À esquerda: P. de Champaigne, Vanitas, (ou Memento mori, séc. XVII); à direita: Matthias Grünewald, Cristo Ressuscitado, 1515.
I - O segundo elemento estrutural da apresentação da representação pictórica, (na ordem dos enumerados em Recapitulações - o quadro I: O operador de visibilidade-legibilidade, aqui no blogue) mencionado por Louis Marin (em breve se verá que estas observações se estendem, na linha das afirmações de Roland Barthes, a outras artes: o teatro, etc.) é o seu fundo. O que é o fundo? O fundo, num quadro ou o fundo de um quadro? Será exactamente a mesma coisa? Será o fundo quadrável, enunciável, nominalizável?
Trata-se, com a questão do fundo, de uma noção problemática em muitos outros campos de reflexão. O da filosofia - ou, em particular, o da ontologia - assim como o da ética, bem como o da psicanálise, o do político, etc. Neles há uma questão de fundo sempre que se fala no fundo. O que justificaria aqui um parêntesis (com ele fecharemos este post), com alguma indicação sinóptica, um memorandum instrumental ou uma orientação rápida e necessariamente diagonal, acerca de alguns dos caminhos por onde reencontrá-la. Com efeito, o pensamento contemporâneo tem pressuposto uma questionação do fundo e dos «fundamentos» (do que permanece como interrogação do «fundo»). Abriremos esse parêntesis no final, para evitar dispersarmo-nos.
1. A situação dita (mal designada, a nosso ver) «pós-moderna» (por razões que não interessarão aqui: cf., por exemplo, a este respeito, NORRIS, Christopher, The Truth about Post-Modernism, Oxford/Cambridge, Blackwell, 1993) supõe, justamente, uma questionação do fundo e do fundamento, do princípio e da origem, da arché e da ousia, etc. Regressemos quadro de Champaigne - Vanitas, ou Memento mori. Se se escolhe este quadro, a Vanitas de Champaigne, talvez isto sirva de uma primeira ilustração : a) não apenas ao tipo de problemas que se levantam, na abordagem dessa noção, do ponto de vista da semiologia da pintura; b) mas também de ilustração ao modo como ela ressoa por todo o pensamento crítico contemporâneo... Que é pois o fundo, pensado aqui retrospectiva e transdisciplinarmente sobre o fundo de uma estética da experiência, da oscilação e do desenraizamento... Sigamos, aqui, uma vez mais a interrogação de Louis Marin. Como caracterizar o «fundo» no/do quadro de P. de Champaigne? Eis a sua reflexão:
«Questão: que dizer do fundo sobre o qual as figuras se elevam, sobre o qual os nomes figurados se destacam em lista? Que dizer do fundo que as faz destacarem-se em lista figurada, lista que não funciona em figura de lista senão em função dele, ele que as apresenta como tais? Um fundo negro. Seja, mas que representa esse fundo negro? Nada. Sem dúvida que posso reconduzir [essa questão] à nomeação, nominalizando «nada» como «o nada»: um nome que não nomeia, que não é mais que um nome: nome do inominável, lugar do apagamento da lista [de nomes que desfilam, na descrição que nomeia, na ostensão da representação dos objectos que o quadro expõe], mas cuja anulação é de algum modo a condição da produção visual e verbal; [...] (MARIN, Louis, «Mimésis et description», De la représentation, Paris, Gallimard/Seuil, 1994, p. 259)
2. Portanto, o fundo opera exactamente como o quadro enquanto corte. O que é o quadro, o limite que circunscreve uma dada representação? Em si mesmo não existe. Ele é função do que ele apresenta em representação. O limite de alguma coisa precisa dela para se dar como «limite». Neste sentido, o limite não é, em si mesmo, «nada». E no entanto, visto que sem ele não há apresentação da representação, ele persiste, resta, permanece, nessa sua posição limítrofe, sem que o possamos incluir como pertencente à representação. Apresentando a representação ele, no entanto, não lhe pertence exclusivamente. E é por isso que «resta», que permanece em excesso, em relação àquilo que delimita. É o que nos diz Louis Marin:
[o fundo é] um nada que é um resto; um resto que é excesso do poder de nomeação [isto é, que o excede], mas onde esse poder [de nomeação] encontra o seu impulso. Mas se esse fundo não representa nada, ele apresenta-se, em contrapartida como nada; ele apresenta-se não como representando alguma coisa: ele apresenta-se. É nessa auto-apresentação pura que o quadro de Champaigne pode representar com essa [sua] força os três objectos que ele representa para a sua imediata tradução numa lista de nomes. Dito de outro modo, o olhar descritor assiste à cisão entre opacidade e transparência». (ibidem).
Aqui está, então, o problema do fundo. Poderíamos segui-lo assim: a representação tem aqui, como fundo, uma apresentação. Aquilo que aí se apresenta, a nada reenvia a não ser a si próprio. Mas o que é esse «si próprio», essa apresentação em que a representação se anula e que, no entanto, mesmo enquanto negação da representação, constitui a própria condição de possibilidade de toda a representação? Sem esse nada, que não é «o nada», porque, mesmo representando-o, ele se lhe furta enquanto tal, nada se representaria, na Vanitas de Champaigne. Visto que é sobre esse nada de fundo que as coisas aí exibidas desfilam, na corrente enumerativa dos nomes, que designam os objectos assentes sobre essa espécie de peitoril, de mesa de pedra que dá para (o)... nada em que, ao mesmo tempo, se sustenta. Notem-se os itálicos de Louis Marin. As figuras destacam-se sobre esse fundo. O fundo fá-las destacarem-se, desprenderem-se, desligarem-se, elevarem-se...
3. Em outros termos, toda a representação depende daquilo em que precisamente ela se nega a si mesma. Quer dizer, ainda de outro modo: não há representação que não seja dividida, clivada, entre «o nada» da sua nominalização e a impossibilidade mesma de uma sua definitiva nomeação. Eis uma situação aporética, sem saída, sem «solução de continuidade». E nesse caso, fará ainda sentido dizer «o fundo», nominalizando, portanto, o que é, por outro lado, sem substância e sem nome, em recuo, até perante «o nada» com que se pretenderia nomeá-lo? Sobre que é que o nome aí se suspenderia então? Em que consiste essa ausência sobre que o nome paira, na (im)possibilidade do seu próprio desdobramento, suspenso de si mesmo, ou a despenhar-se sobre o abismo do seu seu próprio furo? Em resumo, somos aqui confrontados com a cisão entre a transparência e a opacidade, como diz Louis Marin: «fundo negro» é uma expressão plástica/verbal simultaneamente transparente e opaca, exactamente como o que se supõe que ela designa: trata-se, nesse «fundo», de um fundo e de uma superfície do que escapa à nomeação, escapando como que pelos fundos da linguagem e da percepção. Eis o seu comentário:
«Esse fundo inominável, de que é ele o fundo? De três objectos que a representação pictórica dá a ver e a ler? Ou será ele o fundo do próprio quadro, o fundo suporte do fundo sobre o qual as três figuras se elevam à vista acedendo à linguagem? Sem dúvida que um e outro. A síncope entre opacidade e transparência converte-se aí, nesse lugar dessa obra, na fusão ambivalente do fundo e da superfície, do quadro e da representação, conversão histérica - se se pode dizer - da representação em pintura. [...]» (MARIN, Louis, op.cit., p. 260).
4. As perguntas de Louis Marin indicam aqui um problema sobre que nos convém parar um pouco. Qual seria a diferença entre «fundo-suporte de fundo» e «fundo»? Em que sentido se pode falar da diferença entre «o fundo do próprio quadro» e o fundo no quadro? É uma questão interessante. Na verdade ela chama a si uma série de questões que poderíamos começar por pensar, por exemplo, do ponto de vista psicanalítico. Qual seria o equivalente psicanalítico de um quadro? Vimo-lo já com Roland Barthes, em «Diderot, Brecht, Eisenstein» (aqui no blogue em Recapitulações - o quadro III: a recordação de cobertura).
Observámos nessa altura que, enquanto operador de selecção-exclusão o seu equivalente era o recalcamento. Em que consiste enquadrar, circunscrever, terminar um «quadro» ou um «enunciado»? Em operar um corte, um recalcamento (refoulement) do que não entra no seu campo e consagrar, promover à visibilidade a expressão de um significado. Ora, qual será o fundo dessa negação-exclusão? Em que se baseia essa selecção-exclusão pressuposta pelo «quadro»? A descrição freudiana situa-a no momento chave do édipo, o da introjecção da norma na construção do sujeito. Há, por outro lado, um processo de framing naquilo a que Jacques Lacan chama a Metáfora Paterna. O que ela gera é o efeito de um sentido arpoado, fixado como um insecto por um alfinete. Essa fixação do sentido é, na verdade, a condição básica de toda a comunicação. Sem ele não há nenhum entendimento recíproco possível entre sujeitos. Embora ele não passe de um efeito de enquadramento.
5. Digamos, para retomar o que atrás dissemos, que o «fundo-suporte» de um fundo (de um enunciado, um quadro, qualquer que ele seja) é o próprio universo dos símbolos partilhados, a própria Lei. Esse fundo-suporte entra em nós sob a forma do que Freud designa por «superego» e Lacan designa por «Simbólico». Ele representa em nós um dos alicerces do «subjectus», do que é lançado como fundação do sujeito. Mas não pode ser pensado como dissociado do que ele mesmo instaura: o inconsciente. Nesse sentido, todo o sujeito pressupõe, enquanto «subjectus» - aquele que é submetido à ordem do discurso, que nele implica as restrições próprias a uma certa amplitude de movimento, pois a palavra discurso implica precisamente isso: movimento para cá e para lá - um «quadro» ou um «quadramento». Ora, se o «quadro» é um dos equivalentes pictóricos do que, na ordem verbal, são os «enunciados», o «fundo-suporte» dos enunciados que produzimos é, de uma forma geral, a linguagem.
Sabemos, no entanto, também, que a descrição freudiana situa o «superego» no «id», do qual, do ponto de vista do ego, contudo, nada sabemos, a não ser pelo facto de ele emergir no deslocamento-condensação das nossas formas de percepção e de reconhecimento. Quer isso dizer que, a esse fundo-suporte (de um fundo determinado, de um quadro específico), não é possível distingui-lo daquilo de que ele é suporte: precisamente este fundo, o de um determinado enunciado/quadro. Como é que em nós se desencadeia esse efeito de en-quadramento, esse fundo-suporte de qualquer fundo determinado, segundo a psicanálise?
Eis o que Lacan nos diz, acerca da forma como tudo (em nós) se desencadeia, nessa precipitação pela qual a Lei em nós se incorpora, no momento da angústia da castração, para vir a constituir-nos em sujeitos (subjetus). O ponto de partida é um fenómeno de fantasia reflexa: «o que é esse medo da castração? Porque vértice abordá-lo? Nós o abordamos na primeira experiência do complexo de Édipo, mas sob que forma? Como numa represália, no interior de uma relação dual-agressiva. Essa agressão parte do filho, na medida em que o seu objecto privilegiado, a mãe, lhe é proibido, e se dirige ao pai. E retorna para ele [filho] em função da relação dual, uma vez que ele projecta imaginariamente no pai intenções agressivas equivalentes às suas, mas que têm como ponto de partida as suas próprias tendências agressivas» (LACAN, Jacques, «A Metáfora Paterna», As Formações do Inconsciente: o Seminário - Livro 5, trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p. 175).
Ora, essa lei é uma lei de linguagem. A linguagem escande, divide, parametriza, estrutura as nossas distinções no âmbito de uma ordem do discurso. Ela envolverá, também, nomes-categoria cuja função distintiva é simbolicamente partilhada e nos fornece uma espécie de medida comum. Nunca prescindimos deles, mesmo quando é preciso questioná-los, ou pelo contrário, encontrá-los na descrição das coisas. Por exemplo, o «fundo-suporte» do fundo é, como diz Louis Marin, um nome-categoria, tal como o seriam «quadro», etc. E aqui se joga o paradoxo da descrição: quanto mais de perto queremos colar o discurso à imagem, na sua adequação representativa, mais somos obrigados a gerar nomes cuja referência é necessária e fundamentalmente abstracta: «nomes-categorias», que operam distinções de conjuntos alargados. É com eles que lidamos com aquilo que na pintura resiste à significação unívoca. Veja-se, de novo, o que nos diz Louis Marin:
«No próprio esforço do discurso descritivo de se «colar» ao mais próximo da mimética transitiva da representação, o olhar descritivo foi levado a elaborar sobre o quadro nomes-categorias que se encontram a comandar a lista daqueles que o olhar perceptivo produzia imediatamente, transformando as sínteses de objectos da sua experiência no reconhecimento dos nomes que significavam essas sínteses: vaso de cristal, tulipa, crâneo, relógio de areia. Esses nomes-categorias (ou conceitos) - «suporte-fundo», «superfície-plano», «bordo-rebordo», «não figural-figura», etc. [...] - esses conceitos tentam articular, no discurso do conhecimento, não uma inefabilidade da pintura, mas apenas a opacidade da apresentação da representação». (MARIN, Louis, op.cit., p. 260).
6. Eis, portanto, a questão. O «fundo negro» dessa apresentação da representação, não será afinal também o nosso próprio fundo? O da linguagem em nós? A sua lei não representa em nós precisamente a pulsão que ela se supõe controlar, como sugeria Freud (cf. «O ego e o superego (o ideal do ego)»)? Não representará ele, também, o fundo do nosso ser de sujeitos? E como situá-lo e contê-lo no quadro, tal como na palavra? Não será ele antes fundo do próprio quadro que se diria aqui contê-lo? O fundo levanta-nos, portanto, a questão da reversão e da reversibilidade... Do «quadro» em sujeito, por exemplo, no que nele há de subjectus. Do fundo da representação em superfície (o fundo não será, também, uma superfície pintada, que é a do próprio quadro?), do significado no significante, da transparência transitiva em opacidade reflexiva, do quadro no sujeito que o contempla, enfim. Numa palavra, o fundo levanta-nos aqui a questão do informe em instância de figurabilidade (do inconsciente da forma/da palavra, do anterior e posterior ao sistema de conversão que o sujeito é, e à lei que o gere)...
7. No quadro de P. de Chamaigne, a caveira olha-nos de frente, ladeada pelo recipiente de cristal que contém a tulipa e pelo relógio de areia. Nessa sua interpelação reconhecemos uma das modalidades do retrato. O quadro-sujeito «olha-nos». Nessa sua condição, o que dele vemos é precisamente a caveira. Ela supõe ali uma sinédoque do quadramento, da delimitação do quadro, a par do envasamento da tulipa. E a posição de simetria em que, nele, a caveira nos olha, em relação ao nosso olhar, inscreve aí uma afirmação, a partir da relação entre o espelho e o plano de representação. Essa caveira não seríamos também nós, objectos de uma ordem do discurso, na nossa condição de sujeitos? Nesse sentido, o quadro de P. de Champaigne re-inscreve a cena da auto-contemplação de Narciso, para nos sugerir o que há de vão, na nossa Vanitas. E o nosso fundo, o fundo-suporte do «quadro» que em nós há, enquanto sujeitos, é-nos tão obscuramente inconsciente ou insondável quanto aquele fundo negro que vemos no quadro. Diz Omar Calabrese, acerca do retrato de frente:
«Não é um mero acaso se são os retratos de frente que, na Idade Média, sem a menor preocupação com a semelhança, estabelecem a garantia do poder e da lei. [...] O retrato de frente é o do homem reinante, quer ele seja laico, quer ele seja religioso. [...] O retrato de frente implica a simultaneidade entre a pose e o espectador. Há uma personagem que nos olha: nós podemos identificar o facto de que ele nos olha unicamente enquanto o olhamos; nós reproduzimos, fazendo isso, a situação da troca verbal [de l'échange verbal]. [...] Examinemos mais de perto a significação da representação frontal. A noção de «frontalidade» implica a co-existência do observador (que está fora do quadro) e do observado (que está no seu interior). Temos, em resumo, alguém que encara [fait face] alguém que é, ele mesmo, «afrontado», duas figuras solicitadas pela mesma pose. [...] O retrato frontal [...] generaliza em relação ao indivíduo que o contempla.» (CALABRESE, Omar, L'Art de l'autoportrait, trad. de Odile Ménégaux e Reto Morgenthaler, Paris, Citadelles & Mazenod, 2006, pp. 129-133)
8. No caso do quadro de Champaigne, esse «nós» é, pois, uma generalização. O que ele interpela é um «eu» naquilo que nele participa de um «nós». Revemo-nos ali, na nossa morte, na nossa finitude. E ela olha-nos, na posição do que nos garante a nossa Lei, a da nossa conformidade. A caveira é, nesse sentido, o signo de uma desfiguração do particular. Ela assinala também o que, em nós, espectadores-enunciadores há de indiferente e como tal permanece. É um signo do nosso limite. Nisso, o «fundo-suporte», tal como o fundo no quadro entra pelas figuras adentro, no quadro de Champaigne. Nós somos produzidos por um envasamento (o da tulipa), um quadramento, enquanto sujeitos. Isso é-nos mostrado pela mesa de pedra em que o jarro, a caveira e o relógio de areia se expõem. A mesa é, também, um operador de delimitação, de ostensão ou visibilidade-legibilidade: uma espécie de réplica interna do quadro, sob a form de palco. E somos assim produzidos, na nossa vã tentativa de transcender a nossa finitude, a nossa temporalidade, como sugere aquele relógio de areia. A troca verbal é, aqui, o espaço de uma espécie de interpelação-admoestação. Que nos diz a nossa morte (o nosso inconsciente, o do tempo), do fundo de nós mesmos, que é também, o fundo do quadro? Que ela nos é inescapável. Tanto mais inescapável quanto mais procuremos escapar-lhe. Que somos nós, nesse fundo do quadro/no quadro, que nós não conseguimos atravessar?
9. É claro, poderão sempre objectar-nos: essa leitura não pode corresponder à intenção de Champaigne, quando pintou o quadro, no século XVII. Bem, a nossa resposta poderia ser exactamente a que Didier-Huberman daria, lendo Walter Benjamin: que a história (como também diz Daniel Arasse, em «La femme dans le coffre») se deveria preocupar mais com o futuro. Pois o gesto pictórico da «unção», protagonizado por Fra Angelico no painel que se situa por baixo de Nossa Senhora das Sombras, a que Didier-Huberman faz referência, em Devant le temps, antecipa anacronicamente o de Jackson Pollock. E que a história deveria, também, ter em conta aquilo que, em determinada época a excede, para vir a produzir o contexto a partir do qual passa a poder ser lido. E é nesse sentido que a imagem exclusivamente tomada como reflexo de um contexto histórico determinado e definitivamente fixado se revela inútil. Ali, no quadro, ele (ou a recordação de cobertura) é um objecto que nos olha fixamente, com as suas órbitas vazias.
«Em resumo, o modelo dialéctico - no sentido não hegeliano que lhe dá Benjamin - deve fazer-nos renunciar a toda a história orientada: não há uma «linha de progresso», mas sequências omnidireccionais, rizomas de bifurcações onde, para cada objecto do passado, entra em colisão o que Benjamin nomeia a sua «história anterior» e a sua «história ulterior». [...] A «revolução coperniciana» da história teria consistido, em Benjamin, em passar de um ponto de vista do passado como facto objectivo para aquele do passado como facto de memória, quer dizer, como facto de movimento, facto psíquico tanto quanto material. [...] O inconsciente do tempo vem até nós nos seus vestígios [dans ses traces] e no seu trabalho». (DIDIER-HUBERMAN, Georges, Devant le temps: histoire de l'art et anachronisme des images, Paris, Minuit, 2000, pp. 102-104)
II - Retomemos a reflexão de Louis Marin. Ditas as coisas de outro modo, eis, na nossa relação com a Vanitas de Champaigne, a questão da significância... Para falar do significado de alguma coisa, tenho de me servir de significantes. O significado não chega nunca até mim a não ser como significante. Tal como o fundo não chega até mim a não ser como superfície. Se o fundo é ainda nominalizável como «o nada» da sua representação, essa expressão reenvia-nos, por seu turno, para a questão da impossibilidade de representar a ausência de representação, a impossibilidade de representar o irrepresentável. Se «o fundo negro» é o significante visual de «o nada», de que é que a expressão «o nada» é o significante? Como é que se representa ou nomeia aquilo que escapa a toda a representação, por definição, isto é, que lhe escapa por representação? E como é que se pode, então, nominalizá-lo, sem o fazer recuar em relação ao seu «si próprio», e portanto, em relação a toda a nomeação ou representação?
1. Primeira precisão necessária: tal como o «quadro», enquanto corte operador de ostensão (ou de apresentação da representação) em pintura, também o fundo é aí sem espessura que permita defini-lo de outro modo a não ser, a par do quadro, como condição de possibilidade da visibilidade-legibilidade da representação. E se o «quadro» supõe um corte delimitador enquanto condição de possibilidade da apresentação da representação, não apenas o «fundo», mas também o plano de representação, respectivamente atrás e à frente do palco (do peitoril ou da mesa, neste quadro) compõem, com ele, aquilo a que Marin chama o cubo cenográfico. O problema de fundo - aqui o problema do fundo - é portanto, o problema do limite da nomeação e da nomeação do limite. Ele põe-se, com muita acuidade, na sua crítica ao modelo iconológico de Panofsky. Antes de o abordarmos, lembremos aqui, no entanto, a observação de Daniel Arasse. Ele recorda-nos, em On y voit rien, de um pormenor que não é, sem dúvida, negligenciável, na obra de Panofsky. Vem a propósito de A Vénus de Urbino:
«Mas, em todo o caso, esta zona negra não é um cortinado como queria Panofsky que via no seu recorte vertical um «bord de rideau»; e nem a linha acastanhada é «o bordo do pavimento». Aparentemente, Panofsky o velho tinha-se esquecido do que tinha escrito Panofsky o jovem. Lembrais-vos do seu texto de 1932 sobre os problemas da descrição, quando ele diz que uma descrição «puramente formal» não deveria empregar palavras como «pedra», «homem» ou «rochedo»? [...] Ele diz que uma descrição «puramente formal» deveria não ver a não ser elementos de composição «totalmente desnudados de sentido» ou possuindo «uma pluralidade de sentidos» no plano espacial. Lembrais-vos? Para Panofsky, em 1932, dizer que tal corpo está situado «diante» de um céu nocturno (ele fala do Cristo ressucitado por Grünewald [veja-se a figura de cima, à direita]
), é - eu cito-o - «reportar alguma coisa que representa a alguma coisa que é representada, um dado formal,
plurívoco do ponto de vista espacial, a um conteúdo conceptual que é, ele, sem equívoco possível, tridimensional»...» (ARASSE, Daniel,
On y voit rien: descriptions, Paris, Denoël, 2000, p. 140).
2. A questão é, portanto, também a que Louis Marin levantará, a propósito do modelo de Panofsky, logo a seguir à sua digressão sobre o quadro de Champaigne. Ela vem a propósito do fundo, num sentido que se prende com a questão da nomeação e do sentido. Panofsky, nos seus Estudos de Iconologia, distingue três níveis: o da «descrição pré-iconográfica», o da «análise iconográfica» e o da «interpretação iconográfica». Ora, Louis Marin, à semelhança de muitos outros autores (cf. a extraordinária análise de MICHELL, W. J. T., «The Pictorial Turn», Picture theory, Chicago UP, 1994) faz notar que ele desliza para uma identificação automática do «puramente formal».
Ouçamos Panofsky: «Quando identifico automaticamente esta configuração com um objecto... já passei os limites da pura percepção. [...] No caso de uma descrição pré-iconográfica, que se mantém nos limites do mundo dos motivos, o assunto parece bastante simples. Os objectos e acções cuja representação por linhas, cores, e volumes constitui o mundo dos motivos, podem ser identificados, como vimos, baseando-nos na nossa experiência. [...] A nossa experiência é indispensável e suficiente como material para uma descrição pré-iconográfica, mas não garante a sua exactidão» (PANOFSKY, Erwin, Estudos de Iconologia, 2ª ed., trad. de Olinda Braga de Sousa, Lisboa, Estampa, 1995, p. 19; 23). Ora, uma das objecções de Louis Marin é a seguinte:
«Todavia, quaisquer que sejam as precauções metodológicas e teóricas de Panofsky, não é menos verdade que uma descrição, aquela que ele chama puramente descritiva ou puramente formal, se encontra afastada da fenomenologia da obra pintada: «uma descrição verdadeiramente puramente formal deveria interdizer-se de empregar nomes como «pedra», «homem», «rochedo»», muito simplesmente porque o dispositivo mimético funciona demasiado perfeitamente na transparência transitiva para que as palavras, nomes substantivos e nomes predicativos não se imponham imediatamente, com risco de uma queda no insensato se ele delas se livrasse. É então que literalmente a obra assim dita não mais quereria dizer nada. Notar-se-á perfeitamente, no modelo de Panofsky, esse processo de ocultação da carne opaca da pintura, dos seus traços e das suas manchas, [...]» (MARIN, Louis, op.cit., p. 257). E é precisamente aí, na carne opaca da pintura, que irrompe a relação espectral pressuposta pela figurabilidade.
3. O que levaria Louis Marin a sublinhar a necessidade de um nível infra-pré-iconográfico, na descrição da pintura. Não seria precisamente isso que encontramos em Barthes, a propósito do terceiro sentido ou do sentido obtuso? Pensaremos nesta possibilidade mais adiante. Para já, ficamos com esta noção: não existe imaculada percepção, como precisamente Panofsky chega a dizer. E portanto não existe também nenhuma espécie de «identificação automática» ao nível pré-iconográfico, ao contrário do que ele pensa e pratica, assim como julga inevitável.
Parêntesis destacável:
[Não são, apenas - aqui vão então alguns exemplos, de entre muitos outros possíveis, da questionação do fundo - a) os casos da crítica nietzscheana (com as noções, por exemplo, de «Vontade de Poder» e de uma «Genealogia da Moral» que designa, simultaneamente, «o valor da origem» e a «origem do valor», na versão quiasmática da leitura de DELEUZE, Gilles, Nietzsche et la philosophie, Paris, PUF, 1962) ou b) do pensamento heideggereano (acerca das noções de «ser» e de «tempo», pensadas ambas numa «diferença ôntico-ontológica» - em HEIDEGGER, Martin, «La parole d'Anaximandre», Chemins qui mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1962; ou em HEIDEGGER, Martin, «Le fond et la double ratio»; «L'être, le fond et le jeu», Le principe de la raison, Paris, Gallimard, 1962, para nos limiramos a estes - que, no entanto, DERRIDA, Jacques, «La Différance», Marges de la philosophie, Paris, Minuit, 1972, pensa ainda como «interior à metafísica»: veja-se PEREIRA, José Paulo, Uma Cartografia Transtornada: A Guernica de Carlos de Oliveira, Braga, Angelus Novus, 1999)... E também c) a desconstrução derridiana (na noção de suplemento de origem, de traço, sulco ou vestígio, de dupla inscrição, etc. noções indissociáveis das de différance e dissémination, tranversais a toda a sua reflexão e hoje consagradas, respectivamente, como «(não-)conceitos» cruciais na frente «pós-colonial», por exemplo em HALL, Stuart, «Quando foi o Pós-colonial? Pensando no Limite», Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais, trad. de Sayonara Amaral et alii, Belo Horizonte, UFMG, 2006, e em BHABHA, Homi K., «DissemiNation», Nation and Narration: time, narrative, and margins of the modern nation, New York, Routledge, 1990); assim como no conceito de uma irredutível espectralidade, anterior e interior a todo o «fenómeno»: confronte-se o seu Spectres de Marx: L'état de la dette, le travail du deuil et la nouvelle internationale, Paris, Galilée, 1993, bem como DERRIDA, Jacques, «Tenho o Gosto de Segredo» in DERRIDA, Jacques; FERRARIS, Maurizio, O Gosto do Segredo, trad. de Miguel Serras Pereira, [s.l.], 2006, bem ainda como DERRIDA, Jacques, Marx & Sons, todos eles abordados em PEREIRA, José Paulo, O Exercício d Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007, que o lê nas suas implicações político-ontológicas, em articulação com Donner la mort, a propósito da excepção e do sentido político da literatura e da arte). Ou ainda: d) a leitura lyotardiana da contemporaneidade (não apenas com a muito celebrada e um tanto inútil designação do «pós-moderno», cuja voga poupa aqui a necessidade da compulsão de exemplos, mas sobretudo com a noção de diferendo, em Le différend, Paris, Minuit, 1983; cf. a propósito desta noção, a crítica que lhe faz Derrida, em «Lyotard et nous», em Jean-François Lyotard: l'exercice du différend, Paris, PUF, 2001), ou e) o pensamento freudiano (com a noção de perlaboração e de análise interminável; veja-se o que sobre ele diz, por exemplo, Jean-François Lyotard, em «Réécrire la modernité», L'inhuman: causeries sur le temps, Paris, Galilée, 1988), ou f) o pensamento lacaniano, com a noção de Real: veja-se a este propósito a influência desta noção na teoria e na crítica de arte, com FOSTER, Hal, The Return of the Real: the avant-garde at the end of the century, Cambridge/Mas-sachussetts/London, MIT, 1996:
«For his part, in the early 1950s, after years of therapeutic adaptations of psychonanalysis, Lacan performs a linguistic reading of Freud. [...] Now amid all the repetitions in postwar art, are there any returns in this radical sense? None appear as historically focused and theoretically rigorous as the returns of Althusser and Lacan. (FOSTER, Hal, op. cit., p. 3) [...] This shift of conception - from reality as an effect of representation to the real as a thing of trauma - may be definitive in contemporary art, let alone the contemporary theory, fiction and film. For with this shift in conception has come a shift in practice, which I want to graph here, again in relation to the Lacanian diagram of visuality, as a shift in focus from the image screen to the object-gaze.» (FOSTER, Hal, op. cit., 146)
Ou ainda: e) o da constatação levy-straussiana de uma mitopoética inerente à análise dos mitos (a propósito do «bricolage» e do reconhecimento da natureza «mitomorfa» das suas mitológicas, da descoberta do «escândalo» representado pelo tabu do incesto, como coisa simultaneamente natural e cultural - intratável do ponto de vista das relações binárias, pressupostas pelo sistema de oposições que enforma a episteme ocidental: cf. DERRIDA, Jacques, «A Estrutura, o signo e o jogo, no discurso das ciências humanas», in COELHO, Eduardo Prado (org.), Estruturalismo: antologia de textos teóricos, trad. de António Ramos Rosa, Eduarda Reis Colares e Eduardo Prado Coelho, Lisboa, Portugália, [s.d.]), a reenviar-nos, também ela, para a questão do fundo e do fundamento. Ou ainda f), os de um pensamento do exterior, em Blanchot e em Michel Foucault (neste último a atravessar, por exemplo, a sua concepção de uma microfísica do poder - móvel e dinâmico, instável e repartido - ou uma muito inspirada referência nietzscheana e heideggereana da sua «vontade de saber» que intitula o primeiro volume da sua História da Sexualidade; ou mesmo a de uma «ordem do discurso», que supõe a impossibilidade de desvincular o saber do poder, bem como, em L'Hermeneutique du sujet: cours au collège de France: 1981-1982, a noção de uma ethopoética que, de inspiração estoica, ressurge no seu projecto de um outro pensamento da subjectividade, em «Qu'est-ce que les Lumières?», in MARTY, Éric (org.), Dits et écrits - IV: 1954-1988 par Michel Foucault, Paris, Gallimard, 1994, pp. 562-578, onde relê criticamente o Was ist Aufklärung? de Kant, frisando que se trata, não de conceber os limites do sujeito, mas precisamente a sua abertura); ou ainda h) em Walter Benjamin (sob a noção de imagem dialéctica, enquanto regime da figuratividade de uma História a conceber de um ponto de vista materialista) de que falámos aqui, muito sumária e brevemente (ver Fragmentos de leitura 2: Walter Benjamin e a teoria do «choque», aqui o blogue). E poderíamos continuar a lista: Bataille, Barthes... de tal forma essa questão do fundo é aquela em que se funda e afunda, afunda e difunde o pensamento contemporâneo, a propósito do que poderíamos talvez designar a sua denúncia da função defunta do fundo...]