À esquerda: Agnes Martin, As Ilhas, 1961. À direita, Robert Ryman, Untitled, 1965.
I. - O recente visionamento de «Plot 28» lembrou-me, a da altura, a propósito da «parcela» e da «trama» (e pelo que no video diz «o psiquiatra», a propósito da «arte abstracta», apontando em seu redor), o que se havia postado em tempos, em Fragmentos de leitura 6, aqui no blogue. Razão pela qual aqui modifico a data desse «post» anterior e, assim, o «actualizo». Veja-se, entretanto, o blogue dedicado a Plot 28, em:
http://www.plot28.com/
Antes de tecer algumas considerações que envolverão, aqui, a recapitulação de leituras de autores como Jacques Derrida, Roland Barthes e Walter Benjamin, aqui fica, então, na íntegra, um post já anterior, a propósito da questão da «grade» e dos Mitos do Modernismo. De resto, quanto à questão da grade e da lógica visual que subtende a tendência para uma abstractizante opticalidade, num veio que, no Modernismo, se desprenderá, assim, de um outro, que procede, para Rosalind Krauss, do Surrealismo (sobretudo de Max Ernst), falar-se-á aqui mais tarde. Reservaremos, neste post, uma segunda secção (ver a seguir) para essas considerações. Nesse já antepassado «post» dizia-se aqui, neste blogue, dando-se, então, conta de uma das leituras que nele se divulgavam:
«I-1. Faria falta poder dispor-se de uma pequena história da passagem do estruturalismo ao pós-estruturalismo. Ela assinalaria aqueles pontos de ruptura em que a ideia de «autonomia» dos sistemas e das estruturas é posta em causa. No âmbito da crítica de arte, essa história do advento do pós-estruturalismo talvez viesse a desfazer alguns mitos. Por exemplo, aquele em que se sustenta a ideia de que, com a falências das vanguardas, é a arte no seu conjunto que entra em colapso.
À esquerda: Piet Mondrian, Losango; À direita, Jasper Johns, Grey Alphabet.
Ou ainda, o mito de uma «originalidade» que, nas vanguardas, as afastaria, não apenas do mundo, de uma forma geral, mas também - tal como defenderia Clement Greenberg - que remeteria a pintura exclusivamente para a superfície pintada e plana do quadro e separaria, por inteiro, a imagem da linguagem. A pintura teria, assim, um pensamento visual que não passaria, presuntivamente, por nenhum discurso ou linguagem verbal. É o que defende Rosalind Krauss, no seu livro The Originality of the Avant-garde and Other Modernist Myths, sobretudo naquele com que o livro abre:
«Emergindo à superfície da pintura cubista anterior à Guerra e tornando-se subsequentemente cada vez mais coerciva e manifesta, a grade anuncia, de entre outras coisas, a vontade de silêncio da arte, a hostilidade da arte à literatura, à narrativa, ao discurso. [...] Tornada plana, geometrizada, ordenada, é antinatural, antimimética, anti-real. [...] A grade declara que o espaço da arte é simultaneamente autónomo e autotélico. «Descobrindo» a grade, o cubismo, de Stijl, Mondrian, Malevitch... aterraram num espaço que estava fora do alcance de todo o lugar onde tinham estado. O que quer dizer, aterraram no presente, e tudo o resto foi declarado passado. [... Ora] A grade é uma introjecção dos limites do mundo para o interior do quadro; é um mapeamento do espaço no interior do seu próprio enquadramento. É um modo de repetição, cujo conteúdo é a natureza convencional da própria arte. (KRAUSS, Rosalind, «Grids», The Originality of the Avant-Garde and Other Myths, Cambridge, MIT, 1986)
À esquerda: Caspar David Friedrich, A view from the studio's room, 18o5-06. À direita: Odilon Redon, Le Jour, 1891.
O que significa que a expulsão do «real» resultaria, a um extremo, precisamente no seu inverso, na introjecção dos seus limites, voltados agora sobre ele próprio. E a sugestão do presente é, então, a mais ilusória, visto que a grade (o ordenamento de um espaço auto-regulado) funciona, aqui em dois sentidos: o da exclusão do espaço do mundo na afirmação do pensamento exclusivamente visual e o da introjecção dos seus limites.
A ilusão do presente decorre, portanto, deste facto histórico: usada a grade, desde o século XV, para ordenar o espaço da repetição e da semelhança da Renascença, ela é, no século XX usada, já não como meio, mas como tema em si mesmo, afirmado pela pintura para falar de si mesma, sob a presunção de se tornar ela mesma impenetrável ao mundano e ao seu discurso. Ora, o que é contestado, no texto de Rosalind Krauss, é a miragem do funcionamento unilateral da grade. Não se propõe nenhuma forma de simples inversão, como, segundo ela, se pensou, na pintura modernista. E a sua afirmação sustenta-se em boa parte da literatura produzida pelos pintores. Veja-se este excerto de uma entrevista de Agnes Martin:
«You know, what I wanted was really abstract. Can't be about nature, or this world. (Pause.) We have a lot of really abstract emotions not caused by anything in this world. You can wake up in the morning and you are happy. Extraordinarily happy with no traceable cause. That's an abstract experience. There's a whole range of delicate emotions that nobody pays any attention to. I hope when people look at my paintings – and they're just horizontal lines – but they do respond to my work. Even though it's so simple, they respond emotionally. And they see that it's happy. And there's a very delicate emotion called tranquility. When you stop, and you rest, and come to an absolute stop. And that's when tranquility takes over.» MARTIN, Agnes, Interview by Tom Collins: Agnes Martin Reflects on art and life, Geronimo 2, 1 (January 1999))
2. No âmbito da literatura, algo de semelhante se passaria. Pensou-se que ela, literariamente, se excluía do discurso, visto estar apenas interessada em si própria. A ideia de «auto-reflexivi-dade», ou de linguagem exclusivamente literária, iria assim de par com a de um pensamento exclusivamente visual. Que poderiam elas sugerir senão uma espécie de recolhimento sobre si próprias, num mundo onde já tudo aparece solto e separado, desgarrado e descontínuo? E portanto, que poderiam essas ideias fazer, senão alinhar-se, discursivamente - como diria Foucault - por aquilo que elas mesmas talvez desejassem, em primeiro lugar, combater?
Votada a falar do mundo, enquanto mathesis e mimesis, como observa Roland Barthes, ela torna-se, a certa altura, numa semiosis, já não votada a conhecer e a restituir ou a representar o mundo, mas a repensá-lo nas suas formas de interpretação, desfibrando nelas os seus silêncios e as suas formas de indução à presença, plena e exclusiva, de uma linguagem outra. Ora, também aqui se não propõe nenhuma exclusão absoluta. A literatura enquanto semiosis é uma forma de recuo sobre a (im)possibilidade de qualquer linguagem isolada (ou sobre o seu cultivado silêncio), para pôr a descoberto as suas cumplicidades com o poder. Roland Barthes observava, em O Prazer do Texto:
«Alguns querem um texto (uma arte, uma pintura) sem sombra, cortado da «ideologia dominante»; mas isso é querer um texto sem fecundidade, sem produtividade, um texto estéril (veja-se o mito da Mulher sem Sombra). O texto tem necessidade da sua sombra: essa sombra é um pouco de ideologia, um pouco de representação, um pouco de sujeito: fantasmas, bolsos, rastos, nuvens necessárias: a subversão tem de produzir o seu próprio claro-escuro. (Diz-se correntemente: «ideologia dominante». Esta expressão é incongruente. Pois o que é a ideologia É precisamente a ideia enquanto domina: a ideologia só pode ser dominante. [...] do lado dos dominados não há nada, nenhuma ideologia, senão precisamente - e é o último grau da alienação - a ideologia que eles são obrigados (para simbolizar, logo, para viver) a tomar à classe dominante. [...])» (BARTHES, Roland, O Prazer do Texto, trad. de Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1988, pp. 72-73)
«Um texto sem sombra» é um texto sem significação, um texto ensimesmado, suspenso na sua mais absoluta presença. Nesse movimento, o que ele faria seria repetir, inadvertidamente, introjectando-o em «si mesmo», aquilo que julga excluir, aquilo que o senso comum pensaria como a «inefabilidade», do gesto artístico ou do «génio» que estaria por detrás dele, ou da absoluta singularidade do gesto do «autor», enclausurado na redoma da sua consagração.
(Post do ano passado)»
II - 1. Plot 28 recorda-me, também, a ideia de Brecht: quanto menos políticos queremos ser, mais forçada e forçosamente políticos nos tornamos. A ideia com que fiquei, do que no filme se «ficciona», é a de que o efeito de rasura a que estamos sujeitos, no palimpsesto perverso da história contemporânea (há, apesar de tudo, vestígios, é o que nos diz a «trama» do filme: trama sobre uma outra «trama», «maquinação» ou «urdidura», que é preciso «mapear») - efeito de rasura a que estamos sujeitos, diga-se, precisamente enquanto «sujeitos», isto é: na acepção psicanalítica de «sujeitos humanos desejantes», como diria Lacan - é tanto mais possível e (real e fantasmaticamente) «ameaçador», quanto menos o esperarmos.
2. Dou por mim a pensar se aquela ficção, a que se vem chamando «documental», não é justamente motivada por uma noção de «experiência» que, para além do seu parentesco imediato com o desenvolvimento tele- e tecno-mediático, não descenderá, em linha recta, da constatação, já a despontar nas metrópoles herdadas do século XIX e acentuada, depois, na ressaca do pós-Guerra mundial do século XX, da experiência de uma realidade que excede, em poder de surpreender, (o verosímil de) toda a ficção.
3. Walter Benjamin, por exemplo, ter-nos-ia já dito, comentado por Jacques Derrida: «a polícia torna-se omnipresente e espectral nos estados ditos civilizados, no momento em que faz a lei em lugar de a aplicar e fazer observar». A violência policial - «fundadora de direito», em lugar de simplesmente «conservadora do direito» - na sua conivência com os poderes económicos globais e transnacionais, que excedem hoje largamente os poderes da soberania Estatal ou de qualquer soberania instituída, era já, do seu ponto de vista, «sem forma», «sem figura»: Gestaltloss. E Derrida dirá, por sua vez, em Spectres de Marx, comentando-o: «E esta verdade é mais clara do que nunca na idade das novas tecnologias».
4. Vivemos pois, hoje mais que nunca num tempo de latência, mais do que simplesmente de realidade(s) tranquilamente testemunháveis, ou comprováveis. O espectro da violência, «o espectro da sua aparição fantasmática», «estende-se sem limites». Razão pela qual seria necessário, observaria ele, repensar desconstrutivamente a dissociação dialéctica (marxista e pré-desconstructiva), entre a realidade efectiva e a realidade virtual. É precisamente nesse ponto que é preciso colocar a questão do espectro (e do seu carácter «constitutivo»!!!), de que nos fala o título da obra, para repensar o modo do acontecer actu(virtu)al contemporâneo. É esta a tese central ou fundamental de Jaques Derrida:
«Duas conclusões, portanto: 1. a forma fenomenal do próprio mundo é espectral. 2. O próprio ego fenomenológico (Eu [Moi], Tu [Toi], etc) é um espectro. O próprio phainestai (antes da sua determinação em fenómeno ou em phantasma, portanto em fantasma [fantôme]) é a possibilidade mesma do espectro, ele traz a morte, ele dá a morte, ele trabalha no luto.» (DERRIDA, Jacques, «L'apparition de l'inapparent», Spectres de Marx, cit. in PEREIRA, José Paulo, O Exercício da Distância e o Limite do Limite, Lisboa, Vendaval, 2007, p. 67).
Daí que ele parta da constatação do conhecimento, também ele, como movido pela (an)economia do espectral e da compulsão à repetição (a «representação» de qualquer coisa é já uma «repetição») e se pergunte:
E se fosse a própria Coisa, a causa daquilo que se busca e [aquilo] que faz buscar. A causa do saber e da investigação, o motivo da história ou da episteme? (ibidem, p. 15)
Por ela passa, também, o sentido espectral do reenvio de todo o rastro ou vestígio, de toda a inscrição tomada no campo cego da sua iterabilidade. Sabemos, com efeito, que toda a mimesis, toda a representação, supõe a repetição. Mesmo aquela subjacente à introjecção do Outro, a partir da ameaça e da «angústia da castração». E o que está na base desta última é precisamente o espectro, desencadeado pela fantasia reflexa pela qual, ainda no Édipo, revertemos o desejo da morte, da ausência ou do desparecimento do pai na possibilidade da nossa própria morte.
Nesse sentido todo o sujeito se constrói já a partir da experiência do espectro e da espectralidade, que instaura, pela angústia que desencadeia, não apenas a mimesis do modelo parental (é nela que se traduz a «introjecção»), mas com ele, também, o recalcamento, ou a «formação reactiva enérgica», própria de uma Lei que em nós então se instaura ou incorpora. Quer isto dizer: todo o sujeito é já «pré-originária» e espectralmente aberto à Lei que o funda e nele «impõe» ou «implanta» uma identidade. Todo o sujeito o é, com efeito, enquanto sujeito já enquanto sujeito pulsional ou ainda pré-egológico. Mas, como todos também sabemos, não há sujeito que absolutamente se conforme ao colete de forças que lhe é imposto. Ele excede sempre, na ambivalência do seu imaginário, na realidade ambivalente que ele supõe, portanto, o simbólico que ele mesmo interpela e o molda, sem que todavia o reduza.
5. Ora, neste mundo de latência e nesta disjunção espectral do espaço-tempo dito «presente», mais do que «mundo» e «tempo» apenas de «realidade» (ela é já da ordem do espectro, na instabilidade «actu(virtu)al» dos seus possíveis), é natural que a ficção nos dê, mais acentuadamente, o sentido fantasmático de uma possibilidade efectiva já contida em todo o «virtual». É por isso, ao virtual, hoje impossível dissociá-lo das potências do efectivo. Tal como é hoje impossível pensar o efectivo dissociado das potências do virtual. Não há, já, nenhuma «dialéctica» (marxista ou qualquer outra), nenhum «trabalho do negativo» que nos valha, como horizonte ou utopia histórica. Vivemos, neste espaço-tempo do actu(virtu)al, a uma escala sem preceden-tes e nunca imaginada, a experiência do choque que Walter Benjamin pensara, por exemplo, em «Sobre Alguns Motivos na Obra de Baudelaire», a partir da sua leitura de «Para além do princípio do prazer» de Freud.
6. Ora, talvez hoje se possa perceber melhor o quanto a dita «arte abstracta» constituiria ainda um «avatar» do «pós-industrial», como nos parece insinuar Rosalind Krauss, quando nota que ela é apanhada numa inversão pela qual, em lugar de se afastar do espaço do mundo, é precisamente o espaço do mundo que nela entra.
7. O que há de «unheimlich» em Plot 28, a meu ver, atinge-nos em pleno quando a primeira personagem pivot da narrativa descobre, na sequência do encadeamento lógico-dedutivo em que se insere, na narrativa, a sobreposição da «transparência» ao mapa topográfico, a sua rasura: «parcela» colhida na «trama» urdida que, pelo enquadramento, operado (de todos os lados) pela instalação do parque urbano e industrial, absorve o espaço vital de Damian. A conjugação disso com o que nos viria a dizer o seu «psiquiatra», a propósito do perigo dos sonhos e da excelência da «arte abstracta» que invoca (como caução estética do crime, mas que traz consigo, sabemo-lo pelo filme, o apagamento do passado de Damian) relembra-nos a tese de Rosalind Krauss, acerca dos mitos da vanguarda e, em particular, da sua tentativa de distanciação do mundo e do discurso.
8. Plot 28 dá-me, enfim, esta impressão (a «impressão» supõe, aqui, marca impressa, ou ainda, também, já o sentido do «choque» ou do «trauma»): a de um espaço-tempo do presente e da memória como espaço-tempo laminado, folheado, desprendido ou descamado, em cortes sucessivos que apagam e, simultaneamente, revelam «a aparição do inaparente», na «espectralidade» do real e do presente, quer ele diga respeito ao sujeito, quer à realidade que o envolve.
9. Fica-se então com o sentimento e o pressentimento de que é precisamente quando temos a impressão de que nada acontece que alguma Coisa acontece «fora dos nossos olhos». A «ficção» contemporânea, não se teria ela descoberto «a si mesma» na «História», enquanto virtualidade do actual e actualidade do virtual? Não será «o efeito de écrã» da «História», quando ela nos desvia a atenção, o seu operador metonímico, ou o seu grande «simulador»? Não será mesmo assim que qualquer poder hoje opera - por desvio ou diversão da atenção? Eis o que Roland Barthes nos dizia, em 1975 (seria bom não o apagar, também a ele, da nossa memória, não é verdade? E para quem não gosta, paciência: que se há-de fazer?):
10. «Actualmente as coisas estão a mudar. A «literatura», o texto, não podem continuar a coincidir com a função de mathesis [...]. O mundo é demasiado surpreendente, o seu poder de surpresa é tão excessivo que ele escapa aos códigos do saber popular. Assim, Brecht fazia notar, muito justamente, que nenhuma literatura se poderia encarregar do que se tinha passado nos campos nazis de Auschwitz e Buchenwald. O excesso e a surpresa, tornam impossível a expressão literária. A literatura, como mathesis, era o fechamento de um saber homogéneo. O facto de a literatura não poder continuar a ser uma mathesis é visível na ausência de romance realista, embora as condições políticas da sociedade não tenham fundamentalmente mudado. [...] Os textos tentam, então, constituir uma semiosis [...] isto é, uma encenação do simbólico, não do conteúdo, mas dos desvios, dos regressos, em resumo, das fruições do simbólico.» (BARTHES, Roland, «Literatura / Ensino: entrevista conduzida por André Petitjean, 1975», O Grão da Voz, trad. de Teresa Menses e Alexandre Melo, Lisboa, Edições 70, 1982, pp. 233-234). Já lá vão, portanto, 34 anos...