sábado, 30 de janeiro de 2010

Avulsos 9: o segundo sentido (Barthes; Lacoue-Labarthe)




















Se olho para uma imagem como aquela que aqui aparece reproduzida, ao nível puramente «comunicativo» - lembremo-nos das reservas de Roland Barthes, quanto a este nível absolutamente «literal» do sentido e, no fim de contas, puramente utópico, visto que a simples nomeação é já uma forma de «conotação» pela linguagem - poder-se-ia descrevê-la assim: eis uma mulher e uma cidade ao fundo. Um corpo leve e elegante, juvenil e flexível, ágil e vigoroso... Vemo-lo de costas, e de uma posição em contra-picado que nos coloca a um nível bastante inferior, quase ao rés-do-chão do recinto sobre o qual ele salta. Salta a partir da nossa linha do horizonte e o recinto é então, para além de um espaço de recreio, uma espécie de podium que a consagra, o pedestal de um monumento ou de uma estátua que subitamente se movesse, o trampolim que a impelisse, no seu movimento de elevação, como uma emanação da cidade.

É a posição relativa do nosso olhar que dá relevo ao seu movimento e ao seu gesto. É um corpo que se abraça, que se recolhe e protege a si mesmo, numa espécie de gesto de auto-contenção feminil, a avaliar pela posição dos braços, cruzados sobre o peito que não vemos. Ao fundo está a cidade (poderíamos, de resto, imaginar que é a própria cidade que assim se chama: Yokohama), com os seus prédios altos e a roda gigante de um parque de diversões aparentemente deserto. Entre ela e a cidade há uma vedação tubular relativamente baixa. Uma fronteira ténue, portanto, a separar o espaço em que esta figura salta. Dir-se-ia que, operando uma partição visível dos espaços, ela dissocia a figura da cidade ao fundo, e coloca ao mesmo tempo o espectador no seu espaço.

Portanto, se ela se dissocia é, ao mesmo tempo, também na medida em que arrasta consigo e faz entrar, na foto, um espaço situado para cá do olhar da câmara, trazendo com ele um ser que lhe é exterior e que se torna, assim, na figura espectral e inaparente de um intruso, de cuja presença não sabemos senão que deve então condicionar os gestos dessa figura, que parece aqui não o poder ver: o seu «receptor» (palavra verdadeiramente detestável, porque afecta uma neutralidade de posição, uma transparência de sentido e uma passividade que ele «objectivamente» não tem), o seu espectador.

Por outro lado, na posição em que a vemos, mesmo sendo pequeno o salto, ela estaria já acima ou por sobre a vedação. Aberta à possibilidade de uma relação metafórica de identificação, pelo facto de estar nesse espaço em que o espectador se situa, ela funciona, no entanto, ainda em relação a ele, como que dissociada por uma espécie de metonímia, estabelecida pela posição de costas e pelo gesto do seu corpo: ela está de costas para o espectador e este mantém-se-lhe, portanto, alheio, invisível, oculto; ela está, além disso, aparentemente ocupada consigo mesma.

Vemo-la precisamente na posição do voyeur, que é a de um espaço recolhido e dissociado (na verdade, trata-se de um espaço em certo sentido vedado): o espaço que lhe dá mais garantias de privacidade e de invisibilidade, imune a qualquer repentina irrupção, interferência ou interpelação: o espaço de um eterno «por descobrir» que é aquele a partir do qual se projecta a sua fantasia. De tal modo que, a certa altura nos damos conta de que alguma reversão entre as figuras daquele (inaparente) que olha e daquele (aparente) que é olhado em parte se interseccionam. Porque da semi-obscuridade dessa sua discreção, inerente à sua posição, se não pode dissociar o processo de fetichização em que está fatalmente envolvido.

Ora, um pouco como num quadro de Magritte, em que no centro se vê um sujeito de costas para nós, que nos repete dentro do espaço imaginário da tela, esta figura feminina funciona, ao mesmo tempo, sob dois tipos de relação distintos, o metafórico e o metonímico: ela condensa, por um lado, sob a forma ideal da mulher, as figuras de todas as mulheres que a contemplem na nossa posição. Abrir-se-á, nisso, à possibilidade e à marca da sua relação voyeurística? O corpo feminino não se ignora enquanto lugar olhado do outro. E a sua relação com o corpo que ali aparentemente se liberta dessa sua posição de objecto, mantém, pelo menos, na sua relação consigo, a presença desse outro de quem se dissociada. Nisso, decerto, nada o diferencia do corpo masculino, embora, provavelmente - questão que aqui não poremos - em regimes de olhar diferentes.

Pois quem olha a imagem estaria, uma vez nela inserido, nela de costas para quem a ela olha. Ao mesmo tempo, no entanto, estando ela de costas para quem a vê (e para «si própria», portanto) desloca-se e dissocia-se - diferencia-se: é uma outra, de entre essas mulheres a cujo olhar o seu corpo inadvertidamente se oferece - um outro exemplo, um qualquer de entre os vários ali invisíveis, no espaço da cidade, e já não o modelo, de entre todas elas. Ora, esse duplo funcionamento, propriamente imaginário, interessa-nos aqui de sobremaneira. Porque a relação imaginária, que tanto constrói como destrói, segundo Philippe Lacoue-Labarthe, ela induz, projectiva e fantasticamente, o espectador à experiência de um espaço que nos seria então necessário observar melhor, nos jogos dos seus isomorfismos, na dinâmica das suas cumplicidades.

Por exemplo, na nossa figura feminina da foto, a orientação da sua impulsão tem sensivelmente a mesma inclinação dos prédios e a roda do seu vestido replica, igualmente, a roda gigante ao fundo, fazendo apenas variar o eixo que define o sentido da amplitude da sua disposição. O próprio salto, a inclinação da respectiva impulsão, em conjugação com as posições dos pés, um deles recolhido como que a preparar o impulso seguinte, no instantâneo que ele permite captar, comunica aqui o movimento que, sendo aquele que é próprio da roda do vestido, há-de ser também o da roda gigante ao fundo. Dois movimentos de circulação, um deles no sentido alto-baixo, que nos remete ao sentido de uma certa recursividade, e instala assim uma... maliciosa redundância com o slogan: «Feel it».

O salto parece-nos ganhar então um outro sentido. Porque passa a haver nele a possibilidade da inscrição do sentido suplementar de uma espécie de compulsão e de repetição. De «compulsão à repetição», para usar uma fórmula freudiana muito popular e consagrada mas, ao mesmo tempo, algo pleonástica, desde o momento que o que caracteriza a pulsão é precisamente a sua insistência, a sua compulsão de confronto, a compulsiva repetição do seu afrontamento das forças que ideológica, moral e socialmente a inibem ou tendem a considerá-la perigosa, para a economia relacional da sobrevivência. E assim se sublinharia ali a dimensão pulsional desse movimento. De repente, é como se aquele belo corpo ele mesmo transpusesse os limites do orgânico e se volvesse em máquina, peça da vasta e complexa engrenagem da cidade, no seu movimento imaginariamente recursivo, sugerido na imagem sobre ou na qual esse imperativo - «feel it» - aparece inscrito.

Um imperativo que agora se desprenderia dela, um pouco como aqueles signos dessa enigmática escrita ideográfica que ali lhe prolonga o vestido e ressoaria por todo o espaço da cidade. Ora, uma leitura destas parece-nos poder levantar o problema seguinte: suponhamos um inconsciente do sentido, em que este conjunto de nexos se inscreveria - agirá ele na recepção «feminina» deste anúncio? Se isso se verifica é, para ela, diriam alguns, apenas no plano de um inconsciente que, precisamente por isso, é afastado de qualquer possibilidade efectiva de funcionamento, na sua decisão de compra...

Pois a leitura feminina - eis «um argumento»: haveria outros... - deste anúncio associa a figura desse corpo à expressão da «leveza», da «liberdade», da experiência apercepção do seu próprio corpo, um corpo finalmente livre e disponível para si próprio, numa sociedade que o explora. Ela coloca a figura, que nele aparece no espaço dividido e isolado pela vedação, como dissociada e afastada, em relação ao espaço falicizado da cidade... Mas haveria sempre, nesta discussão e neste jogo de alternâncias, a necessidade de ter em conta, em «comunicação», um simbólico em que se definisse um código relativamente dominante (embora não necessariamente exclusivo, apesar de hierarquizado, o que também não significa absolutamente rígido, ou completamente destituído de jogo...).

E «um» sentido uno e relativamente nu, relativamente estável, por detrás da organização da imagem (ou daquilo a que Barthes chamava «a trucagem», «a pose», «os objectos», a «fotogenia», a «sintaxe», na produção das suas conotações), cujas condições e relações de produção seria também preciso analisar... E o discurso publicitário deve, uma vez que guiado por uma certa reserva disponível de conceitos ou estereótipos, cuja actualidade deve ser sensível nos media, ser refractário a qualquer espécie de «diferença» rebelde à presença plena, que não esteja já, portanto, relativamente consagrada...

Ora, quer-me parecer que neste caso, a imagem se presta a uma dupla leitura, «masculina» e «feminina», em que a identificação, ora se não faz, ora se faz, em que a relação, ora é de metonímia, ora de metáfora, e em que o prazer é de espécies muito diferentes segundo cada um desses regimes de leitura (entre a fruição do mais puro gozo e o prazer delicado da mais sofisticada arte de viver)... A relativa dominância de uma delas marcar-se-ia no diferente modo de funcionalização de alguns dos seus elementos, como investidos de um determinado valor semântico: um deles seria, por exemplo, a vedação... Note-se que o regime do «ora... ora...» ou o do «ou... ou...» é o da alternância. Ele mantém intacto o funcionamento do signo; não é, portanto, o do «terceiro sentido», ou «sentido obtuso» como Roland Barthes lhe chama. Sobre este último, veja-se, aqui no blogue, Recapitulações - o quadro IV: o sentido obtuso.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Recapitulações XX: o «jogo» e o «descentramento» 2

Um segundo aspecto que merece destaque, no texto de Derrida, no seguimento do que se disse no post (Recapitulações XX: o «jogo» e o «descentramento» 1) anterior teria que ver, já não apenas com a história (e com a alternativa contida na oposição entre presença e ausência), mas também com o sujeito humano (e com a alternativa humano / não-humano (inumano)) e com a oposição entre cultura e natureza. Muitas destas oposições - presença / ausência; semelhante / diferente; o mesmo / o outro... - se analisadas em série ou postas a par umas das outras, acabam por revelar-se manifestamente contraditórias enquanto tal, uma vez que os termos que as expressam se usam também, frequentemente, de modo figurado ou extensivo, e sem que disso nos apercebamos imediatamente, para se referirem a aspectos situados no pólo oposto da «alternativa» que a oposição inscreve.



Assim, muito do que temos por «natural», na linguagem corrente é, em primeiro lugar, «cultural», embora encarado numa espécie presença perene, plena e constante, isto é, na ordem do que seria, ou permaneceria, como que exterior à mudança ou à temporalidade. O estereotipo e o mito são, por exemplo, formas de pensamento que supõem relações tidas por «naturais». Assim, dizia Roland Barthes, a respeito de «O Mito, hoje»:

O mito não nega as coisas, a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, ele purifica-as, torna-as inocentes, funda-as enquanto natureza e eternidade,
dá-lhes uma clareza que não é a da explicação, mas a da constatação: se eu constatar a imperialidade francesa sem a explicar, pouco basta para que eu a ache natural, óbvia; eis-me tranquilizado. Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: provoca a abolição da complexidade dos actos humanos, dá-lhes a simplicidade das essências, suprime toda a dialéctica, toda a elevação para além do imediatamente visível, organiza um mundo sem contradições porque sem profundidade, um mundo exibido na sua evidência, funda uma claridade feliz: as coisas têm a aparência de significar por si sós. (BARTHES, Roland, «O mito, hoje», Mitologias,
trad. de José Augusto Seabra, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 210)

Apenas nessa sua condição de naturalização, de «fixidez», como diria Homi Bhabha, poderiam funcionar como tal. Essa sua «naturalidade» é, portanto, uma forma de neles reduzir qualquer sentido de historicidade, como lembra Roland Barthes. Um pouco como aconteceria com o «habitual», que também dizemos, muitas vezes, por ser sentido como já aceite, «natural». Ora, esse sentido da redução da historicidade é importante, para a compreensão do seu funcionamento de oposições que estruturam o nosso pensamento. Quando se diz que elas estruturam o nosso pensamento, o que se quer significar é que elas são inerentes a uma subjectividade inscrita não apenas na cultura mas na própria linguagem.

Eis um exemplo: durante muitos séculos se pensou (ontológica e teologicamente) a humanidade como
excepcional. A espécie humana como situada acima das restantes espécies, dada a sua singularidade. Ora uma das questões que atravessa o pensamento contemporâneo tem que ver, precisamente, na ressaca da hecatombe demográfica das duas grandes guerras mundiais no século passado, com a questionação dessa fronteira, entre o homem e o animal. Eis um exemplo: no seminário La bête et le souverain, observa Jacques Derrida, acerca das implicações éticas dessa espécie de exclusão, e sobre certas das posições assumidas por Jacques Lacan:

L'immense risque demeure de ce qui reste néanmoins un fraternalisme du «semblable». Ce risque est double (et il vaudrait aussi pour le discours de Lévinas, soit dit en passant): d'une part, ce fraternalisme nous libère de toute obligation éthique, de toute devoir de ne pas être criminel et cruel, justement, à l'égard de tout vivant qui n'est pas mon semblable ou n'est reconnu comme mon semblable, parce qu'il est autre ou autre que l'homme. Dans cette logique, on est jamais cruel envers ce qu'on appelle un animal, ou un vivant non humain. Et quant à préciser, d'autre part, comme le fait Lacan: «C'est un semblable qu'elle [cette cruauté] vise, même dans un être d'une autre espèce», cela n'arrange et ne change rien. [...] C'est toujours l'homme, mon semblable, le même que moi, moi-même en somme, que je fais souffrir, tue, de façon coupable, criminelle, cruelle, incriminable. (DERRIDA, Jaques, La bête et le souverain I (2001-2002), Paris, Galilée, 2008, p. 154).

Assim, partir do fraternalismo mais ou menos inconsciente de uma ética do «semelhante» é, ao mesmo tempo, abrir campo à violência sobre o «outro». E partir do princípio de que o que se visa, na crueldade para com os animais, ou para com os viventes não humanos, é ainda, afinal, o humano, do qual essa violência se assim desviaria, é também sancionar o princípio inverso, o da projecção, sobre os «outros» homens (não semelhantes em algum aspecto), de uma animalidade que justifique, sobre eles, o exercício de uma violência que, apesar de ou porque desviada sobre os animais se consente ou autoriza.

Assim, se a violência sobre os animais o deixasse de ser porque se pensam os animais como seres moldados por alguma espécie de automatismo inato, logo que sobre o outro caísse o anátema de uma «animalidade» que representaria a marca da sua diferença, se encontraria justificada essa mesma violência. Aquelas relações de oposição em que entram, pelo facto de serem estruturadas por diferenças que nelas fazem (onto(teo)logicamente) a economia da sua historicidade, são também lugares de uma «moral» que é preciso interrogar. A oposição homem / animal, tal como a oposição organismo / máquina, associam-se, assim, à oposição cultura / natureza, tal como se compreenderia que gravitassem, em seu redor, oposições como semelhante / outro, irmão / estranho, nacional / estrangeiro, etc...

Essas oposições são herdadas através da língua, do senso comum ou mesmo da tradição do pensamento e permanecem no campo de uma construção ideológica em que se sedimentam os vestígios, os elementos de uma herança. Quer dizer: ao mesmo tempo que estruturam as exclusões do
jogo do mundo e da relação de suplementaridade, a exclusões da historicidade em relação ao próprio, elas são inerentes à regulação do «humano» e à sua afirmação por eliminação da alteridade. O homem é um não animal, a cultura é aquilo que escapa à natureza (ao que acreditamos ser inato, pré-programado, independente da vontade, etc.), o irmão não se confunde com um homem qualquer (mesmo que este seja da ordem do semelhante), a diferença entre raças constitui um abismo, etc, etc. A humanidade do homem estaria assim comprometida, já de início, com certos modos «ideológicos» de articulação da «diferença» nos quais os seus respectivos termos, como se observou anteriormente, não têm o mesmo valor, nem o mesmo estatuto.

E isto mesmo que, a certa altura, nos indaguemos acerca da necessidade e/ou da possibilidade de considerar então, postas as coisas nestes termos, alguma coisa de máquina no organismo animal e humano, alguma coisa de estranho (ou até de estrangeiro) no semelhante nacional (visto que, para começar, não nos conhecemos todos, nem trazemos escrita na face a nossa nacionalidade, e constituímos, como diz Benedict Anderson, uma «comunidade imaginada»), alguma coisa de maquínico no homem orgânico (ou cujo organismo pressupõe também actividades que são involuntárias ou reflexas), alguma coisa de semelhante no outro, alguma coisa de «natural» na cultura, como se viu já, e por aí a diante. No início de «A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas», o primeiro movimento aborda, através da leitura de Lévi-Strauss, a oposição cultura / natureza a propósito da questão da «proibição do incesto»:


sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Recapitulações XX: o «Jogo» e o «descentramento» 1












Jacques Derrida

I - 1. A expressão «um pensamento do jogo», que também poderíamos ter escolhido para título, é do filósofo francês Jacques Derrida. Esse «jogo» envolve o «descentramento» que aqui aparece no título. E é a ideia desse «jogo» e desse «descentramento» que aqui tentamos seguir em alguns dos seus momentos. Fá-lo-emos em vários posts, porque nos parece que valeria a pena dar dela, mais que um exemplo, o seu modo de funcionamento. Ela surge, por exemplo, tratada em A Estrutura, o Signo e o Jogo no Discurso das Ciências Humanas. É um dos textos de Derrida que nos parece poder assinalar a passagem do estruturalismo ao pós-estruturalismo, a par de vários outros, que não seriam só do mesmo autor.

Tudo se poderia aqui desdobrar, no texto de Derrida, a partir do levantamento da questão da originalidade e da diferença das estruturas ou dos sistemas. Poderíamos, de resto, entrar nos mesmos temas nucleares do texto - aqui o «jogo» e o «descentramento» - de diferentes modos e a partir de diversos ângulos. Escolhemos aqui o da interrogação da relação entre a «estrutura» e a sua «estruturalidade». A expressão «estruturalidade da estrutura» diz respeito ao ser da estrutura, ou à estrutura no seu ser. Mas ele marca, também, a dimensão temporal do seu advir, do seu devir ou da sua diferenciação: uma estrutura adviria uma outra, segundo um processo que nela não anularia o seu ser de estrutura. Este sentido parece-nos inerente à utilização do termo «estruturalidade» que Derrida ali faz. A relação entre
estrutura e estruturalidade supõe a colocação do problema da diferenciação e da autonomia das estruturas, não apenas no interior do discurso da etnologia sobre o mito - Derrida lê ali os textos de Lévi-Strauss - mas também em relação à própria ideia de história. Aqui «recapitularemos» apenas alguns dos momentos em que nos parece ser bem sensível o problema com que o estruturalismo se defronta, no tocante à história ou à historicidade das estruturas, à sua estruturalidade. Ali diz Derrida, a dada altura, sobre Lévi-Strauss:

«Mais concretamente, no trabalho de Lévi-Strauss, é preciso reconhecer que o respeito pela estruturalidade, pela originalidade interna da estrutura, obriga a neutralizar o tempo e a história. Por exemplo, o aparecimento de uma nova estrutura de um sistema original faz-se sempre - e é essa a condição mesma da sua especificidade estrutural - por uma ruptura com o seu passado, a sua origem, a sua causa. Só se pode, pois, descrever a propriedade da organização estrutural se não se tiver em conta, no próprio pensamento dessa descrição, as suas condições passadas, isto é, se se omitir o problema da passagem de uma estrutura a outra, pondo a história entre parêntesis (DERRIDA, Jacques, «A Estrutura, o Signo e o Jogo, no Discurso das Ciências Humanas», COELHO, Eduardo Prado (org.), Estruturalismo: antologia de textos teóricos, trad. de A. Ramos Rosa, Portugália, [s. d.], p. 120. )













Claude Lévi-Strauss

2. O problema da
autonomia dos sistemas e das estruturas é, portanto, posto em relevo, logo que se trata de as pensar a partir quer do seu interior, quer da sua especificidade, no tempo e no espaço. A diferenciação das estruturas obriga o estruturalismo a suspender ou a neutralizar o tempo e a história porque, para um pensamento clássico da estrutura, tê-la em conta significa lembrar que ela é necessariamente regulada por uma certa lei, centrada num determinado número de traços que a distinguem de outras. Assim, como é que se poderia pensar a passagem de uma estrutura a outra, - ideia de mudança inerente à história - se elas implicam, pelo seu próprio ser fechado e diferenciado, regulado e centrado, uma «autonomia» que, recortando-se contrastivamente (sob a forma da ruptura) sobre as restantes, «outras», lhes permaneceria ou deveria permanecer então precisamente heterónoma? Um dos problemas do estruturalismo é precisamente o de ser incapaz de pensar a diferença e a história ou, melhor dito ainda, a diferenciação e a historicidade, fora dos moldes da alternativa e da ruptura. O mesmo será dizer: é incapaz de os pensar - ponto final. É precisamente o que levará Derrida a sublinhar a relação de «tensão» entre a história e o jogo:

«Tensão do jogo com a história, tensão também do jogo com a presença. O jogo é a «disrupção» da presença. A presença de um elemento é sempre uma referência significante e substitutiva num sistema de diferenças e o movimento de uma cadeia. O jogo é sempre jogo de ausência e presença, mas se se quiser pensá-lo radicalmente é preciso pensá-lo antes da alternativa entre a presença e a ausência; é preciso pensar o ser como presença ou ausência a partir do jogo e não o contrário». (ibidem, p. 121).

3. «Tensão» supõe aqui presença e ausência de um na outra e vice-versa. Isto é: jogo da presença e da ausência tomados um no outro, nele e ao mesmo tempo sem ele. «No início era o jogo», que é, em si mesmo, a mais radical interrogação do início, a suspensão do início ou do ponto de origem, que não seria antecedido por mais nada. Porquê? Porque «jogo» implica aqui oscilação, movimento de vai-vem, irredutível a uma só orientação dinâmica, incircunscrevível a uma só regra. O jogo antes da alternativa entre a presença e a ausência é a suspensão ou a neutralização da «alternativa» e da «oposição» em que ela assenta.

Suspendê-la é, portanto, questionar o seu espaço, interrogar o limite que as separa e opõe, suspender a lógica euclidiana da sua geometria, ou da sua separação estanque.
É portanto «a partir do jogo» que se deve negar «a presença» ou «a ausência». De que «jogo» se trata aqui? Talvez possamos começar por encontrar logo no início de Verdade e Método - observadas todas as reservas que separam a desconstrução da hermenêutica - uma definição que nos sirva. Várias outras definições possíveis se lhe seguirão:

L'étude des emplois du mot jeu, avec une attention particulière portée aux significations dites figurées, révèle ceci: nous parlons du jeu de la lumière, du jeu des vagues, du jeu des parties d'une machine dans un roulement à billes, du jeu conjugué des membres, du jeu des forces, du jeu des moucherons, sans oublier le jeu de mots. Tous ces usages impliquent
l'idée de va-te-vient d'un mouvement qui n'est pas attaché à aucun but où il trouverait son terme. On trouve ainsi la signification primitive du mot jeu au sens de danse, qui survit encore dans de nombreuses tournures [...]. Le mouvement du jeu n'a aucun but auquel il se termine-rait, mais il se renouvelle dans une continuelle répétition. Le mouvement de va-et-vient est tellement central pour la définition essentiel du jeu, qu'il est indifférent de savoir quelle personne ou quelle chose l'exécute. Le mouvement du jeu est comme tel dépourvu de substract. (GADAMER, Hans-Geörg, Vérité et méthode, Paris, Seuil, 1976, p. 29).


Mas poderia também encontrá-lo neste trecho de Nietzsche, de um poema apenso à segunda edição de A Gaia Ciência:

A Goethe


O Imortal
É apenas alegoria tua!
Deus o capcioso
É impostura de poeta...

A roda do mundo, rolando,
toca alvo sobre alvo:
miséria - chama-lhe o ressentido;

o extravagante chama-lhe – jogo...

O jogo do mundo, o imperioso,
mistura ser e aparência: -
O eterno-extravagante
Mistura-
nos dentro dele!...




















René Magritte, La Condition humaine, 1933.

Ou ainda em Heidegger, que colocava já o problema que Jacques Derrida suscitará:

D'après ces régles dire: «Être et raison: le Même», c'est dire: «Être = Raison». Comment alors venir encore dire «L'être: le sans raison»? Mais c'est justement là qu'il nous faut penser, à savoir que «l'être «est» sans raison» pour autant que '«être et raison: le Même». Pour autant que l'être «est» fond qui fonde, et seulement pour autant, il n'a pas de fond. [...] Par un tel saut la pensée mesure toute la portée et la grandeur de ce Jeu où se joue nôtre condition d'hommes. C'est seulement pour autant que l'homme est engagé dans ce jeu, et par là mis en jeu, qu'il peut vraiment jouer et demeurer dans le Jeu [...]. (HEIDEGGER, Martin, «L'être, le fond et le jeu», Le principe de la raison, trad. de André Preau, Paris, Gallimard, 1992, p. 239-240).


II -
Exemplos de «descentramento». 1. Se o ser do Mesmo é «fundo que funda» então, e nessa mesma medida, ele é «sem fundo» - diz Heidegger. O que significa que se trata ali do mesmo tipo de problema de que, com Derrida se tratará: o centro está ao mesmo tempo dentro e fora do que é fundado ou regulado; o ser é simultaneamente interior e exterior ao seu próprio fundo ou fundamento. Mas voltemos ao texto de Jacques Derrida, que deixámos em cima. Porquê, então, pensar o jogo antes da presença e da ausência? Uma das respostas poderia ser esta: porque só a partir dele a negação se deslocará do seu anterior modo, que é o da «alternativa» entre valores opostos, deixando assim de significar exclusivamente o contrário, para passar a estender-se ao si mesmo. A «alternativa» é, portanto, apenas um dos modos do jogo no mundo.

A negação da presença não nos deve, portanto, induzir simplesmente à «ausência». Se assim fosse não sairíamos do círculo da «alternativa». Bem pelo contrário. Negar «a presença» supõe, em primeiro lugar, negar
a plenitude intuitiva de cada um dos termos da alternativa, a integridade do limite que os separa. Certamente, a presença assume modalidades complexas, marcadas pela sua radical historicidade. Além disso, ela supõe uma dimensão espectral que a desloca para fora de qualquer intuição plena e nos mostra que é impossível dissociá-la da ausência.

2. Uma forma simples de ilustrar este funcionamento do jogo - e também ilustrar este jogo do funcionamento, que deixa de ser unívoco e de se prestar à cisão plena entre elementos opostos - jogo que se inscreve na suspensão ou na rasura latente da «alternativa», entre presença e ausência, «alternativa» pela qual e dentro da qual o estruturalismo se deixara apanhar (a partir do interior da estrutura de cuja especificidade pretende dar conta sem, em simultâneo, o poder fazer no tempo), poderia reencontrar-se formulada em Homi Bhabha: se o estereotipo, tal como é empregue pelo discurso dominante, o discurso da doxa ou o discurso encrático, o da máquina repisadora do aparelho o discurso colonial (ou de qualquer aparelho ideológico de estado) numa palavra, se constitui como o signo de uma presença, a que poderá ficar ele a dever a sua necessidade de repetição? Por que razão é preciso repetir o que, por definição, já «se» sabe?

3. Pela simples razão de que aí, onde «a realidade» ou «a verdade», «a presença do presente», pareceriam falar por si mesmas, no «discurso pedagógico» (que aposta no que toma e dá por «em si mesmo evidente») - como lhe chamaria Homi Bhabha - essa compulsão à repetição desenha o espaço de uma lacuna, o lugar de um vazio, a inclinação de uma ausência, o pendor de uma oscilação: entre a presença, em relação à qual a repetição mais não faz do que instaurar uma ausência, pondo-a em jogo, e uma ausência que então se faz sentir, na razão mesma da necessidade da sua repetição. O que ele põe induz aí à disrupção da presença, à presença de uma ausência. Ou ainda, o que ele mostra é o que sempre está em causa, no jogo como «disrupção» da presença. Seria precisamente o caso do que o estereotipo assinalaria:

«Um traço importante do discurso colonial para a construção ideológica da alteridade é a sua dependência do conceito de «fixidez». A fixidez, enquanto signo da diferença cultural /histórica/racial no discurso do colonialismo [mas ele não se resume ao território da colónia «ultramarina», como é óbvio] constitui um modo paradoxal de representação: conota rigidez e uma ordem imutável, bem como desordem, degeneração e repetição compulsiva. Do mesmo modo o estereótipo, que é a sua principal estratégia discursiva, é um modo de conhecimento e de identificação que vacila entre aquilo que está sempre «no seu lugar», aquilo que já é conhecido e algo que tem de ser ansiosamente repetido... Como se a duplicidade essencial do asiático [nunca se saberia se um chinês estaria contente ou zangado, de acordo ou em desacordo, por detrás da sua máscara cortês e solícita] ou a licenciosidade bestial do africano [as mulheres exibem os seios, os homens andam de tanga, etc.], a não carecer de prova, não pudessem ser efectivamente comprovadas no discurso.» (BHABHA, Homi, «A Questão Outra», Deslocalizar a Europa, trad. de Manuela Ribeiro Sanches, Lisboa, Cotovia, 2005, p.143).

4. O que está em jogo na «presença» é portanto aquilo que, na reiteração dos seus signos, se abre como
sua natureza suplementar e sua incerteza de fundo, como sua disrupção, no campo cego da iteração ou do repetível. Por conseguinte, se o sistema (ideológico, linguístico, mitológico, etc.) é, assim, des-centrado, como abordá-lo a partir da presença plena ou de qualquer fora-de-jogo? Ou ainda: não se trata, no prestimoso descentramento com que se matraquearam os ouvidos de toda uma geração, de nenhuma abolição ou privação, bem pelo contrário. É porque «o centro» de uma estrutura lhe é, simultaneamente, interior e exterior - interior e exterior à estrutura que ele mesmo regula - que esse des-centramento ocorre.

5. Ou, dito de outro modo: o seu lugar de centro reparte-se sempre, entre a sua função de regulação e a sua própria impossibilidade, ou entre ela e o ponto cego em que ela deixa de ser possível. O centro é portanto, simultaneamente, o seu próprio limite. Não há centro que não seja cortado pelo seu próprio limite. Ou ainda: não há centro que não seja, ao mesmo tempo: a) limite exercido ou imposto pela sua própria regulação; b) limite desse limite, em que a sua função de regulação se traduz.

III. - Jogo, presença e suplementaridade: Talvez se pudesse dizer então que o texto de Derrida levanta, não apenas o problema da «presença» do presente, - problema que se põe sempre no seu limite - tal como ela nos chega no discurso do Ocidente, mas também o problema do significado transcendental em geral, como significação originária e imune, resistente e incólume, ontológica e teológicamente estável e inalterável. Entender-se-ia aqui por «transcendental», em primeiro lugar, aquilo que não é da ordem do ente; aquilo que, no seu ser, transcende a ordem do ente. E sendo, essa ordem do ente, necessariamente marcada pela temporalidade e pela espacialidade, tanto da forma como da sua alteração, seria preciso pensar o transcendental como sendo-lhes ou permanecendo-lhes exterior.

Um
significado transcendental seria, portanto, ordenado àquilo que é exterior ao ente e à sua entidade, ao espaço e ao tempo em que eles se manifestam. O estereotipo rácico é um exemplo, de entre muitos, de «significado» (tratado como) «transcendental», exterior ao tempo e ao espaço, bem como a toda a relação histórica, ou ainda, ao jogo da diferença como jogo do diferendo e do diferimento. E com ele se torna sensível a situação do «centro», de que Derrida ali faz o levantamento: simultaneamente dentro e fora daquilo que ele mesmo regula, colocando em crise o sentido da autonomia dos sistemas, das estruturas, a partir do que lhes é nuclear, do seu centro.

Poder-se-ia replicar isto de variadíssimos modos, sempre no mesmo sentido. O de mostrar que a
origem - quer se trate da «alternativa» quer da «presença», da plenitude intuitiva ou da «presença a si mesmo do presente» que ela presume - ou o significado transcendental tendem, uma vez examinado o funcionamento do centro, a ser obliterados ou marcados por aquilo que eles mesmos excluem, ou colocam no seu exterior. O mesmo centro pertence, não apenas àquilo que ele mesmo regula (uma determinada «estrutura» ou forma de relação), mas também àquilo que, em virtude dessa mesma regulação, é excluído do seu espaço e da sua estrutura, ou colocado no seu exterior.

Os exemplos que se poderiam retirar do texto de Jacques Derrida contemplam, a partir da sua leitura dos textos de Levi-Strauss, ainda uma outra «alternativa» (para além da alternativa que já vimos). Não já entre
«presença» e «ausência» - não se trata aqui já da história - mas entre «cultura» e «natureza» - visto que se trata, agora, do mito e do homem, do Édipo e do sujeito, da proibição do incesto e da cultura como lugar da lei e da Forma de relação. O interesse de alinhar vários exemplos é, aqui, o de estabelecer com mais «nitidez» (a partir de agora a nitidez torna-se objecto de uma necessária reserva) o que os atravessa a todos. E isso levar-nos-á a reparar em que os termos de cada uma das alternativas não têm o mesmo estatuto.

Essa diferença característica é própria de todas as oposições em que assentam todas as «alternativas» que possamos encarar. O jogo da «alternativa» / «exclusão do outro» é sustentado por uma oposição cujos termos trazem já consigo as marcas de uma diferença distribucional ou respeitante à sua
posição, não apenas no seu interior, mas também no interior do sistema de oposições de que ela faz parte. Um deles é valorizado e o outro desvalorizado. Um deles é tomado como norma e o outro, como desvio dessa norma. Um deles é sempre tido como «natural» e o outro como «histórico». Essa diferença de estatuto é, de entre outras coisas, «legal», visto que é «consagrada» pelo que, entre o discurso filosófico-científico e o discurso da opinião corrente, representa um ponto de passagem, de articulação ou de interferência. Se voltarmos a Derrida podemos agora ver como essa interferência ocorre. Voltaremos a ele, não sem antes aqui deixar a sua própria definição de jogo, retirada de uma secção de De la grammatologie significativamente intitulada «Le dehors [est] le dedans»:



On pourrait appeler jeu l'absence du signifié transcendantal comme illimitation du jeu, c'est-à-dire comme ébranlement de l'onto-théologie et de la métaphysique de la présence. Il n'est pas surprenant que la secousse de cet ébranlement, travaillant la métaphysique depuis son origine, se laisse nommer comme telle à l'époque où, refusant de lier la linguistique à la sémantique (ce que font encore tous les linguistes européens, de Saussure à Hjelmslev), expulsant le problème du meaning hors de leurs recherches, certains linguistes américains se réfèrent sans cesse au modèle du jeu. Il faudra ici penser que l'écriture est le jeu dans le langage. (Le Phèdre (277 e) condamnait précisément l'écriture comme jeupaidia — et opposait cet enfantillage à la gravité sérieuse et adulte (spoudè) de la parole). Ce jeu, pensé comme l'absence du signifié transcendantal, n'est pas un jeu dans le monde, comme l'a toujours défini, pour le contenir, la tradition philosophique et comme le pensent aussi les théoriciens du jeu (ou ceux qui, à la suite et au-delà de Bloomfield, renvoient la sémantique à la psychologie ou à quelque autre discipline régionale). Pour penser radicalement le jeu, il faut donc d'abord épuiser sérieusement la problématique ontologique et transcendantale, traverser patiemment et rigoureusement la question du sens de l'être, de l'être de l'étant et de l'origine transcendantale du monde — de la mondanité du monde — suivre effectivement et jusqu'au bout le mouvement critique des questions husserlienne et heideggerienne, leur conserver leur efficace et leur lisibilité. Fût-ce sous rature, et faute de quoi les concepts de jeu et d'écriture auxquels on aura recours resteront pris dans des limites régionales et dans un discours empiriste, positiviste ou métaphysique. La parade que les tenants d'un tel discours opposeraient alors à la tradition pré-critique et à la spéculation métaphysique ne serait que la représentation mondaine de leur propre opération. C'est donc le jeu du monde qu'il faut penser d'abord, avant de tenter de comprendre toute les formes de jeu dans le monde(DERRIDA, Jacques, «Le dehors [est] le dedans», De la grammatologie, Paris, Minuit, 1967, p. 73)



Voltaremos a este excerto e às suas múltiplas implicações. Para já retenhamos apenas que o questionamento desse jogo da alternativa é, portanto, também uma parte do questionamento do jogo do «mundo» (e do jogo da «lei»). O jogo da suplementaridade não participa, portanto, desse princípio ou dessa regra pelos quais, na presença de cada um dos termos «alternantes» da «oposição», estará implicada a ausência do outro termo. O jogo antes da alternativa é também o jogo como ausência de um significado transcendental e, portanto, o jogo como ilimitado e, portanto ainda, a impossibilidade dessa alternativa ou oposição. O jogo da suplementaridade - sendo ele o jogo da deslocação do próprio ou do plenamente presente ele é, portanto, o jogo anterior ao próprio «homem», como se verá - poder-se-ia situá-lo em diversos âmbitos.

Aquilo a que no primeiro texto se chamará «um pensamento do jogo» há-de ser, portanto, correspondente ao que aqui, neste segundo texto, aparece descrito nesta
travessia da questão do ser e neste pensamento radical do jogo, capaz de esgotar seriamente «a problemática ontológica e transcendental». Ora, precisamente, uma das declinações desse jogo anterior ao jogo do mundo e, portanto, anterior ao jogo da alternativa entre presença e ausência é precisamente aquela que mostra que a presença de um dos termos da oposição, implicando uma dimensão de suplementaridade, não implica a ausência do outro. Uma das suas declinações há-de ser ou supor, envolver ou pressupor, portanto, não apenas temporalidade e a suplementaridade - cujo jogo antecede, também, o jogo do mundo e o jogo da «alternativa» - mas já uma certa alteridade. Antes de voltarmos ao primeiro texto de Derrida, fiquemos aqui com esta passagem, respeitante à relação ou à dimensão daquilo que ele chamará suplementaridade:



Car d'autre part, la supplémentarité qui n'est rien, ni une présence ni une absence, n'est ni une substance ni une essence de l'homme. Elle est précisément le jeu de la présence et de l'absence, l'ouverture de ce jeu qu'aucun concept de la métaphysique ou de l'ontologie ne peut comprendre. C'est pourquoi ce propre de l'homme n'est pas le propre de l'homme : il est la dislocation même du propre en général, l'impossibilitéet donc le désir de la proximité à soi ; l'impossibilité et donc le désir de la présence pure. Que la supplémentarité ne soit pas le propre de l'homme, cela ne signifie pas seulement et de manière aussi radicale qu'elle n'est pas un propre ; mais aussi que son jeu précède ce qu'on appelle l'homme et s'étend hors de lui. L'homme ne s'appelle l'homme qu'en dessinant des limites excluant son autre du jeu de la supplémentarité : la pureté de la nature, de l'animalité, de la primitivité, de l'enfance, de la folie, de la divinité. L'approche de ces limites est à la fois redoutée comme une menace de mort et désirée comme accès à la vie sans différance. (ibidem, 347)

A suplementaridade «não é nada» - nem presença nem ausência, antes relação em que, entre os dois termos, qualquer um dos elementos se indecide, na sua partilha da pertença, presente e ausente ao mesmo tempo - e, nesse sentido, ela não pertence ao jogo do mundo, nem à dimensão pela qual o homem se exclui a «si mesmo» do jogo da alteridade, para instalar em seu lugar, tudo o que o inibe: a pureza da natureza, da animalidade, da primitividade, da infância, da loucura, da divindade... da humanidade. O jogo da suplementaridade precede o homem e o mundo em que ele vive, bem como o jogo da alternativa que parece ser-lhes próprio. Ele representa a deslocação do próprio e da propriedade pela razão simples de que não é redutível a nenhuma polaridade. Ora, a esse jogo da suplementaridade podemos observá-lo naquele primeiro texto de Derrida, a propósito de Lévi-Strauss. É o que faremos no próximo «post» (a propósito da proibição do incesto como «lei»).


sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A fala dos escritores 4: Sebastião Alba


















(Sebastião Alba)

Um anjo erra
nos teus olhos diurnos

humedecido do véu
(ao fundo, a íris entardece)
seguiu de cor a revoada das pombas

místico
um arroubo ascende a prumo
do plano em que me fitas

cisnes desaguam
do teu olhar em fio
e vogam ao redor, pelo estuário da sala

ao sol-poente
os vitrais das janelas
ardem na catedral assim erguida

colocamos um sonho
em cada nicho

e no círculo formado pelas nossas bocas
subentende-se com verve
a língua.

(Sebastião Alba)