sexta-feira, 26 de março de 2010

Fragmentos de Leitura 20: Tarkovski - o fluxo do tempo no interior do fotograma


Andrei Tarkovski:
«A imaginação é menos rica do que a vida»

Há tempos, lendo Esculpir o Tempo, expressão que provém de mais de um trecho no livro - um deles num capítulo dedicado ao «tempo, ritmo e montagem» - dei com estas passagens. Eis o que Andrei Tarkovski, para quem «o cinema é o ritmo da imagem» ali nos diz:

O factor dominante e todo-poderoso da imagem cinematográfica é o ritmo, que expressa o fluxo do tempo no interior do fotograma. [...] A imagem cinematográfica nasce durante a filmagem, e existe no interior do quadro. [...] A montagem reúne tomadas que já estão impregnadas de tempo, e organiza a estrutura viva e unificada inerente ao filme; no interior de cujos vasos sanguíneos pulsa um tempo de diferentes pressões rítmicas que lhe dão vida. [...] O tempo impresso no fotograma é quem dita o critério de montagem, e as peças que «não se montam» - que não podem ser coladas adequadamente - são aquelas em que está registada uma espécie diferente de tempo. Não se pode, por exemplo, colocar juntos o tempo real e o tempo conceptual, da mesma maneira que é impossível encaixar tubos de água de diâmetros diferentes. A consistência do tempo que corre através do plano, a sua intensidade ou «densidade», pode ser chamada pressão do tempo; assim, então, a montagem pode ser vista como a união de peças feita com base na pressão do tempo existente no seu interior. (TARKOVSKI, A., Esculpir o Tempo, 2ª ed., trad. de Jefferson Luiz Camargo, São Paulo, Martins Fontes, 2002, pp. 134-135).

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parêntesis I: O «ritmo» é, em sentido etimológico, um movimento medido, regulado. Expressando o movimento do tempo no interior do fotograma ou do quadro (o que não é o mesmo), ele expande-se através da montagem, determinando-a a partir do que Tarkovski aqui chama «o fluxo do tempo» no interior do fotograma. E, no entanto, pensar o movimento do tempo como «fluxo» não seria ainda demasiado concessivo, em relação a um modo de conceber o tempo que seria, finalmente, o de uma linearidade sucessiva, no encadeamento narrativo de acontecimentos?

De que espécie de movimento se tratará portanto aqui, neste fluxo de tempo de que Tarkovski nos fala? Seria interessante poder dar aqui um exemplo desta espécie de tensão interna. Encontrá-la-íamos, por certo, também tratada em outros e em vários autores, de formas diferentes, mesmo que convergentes. E interessaria poder fazê-lo partindo até de autores que, sobre «o quadro» e o «fotograma», especificamente, nunca se teriam explicita e especificamente debruçado. Mais interessante seria, ainda, estudar este assunto com a insistência que lhe convém, abordando então com devida minúcia, as diferenças de tratamento que ele recebe, nesses autores. Isso ser-nos-ia aqui de todo impossível, por razões de espaço e de tempo. No entanto, aqui fica uma breve nota.

O tempo é, de uma forma geral, o que num espaço, a partir dele irrompendo ou a ele sobrevindo, o excede. O que o faz vacilar, na sua linha limite. O que o abre a uma indecisão do limite que representa o seu próprio movimento. O que o abre, finalmente, bem como à imagem que lhe dá corpo, à relação de não-simultaneidade. Embora aqui não seja o momento de mostrar o modo como esse «fluxo» se constitui como uma espécie de linha de fuga - para usar uma expressão cara a Deleuze - ou como ele pressupõe a co-ocorrência de mais de uma inscrição, num jogo de devires que se não deixam sintetizar, mesmo na imagem entendida como memória - num sentido que se aproximaria de Derrida e, por via dele, de Louis Marin - vem a propósito lembrar que Tarkovski fala, em Esculpir o Tempo, pensando nesse «fluxo de tempo», por várias vezes, em «tensão». O fluxo de tempo pressupõe uma tensão, no interior do fotograma.

A ressonância nietzscheana disso é, claro, imediata. E poderíamos, a partir dela, situá-lo, enquanto artista e autor, num plano mais abrangente, (o do que Jacques Derrida chamaria, por exemplo, «um pensamento do jogo, ou Maurice Blanchot e Michel Foucault, um «pensamento do exterior»). Nietzsche falava, por exemplo, em La volonté de puissance, do mundo como «um monstro de força», um «jogo de forças», «um mar tempestuoso de forças». O seu mundo «dionisíaco», é assim que ele no-lo apresenta, enquanto espaço da «vontade de poder», marcado por um sentido do tempo que não é nostálgico, não implica a dor da perda ou da separação, mas antes a sua contra-face: a da sua jubilosa e inocente afirmação do devir. E em Esculpir o Tempo há, também, esse sentido afirmativo de uma certa «inocência do devir» - um além «do bem e do mal», um «além» das oposições consagradas pelo pensamento metafísico: Tarkovski dirá, como veremos, um «além do espírito»... - que encontramos igualmente em Nietzsche.

Por outro lado, haveria também, nessa abordagem de maior fôlego e de mais largo espaço, bem como outro vagar e minúcia, o nexo que nos reenviaria, necessariamente, não apenas à imagem enquanto tempo e movimento - como para Deleuze - mas também à imagem enquanto clivada, como para o Roland Barthes dos textos sobre Eisenstein: o de «O Terceiro Sentido» e o de «O Fotograma, em particular, onde o «sentido obtuso» é o intruso, o visitante que não foi convidado e que insiste em ficar e, embora desprendido da estrutura da linguagem, não menos presente como limite excedido. E também em Louis Marin encontraríamos, por certo, contra a «iconologia» panofskiana, essa mesma espécie de fractura da linha-limite do sentido.

Encontrá-la-íamos, finalmente, em todos estes autores, no acentuar de uma certa dimensão sintagmática da imagem, que a dará como um campo de forças, pelo qual ela se abre ao infinito dos códigos. Louis Marin situá-la-ia naquilo que ele discerne, para a semiologia da pintura, como sendo da ordem da figurabilidade do informe - termo cuja imediata ressonância é, inequivocamente, a de Bataille. Roland Barthes, por seu lado, também já para essa dimensão sintagmática nos chamara a atenção, nos seus Elementos de Semiologia. Embora para ele não se tratasse do informe, mas antes do contínuo. Aliás, exactamente como Bataille, em quem o contínuo tem também um lugar absolutamente decisivo.

Talvez esse estudo contrastivo nos levasse também até Lyotard, a propósito de uma certa figuralidade, em Discours, Figure. E a lista não se ficaria, no entanto, provavelmente, por aqui. Seria difícil resistir à ideia de que Walter Benjamin inscrevia já, no conceito de imagem dialéctica, a dimensão de uma historicidade que poria nela a descoberto aquilo a que, nos termos de Barthes, se poderia pensar como uma certa historicidade sem a história (sobre a qual Didi-Huberman se debruçou já, atentamente, em Devant le temps). O interessante seria, assim, aprofundar e perceber, tão bem quanto possível, as nuances deste campo, pensando-as demorada, contrastiva e transversalmente. O que fica aqui é, portanto, apenas uma anotação, uma «nota de leitura», um apontamento. Ouça-se, por exemplo, a título de aproximação experimental, em relação à citação de Tarkovski, esta passagem de Roland Barthes, a propósito do sentido «obtuso»:

Por outras palavras, o sentido obtuso
não está situado estruturalmente, um semantólogo não reconhecerá a sua existência objectiva (mas o que é uma leitura objectiva?) e se ele me é evidente (a mim), é talvez ainda (neste momento) pela mesma «aberração» que obrigava o solitário e infeliz Saussure a ouvir a voz enigmática, inoriginada e obsessiva, a do anagrama, no verso arcaico. A mesma incerteza quando se trata de descrever o sentido obtuso (de dar alguma ideia de lá para onde ele vai, de lá para onde ele se vai embora); o sentido obtuso é um significante sem significado; daí a dificuldade em nomear; a minha leitura fica suspensa entre a imagem e a sua descrição, entre a definição e a aproximação. Se não podemos descrever o sentido obtuso é porque, contrariamente ao sentido óbvio, ele não copia nada: como descrever o que não representa nada? O «restituir» pictural das palavras é aqui impossível.


II - Observe-se, em primeiro lugar, a nota quanto a essa incerteza do destino do sentido obtuso. Não se pode antecipar o seu destino. Não se pode antever a dimensão e a velocidade de precipitação, ou mesmo a direcção, nessa sua abertura para outra coisa, a outro tipo de relação. Trata-se de um sentido que está de partida, em demarcação de si mesmo, sem que todavia possamos antever, prever ou ante-prever o seu lugar de repouso, o seu ponto de chegada, de precipitação ou de depósito, de satisfação plena ou, inversamente, de auto-dissipação. Essa sua tensão entre reenvios, essa tensão da força consigo mesma, essa dobragem no plural de uma não-simultaneidade (ou de uma multiplicidade heterogénea) que a imagem faz por ocultar no seu «agora» aparente, sem que todavia deixar de a fazer saltar à vista na transcendência prometida do óbvio, essa espécie de presente pleno que a camufla por uma totalidade que se furta à abertura do infinito, ao infinito como aberto e incompleto, que a faz despercebida, portanto, no que toca ao antagonismo das forças que a atravessam, esse seu aparente presente sob o qual e no que ela se desloca temporalmente, elege-o como um sentido simultaneamente actual e virtual: um sentido actu(virtu)al.

Em primeiro lugar porque, como diz Barthes, ele não é «estruturalmente situado». Ele não existe na estrutura da linguagem ou ao nível apenas da «linguagem articulada». Não faz estrutura. Não se pode encontrá-lo, de resto, em nenhum dicionário. A aproximação com os anagramas de Saussure é, aqui, também uma indicação preciosa. Alguma coisa nesse «sentido obtuso» implica uma espécie de ressonância, transposição por de contágio ou por propagação. Haverá pois uma dimensão anagramática do sentido obtuso: alguma coisa nele o cliva. Essa sua clivagem suspende nele a forma do conteúdo.

Não pertencendo à «estrutura», é um sentido que resiste à dissimetria e, por conseguinte, à disposição hierárquica que ela também pressupõe. Comparado ao anagrama, ele é bem o que, no interior do sistema, abre o desvão de um seu «exterior» que, no entanto, lhe pertence, o bolso íntimo de uma alteridade irredutível, uma espécie de loucura ou de auto-heteronomia, recolhida nas dobras do que se diria ser um seu «interior». Interior da língua, do quadro, da estrutura, do fotograma... Vê-lo-emos mais adiante... Interessa-nos aqui pensar, da forma o mais inicial e aberta possível, essa espécie de «contra-tempo», sem o qual qualquer «imagem» deixaria, para Tarkovski, necessariamente de o ser. O que é uma «imagem»? Que faz imagem, para o cinema, tal como Tarkovski o pensa? O que é o «cinemático», no «cinematográfico», segundo Tarkovski? O que é o cinemático, enquanto fluxo ou movimento temporal, no interior do quadro ou do fotograma?

Comecemos por aqueles dois aspectos - e respectivas implicações - das afirmações de Tarkovski que aqui mais nos interessarão. Primeiro aspecto: «Uma imagem» não é, para Tarkovski, apenas um eco, uma repetição, ou uma emanação [electro-mecânica, magneto-óptica ou digital, fisíco-química, etc.] do real... É antes uma memória... Uma imagem é um rasto, um sulco, uma impressão do tempo. Lembremo-nos aqui de um dos trechos da citação acima: «O tempo impresso no fotograma é quem dita o critério de montagem, e as peças que 'não se montam' - que não podem ser coladas adequadamente - são aquelas em que está registada uma espécie diferente de tempo». Portanto, «o tempo impresso» no fotograma exerce nele uma determinada pressão sobre o conjunto das peças que a montagem reúne. O que a montagem aproxima é o que, pela sua própria natureza e especificidade, se aproxima já, a partir do interior de cada quadro, de cada fotograma: isso a que tarkovski aqui chama «o tempo impresso», no seu movimento, no seu fluxo.

Alguma coisa aqui se joga já daquele mesmo sentido «obtuso» dos anagramas que seriam a obsessão do infeliz Saussure. Eles também não são, lembremo-lo, já agora, «situados do ponto de vista da estrutura». O tempo existe, no fotograma, como alguma coisa de «não situado do ponto de vista da estrutura». O tempo é, o devir e o por vir da estrutura. Mas em si mesma, ela supõe uma espécie de ocultação do tempo. Uma estrutura é uma forma de «tempo concentrado». Uma «estrutura» é «um concentrado de tempo». E essa concentração cria-nos a ilusão da simultaneidade, da homogeneidade, da ausência de qualquer dobra ou resistência, da pura extensão. A con-centração do tempo é a forma da sua ocultação. Melhor: é a própria forma como ocultação do que no tempo é dissimetria e desequilíbrio, descentramento e jogo, tensão e diferença.

Segundo aspecto das definições de Tarkovski: um estereótipo não dá origem a uma «imagem»... Porque, justamente, o que ele começa por fazer é esvaziar a imagem de qualquer tensão temporal. O que nele e com ele se reduz é precisamente uma certa actualidade e uma certa virtualidade da memória... Quer dizer, uma certa não-simultaneidade da forma do conteúdo que diz respeito á memória. Tarkovski diria talvez que, com o estereotipo, se esvaziaria, em primeiro lugar, a tensão própria ao tempo impresso, força em tensão consigo mesma, que o tempo pressupõe. O estereotipo é a própria negação do tempo impresso. A «imagem» supõe portanto a exclusão do estereótipo.

São vários os exemplos que Tarkovski nos dá desse trabalho de filtragem e de exclusão. Por exemplo: em Andrei Rubliov, há uma cena em que se pensa um homem a lançar-se de um alto com duas asas. Para evitar a conotação com a figura de Ícaro, que a tornaria num lugar comum, Tarkovski põe o homem a voar num balão. Portanto, há um trabalho de desligamento, de metonimização, de dissociação da cena, do fotograma ou já do quadro, de desprendimento, em relação aos seus diversos modos de ancoragem e de estereotipia cultural. É portanto preciso esquivar a cultura, na sua reserva de estereotipia. Ela não existe pronta a exprimir as tensões que nos atravessam. A escrita cinematográfica é, portanto, subtractiva - como diria Barthes da escrita literária. De facto, é preciso desconfiar da linguagem que falamos, assim como da imaginação que temos: porque nem uma nem outra são, simplesmente, do nosso tempo. São, em relação ao que é, para nós, o nosso actu(virtu)al, anacrónicas. São necessariamente mais antigas que nós.

A primeira consequência disto é que a de podermos agora dizer que «a imagem cinematográfica» é, ela própria, necessariamente subtractiva. «Uma imagem» nunca tem a saturação que é própria dos estereótipos. A «imagem» nunca é plena de significado. A sua significação é sempre suspensa num certo limiar. Voltemos agora ao nosso primeiro aspecto: uma imagem não é nunca uma mera repetição, um simples eco ou emanação do real. Aqui, um primeiro sentido de «tempo» se inscreve já: qualquer «imagem» é, enquanto memória, uma repetição que põe em jogo a diferença; mesmo enquanto simples marca impressa (da radiação luminosa que, reflectida por um dado corpo físico ou «objecto»), ou enquanto marca que consagre uma certa emanação do real, ela supõe já a dimensão do rasto, da memória: a dimensão de um «isto foi» que Barthes lembra ser uma fórmula da fotografia - uma marca indiciadora de um outrora presente, que agora se daria como ausente. E a essa nossa memória que a imagem é não é, nem necessariamente «subjectiva», nem exclusivamente «consciente»... Por exemplo, um apontamento escrito é, tanto quanto uma pegada, uma «memória»... Uma aparentemente mais intencional, outra aparentemente menos. «Aparentemente», porque um rastro pode, também ele, ser... simulado. E um apontamento pode, também ele, ser contra-assinado, isto é, inscrever um sujeito plural no lugar em aberto da sua enunciação.

Avancemos, agora, um pouco mais, de novo, para o segundo aspecto: o estereotipo é uma imagem «morta». Poder-se-lhe-ia chamar um rasto apagado? Porquê? Talvez porque, enquanto concentrado de tempo, ele redunde numa significação cuja plenitude traduz a naturalização do histórico, a ocultação do dinâmico. Ou ainda porque, nele, o reconhecimento anula a diferença, a especificidade do nosso encontro com o objecto, a alteridade própria ao acontecimento. Um acontecimento já antecipado não é já um acontecimento. Um acontecimento não é dado na sua previsibilidade. Uma vez antecipado ou previsto ele é saturado de uma significação que o anula ou desqualifica na sua diferencialidade. Dito de outro modo: é necessário que nessa primeira memória da imagem - constituída por essa marca impressa, decorrente dessa dita «emanação do real» - surja alguma forma de «contra-tempo», para que aí se instale algum «movimento», algum «fluxo».

É preciso que haja ali alguma forma de «resistência» (ao estereotipo, à cópia, etc.), para que a imagem se não deixe reduzir à dimensão, certamente apaziguadora, mas também redutora, de uma sua suposta transparência plena. O valor de «passado» e de «acabado», que afecta esse operador diacrónico (do tempo narrativo, pontual e fechado sobre si próprio) que é o pretérito perfeito simples deve ser contrariado e permanecer em aberto. O passado não se deve reduzir a nenhuma forma de presente modalizado, a nenhuma espécie de evacuação do tempo pela eternidade. E essa resistência aloja-se justamente na dimensão do «isto». Quer dizer, na parte desse passado que chega até nós. O passado que se nos antecipa e nos prepara. O tempo «flui», no fotograma, sob a forma de um «contra-tempo», e esse contratempo tem a forma de uma lacuna, de uma falta de sentido disponível. Ele desloca a sua «imagem», na dimensão do que nela resiste à nomeação. Desloca-a da sua acomodação à ilustração de uma ideia. A imagem é, também na acepção de Tarkovski, clivada: toda a «imagem» é clivada. Assim, entre essas duas premissas, ou aspectos, se estabeleceria uma espécie de cumplicidade.

Enquanto emanação do real, enquanto repetição, a imagem deve escapar à mera transparência do significante à significação, do significante ao estereótipo. Na imagem há uma espessura, uma materialidade, que não se reduz à ilustração da ideia. Nela o contínuo do seu significante deve resistir à descontinuidade do conceito. Todo o «contra-tempo» em que tal fluxo se desencadeia, no interior do fotograma, põe em jogo um sentido que virá a estar em demarcação de «si próprio». A imagem não é apenas subtractiva: dir-se-ia que ela é, portanto, pensativa, no sentido em que a significação nela se suspende. A imagem cinematográfica é, portanto sempre pensativa, precisamente porque esquiva à ilustração.
A
formulação de Tarkovski é, neste ponto, exactamente, note-se-o de passagem, a dos Formalistas Russos. Em particular, a que já era de Victor Shkloski, contra Potebnia e os simbolistas: o que Tarkovski, diga-se, abomina é «o pensamento em imagens». O que ele acha decadente um o cinema clássico no qual o que se pede ao espectador é «reconhecimento». E ele di-lo expressamente usando essa expressão «pensamento em imagens» que surge no livro exactamente assim, tal como se tivesse sido directamente extraída do ensaio de Shklovski. É exactamente a mesma fórmula, irónica e mordazmente retomada de Potebnia e dos seus discípulos por Shklovski, sobre o que designa por teoria do «simbolismo» em arte, o mesmo «pensamento em imagens» discutido e condenado, logo de entrada, em Art as a Device.

Esse fluxo temporal há-de ser, portanto, em Tarkovski, o de uma «memória viva», dotada de movimento, de ritmo mesmo que a sua velocidade não seja de uma medida plenamente consciente, etc. E por isso Tarkovski acha que «o primado da montagem» - na reflexão sobre o «cinematográfico» - só pode justificar-se à luz de uma teoria simbolista. Isto é, uma teoria que suponha já um a priori (hermenêutico) do sentido, um sentido prévio a exprimir.


Para Tarkovski é, portanto, preciso - para sermos justos com o nosso pensamento - que não nos esqueçamos de o situar no jogo de forças em cuja (an)economia ele se forma. Portanto, o pensamento não existe por si. A ideia não se confunde com o real. Tarkovski não é platónico, nem «simbolista», na acepção de Shklovski. No pensamento se joga a dimensão de um certo inconsciente material. A imagem cinematográfica não é, por essa razão, meramente signo. A imagem-signo não lhe interessa de todo, se ela se não abrir a uma outra dimensão que, longe de ser a do linguístico, há-de ser aquela que, na sua materialidade, a descentra desse seu suposto a priori. A corporificação da ideia é, se resumida a imagem a isso que ela pressupõe, apenas uma alegoria, quando muito. Em Esculpir o Tempo, aqui incide um dos seus finca-pés, um dos seus pontos de reiterada insistência.

III: Ora, isso supõe que: a) o que se projecta no eixo sintagmático da imagem, como enunciado, é precisamente uma sua dimensão contínua, pela qual ela mergulha numa certa materialidade, que resiste à escansão, assegurada pelo sistema e produzida pela estrutura. E o contínuo é, assim, portanto, a marca de uma suspensão do limite, uma rasura parcial do signo, tal como ele funciona na linguagem articulada, o levantamento de uma interdição, a suspensão de um barramento, abertura de uma barreira, a transgressão de uma descontinuidade discursiva, de uma dissimetria e de uma anacronia.

E ainda: b) que estamos aqui num domínio que é já o de um certo «pensamento do exterior», como lhe chama Maurice Blanchot, a propósito de Nietzsche e de Jacques Derrida, em L'Entretien infinit (título em tudo adequado a esse sentido nietzscheano do jogo do mundo). Não apenas o da desconstrução, mas também o de uma certa teoria do texto, para além do de uma certa esquizo-análise, contra os pressupostos de uma hermenêutica que, nem o marxismo, nem a psicanálise, deixaram inteiramente de ser. E o contínuo é essa espécie de linha de fuga que frustra a lei. Que a inflecte sobre si mesma e sobre a sua própria auto-heteronomia, e a suspende sobre o abismo da sua própria loucura, para aí a interrogar. Nos termos de Derrida, esse contínuo suporia a lógica do suplemento ou da dupla inscrição, no espaço diferencial de uma remarcação estratégica, na qual o outro se volve na exterioridade que constitui o Mesmo.

O contínuo é, portanto, uma certa vertigem da Forma, (mas também da Lei e da Língua, da Lei da língua e da Língua como lei, da Forma como língua da Lei e como lei de toda a Língua) naquele seu interior que abre para o absolutamente outro, como o presentemente «im-possível» da forma. Mas ele é também a experiência de uma historicidade sem história, a historicidade de uma história em fuga de si própria, do sentido obtuso de uma história situada num espaço que se abre à sua imperceptível dissociação ou divisão, à história como não-simultaneidade do espaço ou da forma, em tensão e em alteridade, no limite que assim se transgride ou se suspende. Barthes alude insistentemente a esse signo contínuo.

Já desde os seus Elementos de Semiologia, onde ele tem a preocupação de lembrar que, se há alguma coisa que transgrida «o paradigma», ela situa-se ao nível da interlocução e do sintagma. Isto é, ao nível da enunciação e do enunciado, visto que nele se projecta - contra aquilo que é a lógica que rege o eixo paradigmático, que é uma lógica da descontinuidade ou da diferenciação das unidades ditas «discretas», aquelas unidades que nele existem em escolha alternativa - justamente aquela espécie de contínuo que nele supõe a ausência ou a suspensão do limite, da estrutura, do paradigma, do modelo. O contínuo é, portanto, uma outra formulação do informe de Bataille: a transgressão da forma, da lei ou mesmo da língua - em suma, aqui o signo de uma espécie de disfunção do sistema, de deslocamento do autónomo, de oscilação heterónoma, ou de uma certa porosidade do limite. A continuidade interrompe o limite e a lei que ela própria exige e precipita.


IV: Barthes virá, de seguida, a retomar essa ideia - a do contínuo - nos seus textos sobre fotografia, em O Óbvio e o Obtuso - a fotografia é um significante contínuo, uma mensagem sem código. Ora, é bem aí da sua materialidade que se trata. A volta por esses textos ficará para um outro post. Regressemos, provisoriamente, à passagem em que, a propósito de Eisenstein, ele nos fala, em «O Terceiro Sentido», do sentido obtuso:


A consequência é que se, perante estas imagens [de fotogramas, retirados de um filme de S. M. Eisenstein] ficamos, vocês e eu, ao nível da linguagem articulada - isto é, do meu próprio texto - o sentido obtuso [não] chegará a existir, a entrar na metalinguagem do crítico. Isto quer dizer que o sentido obtuso está fora da linguagem (articulada), mas
no interior da interlocução. [...] Em suma, o que o sentido obtuso perturba, esteriliza, é a metalinguagem (a crítica). [...] É evidente que o sentido obtuso é a própria contra-narrativa; disseminado, reversível, enganchado na sua própria duração, só pode fundamentar (se o seguirmos) uma outra segmentação diferente da dos planos, sequências e sintagmas (técnicos ou narrativos); uma segmentação inaudita, contra-lógica e contudo «verdadeira».

É sobre a linha desse contínuo em que o limite vacila, e em que a forma se reverte, hesitando entre sentidos que se auto-contradizem e se contrariam, que o sentido se torna «obtuso» e vem a perturbar a metalinguagem. Situado ao nível da interlocução, ele é a indecisão da figura ou da forma: por exemplo, entre a máscara e a expressão da dor, como Barthes a lê no fotograma V, nesse texto (Ver aqui no blogue
Recapitulações - o quadro IV: o sentido obtuso (Barthes)). Essa hesitação não é, ali, redutível. Esse sentido que desvia a imagem do seu sentido óbvio (o da dor de alguém que chora).

É o sentido da sua própria reversibilidade: aquele rosto pode, na sua expressão de dor, tornar-se subitamente, por uma certa rima formal ou relação anagramática, no signo de um efeito de máscara - «a máscara da dor». Entre o rosto da dor e a máscara da dor a fronteira é, pois uma linha ténue, obtida com o cuidado de uma filtragem que segue os preceitos da escrita, que são os de uma subtracção ao sentido pleno. O significa que «o sentido obtuso» é «contra-narrativo», deslocando-se da história para o discurso, da significação para a significância, da imagem ilustrativa para a imagem que resiste à significação prévia, mergulhando na expressão matérica e«concreta» de uma certa densidade ou intensidade da força em tensão.

Trata-se de um outro aspecto para que Tarkovski chama, também, a atenção. Não se pode falar da vida procurando fazer enfileirar os acontecimentos que a marcam na ordem abstracta de uma mera sucessão. A mera sucessão é já de si abstracta, porque desqualifica os acontecimentos que nela se alinham, reduzindo-os à quantidade que neles anula na sua alteridade, a sua especificidade relativa, a sua diferencialidade temporal. Se no cinema de Eisenstein, as personagens fossem apenas ilustrações de uma certa ideia, elas seria completamente desprovidas de vida. De resto, para Tarkovski, o «naturalismo», que cultivou esta espécie de abstracção temporal, está absolutamente esgotado no cinema, tanto quanto o estariam a alegoria e o símbolo, sempre que se trata da «imagem cinematográfica».

Porque, simplesmente, a vida não é assim, embora a nossa vida prática assim se queira representar, por motivos que se prendem com a nossa própria alienação e, segundo os imperativos dela, com os limites estabelecidos no espaço discursivo dessa mesma ordem sucessiva. E se realmente a lógica do sentido obtuso tem aqui, em Barthes, que ver com as suas não-dialectizáveis, assim como auto-contraditórias oscilações (entre a máscara e o semblante da dor; entre o carrapito e o punho erguido, entre o alheamento ou a imersão nos seus pensamentos e o traçado demasiado estilizado da barbicha de Ivan o terrível, que lhe denunciaria uma atenção expressa ao seu outro, a noção de estar a ser observado, entre o estilo militar do general nazi e as unhas untuosas que nele trairiam a sua origem rural, ou entre ele e a estupidez loura do rapaz que lhe serve de porta-flechas, e que constituiria dele uma espécie de metonímia, etc, etc, etc...)...

Se o sentido obtuso ali se revela e vive num estado de erectismo perpétuo, como Roland Barthes nos diz, visto que é impossível enchê-lo ou esvaziá-lo (visto que dele se desconhece o destino) - ele seria um sentido sem depleção e, portanto, sem descanso, visto que consagraria, justamente, o que se poderia dizer ser «a forma do sentido já vazio», isto é, a forma de um sentido no qual o novo continuamente regressa e a forma, ela própria, se suspende - ele implica, então, a inscrição de um certo inconsciente do sentido. Não apenas porque o que caracteriza o inconsciente é precisamente o seu carácter compulsivo, a sua compulsão à repetição, aquilo que Freud nos diz ser próprio das pulsões... Mas também porque o inconsciente não conhece o princípio da não-contradição. O que parece acontecer justamente com o sentido obtuso... uma vez que ele não é situado, do ponto de vista da estrutura... Não acontecerá também o mesmo com uma certa dimensão da imagem, aquela a que diz respeito «o fluxo de tempo», no interior do fotograma? Vejamos uma formulação de Tarkovski:

A imagem é indivisível e inapreensível e depende da nossa consciência e do mundo real que tenta corporificar. Se o mundo for impenetrável, a imagem também o será. [...] Enquanto observação precisa da vida, a imagem nos traz à mente a poesia japonesa. Nesta o que me fascina é a recusa em até mesmo sugerir a espécie de significado final da imagem, que pode ser gradualmente decifrado como uma charada. Os haicai cultivam suas imagens de tal forma que elas nada significam para além de si mesmas [sublinhado meu], ao mesmo tempo que, por expressarem tanto, torna-se impossível apreender o seu significado final. Quanto mais a imagem corresponde à sua função, mais impossível se torna restringi-la à nitidez de uma fórmula intelectual. O leitor dos haicai deve incorporar-se a ele como à natureza, deve mergulhar, perder-se em suas profundezas como no cosmos, onde não existem nem o fundo nem o alto. (TARKOVSKI, A., op. cit., pp. 123-124)



Os itálicos são aqui todos meus. Eles sublinham: a) a dimensão do contínuo do signo como transgressão do paradigma: a imagem é «inapreensível» e «indivisível» - seria possível ser-se mais explícito? b) ela tem uma estrutura bífida ou anfibológica. Ao mesmo tempo que se recusa, presta-se àquilo que recusa. É isso que faz com que ele não possa ser «satisfeito», «esvaziado», não tenha depleção, esteja em estado de permanente erectismo, como diz Barthes: ele é já o seu próprio esvaziamento. Ele é, não só contra-narrativo, nesse sentido, como também irredutível ao sentido (narrativo) que ele mesmo recusa; c) enquanto signo clivado, ele reenvia para si mesmo, funcionando à maneira do que W. J. T. Mitchel chama de meta-imagem («metapicture»); d) nesse plano, ele afirma-se na sua obtusidade: «obtuso» significa «rombo», que se enrola sobre si próprio, que se dobra sobre si mesmo, que se retrai, etc. Ora, para Tarkovski, tudo isto os haicai consagram, exemplarmente. Curiosa coincidência, essa do gosto de ambos - Barthes e Tarkovski - pela poesia japonesa. E lá pelo meio do livro, um tanto adiante, este último tem esta citação de Pushkin: «a poesia tem que ter um quê de estupidez». Portanto, quanto à materialidade da imagem, enquanto signo contínuo (tal como os haicai o seriam) ficamos assim conversados. Eles são, não só inapreensíveis, mas também indivisíveis. Eis o que distingue a arte de qualquer outra coisa:

A interação de conceitos jamais poderá ser o objectivo fundamental da arte. A imagem está presa ao concreto e ao material e, no entanto, ela se lança por misteriosos caminhos, rumo a regiões para além do espírito - talvez Pushkin se referisse a isso quando disse que «A poesia tem que ter um quê de estupidez». [...] Vejo então que a minha tarefa profissional é criar o meu fluxo de tempo pessoal, e transmitir na tomada [no take] a percepção que tenho do seu movimento - do movimento arrastado e sonolento ao rápido e tempestuoso - que cada pessoa sentirá a seu modo. Juntar, fazer a montagem é algo que perturba a passagem do tempo, interrompe-a, e, simultaneamente, dá-lhe algo de novo. A distorção do tempo pode ser uma maneira de dar expressão rítmica. Esculpir o tempo! [...] Creio que um director [um realizador] que monta os seus filmes facilmente e de várias maneiras é superficial. (ibidem, pp. 136-144)... ]

«Elementos para uma semiologia pictural» 6: Texto de Louis Marin


«DENOTAÇÃO – CONOTAÇÃO
É para tentar, senão responder a esta questão, pelo menos torná-la mais precisa, que a distinção, trazida por Hjelmslev e desenvolvida por R. Barthes, da denotação e da conotação, parece de uma grande importância. Com efeito, se a imagem pictural – numa pintura representativa – é signo figurativo, isso significa que, para além da sua função de designação, ela possui uma função de expressão, ou melhor ainda, que o designante que essa imagem é constitui um conjunto complexo que é, em si mesmo, signo: o signo segundo Frege, exprime e designa e se a sua expressão não se reduz à sua designação, isso quer dizer que a relação de designação se torna o significante, o expressor do signo; longe de a designação ser o fim do signo pictural, em cujo caso teríamos razão em dizer com Pascal «que vaidade [vanité] a pintura atrair a admiração pela semelhança das coisas das quais não se admiram já os originais», longe de o esquema canónico da pintura ser esse esquema linear e tornado superficial, ideia-imagem-objecto, a distinção de Frege obriga-nos a desdobrá-lo na sua profundidade, na sua espessura e a perceber que a relação de designação ou referencial que definiu de uma ponta a outra a imagem pictural, deve integrar-se para se tornar signo figurativo e figura numa relação mais profunda de que ela não será senão um termo, ou de que ela não constituirá senão o plano da expressão, na terminologia de Hjelmslev – o significante. E está muito precisamente aí a definição que Hjelmslev e Barthes dão, da conotação e da semiologia conotativa:

O primeiro sistema constitui então o plano de denotação – é a relação de designação no caso da pintura «representativa» - e o segundo sistema extensivo ao primeiro, o plano da conotação. Dir-se-ia portanto que um sistema conotado é um sistema cujo plano de expressão é constituído ele próprio por um sistema de significação.

Para pegar num exemplo, o importante estudo que Hubert Damisch consagrou à nuvem, na pintura renascente e barroca, constitui uma notável análise de um sistema conotado no qual o plano de denotação reenvia tanto para o objecto natural «nuvem», quanto para o objecto simbólico, já codificado por uma mística hierofânica, enquanto que o plano de conotação revelará, segundo os pintores e as épocas, na estrutura expressiva da obra, significados diferentes, trazidos à luz com todo o rigor, pela aplicação sistemática da prova de comutação e pela constituição de séries paradigmáticas. Desenvolvendo teoricamente as análises de Damisch, poder-se-ia considerar o sistema pictural como articulação hierárquica de planos de conotação, o sistema de significação de um nível tornando-se no plano de expressão do sistema superior.
Também não é um acaso se a análise de Damisch faz aparecer a convergência da análise estrutural e da análise sociológica, se P. Bourdieu retomando a distinção de Panofsky entre o estudo pré-iconográfico, a iconografia e a iconologia, desemboca numa teoria sociológica do conhecimento adequado da obra na qual

Os diferentes níveis se articulam num sistema hierarquizado onde englobando-os se torna por seu turno englobado, o significado [tornado] por sua vez tornado significante.

A teoria do encaixe dos códigos de decifração ou introdução a uma teoria da ideologia se, como o faz notar R. Barthes, a forma dos significados de conotação é o conjunto de representações num momento determinado do mundo e da história. Longe de nós a ideia de confundir essas pesquisas, reduzindo-as, num ecletismo sem nuances, a um comum denominador semiológico. Mas o próprio de toda a teoria, e a teoria semiológica não escapa à regra, não é fornecer um jogo de conceitos suficientemente extensivos para integrar numa totalidade superior coerente, as pesquisas já efectuadas ou em curso, e suficientemente abarcadoras para ser, por seu turno, operatórias? É assim que poderão ser constituídos diversos códigos de deciframento hierarquizados que permitirão esperar uma compreensãosempre mais profunda da obra pictural. O código é, num sentido, um princípio de constituição das classes de signos figurativos, [para] que essas classes sejam organizadas segundo o estilo e segundo o sentido. Mas num outro sentido, é o próprio princípio de classificação por variações paradigmáticas que permite constituir o código. Esta circularidade metodológica não é um círculo lógico; ela corresponde a duas fases da pesquisa: a fase da pesquisa semiológica, pela qual a constituição das séries virtuais de signos figurativos permite chegar a um nível codificado; a fase da verificação do valor operatório do código autoriza a extensão diferencial da série paradigmática e conduz eventualmente a distinguir no código, subcódigos e na série subclasses. Como observa P. Bourdieu, não é este processo teórico que é de algum modo posto espontaneamente em andamento nas pesquisas de atribuição de obras picturais?

O código artístico como sistema de princípios de divisão possíveis em classes complementares do universo das representações oferecidas a uma sociedade dada a um momento dado do tempo tem o carácter de uma instituição social, escreve ele… cada época organiza o conjunto de representações artísticas segundo um sistema institucional de classificação que lhe é próprio… e os indivíduos dificilmente pensam outras diferenças que aquelas que o sistema de classificação disponível lhes permite pensar.

Ao que faz eco a nota de Damisch:

Para lá desses conjuntos organizados que são as obras, para lá dos estilos individuais eles próprios, parece-nos entrever então uma vida secreta dos estilos colectivos – ver sistemas figurativos – que aparecem como o lugar de encontro dos empreendimentos individuais.

Essas indicações teóricas são, tudo ponderado, uma especificação da noção de valor tal qual ela é definida por Saussure:

o que há de ideia ou de matéria fónica num signo importa menos que o que há, à sua volta, nos outros signos.
Um signo figurativo, uma figura tem um valor definido pela situação recíproca dos signos no sistema. Se, como R. Barthes indica no seu comentário, esta comparação dos signos se instaura no plano das reservas virtuais paradigmáticas ou dos campos associativos e se, como Saussure o nota a propósito das relações associativas, esses campos não têm uma ordem determinada, compreender-se-á então que o valor de um signo figurativo ou de uma figura possa modificar-se a cada leitura profunda, variar logo que varia a situação recíproca dos signos no sistema, e que o conceito de valor, que se encontra igualmente em Panofsky, seja um dos conceitos chave tanto para a elaboração dos códigos picturais como para a análise abarcadora das evoluções, das mudanças ou das mutações nos objectos.»

domingo, 7 de março de 2010

Avulsos 10: Rothko - uma «arte menor»?



Enquanto assistia hoje a um seminário, sobre temas da história de arte contemporânea, e depois de rever um documentário sobre Mark Rothko, assaltou-me esta ideia um pouco inesperada: e se, entre Rothko e Kafka, que são ambos judeus, houvesse mais que uma afinidade aparente e longínqua, ligada à questão da sua desterritorialização? Rothko sofreu-a mesmo em termos artísticos, uma vez confrontado com os clássicos do modernismo (Picasso, etc; a excepção teria sido Matisse).

Por exemplo, quanto à «tragicidade da imagem» e à «experiência religiosa» de uma transcendência inscrita na sua pintura, nos termos matéricos da densidade / intensidade da cor, e da linha fluida da forma indecisa de um «tremeluzente horizonte» que há nos seus quadros, experiência auroral e crepuscular, a da tentativa de expressão das «emoções básicas do ser humano», como diz Rothko... Haveria alguma coisa que com isso se pudesse parecer, que a isso pudesse corresponder, em Kafka? Haveria, em suma, um equivalente do ponto de vista da experiência dessa «tragicidade da imagem», numa «literatura» dita «menor» (como é a de Kafka, de Beckett, de joyce, segundo Deleuze?). O anterior post, aqui no blogue, sobre aquilo que Kafka nos diz das «metáforas» seria talvez já indicativo dessa talvez afinidade...


Não será a de Rothko, também ela, uma arte «menor», no sentido em que Deleuze nos fala de uma «literatura menor», justamente? Rothko judeu, acometido pelos fantasmas cossacos de uma punição e de uma castração que ecoam da sua infância e que ele associa, em 57 à sociedade de mercado e de consumo, que é justamente a sociedade que produz a clientela do Four Seasons a que ele virá a recusar os seus quadros - haverá nele alguma coisa de próximo de Kafka? Os quadros pintados para o Four Seasons (inspirados nas janelas cegas da sala Miguel Angelo, da biblioteca Laurentina, em Florença, e talvez já no Atelier rouge de Matisse: não os da primeira imagem, aqui, mas o da segunda imagem), não conterão eles essa experiência (muito kafkiana) de uma impossibilidade de chegada, de uma ambivalência da abertura / bloqueio da janela, passagem para um limiar instável que se metonimiza e afasta, no qual se difere qualquer forma de destinação ou de presença, e que levanta a mais angustiante questão, quanto à função e à efectividade da arte, do ponto de vista da sua experiência de transcendência? Será esta ideia tão «peregrina» quanto parece?

sexta-feira, 5 de março de 2010

A fala dos escritores 3: KAFKA

















KAFKA: «Les métaphores sont l'une des choses qui me font désespérer de la littérature».

quarta-feira, 3 de março de 2010

Recapitulações XX: o «jogo» e o «descentramento» 3 - a língua como lei e a língua da lei.



















Mark Tansey, Discarding the frame.

A imagem com que abrimos esta nota de leitura pareceu-nos sugestiva do tipo de questões que aqui levantaremos, a propósito da «desconstrução» e do que nela é o seu intuito, como nos diria Rosalind Krauss, a propósito de La vérité en peinture, de «enquadramento do enquadra-mento». O quadro de Mark Tansey mostra-nos, en abyme, qualquer coisa como um enquadramento.

Nele o perfil espectral e anamórfico de uma criatura - uma mulher já de idade, é um dos perfis ali possíveis; outro uma cabeça de olhos vendados - projectada pela linha do contorno da luz, que entra por uma gruta (todo o sujeito é, de certo modo, esse abismo da interioridade) dentro da qual duas pessoas atiram pelo ar uma moldura, ao que parece ser o declive do curso interno de uma cascata que se afundasse no abismo interior da sua rocha.

O que o funcionamento alegórico do quadro nos sugere é que a vontade ou o gesto de nos libertarmos do que, já em nós, nos circunscreve, tal como nos sugere o título (Discarding the frame) acaba, fatalmente, por nos submeter ainda mais, uma vez que, tal como quadro nos mostra, descartá-lo supõe ainda incorporá-lo, interiorizá-lo ainda mais. Mesmo que isso, é claro, aconteça inadvertidamente. Que isso tenha lugar na imagem de uma mulher idosa (ou num jovem cego), talvez isso nos desdobre o sentido desse enquadramento do enquadramento: por um lado, é sabido que o enquadramento é coisa frequentemente atribuída a pessoas pensadas num presente já passado. Por outro lado, a experiência da lei é frequentemente desencadeada pelos movimentos da excepção.

Assim, por um lado, o facto da dominação é ainda muitas vezes assegurado pela experiência das tentativas de libertação: a tendência para nos libertarmos do que nos constrange é muitas vezes cumulada pela experiência da transposição dos mesmos limites que pretendemos recusar. Por outro lado, não há, realmente, enquadramento que não represente uma forma de ocultação, no próprio movimento em que nele se promove à visibilidade aquilo que ele mesmo circunscreve, visto que todo o enquadramento supõe a operação de uma separação. Roland Barthes, em «Diderot, Brecht et Eisentein» usa a seu propósito, nas instâncias do palco, da página e da tela, o termo
refoulement, também usado em psicanálise, para falar do que em português é o processo do recalcamento.

Enquadrar não é apenas «mostrar» (fazendo entrar alguma coisa no campo de visibilidade abertura pela superfície enquadrada), é simultaneamente recalcar (retirando desse espaço aquilo que lá «não cabe aparecer»). Promover à visibilidade significa também esconder, ocultar aquilo que esse gesto de mostrar deixa de fora. Tudo então se passaria como se, tentando nós desfazer-nos do que nos limita, ou desembaraçar-nos do que nos tolhe, reforçássemos em nós precisamente o mesmo limite que pretendemos transgredir ou tendemos a rejeitar. No quadro de Tansey, a sombra projectada pela moldura lançada pelo ar no interior da gruta enquadra ali, nesse momento suspenso, uma outra sombra: a sombra de quem a atira, projectada vultos que no seu interior desenham uma espécie de árvore ou alguma indistinta arborescência, sobre a parede interna dessa abertura cavada na rocha, em queda para aquele seu obscuro abismo. Atirá-la supõe, assim, recebê-la de volta.

E se isto se passa no interior do que, do ponto de vista do jogo fantasmático das formas que tendemos a projectar ou sobrepor à zona do interior iluminado da rocha, seria já a figura luminosa de uma espécie de personificação da senilidade ou da cegueira é, não só que a simples e liminar exclusão de qualquer limite é para sempre impossível, mas também que o dispositivo de enunciação do que promove à visibilidade própria da expressão umas coisas em detrimento de outras é um processo necessário à nossa sobrevivência. O sujeito é essa dobra de uma força que entra em tensão consigo mesma, essa dobra em que se funda o imaginário da sua autonomia e, também, da sua consciência como campo de que se excluiria todo o impensado. Ora, é com base nesse pressuposto que devemos compreender a inevitabilidade da incorporação de certo tipo de distinções, derivadas do solo da nossa linguagem comum, bem como também da necessidade da sua… «desconstrução». Mesmo antes de nos perguntarmos pelo que se quer dizer aqui dizendo já o «impossível». O que é «impossível»? Não será mesmo o impossível aquilo que deve justificar a desconstrução?

I - Começamos, portanto, no seguimento dos dois posts anteriores, a poder situar «o jogo» como um certo modo de funcionamento da estrutura e a poder pensar o descentramento não como privação de um centro, mas como sua divisão sobre o limite da estrutura que ele mesmo regula. Num determinado paradigma, erguido na vertical simultânea de qualquer contexto sintagmático de inscrição, para qualquer das diferenças de posição interna e correlativa entre os elementos que o constituem, se torna preciso considerar, MESMO QUE NA SUA DIMENSÃO ESPECTRAL, a acção de forças que, ou os entre-impedem, na sua disputa da sua ambicionada primazia ora, pelo contrário, os fazem avançar para a possibilidade de uma INSCRIÇÃO ou de um RASTRO que, naquele contexto, indicia ao mesmo tempo o que a sua escolha terá deixado de fora. Uma palavra é um rastro. Qualquer forma é, nesta acepção, um rastro. Um sulco, um vestígio…


Ora, finalmente, pelo contrário, os excluem ou retêm, num certo inconsciente da língua e do discurso. E aí é preciso pensar o paradigma como aberto, precisamente pela dimensão de alteridade ou de inconsciente que é necessário nele considerar. Porque nem tudo desta correlação de forças em jogo à boca de cena, ou por detrás do pano de boca do discurso, se desenvolve no plano do consciente e do cálculo. A palavra «jogo» indicar-nos-ia essa relação, quer de compossibilidade entre termos diferentes, quer de reenvio a partir do rastro que uma tal inscrição produz, quer, ainda, de suspensão da lei ou de compulsão a certo tipo de sedução ou de desvio, pela transgressão de certos limites: ou segundo certo limite desses limites.

Os
lapsus linguae que a psicanálise considerou situam-se precisamente aqui, neste plano da inscrição de um inconsciente cuja tropologia expressiva é bem a indicação de um certo trabalho operado pelas forças aí em confronto. E em português, há uma expressão deliciosa para o carácter escorregadio dessa espécie de contra-economia que abre o discurso a partir do seu interior: diz-se muitas vezes «fugiu-te a boca para a verdade». Não que se trate, evidentemente, da verdade – aqui uma verdade desertora e, seja como for, em fuga de «si mesma» – mas porque se supõe que o interdito ou o não-dito assomariam, assim, à pretensa exposição da fala. Movimento que não poderia pensar-se a não ser, evidentemente, a não ser a partir de um certo diferencial de forças, uma certa tensão da força consigo mesma, uma certa dobra, portanto, agonística e conflitiva, do curso e do cálculo de todo o discurso, no seu próprio movimento.

Qualquer escolha de uma palavra é, assim, constituída pela inscrição de um rastro que nos reenvia, em diferimento e em diferendo, para outras possibilidades, atravessadas por uma espécie de conflito e de inconsciente interno à língua, quer pelas disposições que internamente a atravessam como forças de ruptura, ou de exclusão, quer pelo que nessa correlação diferencial se supõe já, numa outra lógica, de suspensão do limite. O que supõe pensar, no paradigma assim concebido, as ressonâncias e cumplicidades, toda uma dimensão que se diria anagramática, ou de jogo no plano do significante ou da significância, a que essa lei interna dos usos da língua, na qual o conteúdo parece comandar a forma, tal como a intenção comandaria a mensagem, ou o significado determinaria a escolha do significante, permaneceria alheia ou de que ela permaneceria inconsciente. Nessa dimensão anagramática, de ressonâncias no jogo do significante, se alojaria, afinal, o Outro da língua, o seu exterior absoluto, o seu excesso na dobra que o sujeito é. Ora, parece-nos aqui oportuno lembrar uma passagem de Derrida citada no post anterior, desta série. Recordemo-lo:

Como o anteprimeiro tempo da língua pré-originária não existe, é preciso inventá-lo. Injunções, intimação a uma outra escrita. Mas que sobretudo é preciso escrever no interior, se se pode dizer, das línguas. É preciso apelar a escrita para dentro da língua dada. [...] Mas esta intimidade desconcertante, este lugar «no interior» do francês [ou de qualquer língua], eis que ele não pode deixar de inscrever na relação a si da língua, na sua auto-afecção, se assim se pode dizer, um exterior absoluto, uma zona fora da lei, o enclave clivado de uma referência apenas audível ou legível a estaabsolutamente outra anteprimeira língua, a este grau-zero-menos-um da escrita que deixa a sua marca fantasmática «na» dita monolíngua.

Essa dimensão, a que aqui chamamos anagramática, é precisamente aquela que abre, no interior da língua e da sua relação a si, ou da sua auto-afecção, para o que nela é uma sua dimensão aqui dada por «pré-originária» (uma vez que pré-distintiva e pré-presencial, pré-judicativa, numa palavra), a dimensão de um exterior absoluto ou de uma zona «fora da lei» que é anterior à legalidade das suas distinções, anterior e exterior à conceptualidade e ao código que o seu léxico e as regras do seu enunciado, a sua sintaxe e as restrições pressupostas pelo seu discurso, supõem já.
No fundo ou «no solo» da mesma «linguagem comum», aquele solo de que derivam os mesmos conceitos, as mesmas oposições, as mesmas distinções de que a ciência e a filosofia se apropriam, a língua é já heterónoma, como o é toda a LEI. Pois não há lei que não inscreva, na sua economia, precisamente aquilo de que visa constituir-se como a inibição. E a língua é, antes de mais, a própria LEI, no sentido em que é a primeira lei, a lei de todas a leis a vir, a lei em si mesma. É portanto, preciso pensar a língua como lei, no seio desta espécie de irredutível agonística, tanto quanto necessário é pensar a lei como língua.

E o que a sua língua nos diz é que ela é «monolingue», assim permanecendo, aparentemente, alheada de todo o jogo ou de todo o reenvio, de toda a dimensão anagramática, no plano da significância; assim permanecendo, portanto, aparentemente suspensa do sentido de toda a différance. Ora, a língua não é apenas experienciada como autónoma: tal é, apenas, uma projecção do nosso próprio imaginário; ela é também ou pode ser solicitada a partir do seu interior, para o sentido do sem sentido do seu jogo, do jogo que nela é a dimensão de uma espécie de pré-originária historicidade, a dimensão daquele exterior absoluto de uma língua pré-originária a que a escrita deve abrir, no modo de escuta que lhe é próprio. Eis o que Derrida nos dirá, a respeito da língua da lei, lei da língua e da lei como língua:

O monolinguismo do outro, seria em primeiro lugar esta soberania, esta lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar a própria língua da Lei. E a Lei como Língua. A sua experiência seria aparentemente autónoma, porque a tenho de falar, a esta língua, e de a apropriar para a ouvir como se eu próprio ma desse [eis o meu imaginário]; mas ela permanece necessariamente, assim o quer no fundo a essência de toda a lei, heterónoma. A loucura da lei aloja para todo o sempre a sua possibilidade no foro desta auto-heteronomia.


II-
Ser-nos-ia possível dar disto, que acabamos de dizer, uma ilustração um pouco mais concreta? A leitura de «A Estrutura, o Signo e o Jogo, no discurso das ciências humanas» parece-nos ajudar-nos nesse sentido. Voltemos a Claude Lévi-Strauss, para o seguirmos aqui pela mão de Jacques Derrida, na leitura que ali faz dos seus escritos. O que estará em jogo, no seu trabalho etnológico e antropológico será, desta vez, não o termo e o conceito de estrutura, (por sua eventual oposição a qualquer tipo de amorfia, de informe ou de inorganicidade), mas antes o par de conceitos que representa, de forma abrangente, uma outra das grandes distinções que a ciência e a filosofia, a episteme ocidental derivou, do mesmo «solo da linguagem comum»: a distinção e a oposição distintiva entre cultura e natureza.

Em síntese, Claude Lévi-Strauss depara-se ali com o que designa como um escândalo. Este marca-se na transgressão da estrutura, ou da oposição por si herdada do «solo da linguagem comum», entre cultura e natureza. Na verdade, tendemos aí a conceber que tudo o que é da ordem da lei (veremos que é da lei que se trata, uma vez mais, por oposição ao facto, numa oposição que ali se neutraliza, para Derrida, no plano de um certo «factum») é também da esfera do social e do humano. A natureza permanece o campo de onde as leis actuam por fora de qualquer consciência de si, de qualquer decisão ou deliberação prescritiva, de qualquer condicionamento voluntário: ela é o espaço onde elas surgem como «factos universais». Tendo Lévi-Strauss constatado que a proibição do incesto é um fenómeno transversalmente observável, que ele está presente
em todas as culturas, deveríamos então considerá-lo agora resultante de uma lei (um fenómeno social e cultural) ou, pelo contrário, uma disposição da natureza ou da physis, uma vez que as sociedades e as culturas são também da ordem de uma diferenciação histórica que as separa de entre si?

Em outros termos, se a proibição do incesto é observável em todas as culturas, não significará isso que teríamos então de a considerar,
em simultâneo, como «um facto» da natureza? E não seria, nesse caso, então necessário observar também que essa oposição, entre cultura e natureza, simplesmente não funcionaria, para este caso? Mas não funcionando ela neste caso, não significaria isso: a) que nada pareceria então distinguir a ordem das sociedades humanas do que lhes concebemos como exterior?
b) Que, nesse sentido, o que se verificaria seria, então, uma certa e necessária suspensão de toda a excepção humana? c) E ainda que, por essa via, seria então o próprio conceito de lei que nos seria necessário começar a interrogar, deixando-se de o considerar no plano da sua mais pura univocidade e da sua mais plena presença, tornando-se então, ela mesma, o espaço de uma heteronomia que a daria, finalmente, como de si mesma dividida? Eis como Derrida descreve esse escândalo estrutural:

Em Les Structures, ele [Lévi-Strauss] parte deste axioma ou desta definição: pertence à natureza o que é universal e espontâneo e que não depende de nenhuma cultura particular nem de qualquer norma determinada. Pertence em contrapartida, à cultura o que depende de um sistema de normas que regulam a sociedade e podem, pois, variar de uma estrutura social para a outra. Estas duas definições são de tipo tradicional. Ora desde as primeiras páginas de Les Structures Lévi-Strauss, que começou a acreditar estes conceitos, encontra o que denomina um escândalo, quer dizer, alguma coisa que já não tolera a oposição natureza-cultura assim recebida e parece requerer a um tempo os predicados da natureza e os da cultura. Este escândalo é a proibição do incesto. A proibição do incesto é universal: neste sentido poder-se-ia considerá-la natural; mas é também uma proibição [uma lei], um sistema de normas e de interdições - e nesse sentido dever-se-ia considerá-la cultural. [...] Só há escândalo, evidentemente, no interior de um sistema de conceitos que abone a diferença entre natureza e cultura. Ao abrir a sua obra ao factum da proibição do incesto, Lévi-Strauss instala-se pois no ponto em que essa diferença, que sempre se tomou por óbvia, é eliminada ou contestada. (DERRIDA, Jacques, «A Estrutura, o Signo e o Jogo, no discurso das ciências humanas», COELHO, Eduardo Prado (org.), Estruturalismo: antologia de textos teóricos, trad. de António Ramos Rosa et alii, Lisboa, Portugália, s. d., pp.108-109)