Luís Carlos Patraquim:
Metamorfose
Ao Poeta José Craveirinha
quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento do mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade
os jacarandás explodiam na alegria secreta de serem vagens
e flores vermelhas
e nem lustro de cera havia
para que o soubesse
na madeira da infância
sobre a casa
a Mãe não era ainda mulher
e depois ficou Mãe
e a mulher é que é a vagem e a terra
então percebi a cor
e metáfora
mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
das mambas cuspideiras nos trilhos do mato
falemos dos casacos e do medo
tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes
e as espigas de bronze
as rótulas já não tremulam não e a sete de Março
chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia
de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando
a natureza e o chão no parnaso das balas
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo
enquanto os tocadores de viola
com que latas de rícino e amendoim
percutem outros tendões da memória
e concreta
a música é o brinquedo
a roda
e o sonho
das crianças que olham os casacos e riem
na despudorada inocência deste clarão matinal
que tu
clandestinamente plantaste
AOS GRITOS
segunda-feira, 26 de abril de 2010
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Avulsos 15: Deleuze - a linha quebrada do devir...
Gilles Deleuze
«Quando se trabalha está-se forçosamente numa solidão absoluta. Não se pode fazer escola, nem fazer parte de uma escola. Há apenas trabalho nas trevas, e clandestino. Só que é uma solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, de fantasmas nem de projectos, mas de encontros. Um encontro, é talvez o mesmo que um devir ou umas núpcias. É do fundo dessa solidão que se pode dar qualquer encontro. Encontram-se pessoas (e por vezes sem as conhecer nem as ter jamais visto), mas também movimentos, ideias, acontecimentos, entidades. Todas estas coisas têm nomes próprios, mas o nome próprio não designa de modo algum uma pessoa ou um sujeito. Designa um efeito, um ziguezague, alguma coisa que passa ou que se passa entre dois como sob uma diferença de potencial: «efeito Compton», «efeito Kelvin». Dizemos o mesmo a propósito dos devires: não é um termo que devém o outro, mas cada um encontra o outro, um único devir que não é comum aos dois uma vez que não têm nada a ver um com o outro, mas que está entre os dois, que tem a sua direcção própria, um bloco de devir, uma evolução a-paralela [...] sempre «fora» e «entre». (DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire, Diálogos, trad. de José Gabriel Cunha, Lisboa, Relógio d'Água, 2004, p. 17)
Portanto, 1. O nome próprio designa um «devir». Não designa, nem uma pessoa, nem um sujeito, como ali se lê. Mas um «devir» não é, por sua vez, uma «transformação» - entre dois seres, por exemplo de x em y - nem uma identificação entre dois termos de uma relação, no espaço ou no tempo. Em suma, o devir não é uma «assimilação» a alguma coisa ou a algum sujeito, uma assimilação na qual «alguém ou alguma coisa» pudesse vir a tornar-se em outro «alguém ou alguma coisa». O devir não é, portanto, um desenvolvimento moldado por um telos.
«Devir nunca é imitar, nem fazer como, nem uma sujeição a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de que se parte, nem um ao qual se deva chegar. Também não há dois termos intermutáveis. A questão «o que é que tu devéns» é particularmente estúpida. Porque à medida que alguém devém muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenómenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução a-paralela, de núpcias entre dois reinos. As núpcias são sempre contra-natura. As núpcias são o contrário de um casal. Já não há máquinas binárias: questão-resposta, masculino-feminino, homem-animal, etc.» (ibidem, p 12)
2. Assim, um encontro é uma relação não binarizada, aberta e capaz de suscitar um movimento que tende a escapar à estrutura da binaridade (passe o pleonasmo), que é própria das relações de dominação: o devir é um movimento de dupla captura, e essa sua assimetria e esse seu carácter a-paralelo, é uma das características da sua linha de fuga. A sua destinação desloca-se, portanto, na medida da sua própria mudança, do seu próprio movimento, porque esse seu movimento é lateral ou desviante em relação a si mesmo, isto é, em relação a qualquer destinação pré-estabelecida, a qualquer orientação, de desenvolvimento, ou de abertura e expansão, de um predicado matricialmente inscrito na sua origem.
3. Não sendo dirigido por uma destinação específica pré-terminada, o devir é, também, inantecipável, visto que encerra em si uma alteridade, que é já propriamente imanente a todo o acontecimento do encontro e ao movimento que ele supõe já. E no entanto, para Deleuze, o movimento do «devir» não é completamente desprovido de sentido, de orientação ou de direcção. Simplesmente, o que o afecta é uma espécie de direcção subtractiva ou privativa de si mesma. Mesmo não sendo moldado por um telos, ele possui uma finalidade imanente - dirá Deleuze, noutros textos - que é a de fugir à rostidade e, portanto, também ao telos que ela pressupõe.
4. Digamos, então, que não é possível pensar o devir nos termos de uma história, uma vez que esta se limitaria a desdobrar o telos de uma potência já dotada de um sentido específico, a desenvolver a dimensão de uma orientação matricialmente inscrita, ou uma direcção prévia e imaginariamente originária. Neste sentido, o «devir» pressupõe, nada mais nada menos que uma «des-figuração»: um «devir-menor», um «devir-imperceptível» - uma demarcação de toda a «figura» e, portanto, da relação binária que constrói a ilusão da plenitude presente da sua forma. Ele representa uma linha de fuga em relação à rostidade, à significação ou à «forma» imobilizadas.
5. Ele representa, enfim, dito ainda de outro modo, talvez mais simples, uma fuga ao «modelo da maioria» ou à aceitação do princípio dominante da existência do seu limite estanque, e uma demarcação da relação de dominação que, inevitavelmente, os sustenta (a esse modelo e aos limites que ele implica). O devir-impercetível é, assim, numa palavra, uma fuga em relação à significação e ao «rosto», ao imperativo da revelação ou à impossibilidade de reserva ou de segredo, tal como é concebido por Deleuze. O «devir» não é, por isso, enquadrável pela história, ou pela ideia de um desenvolvimento. Ele dela se desvia, tanto quanto da «rostidade», ou de qualquer telos.
6. Ele supõe aquilo a que poderíamos aqui chamar uma «historicidade sem história» ou, retomando uma fórmula de Roland Barthes, retirada do seu ensaio sobre Eisenstein, O Terceiro Sentido: «a história em fuga do seu próprio interior»... Assim, temos então o seguinte. Que, se a linha do «devir» é, para Deleuze, em «ziguezague» - conforme se lê em cima, na citação, isto é, se ela é «uma linha quebrada» - é, precisamente, por uma série de razões que se poderiam enumerar:
a) porque o «devir» descola sempre de um «diferencial de potência» que está em jogo entre ambos os termos da relação de dominação estabelecida. Essa relação de dominação é sempre assimétrica e anacrónica, no seu desnível entre os seus termos marcado e não marcado, em cada processo estrutural de binarização, que a exemplaridade de «o rosto» envolve; b) porque ele supõe uma linha de fuga que é transversal em relação às linhas de delimitação estanque ou de paragem em que a binarização se traduz: o «devir» corta ou suspende as linhas-limite do que se detém, na relação binária, como paragem;
c) porque nessa sua suspensão micropolítica do limite (binário), o devir é sempre duplo, uma vez que ele é a-dialéctico, e supõe a impossibilidade da síntese, o desvio da rostidade, etc.: o «devir» é sempre pelo menos duplo - o movimento de uma dupla captura - e são sempre pelo menos dois os devires que se traçam, em simultâneo, num bloco de devir, sem que todavia formem alguma vez par, como modos de deslocamento assimétricos e de movimento a-paralelo, respeitantes aos movimentos que afectam cada um dos termos que ele desloca, e que nele de si próprios se deslocam, ou aos movimentos nos espaços «entre», que são os espaços da vizinhança ou do encontro, que diz respeito aos termos que nele entram, e nele se diferenciam, demarcam ou deslocam de «si mesmos», sem que se possa antecipar a direcção desse seu «movimento de devir». Eis um exemplo, que nos seria aqui útil, e que vem a propósito do tema geral deste blogue:
«Não é o homem que canta ou que pinta, o homem devém animal, mas precisamente ao mesmo tempo que o animal devém musical ou cor pura, ou linha espantosamente simples: no caso dos pássaros de Mozart, é o homem que devém pássaro, porque o pássaro devém musical. O marinheiro de Melville devém albatroz, quando o albatroz devém a extraordinária brancura, pura vibração de branco (e o devir-baleia do capitão Achab forma um bloco com o devir-branco de Moby Dick, pura muralha branca). Então será isso pintar, compor, escrever? Tudo é uma questão de linha, não há diferença considerável entre a pintura, a música e a escrita. Estas actividades distinguem-se pelas suas substâncias, os seus códigos e as suas territorializações respectivas, mas não pela linha abstracta que traçam, que passa entre elas e as arrasta para um destino comum. Quando se logra traçar a linha pode dizer-se que «é filosofia». Não porque a filosofia seja uma disciplina última, uma raiz última que conteria a verdade de todas as outras, pelo contrário. Nem tampouco por ser uma sabedoria popular. Mas, pelo contrário, porque a filosofia nasce ou é produzida do exterior pelo pintor, o músico, o escritor, cada vez que a linha melódica implica o som, ou a pura linha traçada, a cor, ou a linha escrita, a voz articulada». (ibidem, p. 93)
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