Auto-retrato no túmulo do
arquitecto egípcio Senmout,
da XVIIIª dinastia, servidor
da rainha Hatchepsout.
I - 1. Valeria a pena regressar a algumas das observações que se fazem em Fragmentos de Leitura 17: Acerca do (auto-)retrato I (entre a Besta de Lascaux e a arte contemporânea: nota 1), publicado aqui no blogue. Na sua obra sobre o auto-retrato, Omar Calabrese lembra que, embora aquilo que hoje designamos por auto-retrato tenha tido a sua origem no século XV (preciamente com o «cripto-retrato» ou o retrato «in assistenza») e se tenha tornado, gradualmente, no decurso dos séculos XVI e XVII, num género autónomo, há também exemplos de auto-representação nas culturas quer antiga, quer medieval.
Os exemplos que apresentamos abaixo são apenas dois, de entre os possíveis, de auto- representação na Idade Média - primeiro o detalhe de uma gravura de Herrade de Landsberg e, a seguir, um auto-retrato esculpido de Mestre Matteo. Outros exemplos, mais remotos, seriam ainda possíveis (na estatuária egípcia, por exemplo, como o mostra a estátua de Senmout, arquitecto egípcio da XVIIIª dinastia, na primeira imagem, aquela com que este «post» abre, ou na ilustração de vasos e na estatuária grega).
2. Há de resto, vários relatos antigos, que nos dão conta da sua ocorrência. O relato de Plínio, o Velho, acerca das estatuetas daqueles que, com três ou mais de três vitórias nos jogos, tinham nelas direito à reprodução das suas feições. As restantes estatuetas seguiam uma forma genérica. Ou o relato de Plutarco, acerca do escândalo provocado pela decisão de Fídias de inscrever a sua figura numa das esculturas públicas que realizou. Haveria, mais tarde, além disso, na cunhagem de moedas romanas, muitas vezes a reprodução, em perfil ,da figura dos benfeitores das cidades, como forma de reconhecimento e comemoração do seu gesto e da sua generosidade. Ora, tratar-se-ia aí, verdadeiramente, de «auto-retratos»? É interessante essa questão, - e seria útil pensar um pouco neste ponto, fazendo-o, evidentemente, com a ajuda de Calabrese - para tentar compreender melhor o que aí estará em jogo.
Herrade de Landsberg - Detalhe de
gravura em cobre (48,5 x 38,5) -
Hortus Deliciarum, século XII.
3. Seria então preciso começar por lembrar, de uma maneira geral, as condicionantes (de carácter filosófico, sócio-cultural e mesmo económico) que terão inibido a instalação, mais cedo na história do Ocidente, do auto-retrato enquanto género autónomo. Certamente, não apenas escultores, mas também, copistas, gravadores, iluminadores, arquitectos e pintores expressaram o que se poderia considerar, à primeira vista e em retrospecção, como a vontade de afirmação da sua «identidade». De resto, como consideram alguns dos especialistas actuais dessas culturas antigas, não era por falta de saber, nem por ausência de meios técnicos para a reprodução segundo o critério do semelhante, que essa auto-representação não se instituía. Que condicionantes aí intervinham?
Como lembra Calabrese, nem: a) a secundarização antiga e medieval do trabalho manual em geral (condicionante sócio-cultural, digamos), em relação ao trabalho intelectual ou espiritual, nem b) o relativo descrédito do trabalho remunerado (esse descrédito cujos ecos podemos reencontrar, ainda, na Crítica da Faculdade do Juízo de Kant, quando este nos fala das «artes mercenárias», separando-as da arte propriamente dita), em relação às actividades artísticas pressupostas como de livre decisão, nem finalmente c) (na Idade Média, tal como já em Platão) a secundarização da relação com o mundo «ilusório» dos sentidos (condicionante filosófica), nenhuma destas razões lhes permitiriam uma afirmação da sua singularidade enquanto artistas, como viria a acontecer, pouco a pouco, a partir do Renascimento e, sobretudo, até ao Romantismo, época em que, finalmente, essa reprodução da qualidade individual (e da diferença subjectiva) se impõem na sua plenitude. Na Idade Média diz, por exemplo, Calabrese: «não importa que trabalho manual pode ser considerado como uma forma de penitência».
Portal da Glória, na Catedral de Saint-Jacques-de-Compostelle, com um Auto-retrato de Mestre Matteo, terminado em 1128.
5. A auto-representação, observa Calabrase, situa-se ainda no âmbito de um conceito de identidade que, herdado da Lógica de Aristóteles, não coincide, afinal, com o conceito moderno que é ainda o nosso. Daí, por exemplo, os retratos de «identidade genérica», como lhes chama Omar Calabrese. Um exemplo: o de uma das gravuras de Herrade de Landsberg, «superiora do mosteiro de Hohenburg, [que] deixou mais de seiscentas e trinta e seis miniaturas explêndidas no seu Hortus Deliciarum; uma de entre elas, que apresenta a comunidade, traz à margem a sua efígie, destacada da sua descrição» (CALABRESE, Omar, L'Art de l'autoportrait, op. cit., p. 44), precisamente aquela que aqui mostramos.
Pieter Brueghel, o Velho, A Dança do Casamento, 1566.
II - 1. Ora, o «retrato de identidade genérica» é, na terminologia usada por Calabrese, precisamente aquele que afirma a «identidade específica» do retratado. Quer isto dizer, aquele que põem em contacto um determinado ente, na sua particularidade, com a «espécie» a que «pertence» e a que, por isso mesmo, é identificado como sendo um dos seus exemplares. Para esse tipo de identificação, o recurso é o apagamnto dos traços individuais em favo dos que são comuns a todos os exemplares da espécie. No caso da imagem de Herrade de Landsberg pode observar-se que, uma mesma figura, cujo formato é relativamente padronizado, é repetida, associando-se-lhe diferentes nomes, cada um deles ligado a um dos membros da mesma congregação.
O que essa repetição induz - com base nessas transposições do mesmo tipo de figura de nome em nome, como se os nomes deslizassem sob a figura, ou ela resvalasse sobre uma certa onomástica - é, portanto, ao sentido de que se trata da afirmação de uma relação de pertença a um conjunto maior, para cada um dos designados. Neste caso, todos eles pertencem a um grupo religioso. Mas ele poderia ser profissional ou simplesmente social. A espécie de «auto-representação», aqui presente, dir-se-ia que ela funciona, pois, em sentido contrário àquele que estamos habituados a ver no auto-retrato, onde a singularidade e a diferença do particular se manifestam qualitatia e visualmente. Definir-se um ente segundo a sua «espécie» foi, portanto, o que aí esteve em causa.
Herrade de Landsberg - gravura
em cobre (48,5 x 38,5) - Hortus
Deliciarum, século XII.
2. Os conceitos de identidade legados por Aristóteles - e a que Calabrese se reporta - são três: o de identidade numérica, o de identidade qualitativa e o de identidade específica, a que acabámos de nos referir. Citá-los-emos a partir do modo como Calabrese se lhes refere. A identidade numérica verifica-se quando «um fenómeno possui uma série de 'traços' que o caracterizam como um facto individual e único (para compreender o que é um 'cão' devo saber o que é 'um cão', afirmava Aristóteles)» (Ibidem, p. 45).
E a identidade qualitativa quando «um fenómeno possui uma série de qualidades que o tornam 'diferente' dos outros. As qualidades características que permitem afirmar que um dado indivíduo é 'esse indivíduo' dependem dos conhecimentos que se tem dele e que devem ser entendidos como sintomas. A título de exemplo, as impressões digitais permitem-nos afirmar com uma certeza razoável que uma pessoa é identificável por um nome e um patronímico, mesmo se, segundo a lógica, é sempre possível que duas pessoas apresentem impressões idênticas. Em conclusão, a identidade qualitativa de cada um é confirmada por signos que são o testemunho da sua 'parecença' consigo mesmo». (Ibidem, p. 46)
Enquanto que a identidade numérica se refere ao conjunto de traços que definem um (ser ou um) facto individual, a identidade qualitativa refere-se não a um conjunto mas precisamente àquilo que lhe é contrário: ao ser único que disjunta ou separa o ente de qualquer conjunto, ao ente, em suma, no seu ser particular, apenas encarado, do ponto de vista da persistência da diferença que lhe é própria, como auto-referível. (A «identidade qualitativa» referir-se-ia, quando muito, ao conjunto de um determinado elemento consigo mesmo). A identidade qualitativa supõe, portanto, não a relação de pertença, mas a não-relação de espécie. Ora, o que as auto-representações até então existentes seguem são padrões de identificação específica e numérica, dirá Calabrese. Quer dizer, a «identidade qualitativa» não é, finalmente, solicitada a não ser a dado momento da história da cultura do Ocidente, que será, grosso modo, o dos primórdios do Renascimento e, um pouco mais tarde, o da instauração da Modernidade.
3. O que equivale, ainda, a dizer que a etapa da auto-representação seguinte à da identidade genérica, como notará Calabrese, não pode deixar de ser a do cripto-retrato ou do auto-retrato dissimulado no retrato de grupo, como ele ocorre na pintura histórica, sagrada e profana, dos princípios do Renascimento, a partir do século XV. Porquê? Pelas seguintes razões: a) porque o pintor é ainda um «artesão», o que supõe que ele não é tema legítimo de qualquer auto-representação isolada que tome como pressuposto a sua «identidade qualitativa», de per si; b) uma vez que o trabalho manual é secundário, e é encarado como da ordem da penitência, durante a Idade Média; c) no sentido em que dá a imagem de si como uma de entre várias, na dissimulação de uma sua diferença que começa, no entanto, aí a esboçar-se, e no sentido em que essa imagem de si constitui, inicialmente, um equivalente da assinatura, numa época em que a assinatura se mantém ainda como marca de fabrico, mais do que propriamente como designação de qualquer «identidade qualitativa».
Iluminura (1402).
A «imagem de si» é portanto, ainda aí, a) uma marca relativa a um fazer, mais do que a uma subjectividade; b) um operador de indicação de uma relação de pertença a um conjunto maior. E ela manifesta-se, igualmente, nos de uma pintura que Leon B. Alberti descrevia como histórica. Diz, então Calabrese:
«Uma consideração ressalta da rápida apreciação que acabámos de esboçar: os exemplos que citámos até agora não são verdadeiros auto-retratos. Apenas uma circunstância permite atribuir um corpo e um rosto a uma personagem determinada, a saber a presença do seu nome numa inscrição ou legenda. Na ausência do nome, ou no caso da mudança do nome [como se verifica na gravura de Herrade de Landsberg] as imagens poderiam ser as de não importa quem. Não se poderia, no entanto, negar que existe, numa certa medida, um desejo de afirmação de identidade. Os «auto-retratos» que examinámos até aqui apresentam, com efeito, as seguintes características:
a) - eles apresentam o equivalente de uma assinatura; essa assinatura, todavia, corresponde à sua fase inicial, dito de outro modo, a uma espécie de abreviação da proposição «X fez isto», na terceira pessoa e sem conter o conceito, totalmente moderno, de autografia. - b) eles são a marca de uma profissão; quer dizer testemunham a pertença do indivíduo designado a um certo corpo de métier ou a uma organização de trabalho. É preciso notar, isso nada tem de fortuito, que as associações de artesãos não nascem senão no fim da Idade Média, a partir do século XIII, momento em que se estabelecem os estatutos das guildas ou das corporações. - c) eles indicam a pertença a um grupo social mais extenso que o seu grupo de origem - é o caso dos monges e das religiosas, reconhecíveis pelo traje e pela tonsura - ou de estatuto mais elevado (é o caso de Senmout e de Imhotep, tornados altos funcionários do reino do Egipto). - d) eles podem introduzir, na Idade Média em todo o caso, um conceito de valor, de tipo ético ou religioso, por outras palavras, a ideia da penitência representada pelo trabalho [manual] (é nesse sentido que é preciso interpretar a «vigneta» de Hildebert e de Everwin: como distracção da tarefa fundamental do escriba)».(Ibidem, p. 45)
4. O que a auto-representação assinala, nessa pintura, é portanto: 1. enquanto assinatura, a relação de atribuição, na proposição «alguém» (X) - designado de fora (isto é, na terceira pessoa: «ele», Mestre Matteo; «ela», Herrade de Landsberg, etc.) - «fez aquilo que aqui se vê»; na verdade, a imagem apenas é de si porque lhe é atribuído um nome próprio que coincide com o do autor. E se ela diz essa autoria é por encaixe da proposição da relação de atribuição, no texto da obra atribuída; tudo aí se passaria como se a obra ela mesma dissesse quem a fez; 2. enquanto imagem, ela assinala a pertença a um grupo social, de estrato mais elevado, ou de âmbito mais alargado do que o da sua origem; 3. enquanto marca de profissão, a pertença a uma organização social de trabalho; 4. enquanto marca de actividade, a sua relação com alguma forma de valor de tipo ético, como é o caso dos trabalhos manuais (por exemplo o dos escribas e o dos iluminadores, pintores, etc).
Em nenhum momento a imagem de si constitui sintoma ou testemunho de que a figura do representado se pareça «consigo mesma», de que ela persista a mesma, na sua diferença, e na sua singularidade. Pelo contrário, ela parece-se com os da mesma profissão ou organização de trabalho, os de um mesmo estatuto ou grupo social, ou os de uma mesma confissão religiosa, os de uma mesma atitude (no caso da penitência encarada como valor ético). O que acontece é portanto que esses retratos mais não fazem do que abrir-se à afirmação de uma identidade específica - de relação de pertença de um elemento a uma espécie - e de uma identidade numérica - em que, por exemplo, «ter um nome» constitui um dos traços característicos que, conjuntamente com outros, forma o número dos traços necessários para a composição do indivíduo genérico - que constitui o denominador comum de que algum enten em particular é uma manifestação.
O indivíduo, tomado na sua singularidade (e não na sua generalidade), não é ainda um valor. Apenas com a consagração de uma diferente espécie de identidade ele se assumirá, na pintura do século XVII, por exemplo, como motivo suficiente para o estabelecimento de um género autónomo, embora ainda um género relativamente secundário, se confrontado com a pintura histórica de que nos fala Leon B. Alberti, tal como, de resto, secundários serão os géneros da «paisagem», ou da «natureza morta», também eles surgidos, enquanto géneros autónomos, no mesmo século XVII. E o exemplo moderno paradigmático da formulação dessa nova identidade é atribuído, por Calabrese, ao filósofo John Locke.
III - 1. Um outro aspecto, que valeria a pena abordar, seria o da decadência e o das formas que se seguem ao cripto-retrato. A voga do «cripto-retrato», ou do retrato «in assistenza», que se seguirá, logicamente, como diz Calabrese, à voga do retrato de «identidade genérica» (cf. Fragmentos de Leitura 17: Acerca do (auto-)retrato I (entre a Besta de Lascaux e a arte contemporânea: nota 1, aqui no blogue) - no qual o auto-retratado surge como presença relativamente marginal, dissimulada entre muitas outras, numa cena narrativa mais vasta da história (sagrada ou profana) - sublinha já um aspecto que nos interessa aqui sublinhar. O que justifica a presença do artista na cena (da história sagrada) representada na tela é, do ponto de vista ético, a sua devoção (como de resto já acontecia, também, nas auto-representações medievais, em que o artista aparece em acto de oferenda ou de oração, ou mesmo no caso das iluminuras, em que o escriba e o iluminador aparecem representados, uma vez que esse trabalho manual é associado à ideia de penitência).
No caso abordado em Fragmentos de Leitura 17: Acerca do (auto-)retrato I, tratava-se de O Cortejo dos Reis Magos, de Gozzoli. Mas muitos outros exemplos se poderiam aqui alinhar. O curioso é que, por dentro do cripto-retrato, nos finais do século V, começa a aparecer uma variante do auto-retrato in assistenza que é já sintomática da sua decadência: a do «auto-retrato honorífico». Na verdade, em que consiste ele? Em fazer aparecer o pintor, já não dissimulado no seio de um grupo, mas sob a forma de uma representação pictórica, (citada ou) colocada no próprio espaço representado pelo quadro. Vejamos aqui um exemplo. :
Pinturicchio, Anunciação (1500).
Na parede do lado direito da arcada está pendurado o seguinte auto-retrato do seu autor:
O enquadramento isola-o nesse espaço, colocando-o num lugar reservado, na parede, a expor, habitualmente, os que se distinguem pelas suas qualidades e virtudes, por vezes acompanhado por certo tipo de inscrições ecomiásticas que (como no caso de um outro pintor, Perugino, comentado por Calabrese) são adicionadas à imagem do pintor, e constituem já um sintoma da voga que, entretanto, o retrato, enquanto género autónomo, vai ganhando. Digamos que o cripto-retrato começa aí a apresentar, no seu próprio interior, com o retrato honorífico, a sua certidão de óbito.
2. Por outro lado, a sua evolução rompe, a partir de uma das suas variantes, (a do auto-retrato in assistenza ligado à participação em cerimónias religiosas), para a deslocação do papel anteriormente assumido pelo artista, de figurante ou de testemunha relativamente marginal, para a sua assunção de um maior protagonismo. Essa passagem é fundamental para a compreensão da evolução do retrato e muito interessante, como prenúncio do que será a alteridade, enquanto dimensão da subjectividade explorada por algum retrato modernista e mesmo pós-modernista. Eis a observação de Calabrese:
Cimabue assiste à Crucifixão, que é talvez o acto fundador do pensamento cristão. Giotto figura entre os eleitos do Juízo Final. Gozzoli toma parte no Cortejo dos Reis Magos. O Orcagna assiste aos Cerimónias Fúnebres da Virgem, Taddeo Bartolo à sua Assunção e Filarete ao Suplício de São Pedro. Vendo bem, todavia, esta situação é a mais corrente e a mais característica do auto-retrato in assistenza e as suas origens são provavelmente muito antigas: certas formas de «retrato» (no Egipto, por exemplo) eram com efeito reservadas unicamente àqueles que podiam ter um contacto com os deuses (CALABRESE, Omar, L'Art de l'autoportrait, op. cit., p. 57).
Vindo à presença dos deuses, colocado em relação com sagrado, para aí se fazer portador da sua mensagem, o pintor, que assiste a certas cerimónias litúrgicas, aí nos chama a atenção para a sua manifestação, ao mesmo tempo que nos assinala, assim, não apenas o seu testemunho, mas também a sua devoção. Por outro lado, uma vez que, depois do século III, a igreja sanciona a função didáctica das imagens, numa espécie de evangelho para iletrados, o seu papel cresce, como já notámos, de importância. E essa justificação da sua presença em cena, como devoto, vai agora de par, também, com a de intermediário, intérprete capaz de traduzir em imagens a mensagem do evangelho. Sujeito produzido pela revelação, sujeito de fé, sujeito do discurso ou do testemunho em imagens. Nessa sua condição, ele participa do sagrado.
3. Quando Alberti, no seu tratado Da Pintura, nos estabelece aquela figura limítrofe (do espectador-comentador), que é também a do «admonitor» - figura da recepção da obra, próxima de um «discurso» (no sentido de Benveniste) que, nela e simultaneamente fora dela, liga a «história» à sua enunciação e, por conseguinte, não apenas a um sujeito enunciador, mas também a um seu receptor (a um seu «enunciatário», para ser mais correcto) - ele teoriza já uma posição discursiva que resulta, historicamente, no retrato in assistenza, desse crescimento de importância dos artesãos, ligados às artes visuais e à representação iconográfica religiosa. Mesmo não se referindo à pintura cristã - o mito da origem da pintura, de que Alberti se serve, no seu tratado, é o de Narciso - antes se referindo, bem pelo contrário, à pintura histórica tout court, o seu «admonitor» é um guia e um intérprete.
Ora, é aqui que nos parece que a visão de Calabrese se torna verdadeiramente interessante: a de que do retrato «in assistenza» derivam possibilidades que vêm, finalmente, a impor a figura do artista, já não como «figurante», mas como figura assimilada por um personagem, mítico-religioso ou simplesmente histórico-mundano, ou ainda mitológico. Tudo começa porque, a par da referência humanista e mitológica ao mito de Narciso, a pintura histórica cristã incorpora também, como fundamento da pintura, não apenas a história de Cristo, que imprime a imagem do seu rosto no lenço de Verónica, a caminho do Calvário, mas também a de São Lucas, que antes de evangelista fôra pintor. Eis o que Calabrese nos diz:
Maerten Van Heemskerck,
São Lucas pintando a Virgem,
1545-1550
«O tipo mais corrente de auto-retrato «delegado», sobretudo sob o primeiro Renascimento, é o que introduz o artista numa cena sagrada sob o nome de um dos protagonistas, ou, mais raro, o que o identifica directamente com uma figura sagrada autónoma. Nessa perspectiva, o tema de São Lucas pintando a Virgem, é sem dúvida aquele que mais contribuiu para a génese do auto-retrato independente. Enquanto que o mundo antigo recorria às fábulas de Narciso na fonte, da amante abandonada a traçar o contorno da silhueta do seu noivo que parte para a guerra, ou do escultor obcecado por uma estátua feminina que é mais bela que as mulheres reais, etc., o cristianismo liga o nascimento da pintura a episódios da vida de Jesus. É assim que aparece a história da «verdadeira imagem» (vera icona), a do Cristo que imprime ele próprio o seu rosto no véu de Verónica durante a subida ao Calvário, ou que deixa o seu retrato na tela do pintor enviado pelo rei de Edesse, Abgar. Mas sobretudo, vê-se elaborar-se o mito de São Lucas que teria sido pintor, antes de se tornar autor de um dos Evangelhos, e que teria tido o privilégio de executar o retrato da Virgem e do seu filho.» (Ibidem, p. 88).
4. A figura de São Lucas é, portanto, uma figura pivot, neste processo que virá a ser a do travestimento da figura do artista nas várias personagens que ele investe, na sua projecção idealizada e alterada. Ela representa, em primeiro lugar, uma figura do pintor «in assistenza», a quem é dado ter as figuras sagradas da Virgem e do Menino como modelos. E, em segundo lugar, a de uma personagem que, na qualidade de «santa», participa desse sagrado de que, ao mesmo tempo, é testemunha. Ora, há toda uma tradição de auto-retrato «delegado», isto é, investido em personagens «outros» (o «auto-retrato» é aqui «delegado» na personagem a que ele dá feições exteriores particulares no sentido em que é a personagem que o transporta consigo e o exibe), que pertencem ao repertório das tradições (mitológicas, ou cristãs). Na imagem a seguir vê-se o auto-retrato de Ghirlandaio, investido na personagem de São José, apontando para o menino Jesus e, em simultâneo, autodesignando-se num gesto que se diria sugestivo da sua relação de paternidade.
Dominco Bigordi, dito Ghirlandaio, Natividade, 1485.
Muitos outros exemplos se poderiam aqui aduzir desse travestimento da figura do auto-retratado numa personagem da tradição religiosa. Um dos seus mais notáveis prenúncios seria o de Albrecht Dürer, na pose do Cristo Pantocreator. «À direita, para o espectador [no quadro]: [...] 'Eu Albrecht Dürer de Nuremberga, fiz o meu próprio retrato com as cores apropriadas no vigésimo oitavo ano da minha existência'. À esquerda, (sempre para o espectador), o célebre monograma de Dürer encimado por uma data, 1500 [embora pintado em 1505], motivo que induz uma coincidência involuntária entre as iniciais do artista e a sigla a significar Anno Domini. 'Involuntária?', mas até que ponto? Sabemos bem que durante toda a sua vida Dürer foi cioso da sua imagem. Esse auto-retrato não foi o primeiro mas o terceiro executado em painel e existem ainda três feitos a pena, todos eles anteriores, dos quais um aos 13 ou 14 anos e um quarto desaparecido. Se pensarmos que já aos 13 anos Dürer desenhava o seu retrato e que o Auto-retrato com ramo de cardo, autografado pela inscrição «Os meus negócios [affaires] seguem o curso que lhes é atribuído lá em cima»: talvez fosse preciso ver já aí a explicação da sua insistência em fazer, do seu próprio auto-retrato, o rasto de um sentimento de predestinação, de fatalidade, de unção divina. De um só golpe, o Auto-retrato de 1500 começa a revelar uma trama escondida. A sua aparência cristológica e a sua geometria «divina» (ele é construído a partir de um quadrado, de um triângulo e de um círculo, como as imagens bizantinas de do Redentor) simbolizam a transcendência do artista criador; quanto à escolha da data, 1500, a metade de um milénio, ela estabelece uma correspondência entre o sentido da imortalidade e o do destino. Pode portanto admitir-se que Dürer estivesse plenamente consciente do sentido que dava ao seu quadro» (Ibidem, p. 92)
Albrecht Dürer, Auto-retrato, 1500.
Os exemplos poderiam multiplicar-se, não apenas no interior da tradição cristã, mas no âmbito dos de inspiração grega e romana, referidos às fontes da cultura humanista,de então, como o de Aert Gelder, auto-retratado como Zeuxis, ou o de Rembrandt, auto-retratado como Demócrito, ou Caravaggio cujo rosto daria expressão a uma cabeça de Medusa, ou que se apresentaria como Baco, como Golias, como Holofernes (à semelhança do que faz Lucas Chranach), ou mesmo como Cristo, ou ainda o exemplo de Artimisa Gentileschi, figurando como Judite, ou de Giorgione representado como David, etc., etc.
À esquerda, Rembrandt, como Demócrito;
À direita, Aert Gelder, como Zeuxis.
(Talvez fosse possível (e desejável) procurar refazer algumas das etapas do caminho que, por esta via, se abre, e vai de Albrecht Dürer e Rembrandt a alguns expressionistas, como Max Beckman e L. Kirckner, que se autoretratam como músicos e soldados, respectivamente, ou a alguns surrealistas como Dalí, com o seu auto-retrato travestido de Mona Lisa, ou a alguns construtivistas, como Vladimir Tatlin, fardado de marinheiro, ou a alguma arte americana, como a de Jackson Pollock, que se auto-retrata como um homem negro e, mais tarde, a uma certa prática do retrato fotográfico, por exemplo em Cindy Sherman... Coisa que deixaremos para mais tarde.)