Juan Cotán, Quince, Cabbage, Melon and Cucumber - 1602.
Em tempos, de boleia com um amigo, ele me atiçou, com a sua brusca inteligência, o espanto. «Se compararmos a matemática de hoje», dizia-me ele, «que é de compreensão e resolução de problemas, com a de ontem», uma matemática «sobretudo algorítmica», percebe-se a diferença: uma mais operatória, repetitiva e ritualizada, abstracta e desligada da realidade; a outra mais imaginativa, adaptada às circunstâncias e à sua mutabilidade (histórica, geográfica, cultural, etc).
«Portanto a matemática tem também um sentido político». Era uma extensão da tese, segundo depois me foi dito, perfilhada por Boaventura S. Santos, de que «a ciência é um fenómeno social». Fiquei surpreendido, devo confessar, com a agilidade do salto. Ignorante de matemáticas (e de muita coisa mais, escusado será dizer), recordo-me do puxão com que essa frase me despertou, a meio da curta viagem da minha boleia. Disse - primeiro para mim mesmo, e depois em voz alta: «realmente, nunca tinha pensado nisso...».
Derivados os fumos da conversa para outros temas, ele perguntou-me, depois, a certa altura: «quer dizer que és um homem de fé». Respondi: «não sei. Gostava de saber. E de ser. Às vezes tenho a impressão de que sou. Mas é de pouca e breve.» Depois ponderei no meu «não sei». Devia saber? - perguntei-me.
Temos frequentemente esta noção: a de que somos as melhores testemunhas de nós mesmos. Não creio. Creio que esse preconceito - que pressupõe um outro, segundo o qual «ver» é condição para «crer» (igualmente falso, para mim, infelizmente, pois acho que o simples «ver» já traz consigo um certo «modo» de acreditar: e a questão da fé aqui complica-se), ou que a «presença» é a condição da «constatação» - se prende com um certo tipo de «evidência», cuja experiência é precisamente conduzida, muitas das vezes, talvez mesmo sempre, pelos nossos desejos e esperanças, os nossos medos e as nossas ambições.
O irónico disto é que, nessa conversa com este meu amigo, de quem admiro a agilidade, a inteligência e a simpatia, e a quem prezo, querendo eu dizer-lhe que a lei de Lavoisier - nada se cria, nada se perde, tudo se transforma: «isto nunca foi desmentido», dizia-me ele, numa espécie de certeza situada muito aquém de qualquer gesto de fé... - nunca tendo ela sido desmentida, não poderia, de qualquer modo, ser a nossa última palavra, pelo menos no que à nossa vida diz respeito, verifiquei que tínhamos chegado ao fim da viagem. Acabei apenas por dizer: «bem, mas não temos tempo».
Chegado a casa, veio-me à mente, de súbito, a fala de «A Judia», em Terror e Miséria do Terceiro Reich. Fui então à estante buscar a peça, para a relembrar. Eis o que ela diz: «o carácter é uma questão de tempo. Dura tanto como uma luva. Há-as de boa qualidade, que duram muito. Mas não duram para sempre. E não estou zangada. Por acaso até estou. [...] Inventaram a Teoria Quântica e o Método de Trendelenburg para operar a embolia pulmonar e deixam-se comandar por semi-selvagens, que é suposto conquistarem o mundo mas não vos deixam ter a mulher que vocês querem ter.»
É um dos momentos que mais impressiona, naqueles vinte e tal mono-actos de que é feito texto da peça de Brecht. Eis um exemplo de até onde iriam a Teoria Quântica e o Método de Trendelenburg, uma vez descidos à mais banal das quotidianidades e aí transpostos, por exemplo, na relação política (e cultural): à «mulher dos outros». Isto, para os «semi-selvagens», claro... Não tarda que o marido seja um deles, que lhes não resista, que soçobre à desumanidade da violência absoluta, é enfim o que nos diz a judia. Até onde iria a Lei de Lavoisier, nessa mesma ordem da quotidianidade, perguntei-me então olhando, pela janela, uma senhora grisalha a sacudir o tapete de perfil no prédio em frente. Estarei a exagerar?
Ao contrário das diferenças entre a matemática de ontem e a de hoje, naquele exemplo dado pelo meu amigo - a de ontem mais conservadora e a de hoje mais aberta - aqui (na peça de Brecht) a relação parece inverter-se. Ou pelo menos anular-se: não se diria já que há progresso, algum aumento de escrúpulo ou apuro de consciência. Pelo contrário. Tudo corre, no mundo do conhecimento assim pensado, como que inelutavelmente dissociado da nossa existência. Entenda-se tudo como «aquilo que representa um conhecimento novo».
Dir-se-ia até que, tomando-se a direcção de um pensamento da tabula rasa em relação à tradição, se tinha caminhado, com a Modernidade, para uma certa forma de barbárie, conforme nos diz Walter Benjamin, por exemplo, em «Le conteur». Claro, estamos já longe, dir-se-ia, dos tempos da segunda Guerra Mundial. Mas tenho a impressão de que «os semi-selvagens» da Judia continuam precisamente onde estavam. Ou não? Terão desaparecido? Desapareceriam mesmo de todo? Há dias, um ex-aluno iraniano explicou-me (o desprezo) a diferença dos persas (pelos) em relação aos árabes: «Somos muuuito diferentes: sabe o que é uma raça ariana?» Compreendi então o arrastamento do «u», na palavra «muuuito...».
É este tipo de reservas que me suscita qualquer forma de «progressismo» ou de optimismo retrospectivo auto-reconfortante, que é sempre a nossa maneira mais perigosa de nos consolarmos... E porque haveríamos de disso precisar? A vontade de ir à frente, de chegar primeiro, de ser o primeiro, de já lá estar... A satisfação por já lá ter estado, por estar mais à fernte. Não será isto precisamente um dos cavalos de batalha da publicidade, que nos satura os ouvidos, nas pausas da transmissão televisiva? Ou mesmo dos governos, cujos primeiros ministros, de dedo em riste, insistentemente posto na perpendicular dos seus narizes, a ponto de quase o enfiarem nele (em busca de... argumentos: «ele tirava pensamentos do nariz», dizia o Alexandre O'Neil), nos desenrolam as alíneas do quanto o país progrediu, nos últimos anos de governação?
Acabo de ler o livro de Boaventura S. Santos: Um Discurso sobre as Ciências. É um texto verdadeiramente admirável, ainda hoje a merecer uma actualizada reflexão. Embora goste mais dele no início do que no fim. A esse meu amigo inteiramente o devo e lho agradeço.Volto, no entanto, à questão - à da «lei de Lavoisier» que começou, fiquei a sabê-lo depois de alguma consulta, por ser advogado. À «lei da conservação da massa» que não é, segundo também pude sabê-lo - também, em posterior diligência - propriamente sua: fora já enunciada por Mikhail Lomonosov, em 1760, embora só pela sua voz tenha, depois, atingido notoriedade. Vou aqui pedir de empréstimo algumas palavras de Agamben (de quem nem sempre perfilho o tom solene e sentencioso, de filólogo descobridor; veja-se, de resto, a quanto a mim exemplar resposta que lhe dá Derrida, em La bête et le souverain e que ficará aqui para um «post» diferente):
«O aspecto mais farisaico da mentira implícita no conceito de decadência é a pedanteria com a qual, no próprio momento em que se lamentam a mediocridade e o declínio e se registam os presságios do fim, se faz em cada geração uma lista dos novos talentos e se catalogam as formas novas e as tendências epocais nas artes e no pensamento. Neste recenseamento [...], perde-se o único e incomparável título de nobreza que o nosso tempo poderia legitimamente reinvindicar a propósito do passado: o de não ser já uma época histórica. [...] Ora é precisamente isto que se perde, na vontade cega do nosso tempo ser a todo o custo uma época, nem que seja a época da impossibilidade de ser uma época: a época do niilismo» (AGAMBEN, Giorgio, A Ideia da Prosa, trad. de João Barrento, 1999, pp. 81-82).
A citação de Agamben só interessa se entendermos o «histórico» no sentido em que o entendeu uma certa modernidade. «Não ser já uma época histórica» interessa, aqui, se pressupuser «não ser já uma época». «Não ser já» significa aqui, portanto, um «ter já sido» e, também, um «ter deixado de ser» que voltariam a ter de ser interrogados: não no sentido da abolição da historicidade - interrogar não é abolir e a abolição não pode, neste caso, resultar de um acto de vontade - mas no da crítica de uma certa noção teológico-metafísica ou mesmo filosófico-escatológica, quer de história, quer de historicidade. Quanto ao resto da sua formulação (ao «único título de nobreza do presente em relação ao passado», como diz Agamben) ele parece-me dispensável. E contraditório, para não dizer mais... Seja como for, ela sublinha um aspecto que parece digno de atenção.
Se me lembro da lei de Lavoisier, alguma coisa me diz que ela representa - como qualquer lei (e as leis fazem época) - aquilo que sendo, também, da ordem do Outro e, portanto, do a-humano, do transcendente e do não epocal, não pode ser exclusivamente pensado no plano do «semelhante» (para usar um termo caro ao fraternalismo político e xenófobo, nacionalista e religioso), e inclui também, quer o animal, quer o divino, ou a «divinanimalidade» do Outro, que nos é pré-originariamente constitutiva, como diz J. Derrida. E é todo o problema da ética, - a ética ela própria já como problema - que por aí passa. Aí como em geral por todas as leis, familiares, sociais, científicas, psíquicas, ou outras.
Há, portanto, a possibilidade de estarmos sobre o limite da verdade enunciada da lei, no mais abissal dos limites do seu limite. Estarmos, ao mesmo tempo, dentro e fora e, por isso, entre dentro e fora desse «tudo» de qualquer lei. Talvez seja mesmo «isso» que estamos e somos. E, portanto, deveríamos, agora, perguntar-nos a nós mesmos, ouvindo o que essa versão da «lei da conservação da massa» nos diz: «é tudo», quanto a «nós»? «Tudo», quer dizer: o «tudo» da «língua», por mais inescrutável que ele se revele, ou o da «comunidade», do «universo», dos objectos, do objecto a que chamo «o meu retrato» que ali está pendurado na parede, o do que chamo «eu», ou de «um quadro» de Juan Cotán, e «assim por diante...»? Eis o que diríamos a qualquer lei.
No quadro de Juan Cotán, o alinhamento de apoio e de suspensão daqueles frutos da terra, no qual se traça, com a frieza imóvel de uma geometria cuidada e perfeita, a linha diagonal e elíptica da caixa de abertura da janela - oferecida como um limiar à passagem do olhar para o espaço do seu próprio abismo - talvez não seja mesmo por acaso (na cena de um «quadro» nada é por acaso), que o melão aparece ao centro, aberto e iluminado e de talhada cortada, como que a sublinhar que em toda a abstracção há uma carnalidade que através dela se alimenta...
O contraste do reflexo luminoso da polpa tem ali, no quadro de Cotán, a força de um desmentido, justamente. E há ainda, no mesmo quadro de Juan Cotán, aquele pepino que aponta, ironicamente, na nossa direcção, invadindo já, mordaz, sombria e subrepticiamente, o nosso espaço; e ainda... Vale a pena olhá-lo com alguma atenção... A suficiente para pousar o olhar sobre aquela talhada solta... E o que lhe falta...
Em tempos, de boleia com um amigo, ele me atiçou, com a sua brusca inteligência, o espanto. «Se compararmos a matemática de hoje», dizia-me ele, «que é de compreensão e resolução de problemas, com a de ontem», uma matemática «sobretudo algorítmica», percebe-se a diferença: uma mais operatória, repetitiva e ritualizada, abstracta e desligada da realidade; a outra mais imaginativa, adaptada às circunstâncias e à sua mutabilidade (histórica, geográfica, cultural, etc).
«Portanto a matemática tem também um sentido político». Era uma extensão da tese, segundo depois me foi dito, perfilhada por Boaventura S. Santos, de que «a ciência é um fenómeno social». Fiquei surpreendido, devo confessar, com a agilidade do salto. Ignorante de matemáticas (e de muita coisa mais, escusado será dizer), recordo-me do puxão com que essa frase me despertou, a meio da curta viagem da minha boleia. Disse - primeiro para mim mesmo, e depois em voz alta: «realmente, nunca tinha pensado nisso...».
Derivados os fumos da conversa para outros temas, ele perguntou-me, depois, a certa altura: «quer dizer que és um homem de fé». Respondi: «não sei. Gostava de saber. E de ser. Às vezes tenho a impressão de que sou. Mas é de pouca e breve.» Depois ponderei no meu «não sei». Devia saber? - perguntei-me.
Temos frequentemente esta noção: a de que somos as melhores testemunhas de nós mesmos. Não creio. Creio que esse preconceito - que pressupõe um outro, segundo o qual «ver» é condição para «crer» (igualmente falso, para mim, infelizmente, pois acho que o simples «ver» já traz consigo um certo «modo» de acreditar: e a questão da fé aqui complica-se), ou que a «presença» é a condição da «constatação» - se prende com um certo tipo de «evidência», cuja experiência é precisamente conduzida, muitas das vezes, talvez mesmo sempre, pelos nossos desejos e esperanças, os nossos medos e as nossas ambições.
O irónico disto é que, nessa conversa com este meu amigo, de quem admiro a agilidade, a inteligência e a simpatia, e a quem prezo, querendo eu dizer-lhe que a lei de Lavoisier - nada se cria, nada se perde, tudo se transforma: «isto nunca foi desmentido», dizia-me ele, numa espécie de certeza situada muito aquém de qualquer gesto de fé... - nunca tendo ela sido desmentida, não poderia, de qualquer modo, ser a nossa última palavra, pelo menos no que à nossa vida diz respeito, verifiquei que tínhamos chegado ao fim da viagem. Acabei apenas por dizer: «bem, mas não temos tempo».
Chegado a casa, veio-me à mente, de súbito, a fala de «A Judia», em Terror e Miséria do Terceiro Reich. Fui então à estante buscar a peça, para a relembrar. Eis o que ela diz: «o carácter é uma questão de tempo. Dura tanto como uma luva. Há-as de boa qualidade, que duram muito. Mas não duram para sempre. E não estou zangada. Por acaso até estou. [...] Inventaram a Teoria Quântica e o Método de Trendelenburg para operar a embolia pulmonar e deixam-se comandar por semi-selvagens, que é suposto conquistarem o mundo mas não vos deixam ter a mulher que vocês querem ter.»
É um dos momentos que mais impressiona, naqueles vinte e tal mono-actos de que é feito texto da peça de Brecht. Eis um exemplo de até onde iriam a Teoria Quântica e o Método de Trendelenburg, uma vez descidos à mais banal das quotidianidades e aí transpostos, por exemplo, na relação política (e cultural): à «mulher dos outros». Isto, para os «semi-selvagens», claro... Não tarda que o marido seja um deles, que lhes não resista, que soçobre à desumanidade da violência absoluta, é enfim o que nos diz a judia. Até onde iria a Lei de Lavoisier, nessa mesma ordem da quotidianidade, perguntei-me então olhando, pela janela, uma senhora grisalha a sacudir o tapete de perfil no prédio em frente. Estarei a exagerar?
Ao contrário das diferenças entre a matemática de ontem e a de hoje, naquele exemplo dado pelo meu amigo - a de ontem mais conservadora e a de hoje mais aberta - aqui (na peça de Brecht) a relação parece inverter-se. Ou pelo menos anular-se: não se diria já que há progresso, algum aumento de escrúpulo ou apuro de consciência. Pelo contrário. Tudo corre, no mundo do conhecimento assim pensado, como que inelutavelmente dissociado da nossa existência. Entenda-se tudo como «aquilo que representa um conhecimento novo».
Dir-se-ia até que, tomando-se a direcção de um pensamento da tabula rasa em relação à tradição, se tinha caminhado, com a Modernidade, para uma certa forma de barbárie, conforme nos diz Walter Benjamin, por exemplo, em «Le conteur». Claro, estamos já longe, dir-se-ia, dos tempos da segunda Guerra Mundial. Mas tenho a impressão de que «os semi-selvagens» da Judia continuam precisamente onde estavam. Ou não? Terão desaparecido? Desapareceriam mesmo de todo? Há dias, um ex-aluno iraniano explicou-me (o desprezo) a diferença dos persas (pelos) em relação aos árabes: «Somos muuuito diferentes: sabe o que é uma raça ariana?» Compreendi então o arrastamento do «u», na palavra «muuuito...».
É este tipo de reservas que me suscita qualquer forma de «progressismo» ou de optimismo retrospectivo auto-reconfortante, que é sempre a nossa maneira mais perigosa de nos consolarmos... E porque haveríamos de disso precisar? A vontade de ir à frente, de chegar primeiro, de ser o primeiro, de já lá estar... A satisfação por já lá ter estado, por estar mais à fernte. Não será isto precisamente um dos cavalos de batalha da publicidade, que nos satura os ouvidos, nas pausas da transmissão televisiva? Ou mesmo dos governos, cujos primeiros ministros, de dedo em riste, insistentemente posto na perpendicular dos seus narizes, a ponto de quase o enfiarem nele (em busca de... argumentos: «ele tirava pensamentos do nariz», dizia o Alexandre O'Neil), nos desenrolam as alíneas do quanto o país progrediu, nos últimos anos de governação?
Acabo de ler o livro de Boaventura S. Santos: Um Discurso sobre as Ciências. É um texto verdadeiramente admirável, ainda hoje a merecer uma actualizada reflexão. Embora goste mais dele no início do que no fim. A esse meu amigo inteiramente o devo e lho agradeço.Volto, no entanto, à questão - à da «lei de Lavoisier» que começou, fiquei a sabê-lo depois de alguma consulta, por ser advogado. À «lei da conservação da massa» que não é, segundo também pude sabê-lo - também, em posterior diligência - propriamente sua: fora já enunciada por Mikhail Lomonosov, em 1760, embora só pela sua voz tenha, depois, atingido notoriedade. Vou aqui pedir de empréstimo algumas palavras de Agamben (de quem nem sempre perfilho o tom solene e sentencioso, de filólogo descobridor; veja-se, de resto, a quanto a mim exemplar resposta que lhe dá Derrida, em La bête et le souverain e que ficará aqui para um «post» diferente):
«O aspecto mais farisaico da mentira implícita no conceito de decadência é a pedanteria com a qual, no próprio momento em que se lamentam a mediocridade e o declínio e se registam os presságios do fim, se faz em cada geração uma lista dos novos talentos e se catalogam as formas novas e as tendências epocais nas artes e no pensamento. Neste recenseamento [...], perde-se o único e incomparável título de nobreza que o nosso tempo poderia legitimamente reinvindicar a propósito do passado: o de não ser já uma época histórica. [...] Ora é precisamente isto que se perde, na vontade cega do nosso tempo ser a todo o custo uma época, nem que seja a época da impossibilidade de ser uma época: a época do niilismo» (AGAMBEN, Giorgio, A Ideia da Prosa, trad. de João Barrento, 1999, pp. 81-82).
A citação de Agamben só interessa se entendermos o «histórico» no sentido em que o entendeu uma certa modernidade. «Não ser já uma época histórica» interessa, aqui, se pressupuser «não ser já uma época». «Não ser já» significa aqui, portanto, um «ter já sido» e, também, um «ter deixado de ser» que voltariam a ter de ser interrogados: não no sentido da abolição da historicidade - interrogar não é abolir e a abolição não pode, neste caso, resultar de um acto de vontade - mas no da crítica de uma certa noção teológico-metafísica ou mesmo filosófico-escatológica, quer de história, quer de historicidade. Quanto ao resto da sua formulação (ao «único título de nobreza do presente em relação ao passado», como diz Agamben) ele parece-me dispensável. E contraditório, para não dizer mais... Seja como for, ela sublinha um aspecto que parece digno de atenção.
Se me lembro da lei de Lavoisier, alguma coisa me diz que ela representa - como qualquer lei (e as leis fazem época) - aquilo que sendo, também, da ordem do Outro e, portanto, do a-humano, do transcendente e do não epocal, não pode ser exclusivamente pensado no plano do «semelhante» (para usar um termo caro ao fraternalismo político e xenófobo, nacionalista e religioso), e inclui também, quer o animal, quer o divino, ou a «divinanimalidade» do Outro, que nos é pré-originariamente constitutiva, como diz J. Derrida. E é todo o problema da ética, - a ética ela própria já como problema - que por aí passa. Aí como em geral por todas as leis, familiares, sociais, científicas, psíquicas, ou outras.
Há, portanto, a possibilidade de estarmos sobre o limite da verdade enunciada da lei, no mais abissal dos limites do seu limite. Estarmos, ao mesmo tempo, dentro e fora e, por isso, entre dentro e fora desse «tudo» de qualquer lei. Talvez seja mesmo «isso» que estamos e somos. E, portanto, deveríamos, agora, perguntar-nos a nós mesmos, ouvindo o que essa versão da «lei da conservação da massa» nos diz: «é tudo», quanto a «nós»? «Tudo», quer dizer: o «tudo» da «língua», por mais inescrutável que ele se revele, ou o da «comunidade», do «universo», dos objectos, do objecto a que chamo «o meu retrato» que ali está pendurado na parede, o do que chamo «eu», ou de «um quadro» de Juan Cotán, e «assim por diante...»? Eis o que diríamos a qualquer lei.
No quadro de Juan Cotán, o alinhamento de apoio e de suspensão daqueles frutos da terra, no qual se traça, com a frieza imóvel de uma geometria cuidada e perfeita, a linha diagonal e elíptica da caixa de abertura da janela - oferecida como um limiar à passagem do olhar para o espaço do seu próprio abismo - talvez não seja mesmo por acaso (na cena de um «quadro» nada é por acaso), que o melão aparece ao centro, aberto e iluminado e de talhada cortada, como que a sublinhar que em toda a abstracção há uma carnalidade que através dela se alimenta...
O contraste do reflexo luminoso da polpa tem ali, no quadro de Cotán, a força de um desmentido, justamente. E há ainda, no mesmo quadro de Juan Cotán, aquele pepino que aponta, ironicamente, na nossa direcção, invadindo já, mordaz, sombria e subrepticiamente, o nosso espaço; e ainda... Vale a pena olhá-lo com alguma atenção... A suficiente para pousar o olhar sobre aquela talhada solta... E o que lhe falta...
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