domingo, 30 de outubro de 2011

Jacques Derrida, Giorgio Agamben e... «a vida nua»


 Francis Bacon, Untitled, 1946.

The Lives of Animals, do sul-africano John Maxwell Coetzee, é um extraordinário exercício de ponderação, posto na forma do ensaio-ficção, não apenas sobre aquilo que a nossa forma de tratar os animais implica, do ponto de vista dos seus pressupostos, mas também sobre o que nela se indicia, no âmbito mais alargado da nossa construção do lugar do outro. Aí podemos, pelo espelho da sua ficção observar, não apenas a convergência (a cumplicidade da tradição) da filosofia e a realidade de uma certa prática, muito disseminada, de exclusão, mas também a linguagem como espaço de acolhimento, abertura de uma certa transgressão do limite que conferirá, de resto, nas palavras da sua personagem principal, um lugar especial ao que releva da literatura.

No interior de
The Lives of Animals - mediado pela sua protagonista, a escritora sul-americana Elizabeth Costello - há, portanto, um debate filosófico. E ele desdobra-se em torno, não apenas dos pressupostos do pensamento Ocidental, acerca do que se tem chamado «o animal» - como se fosse possível reduzi-lo, na sua complexa heterogeneidade, a essa espécie de zoográfica ficção de uma animalidade pensada, simplesmente, como «vida nua» (e é precisamente uma noção de Heidegger e, depois, de Walter Benjamin; embora a relação de Heidegger com o biologismo moderno seja criticamente complexa a internamente diferenciada), a noção de uma «vida sem mais», pré-conceito que, como se sabe, trabalha, também, no interior da descrição que, Giorgio Agamben, (nos seus três livros dedicados ao «holocausto», mas sobretudo em O Poder Soberano e a Vida Nua) como o título deixa claro, herda de Walter Benjamin - mas também do tipo de pensamento que os sustenta.

Ora, ainda acerca dessa espécie de ficção teórica - bastante eloquente, quanto à nossa forma de construção do lugar do outro, que é sempre a da postulada ausência de uma «forma» que nele indicie a virtude (ou a intenção) de uma diferenciação «interna» (o outro como natureza sem lei, ou como as leis de uma natureza sem escolha e, portanto, sem consciência, etc., etc.) - eis o que nos observaria Jacques Derrida, em
L'animal que donc je suis:


L’être des animaux n’est qu’un exemple (zum Beispiel). Mais c’est un exemple fiable, pour Heidegger, de ce qu’il appelle le «Nur-lebenden», ce qui serait «vivant sans plus», la vie à l’état pur et simple. […] Je me demanderai toujours si cette fiction, ce simulacre, ce mythe, cette légende, ce phantasme, qui se donne pour un pur concept (la vie en état pur: Benjamin fait aussi confiance à ce qui n’est sans doute lá qu’un pseudo-concept), n’est justement pas la pure philosophie devenue symptôme de l’histoire qui nos occupe ici. Cette histoire, n’est-ce pas celle que se raconte l’homme, l’histoire de l’animal philosophique, de l’animal pour l’homme‑philosophe? (DERRIDA, Jacques, L'animal que donc je suis, Paris, Galilée, 2006, p. 42)

Não seria pois difícil imaginar o tipo de crítica a que, em contrapartida, em reacção às invectivas de Giorgio Agamben, Jacques Derrida recorreria, procurando situá-lo nessa sua acusação.
A crítica da mesma distinção, enfim, em que incorrem também Heidegger e Walter Benjamin, a propósito desse pseudo-conceito. E essa primeira crítica seria, talvez, a seguinte: os pretensos cuidados filológicos de que Agamben se rodeia tê-lo-iam feito assentar todo O Poder Soberano e a Vida Nua na retransmissão de uma ficção, uma distinção forçada, uma descriminação de termos opostos, respeitantes a um par antonímico e antinómico que, no entanto, nunca funcionou inteira e verdadeiramente como tal, na língua grega. Jacques Derrida di-lo em vários lugares, sem que todavia, se refira sempre a Agamben. Um desses lugares é La bête et le souverain I:



Toute la stratégie démonstrative de Agamben, ici et ailleurs, mise sur une distinction ou une exclusion radicale, claire, univoque, chez les Grecs, et chez Aristote en particulier entre la vie nue (zôê), commune à tous vivants (animaux, hommes et dieux), et la vie qualifié comme vie individuelle ou vie de groupe (bios: bios theôrêtikos, par exemple, vie contemplative, bios apolaustikos: vie de plaisir, bios politikos: vie politique). Le malheur, c'est que cette distinction n'est jamais si claire et assurée, et que Agamben doit lui-même admettre qu'il y a des exceptions, par exemple dans le cas de Dieu qui mène, dit la Métaphysique d'Aristote, une «zôê aristê kei aidios», une vie noble et éternelle; une distinction sémantique si peu assurée ne saurait servir à déterminer une périodisation historique, celle qui fait dire à Agamben [... que] «ce qui charactérise la politique moderne [...] est plutôt que, parallèlement au processus en vertu duquel l'exception devient partout la règle, l'espace de la vie nue, situé à l'origine en marge de l'organisation politique, finit progressivement par coïncider avec l'espace politique, où exclusion et inclusion, extérieur et intérieur, bios et zôê, droit et fait, entrent dasn une zone de indifférentiation irréductible». (DERRIDA, Jacques, La bête et le souverain - I (2001-2002), Paris, Galilée, 2008, pp. 420-421). 

Portanto, em primeiro lugar, se essa distinção nunca foi segura, custa a Derrida compreender como se pode sustentar uma tese que sobre ela assente. Mas, em segundo lugar, é também tão difícil de compreender a sua afirmação de que haja aí alguma coisa de novo, quanto Agamben,
«levando a sério a ideia foucauldeana de uma bio-política especificamente moderna, se atém a lembrar que ela é tão antiga quanto possível, imemorial e arcaica» (Ibidem, p. 421).