. de Miguel Serras Pereira, [s.l.], 2006, bem ainda como DERRIDA, Jacques, Marx & Sons, todos eles abordados em PEREIRA, José Paulo, O Exercício d Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007, que o lê nas suas implicações político-ontológicas, em articulação com Donner la mort, a propósito da excepção e do sentido político da literatura e da arte). Ou ainda: d) a leitura lyotardiana da contemporaneidade (não apenas com a muito celebrada e um tanto inútil designação do «pós-moderno», cuja voga poupa aqui a necessidade da compulsão de exemplos, mas sobretudo com a noção de diferendo, em Le différend, Paris, Minuit, 1983; cf. a propósito desta noção, a crítica que lhe faz Derrida, em «Lyotard et nous», em Jean-François Lyotard: l'exercice du différend, Paris, PUF, 2001), ou e) o pensamento freudiano (com a noção de perlaboração e de análise interminável; veja-se o que sobre ele diz, por exemplo, Jean-François Lyotard, em «Réécrire la modernité», L'inhuman: causeries sur le temps, Paris, Galilée, 1988), ou f) o pensamento lacaniano, com a noção de Real: veja-se a este propósito a influência desta noção na teoria e na crítica de arte, com FOSTER, Hal, The Return of the Real: the avant-garde at the end of the century, Cambridge/Mas-sachussetts/London, MIT, 1996:


«For his part, in the early 1950s, after years of therapeutic adaptations of psychonanalysis, Lacan performs a linguistic reading of Freud. [...] Now amid all the repetitions in postwar art, are there any returns in this radical sense? None appear as historically focused and theoretically rigorous as the returns of Althusser and Lacan. (FOSTER, Hal, op. cit., p. 3) [...] This shift of conception - from reality as an effect of representation to the real as a thing of trauma - may be definitive in contemporary art, let alone the contemporary theory, fiction and film. For with this shift in conception has come a shift in practice, which I want to graph here, again in relation to the Lacanian diagram of visuality, as a shift in focus from the image screen to the object-gaze (FOSTER, Hal, op. cit., 146)


Ou ainda: e) o da constatação levy-straussiana de uma mitopoética inerente à análise dos mitos (a propósito do «bricolage» e do reconhecimento da natureza «mitomorfa» das suas mitológicas, da descoberta do «escândalo» representado pelo tabu do incesto, como coisa simultaneamente natural e cultural - intratável do ponto de vista das relações binárias, pressupostas pelo sistema de oposições que enforma a episteme ocidental: cf. DERRIDA, Jacques, «A Estrutura, o signo e o jogo, no discurso das ciências humanas», in COELHO, Eduardo Prado (org.), Estruturalismo: antologia de textos teóricos, trad. de António Ramos Rosa, Eduarda Reis Colares e Eduardo Prado Coelho, Lisboa, Portugália, [s.d.]), a reenviar-nos, também ela, para a questão do fundo e do fundamento. Ou ainda f), os de um pensamento do exterior, em Blanchot e em Michel Foucault (neste último a atravessar, por exemplo, a sua concepção de uma microfísica do poder - móvel e dinâmico, instável e repartido - ou uma muito inspirada referência nietzscheana e heideggereana da sua «vontade de saber» que intitula o primeiro volume da sua História da Sexualidade; ou mesmo a de uma «ordem do discurso», que supõe a impossibilidade de desvincular o saber do poder, bem como, em L'Hermeneutique du sujet: cours au collège de France: 1981-1982, a noção de uma ethopoética que, de inspiração estoica, ressurge no seu projecto de um outro pensamento da subjectividade, em «Qu'est-ce que les Lumières?», in MARTY, Éric (org.), Dits et écrits - IV: 1954-1988 par Michel Foucault, Paris, Gallimard, 1994, pp. 562-578, onde relê criticamente o Was ist Aufklärung? de Kant, frisando que se trata, não de conceber os limites do sujeito, mas precisamente a sua abertura); ou ainda h) em Walter Benjamin (sob a noção de imagem dialéctica, enquanto regime da figuratividade de uma História a conceber de um ponto de vista materialista) de que falámos aqui, muito sumária e brevemente (ver Fragmentos de leitura 2: Walter Benjamin e a teoria do «choque», aqui o blogue). E poderíamos continuar a lista: Bataille, Barthes... de tal forma essa questão do fundo é aquela em que se funda e afunda, afunda e difunde o pensamento contemporâneo, a propósito do que poderíamos talvez designar a sua denúncia da função defunta do fundo...]

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Recapitulações: o quadro - IV (o sentido obtuso ou terceiro sentido)


Fotogramas 1 (o de cima) e 2 (o de baixo), retirados de O Couraçado de Potemkine, do realizador Sergei Eisenstein, e comentados por Roland Barthes, em O Óbvio e o Obtuso.

Como é que a ambivalência se inscreve no quadro? Será possível situarmos, no «quadro», a sua forma clivada (a do sujeito/a da obra), uma forma que releve também do inconsciente? Haverá nele alguma margem de reflexividade - ou de opacidade reflexiva - em que possamos dar-nos conta de um significante que se comporta exactamente como as forças do inconsciente, tal como são descritas por Freud (ver «Fragmentos de leitura 2 - Walter Benjamin e a teoria do «choque»» aqui no blogue), isto é, que não reconheça o princípio da não-contradição?

Viu-se já (Recapitulações: o quadro III (a recordação de cobertura)) que Roland Barthes generaliza a noção de «quadro», estendendo-a ao teatro (de Brecht: a ele iremos), à escrita, à pintura, ao cinema. Todos eles supondo uma découpage, um recorte/selecção-combinação de elementos, todos eles supõem, também, o «quadro» como operador espácio-temporal. O exemplo de um sentido - a que Barthes chamará de «obtuso»: o que é obtuso é rombo, redondo, fechado sobre si próprio, rebelde à nossa vontade, resistente a um direccionamento exclusivo, etc. - que se comportaria como as forças próprias do inconsciente, será possível observá-lo? Vejamos, primeiro, a definição que Barthes nos dá dele. Comecemos por contrastá-lo com aquilo de que ele difere, no quadro, isto é, com o sentido óbvio. Em que consistem o sentido óbvio e o sentido obtuso?

«Obvius quer dizer: que vem à frente, e é bem o caso deste sentido [informativo ou mesmo simbólico], que vem ao meu encontro: em teologia, dizem-nos, o sentido óbvio é aquele «que se apresenta muito naturalmente ao espírito» [...]. Quanto ao outro sentido, o terceiro, aquele que vem «a mais», como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, ao mesmo tempo teimoso e fugidio, liso e esquivo, proponho chamar-lhe o sentido obtuso. [...] Obtusus quer dizer: que é rombo, de forma arredondada; [...] abre o sentido totalmente, isto é infinitamente; aceito até, para este sentido obtuso, a conotação pejorativa: o sentido obtuso parece estender-se para lá da cultura, do saber, da informação; [...]» (BARTHES, Roland, «O Terceiro Sentido», O Óbvio e o Obtuso, trad. de Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 45)

O óbvio é o que se põe à frente, que entra pelos olhos dentro... O obtuso é, pelo contrário, aquele que é rebelde a essa frontalidade, a essa presença óbvia, à obviedade do «que se apresenta muito naturalmente» e se retira dessa espécie de obscenidade do sentido óbvio. Para a sua exemplificação, Roland Barthes escolhe uma série de fotogramas de um filme de Eisenstein. Deles apenas nos ocuparemos aqui de dois, visto que as observações feitas para os restantes são formuladas sempre sobre os mesmos pressupostos, e dois bastam para exemplificar. O primeiro fotograma (o fotograma 1, em cima) é aquele que mostra uma mulher a chorar: é a imagem que Barthes numera como «imagem V» no seu texto. E a sua observação é a seguinte:

«Quanto à convicção do sentido obtuso, tive-a pela primeira vez em frente da imagem V. Uma questão impunha-se-me: o que é que, nesta velha mulher a chorar, me põe a questão do significante? [...] Compreendi, então, que a espécie de escândalo, de suplemento ou de deriva imposta a esta representação clássica da dor provinha muito precisamente de uma relação ténue [...] entre a baixeza da linha toucante, anormalmente puxada até às sobrancelhas como nesses disfarces em que se quer dar um ar bobo e tolo, o declive circunflexo das sobrancelhas desbotadas, extintas, velhas, a curva excessiva das pálpebras baixas mas juntas como se fossem vesgas e a barra da boca entreaberta, respondendo à barra da touca e à das sobrancelhas, ao estilo metafórico [do] «como um peixe fora da água» [...] formam um dialogismo tão ténue que não podemos garantir a sua intencionalidade». (BARTHES, Roland, «O Terceiro Sentido», op. cit., pp. 47-48).

O que a imagem mostra é, obviamente, uma mulher a chorar. É esse o seu sentido óbvio. E prescindiremos aqui do sentido simbólico (referencial, eisensteiniano, histórico, que situaria a imagem numa relação de interpretação com o contexto do filme e um certo contexto da História e, em particular, da História da cultura e da História do cinema) dado que nos interessa, antes de mais, não do ponto de vista da história, mas antes da semiologia, aqui perceber esse sentido não-intencional (ou não exclusivamente intencional) a que Roland Barthes chama o «terceiro sentido»: o sentido obtuso. Assim, nessa figura da mulher que chora há qualquer coisa que salta para fora, exorbita desse sentido óbvio do seu choro (que agrega um sentido informativo a um sentido simbólico, de que não tratamos aqui). Essa qualquer coisa é a seguinte.


No seu rosto, como observa o autor, alguns dos seus traços correspondem-se entre si, numa «relação ténue». Nessa correspondência, ou nessa aproximação em rima («interna» como se diz em poesia), nessa con-formação ou consonância, que atravessa alguns elementos de uma série (descentende ou ascendente) de arcos alinhados, nesse acorde, enfim, de traços que emerge da imagem... Há isto: a) a linha curva da touca, puxada excessivamente para baixo; b) acompanha o declive circunflexo das sobrancelhas; c) segue a curva excessiva das pálpebras e; d) ecoa na barra semicircular da boca entreaberta pela dor. São na figura, esquematicamente, quatro arcos - (((( - que se colocam uns por baixo dos outros... numa relação «tão ténue que deixamos de poder garantir a sua intencionalidade».

O que haveria seria, então, uma espécie de acordo gráfico interno, na relação entre cada um desses elementos, numa espécie de com-posição excessivamente alinhada, entre as feições do rosto que lhe dão expressão, e a linha da touca. Aí o sentido deixa de ser óbvio. Aí se insinua a vertiginosa abertura de uma espécie de «anti-linguagem», no sentido em que a significação deixa de ser unívoca. Porquê? Porque a expressão da dor se volve assim, na margem aberta por esse excesso (o da com-posição aspectual da personagem, na sua expressão da dor) a partir de dentro desse fotograma, na possibilidade do seu contrário, visto que o excesso da composição é irmão do disfarce. Sendo a linha da boca já um pouco como a da pálpebra, a da sobrancelha, e a linha da touca – numa palavra, gerando-se o efeito de uma estilização mais própria da máscarao efeito de espontaneidade representativa, dramática ou expressiva, da «dor» reverte-se, de súbito, na possibilidade do seu contrário e o sentido abre-se aí em duas direcções contraditórias: o da dor e o da máscara (da dor). É o que nos diz Barthes:

«Sentia que o traço penetrante, inquietante como um convidado que se obstina em ficar sem dizer nada, lá onde não têm necessidade dele, devia situar-se na região da testa: a touca, o lenço toucado estava lá para alguma coisa [... esse traço] confundir[ia] o limite que separa a expressão do disfarce, mas também dar[ia] essa oscilação de uma maneira sucinta: uma ênfase elíptica, se assim se pode dizer, disposição complexa, muito retorcida [...visto que] esta obtusidade ultrapassa a anedota, torna-se o embotamento do sentido, a sua deriva.» (BARTHES, Roland, op. cit., p. 47-48; 50).

Para encontrarmos uma expressão mais exactamente coincidente com o que acabamos de dizer, acerca do sentido obtuso como não-intencional, (que começámos por situar na margem da reflexividade ou da opacidade reflexiva do quadro, a comportar-se exactamente como as forças o inconsciente), podemos ver um segundo exemplo, o do segundo fotograma aqui representado, que mostra uma mulher de punho erguido. No entanto, alguma coisa nessa imagem funciona dispersivamente, em relação ao que seria o seu sentido intencional (o de militância, etc). Na imagem, destacam-se duas massas isomorfas (cuja forma é igual ou se repete) em correspondência entre si: a do punho erguido e a do carrapito no cabelo. Elas instauram uma espécie de rima interna que nos coloca de novo sobre a linha ténue em que as formas ou as figuras, os seus traços, se respondem dialogicamente e perdem ou transgridem a sua diferença absoluta (a diferença em que A se colocaria vs não-A). O punho passa a responder ao carrapito e este ao punho, parcialmente se anulando como signos exclusivos, no movimento da enunciação, (que se reconstrói a partir do enunciado, na leitura). Observa o autor:

«Todo o sentido obtuso (a sua força de desordem) se representa na massa excessiva dos cabelos; vejamos um outro carrapito (o da mulher IX [precisamente a do segundo fotograma que mostramos acima]): contradiz o pequeno punho erguido, atrofia-o, sem que esta redução tenha o menor valor simbólico (intelectual [com efeito, o carrapito relativiza, «humaniza» o valor simbólico do punho erguido, fá-lo acomanhar-se de uma nota de sensibilidade, diminui-lhe a ênfase, etc.]): prolongado em caracol, dando ao rosto um modelo ovino, ele confere à mulher algo de comovente (como o pode ser uma certa idiotice generosa), ou ainda sensível; estas palavras desusadas, pouco políticas, pouco revolucionárias, mesmo que mistificadas, devem ser, contudo, assumidas; inserida no disfarce, esta emoção nunca é pegajosa: é uma emoção que apenas designa aquilo que se ama, aquilo que se quer defender; é uma emoção-valor, uma avaliação.» (BARTHES, Roland, op.cit., p. 50).


O que Barthes encontra em Eisenstein é, portanto, uma cinematografia que acentua esta reversibilidade do significante. Ela corresponde a uma arte que não se esquece de assinalar a humanidade de todas essas personagens, que não são simplesmente representantes ou fantoches de uma ideia, de uma ideia de que a temporalidade se dissociasse por completo, mas antes, precisamente, momentos de uma historicidade e de temporalidade possível, que a nossa existência humana põe sempre em jogo. Há na arte de Eiseinstein uma experiência da oscilação e do desenraizamento do sentido (ver o que diz Gianni Vattimo, em A Sociedade Transparente, a respeito da «oscilação» e o «desenraizamento»: cf. «Fragmentos de leitura 2 - Walter Benjamin e a teoria do «choque»» aqui no blogue), que a dissocia da pobreza de qualquer univocidade hermenêutica, e dos efeitos castrantes próprios do catecismo, da repetição na cultura de massas e, de uma forma geral, de toda a monotonia ideológica. Aquilo em que o sentido obtuso (que rola como uma esfera, sem que seja posível segurá-lo numa só posição, numa só intenção) se parece com a dinâmica das forças do inconsciente é precisamente isto: ele contradiz(-se), como diz Barthes (ver aqui a última citação), a propósito da segunda das imagens que abordámos. Ora, seria preciso lembrar que a estratégia de Sócrates era, em Platão, sempre a de levar os seus adversários até à contradição ?

domingo, 23 de novembro de 2008

Recapitulações - O quadro III: A recordação de cobertura

Pablo Picasso, Natureza Morta com Jarro e Maçãs

Ainda acerca do quadro, no que diz respeito à pintura, há outros factores a considerar. Em «Diderot, Brecht, Eisenstein», Roland Barthes estende a observação de Louis Marin, acerca do quadro enquanto operador de corte, à totalidade das artes dióptricas:

«A cena, o quadro [tableau], o plano, o rectângulo recortado, eis a condição que permite pensar o teatro, a pintura, o cinema, a literatura, quer dizer todas as artes excepto a música e que se poderia chamar de artes dióptricas. [...] O quadro (pictural, teatral, literário) é um recorte [découpage] puro, de bordos nítidos, irreversível, incorruptível, que recalca [refoule] no nada tudo o que o cerca, inominado, e promove à essência, à luz, à vista, tudo aquilo que faz entrar no seu campo; esta discriminação demiúrgica implica um pensamento elevado: o quadro é intelectual, ele quer dizer alguma coisa (de moral, de social) mas ele diz também como é preciso lê-lo; ele é simultaneamente significativo e propedêutico, impressivo e reflexivo, comovente e consciente das vias da emoção». (BARTHES, Roland, «Diderot, Brecht, Eisenstein», in MARTY, Éric (org.), Roland Barthes: oeuvres complètes IV: 1972-1976, Paris, Seuil, p. 339).

A dióptrica é a parte da física que estuda os fenómenos de refracção. As artes dióptricas serão artes de refracção, em que um fenómeno de desvio se produz, e em que ele pode ser assinalado no confronto com o seu exterior. O teatro supõe uma encenação, tal como a pintura supõe uma representação, a literatura uma escrita, o cinema uma determinada relação take/montagem, e todos eles uma determinada forma de refracção dos temas e dos elementos da nossa percepção, enquanto seres no mundo. Ora, afirma Roland Barthes, não há forma de pensar essas artes dióptricas a não ser a partir dessa découpage. O que significa que o quadro, enquanto corte/selecção-combinação de elementos supõe um processo de desvio ou de refracção.

A nossa nota de leitura vai aqui para o termo que Roland Barthes usa para descrever o movimento de inclusão-exclusão que o quadro, enquanto operador de corte, implica: é o termo «refoule», no original francês - do verbo refouler e do substantivo refoulement - que é exactamente o mesmo que é usado em psicanálise para descrever o recalcamento. É ele que nos levanta aqui a questão da compreensão do que pode significar o quadro, no que ele supõe de refracção.

Vimos já, a propósito de Walter Benjamin, e da sua leitura de Marx e de Freud, que a mutação das condições da experiência que afectam, a partir do século XIX e de forma crescente, a vida social, traz consigo uma aceleração e um desligamento, uma sobre-estimulação e uma acentuada vulnerabilidade do sujeito, patentes na temporalidade que afecta toda a sua vida de relação. Elas implicam, na experiência, a recorrência da sua exposição ao choque. E vimos, também, que esse choque supõe, ou a não vivenciação consciente do que ele inscreve como não-consciente (é a descrição que Benjamin faz da memória das partes do corpo em Proust) ou o seu recalcamento.

A pergunta será, então, a seguinte: se essa operação de inclusão-exclusão supõe o recalcamento no nada e, também, a contrario, a promoção à luz do que está sediado na mémoire involontaire, o que é que de um e de outro (recalcamento e exposição) estará em jogo, no quadro? É que, seguindo-se a definição de Roland Barthes ficar-se-ia a pensar naquilo em que poderá consistir o recalcamento de que aí se fala. O que seria oportuno sublinhar aqui seria, antes de mais, que, enquanto operação de «recalcamento no nada» (a tradução portuguesa dir-nos-ia: «rechaça para o nada», o que perde por completo a sugestão psicanalítica), o quadro supõe uma refracção, um desvio. Enquanto operação de corte, o quadro implica, diz-nos Barthes, um «pensamento elevado», visto que ele selecciona, promovendo-o à luz e à visibilidade, tudo o que faz entrar no seu campo, dissociando-o do que, precisamente, é preciso rejeitar. Mas de onde vem o que aí é promovido à luz?


Ora, o poema de Baudelaire, «À une passante», comentado por Walter Benjamin em «Sobre Alguns Motivos na Obra de Baudelaire», faz entrar no seu campo precisamente aquilo que constitui a experiência do choque. O que ele recalca (quer dizer, ignora) é tudo o resto: tudo o que, na experiência, poderia ainda ser facilmente assimilado pela consciência. Digamos, portanto, que ele promove à luz, à essência, à visibilidade, tudo aquilo que não é susceptível de ser ligado na experiência, e se desprende da multidão como se dela saltasse à sua vista. Bastará isto, para se compreender o que aí se passa? Em outros termos, o que entra no campo do poema é, precisamente o que não entraria no campo (das formas mais comuns) da consciência. O poeta é, aqui, um sujeito da excepção. Aquilo que ele capta é precisamente o exterior ao que é do domínio mais geral da consciência comum. A palavra excepção significa, segundo o seu étimo ex-capere «captação do exterior». O que todavia faz a sua excepção, não é a experiência do choque em si mesma, mas antes o uso que ele faz dela, abrindo-a ao seu devir consciente e assim o dissipando. Será correcta, em síntese, esta interpretação? A sua excepção reside, por conseguinte, na visibilidade que ele lhe dá. O que levará Benjamin a falar de traumatofilia, a propósito de Baudelaire:


«A psiquiatria conhece os tipos traumatófilos. Baudelaire decidiu-se a aparar os choques, de onde quer que viessem, com o seu ser espiritual e físico. A imagem desta defesa em relação ao choque é a da esgrima. Quando fala do seu amigo Constantin Guys, visita-o a horas em que Paris dorme, e escreve: «ali estava ele, curvado sobre a mesa, fixando a folha de papel com a mesma agudeza com que de dia olhava para as coisas à sua volta; esgrimindo com o lápis, a pena, o pincel, fazendo a água do copo salpicar o tecto, limpando a pena à camisa; perseguindo o trabalho, lesto e persistente, como se temesse que as imagens lhe escapassem. Assim, ainda que só, entra numa luta, aparando, os seus próprios golpes»». (BENJAMIN, Walter, «Sobre Alguns Motivos na Obra de Baudelaire», A Modernidade: Obras Escolhidas de Walter Benjamin, trad. de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 114).


Ora, Walter Benjamin encontra, no poema «O Sol», Baudelaire em pleno trabalho poético:

«Pelo velho arrabalde, onde em cada tugúrio
As persianas abrigam secretas luxúrias,
Quando o sol mais cruel bate com os raios vivos,
Em cidades e campos, telhados e trigos,
Exercito sozinho esta absurda esgrima,
Farejando em cada canto os acasos da rima,
Tropeçando em palavras como na calçada,
Dando às vezes com versos há muito sonhados.»

O seu gesto dá-nos conta do facto de o poeta (o sujeito de enunciação) se colocar num ponto de vista diferente, que constitui justamente o que é correspondente ao que nele é a sua singularidade, a sua excepção. O seu ponto de vista, o seu espaço é o de um limite. Pois, não apenas o espaço do «velho arrabalde» é o da escrita, em que «tropeça em palavras», farejando «em cada canto» o «acaso das rimas»: é também um espaço repartido entre o choque e o prazer - cruelmente batido pelos «raios vivos» do sol, por fora dos tugúrios, que no entanto, com as persianas, abrigam «secretas luxúrias». É um espaço periférico, entre cidades e campos, juncado de fragmentos de linguagem, representações diversamente investidas, quer de desejo, quer de dor, quer de luxúria, quer de crueldade: o espaço limítrofe da margem em que ele dá com «versos há muito sonhados»...

Por virtude da mudança entretanto operada nas condições da experiência, a sua excepção passara a ser, não tanto a de um sujeito experienciador do choque, mas a daquele que o inscreve no poema, que o «põe em forma», como dizia Gianni Vattimo. O espaço-tempo da escrita é esse espaço-tempo repartido, entre a crueldade e a luxúria (que entre si se opõem), juncado de fragmentos que emergem de dois lados, da memória involuntária e da sua percepção: imagens (telhados, trigos, cidades, campos, sol, penumbra), sons, palavras, rimas, versos há muito sonhados... a que se diria que falta a ligação que o poema lhes traz. O que torna Baudelaire singular é, no texto de Benjamin, essa sua fulgurante intuição: a de que a experiência moderna se caracteriza por uma generalizada repetição da experiência do choque, da descontinuidade: o moderno é o contingente, o fugitivo, etc. Aquilo que irrompe nela de fragmentário, de correlação veloz, de relâmpago ou fulguração. Se a transposição dessa experiência pela escrita supõe, como diz Roland Barthes, uma refracção, em que consistirá, no entanto, o seu processo? O último verso poderia fornecer-nos uma pista...

A operação do quadro é, simultaneamente, a de um deslocamento e de uma condensação desencadeados e desencadeadores da selecção e da combinação de formas (verbais, visuais, etc.). Ora, o que se inclui no espaço do poema é o fragmento do há muito sonhado. É sobre ele que aí se caminha, é nele que se tropeça, é ele que aí se fareja, em todos os cantos. Esse material onírico de «há muito», ao qual só no limite ou na periferia se acede, é promovido à luz e à visibilidade a partir de onde permanecera como que invisível. No quadro do poema, da página ou da tela, bem como do écrã, tudo o que no seu espaço entra tem essa qualidade do fragmentário, do separado, do desligado, daquilo que se diria ser constituir por uma estrutura segmental e modular, antes de no todo do quadro se vir a integrar.


Esse seu movimento de reunião é o de um deslocamento a partir de cada canto, de cada chão, destinado a vir ali a condensar algum sentido. Ele corresponde a um movimento que vai da experiência fragmentária do real intuído a partir da memória, para a sua re-(a)presentação. E esse real do «arrabalde» - ambivalente, cruel e luxuriento - é o real do «há muito sonhado» e que permanecera na sua «memória involuntária», buscando agrupar-se. A dificuldade estaria aqui na compreensão da definição de Barthes, segundo a qual o quadro «recalca» no nada tudo o que o rodeia. É aqui que cabe uma curiosa observação de Freud, que nos parece oportuna. Diz-nos ele, em «Recordações da infância, recordações de cobertura» (ou, em francês, souvenirs-écran):

«Esquecemos que até uma criança de quatro anos é capaz de um trabalho intelectual muito intenso e de uma vida afectiva muito complicada, e deveríamos antes admirar-nos por verificarmos que todos estes processos psíquicos tenham deixado tão poucos traços na memória. [...] Em relação às recordações de infância, observamos, por assim dizer, a mesma regressão que se verifica em relação aos sonhos: estas recordações adquirem um carácter plasticamente visual, mesmo nas pessoas cujas recordações ulteriores são desprovidas de qualquer elemento visual. É por isso que as recordações visuais se aproximam das recordações infantis. No que me diz respeito, todas as recordações da infância têm unicamente carácter visual: são cenas plasticamente elaboradas, que só posso comparar aos quadros de uma peça de teatro.» (FREUD, Sigmund, Psicopatologia da Vida Quotidiana, trad. de José Marinho, Lisboa, Estúdios Cor, 1969, pp. 58-59).

A recordação de cobertura é, segundo Freud, a que se põe em cena, no lugar de uma outra impressão, deslocada ou recalcada:


«Como sabemos que a nossa memória realiza uma escolha entre as impressões que se lhe oferecem, [... e essas impressões escolhidas] devem a existência a um processo de deslocamento, constituindo a produção supletiva de outras impressões realmente importantes e de que a análise psíquica revela a existência, mas cuja reprodução directa encontra uma resistência. Ora como devem a conservação não ao seu próprio conteúdo, mas a uma associação existente entre esse conteúdo e um outro, recalcado, justificam o nome de «recordações de cobertura» com que as designei» (ibidem, p. 55).


A «recordação de cobertura» pode ser, no texto de Freud, anterior, posterior ou contemporânea da recordação deslocada ou recalcada que ela encobre (ibidem). Ela supõe, portanto, um deslocamento, um desvio, uma metonímia a que a censura sobre o inconsciente obriga. As relações que assim se estabelecem entre ambas são as mesmas das que são próprias dos sonhos: as de deslocamento e de condensação. Porque a «recordação de cobertura» condensa então os traços que lhe vêm da recordação encoberta e os traços que lhe são próprios, formando uma metáfora. O material que acede à consciência não poderia nunca ser o de um inconsciente em estado bruto. O inconsciente é-o sempre em relação ao qualquer coisa que supõe a possibilidade da sua diferença.


A marca do inconsciente é, para a psicanálise, a da falta de ligação, o intervalo e a mobilidade associativa de uma sintaxe que se diria lacunar. A interpretação analítica centra-se sempre nos lapsos de memória, nas descontinuidades (pausas, reticências) do discurso reportado aos sonhos, para os tomar como ponto de interrogação, de questionação. É quando aí falta alguma coisa que se pressente o trabalho do recalcamento e começa o trabalho analítico que estabelece, então hipóteses. A escolha pressuposta pelo trabalho de selecção dos elementos que o quadro combina deve ser determinada pelo princípio que estabelece o seu valor: assim como nas recordações de cobertura, uma forma representa outra, que permanece latente, também na representação artística as formas remetem para outras que permanecem, todavia, «implícitas». Diria Louis Marin:


«O que o quadro representa não é o que ele figura: [...]. Ele é o representante dessa representação e é-o enquanto sua efectuação. Nesta medida, a representação que o quadro é, não é a sua figuração. As figuras do quadro são, de certo modo, à sua superfície, os índices dessa representação: para nós, espectadores, elas designam o mundo, mas ao mesmo tempo reenviam para o espaço epistemológico configurado de que o quadro é o representante. Neste plano, as figuras explícitas do quadro organizam-se num nível simbólico. [...] Parecendo, nas suas imagens, designar o mundo - aí reside o logro da figura como imagem das coisas - o quadro não é outra coisa senão o espaço de representação em que os diversos sistemas que o constituem [nele] se implicitam. O engodo da figura como imagem dissimula o saber que no quadro se representa». (MARIN, Louis, «Le discours de la figure», Études sémiologiques: écritures, peintures, cit in PEREIRA, José Paulo, Uma Cartografia Transtornada: A Guernica de Carlos de Oliveira, Braga, Angelus Novus, 1999, p. 70)


Enquanto «indício» de uma re-presentação, as figuras estão no quadro a marcar uma relação implícita, num nível simbólico. Mas não se trata aqui do significado intrínseco de Panofsky. Reenviando-nos para o espaço simbólico em que essa relação tem lugar, não apenas as figuras, mas também o quadro em que elas entram, mantêm o seu carácter indicial. O espaço de um discurso do «saber» a partir do qual essa relação de representação se estabelece é sempre dissimulado, implicitado, pela con-figuração ou com-posição, pelo corte-selecção/combinação a que chamamos quadro. O movimento de promoção-exclusão das figuras/formas ou elementos plásticos é o de um gesto que supõe «um pensamento «elevado»», quer dizer, um pensamento que encobre o que sob ele se esconde ou recalca. Porquê esse recalcamento?


1. Porque a arte não se presta à definição, não acredita em fórmulas sagradas. Porque ela supõe precisamente a questionação do pensamento, no que ele supõe, aos seus olhos, quer de conceito, quer de acabado e eterno, de imutável. Porque enfim, a sua exigência crítica suspende o momento da formulação explícita de verdades definitivas. Para Baudelaire, havia no seu tempo, de um lado, o fugitivo e o contingente, em que a Modernidade se marcava, e de outro lado, o eterno e o imutável. Pensamento que, no caso de Baudelaire, aos olhos de Walter Benjamin, representa, de uma forma geral, a sua fulgurante intuição de uma profunda mutação nas condições da experiência, caracterizadora, para o autor de «Sobre Alguns Motivos da Obra de Baudelaire», tanto quanto para o de «À une passante», da Modernidade: precisamente aquela mutação que levara a que a poesia tivesse deixado de ser o que fora ainda com Victor Hugo ou com Lamartine, e o poeta houvesse deixado de ser o «bardo» que o romantismo nele consagrara.

O que é assinalado na arte (tardo-)moderna será, portanto, essa noção de uma voz isolada e fragmentária, desligada da sua própria unidade e, por conseguinte, também da possibilidade de falar em nome de um colectivo. «Se – como diz Benjamin, vimo-lo em «Walter Benjamin e a teoria do choque» – chamarmos aura às imagens que, sediadas na mémoire involontaire, buscam agrupar-se em volta de um objecto da intuição, então essa aura em torno de um objecto da intuição corresponde à experiência que deixou marcas de uma prática num objecto de uso». O que significa que essa «busca de agrupamento em redor de um objecto da intuição» supõe uma espécie de magnetismo associativo, de mobilidade de investimento. Ele implicará, de facto, um desvio, um deslocamento e uma alteração da relação sintáctica que, no poema como no quadro, se desliga dos princípios da convenientia, no movimento de recontextualização pelo qual a representação de qualquer objecto da nossa intuição muda de valor e se torna signo das imagens que se lhe associam. Essa «aura» haveria de prender-se com o que, enquanto memória visual não surge, no entanto, explicitamente figurado, mas apenas refractado. Porque a ligação entre as figuras/formas/elementos plásticos e o que eles arrastam consigo não é inteiramente desdobrável ou desdobrada. Não poderia sê-lo. Eis um exemplo: Picasso, aborrecido com as perguntas que lhe faziam acerca dos sentidos possíveis das figuras de Guernica respondeu um dia:

«O mural corresponde à expressão definida e à solução de um problema e esta é a razão pela qual me servi do simbolismo. [...] É claro, os símbolos... Mas é necessário que o pintor os não crie, aos símbolos, caso contrário valeria mais a pena escrever de uma forma clara o que se pretende dizer, em lugar de o pintar. [...] Um quadro vem de muito longe: quem poderá dizer de quão longe eu o pressenti, vi, pintei; e todavia no dia seguinte eu não consigo já ver o que eu próprio fiz. Como pode alguém entrar nos meus sonhos, nos meus instintos, nos meus desejos, nos meus pensamentos que levaram muito tempo a amadurecer e a vir à luz do dia, e sobretudo captar deles o que eu estive em vias de fazer – talvez contra minha vontade?» (ZERVOS, Christian, «Conversation with Picasso» e «LARREA, Juan, Pablo, Picasso – Guernica, Madrid, Edicusa, 1977, cit. in PEREIRA, José Paulo, Uma Cartografia Transtornada: A Guernica de Carlos de Oliveira, Porto, Angelus Novus, 1999, pp. 112-113).

O pintor (ou o poeta) não é, portanto, um «criador de símbolos», no momento em que os desloca para a cena da sua representação. Um objecto da intuição pode ser investido de uma série de associações com imagens sediadas na mémoire involontaire. E qualquer símbolo partilhado pode ser um objecto da intuição. No quadro de Picasso há um «touro», um «cavalo», etc. Mas o transporte que os faz entrar no quadro e aí associarem-se entre si de determinada maneira implica um desvio da sua relação segundo as leis da convenientia, no real, como dizia Louis Marin. Essas leis são também as da consciência. Enquanto selecção e combinação entre si, a sua articulação no quadro é coisa que vem de longe, diz-nos aqui Picasso. E não é possível «alguém entrar nos meus sonhos, nos meus instintos, nos meus desejos, nos meus pensamentos que levaram muito tempo a amadurecer e a vir à luz do dia, e sobretudo captar deles o que eu estive em vias de fazer – talvez contra minha vontade». Que significa, então, a operação refractora pressuposta pelo quadro, enquanto elemento indispensável nas artes dióptricas? Em primeiro lugar a abertura de uma certa margem de opacidade reflexiva e de inconsciente, aquela que Barthes nos diz que é móvel, vazia, apta a tomar quaisquer contornos e que nos faz entrar na experiência da «oscilação» e do «desenraizamento», como diria Gianni Vattimo, leitor de Heidegger e de Benjamin. Em segundo lugar, que é nela que o símbolo é deslocado do seu sentido partilhado e se abre às suas correspondências mais subterrâneas.


2. Porque nem o sujeito, nem a arte que ele produz poderiam ser da ordem da «confissão», uma vez que são clivados, abrindo duas margens: a da sua legibilidade e a da sua reflexividade. Visto que a nem própria «confissão» - forma de um discurso que para Michel Foucault seria paradigmática da pastoral moderna e do biopoder - que supõe uma relação de absoluta transitividade entre o discurso de quem fala e o de quem ouve é possível, a partir do momento em que é repetida, em eco, em (re)iteração, por quem a recebe. Todo o sujeito é dividido, clivado.

sábado, 22 de novembro de 2008

Recapitulações - O quadro II: o «admonitor» de Alberti, como suplemento da apresentação da representação pictórica

Giovanni Bellini, Apresentação no Templo.

Pablo Picasso, Guernica.

A auto-representação do sujeito enunciador (como em Giovanni Bellini, do lado direito do quadro) não é, contudo (sendo ela própria também a forma do «auto-retrato escondido», que «dissimula a presença do pintor no seio de um grupo de personagens», naquilo a que Omar Calabrese chama o cripto-retrato), a única possibilidade da marcação da instância do sujeito enunciador. Pois o sujeito enunciador de um quadro, tal como o de uma história, pode implicar uma diferenciação entre o seu autor e o seu narrador: em Guernica, a figura que entra pela janela não supõe o reconhecimento de nenhuma auto-representação autoral do sujeito enunciador. Segundo o preceito de Leon Batistta Alberti, no seu De Pictura (1435):

«A história porá em movimento a alma do espectador quando cada figura pintada no quadro mostra claramente o movimento da sua própria alma [...]. Nós choramos com aquele que chora, rimos com aquele que ri e afligimo-nos com aquele que se aflige. São os movimentos do corpo que fazem conhecer os movimentos da alma. [...] Todos os corpos devem mover-se segundo a ordem da história, quer dizer, devem convir ao assunto quadro. [...] Numa história gosto de ver alguém que nos advirta e nos indique o que ali acontece [na história, no relato, no quadro]: que nos convide a ver com a sua mão; ou que ameace com uma face encolerizada e os olhos brilhantes [étincelants] tão bem que ninguém ouse aproximar-se, ou que mostre aí algum perigo ou alguma maravilha; ou nos convide a chorar ou a rir com eles. Assim, o que quer que façam as figuras pintadas entre elas e com o espectador, tudo deve ser dirigido para a compleição e o ensino da história.» (MARIN, Louis, op. cit. 319).

O quadro, enquanto operador de limte que sustenta a possibilidade e a legibilidade do título é, portanto, replicado, no seu interior, por esta meta-figura que é a do «espectador-comentador» e que funciona como seu suplemento. Ela não é necessariamente a do pintor, como acontece do cripto-retrato, mas antes a de alguém que nos adverte e nos indica alguma coisa. É, em primeiro lugar, o equivalente pictórico-figurativo do narrador, cuja diferença em relação ao autor (aparentemente explícito no caso do cripto-retrato, apesar de todas as modalizações possíveis, que mais adiante veremos) deve ser tida em conta. Digamos, então, que, se o quadro é o operador de apresentação da representação em pintura, o espectador-comentador é, no seu interior, a figura que aí o redobra, na sua função de recorte, enquanto operador de visibilidade-legibilidade. Do ponto de vista desta pragmática da recepção da representação em pintura, a figura do admonitor - tal como é definida por Alberti - é a de uma representação de uma mediação orientadora da leitura.