terça-feira, 31 de março de 2009

Fragmentos de leitura 14: Do testemunho e da ficção: experiência e aporia - I.
















1. O testemunho.


Pensar o testemunho implica pensar também a ficção como sua compossibilidade essencial. A afirmação é de Jacques Derrida, em Morada: Maurice Blanchot. Que se deve então entender por ficção? O que é um testemunho? Que tipo de estrutura pressupõem ambos, para que entre si se estabeleça como possível uma relação de participação? Diz-nos Derrida:

«Paixão» conota, sempre em memória da significação cristiano-romana, o martírio, quer dizer, como o seu nome indica, o testemunho. Mas se o testemunho pretende sempre testemunhar em verdade, da verdade, pela verdade, ele não consiste, no essencial, em dar a conhecer, em fazer saber, em informar, em dizer o verdadeiro. Como promessa de fazer a verdade, segundo a expressão de Agostinho, aí onde a testemunha deve ser única, insubstituivelmente, aí onde ela é a única a poder morrer a sua própria morte, o testemunho está sempre ligado à possibilidade pelo menos, da ficção, do perjúrio e da mentira[1].

A essência do testemunho não seria, pois, nem a da informação, nem a da exposição ou revelação do verdadeiro. De resto, expôr o verdadeiro supõe já todas as reservas impostas pela abertura de um sentido a vir. Essa abertura é implicada pela iteração e pela iterabilidade do signo e constituiria, já de si, um dos lados do problema, aqui a ligar-se, como veremos, com as questões do terceiro, da autoridade e da neutralidade.

Se, na sua memória cristiano-romana, a palavra «paixão» se liga à noção do «martírio» de quem suporta[2] a injúria, a dor ou a morte é precisamente ali, onde o testemunho supõe a experiência como relação com o outro, que as questões da verdade, do conhecimento, da informação se colocam em relação à ficção como sua compossibilidade essencial. Compreender‑se‑á, no entanto, talvez melhor por que razão retrocedendo, preliminarmente, a algumas precisões que nos são proporcionadas por Giorgio Agamben, em Ce qui reste d’Auschwitz, acerca do «testemunho» e da «testemunha»:

«Le latin a deux termes pour désigner le témoin. Le premier, testis, dont vient notre «témoin», signifie à l’origine celui qui se pose en tiers entre deux parties (terstis), dans un procès ou un litige. Le second, superstes, désigne celui qui a vécu quelque chose, a traversé de bout en bout un événement et peut donc en témoigner. Il est claire que Levi n’est pas un tiers ; il est, de par en par un rescapé. Cela veut dire que son témoignage ne concerne pas l’établissement des faits en vue d’un procès (il n’est assez neutre, il n’est pas un testis).»[3]

Agamben refere-se aqui a Primo Levi, um dos sobreviventes dos campos de concentração nazis, cuja leitura se mostra reiteradamente decisiva em Ce qui reste d’Auschwitz. Diz Levi, nas suas Conversas e Entrevistas: «Eu não compareço nunca como juiz […]; falo sem autoridade»[4]. Por outro lado, o último parêntesis da citação de Agamben parece-nos a esse respeito suficientemente explícito, quanto à sua posição: Levi não é um terceiro, porque para isso lhe faltaria neutralidade. A acepção latina de testemunha que se lhe aplica é, pois, a de superstes: aquele que viveu alguma coisa, que atravessou de lado a lado a experiência de um acontecimento e não pode, portanto, segundo Agamben, testemunhar... Não pressuporá, no entanto, o testemunho já a sobrevivência? Não será toda a testemunha já um sobrevivente, como finalmente nos dirá Derrida? Ouçamo-lo de novo:

«[...] o que liga o testemunho à sobrevivência permanece uma estrutura universal, e cobre todo o campo elementar da experiência. A testemunha é um sobrevivente, o terceiro, o terstis como testis e superstes, aquele que sobrevive»[5].

Questão decisiva em se tratando do testemunho e da sobrevivência. Ela releva do que se prende, não apenas com a (im)possibilidade da neutralidade (ou da indiferença), e portanto, da informação, do dizer o verdadeiro, como sublinhava Derrida, mas também com a (im)possibilidade da presença do terceiro, enquanto presença sem presente. A sobrevivência supõe já a impessoalidade e a idealidade no movimento e na abertura pressupostos pela iterabilidade do signo. O que supõe o campo cego de uma ruptura que desloca o signo do seu contexto para o abrir ao acontecimento da sua reinscrição e do seu sentido. Com efeito, Agamben comenta, por seu lado: «de facto, ele [Levi] parece não se interessar senão pelo que torna o julgamento impossível, essa «zona cinzenta» onde vítimas e carrascos trocam os seus papéis. É sobretudo sobre este ponto que os sobreviventes estão de acordo: «um grupo não era mais humano que outro»»[6].

E acrescenta, citando Levi:

«Non qu’un jugement ne puisse ou ne doive être prononcé. «Si j’avais eu Eichmann en face de moi, je l’aurais condamné à mort [...]. S’ils ont commis un crime alors ils doivent payer». Mais il est crucial que les deux choses ne soient pas confondues, que le droit ne prétend pas régler la question. Il y a une consistence non juridique de la vérité, telle qu’on ne pourra jamais rabattre la questio facti sur la quaestio juris. L’affaire du rescapé est là : dans tout ce qui porte une action humaine au-delà du droit, la soustrait radicalemente au Procès[7]

Dir-se-ia, pois, que a não-neutralidade situaria a acção humana para lá do direito. Não se pode, enfim, confundir a testemunha simplesmente com um terceiro – te(r)stis – entre duas partes em litígio. Isso é crucial, como acentua Agamben. A sua «neutralidade» ou a sua indiferença são necessariamente insustentáveis, se a testemunha é, ao mesmo tempo, alguém de quem se não pode dissociar a experiência, enquanto relação de afecção com e pelo outro. Di-lo ainda, de outro modo, também Derrida:

«[...] (o acontecimento) é um outro nome para o que, no que acontece, não se chega nem a reduzir nem a negar (ou apenas a [de-]negar). É um outro nome para a experiência que é sempre experiência do outro. O acontecimento não se deixa subsumir sob qualquer outro conceito, nem mesmo o de ser[8]».

O que o testemunho convoca é portanto, não apenas a questão do terceiro (supostamente) ausente, a julgar pelo que nos diria Émile Benveniste, mas também, quer a da verdade, quer a do acontecimento e a da neutralidade do discurso. Diz Derrida, em «La vérité, le témoignage, la preuve»:

«Il y a donc hétérogéneité du témoignage et de la preuve, et par conséquent de tout enregistrement technique. La technique ne fournira jamais un témoignage. D’autre part […] inversement, quiconque témoigne et prête serment s’engage non seulement à dire la vérité, «moi, maintenant, ici, devant vous», mais à répéter et à confirmer cette vérité tout à l’heure, demain, et à l’infinit. Le présent de mon témoignage doit être répété, et par conséquent l’itérabilité s’est déjà logée au coeur du présent vivant de l’engagement testimonial. Le témoignage, en tant que témoignage porté, en tant qu’attestation, consiste toujours en du discours. Être témoin, cela consiste à voir, à entendre, etc. , mais porter témoignage c’est toujours parler, tenir et assumer, signer un discours.»[9]

O testemunho não é, portanto, além do mais, nem delegável, nem simplesmente singular e intransitivo. Uma máquina, uma câmara de filmar, um gravador, por exemplo, não podem testemunhar. Não é delegável mesmo se, no seu discurso, alguma coisa de maquínico, de repetição ou de iteração imediatamente se inscreve e impõe, visto que ele deve estar em condições de se reiterar agora e sempre, até ao infinito. Na questão da neutralidade e do discurso aloja-se já, também, a questão da iterabilidade e da técnica, que nos devolveria à questão a que aludimos inicialmente: a do terceiro, a da instância do que se refere à ponderação crítica das oposições da interioridade/ exterioridade, da presença/ausência, da pessoa/não-pessoa, da subjectivida-de/não-subjectividade.

É por conseguinte desse terceiro, frequentemente dito ausente, situado no limite ou como limite, limite no ou enquanto bordo exterior da correlação pessoal de co-presença em situação interlocutiva, bem como da sua interferência na relação de co-‑presença (inerente à primeira e à segunda pessoas) pressuposta já na iterabilidade e na tecnologia, que começaremos por tratar. Esta é, de resto, uma das aberturas do texto de Derrida consagrado a O Instante da minha Morte e à noção de uma morte impossível necessária, no pensamento de Maurice Blanchot:

«Dito de outro modo, a experiência de um segredo é, por muito contraditório que isso pareça, uma experiência testemunhal, e desde então, coloca-se a questão do número: do um, do dois, do três, e a imensa questão do terceiro, da testemunha como terceiro (testis, terstis). O que é o terceiro num segredo? Qual é o lugar da testemunha? Será que a testemunha é alguém que toma parte num segredo dual, ou não será que a testemunha é já um terceiro no segredo?»[10]

O testemunho e a testemunha (e nele a questão da verdade) levantam – como já o observara Jean-François-Lyotard – a questão do terceiro, julgado ausente no caso de Primo Levi. Questão «imensa», sem medida. Para Derrida é com efeito desse terceiro que se tratará, logo que é preciso ter em conta que «na medida em que assume a responsabilidade de dizer o verdadeiro, o testemunho é assim sempre questão de instância ou de «instance» exemplar»[11].

Segui‑lo-emos, aqui, precisamente enquanto enquanto instância do discurso: é impossível conceber aqueles a quem os pronomes «eu» e «tu» designam (em situação de interlocução) a não ser, constitutivamente, a partir dessa iterabilidade, dessa idealidade ou dessa impessoalidade, desse neutro e dessa autoridade que o terceiro conota. Não é possível desalojar deles o terceiro que ali se dava por ausente. A leitura de Benveniste, a que a seguir nos propomos desdobrar‑se-‑á, pois, sobre o pano de fundo, quer da sua manifesta filiação fenomenológica, quer da crítica derridiana ao pensamento de Husserl, no que dele, nas Recherches Logiques, se prende com os conceitos, quer de indicação, quer de presença a si mesmo.


I – O terceiro: a estrutura testamentária do signo.

No seu conhecido ensaio sobre a «Estrutura das relações de pessoa no verbo», depois de dar a terceira pessoa como forma que lhe lembra «o ausente» dos gramáticos árabes – quer dizer, como uma «não-pessoa» – Benveniste nota aquilo que designa como uma «posição particular»:

«Esta posição muito particular da 3ª pessoa explica alguns dos seus usos particulares no domínio da «fala». Podemos ligá-la a duas expressões de valor oposto. Ele (ou ela) pode empregar-se como forma de alocução junto de alguém que está presente quando queremos suprimi-lo da esfera pessoal do «tu» («vós»). Por um lado, como reverência: é forma de delicadeza (utilizada em italiano, alemão ou nas formas de «majestade») que eleva o interlocutor acima da condição de pessoa e da relação de homem para homem. Por outro lado, como testemunho de desprezo, para rebaixar aquele que nem sequer merece que se lhe dirijam «pessoalmente». Da sua função de forma não pessoal, «a 3ª pessoa» fica apta não só a vir a ser uma forma de respeito que faz de um ser muito mais do que uma pessoa, mas também uma forma de ultraje que pode aniquilá-la enquanto pessoa[12]

Em alguns dos seus usos particulares, no domínio da «fala», a 3ª pessoa – dada estruturalmente como ausente e/ou como não-pessoa – reapresenta-se, de novo, como forma de endereçamento e de interpelação, depois de ter sido dada por ausente da interlocução. Ela reintroduz-se ali, em lugar de um presente que ela se encarrega de «suprimir» ou de «elevar», por «desprezo» ou por «delicadeza», trazendo com ela «o interlocutor acima da condição de pessoa» e «aquele que nem sequer merece que se lhe dirijam pessoalmente».

E sempre que isto acontece, em contextos determinados, um «tu» presente na relação de interlocução se ausenta momentaneamente do discurso. E uma vez que Benveniste parte da estrutura para explicar o uso, entre a estrutura e o uso parece assim insinuar-se o impensado de uma diferença: a estrutura explica, na sua presumida anterioridade, o uso – é essa a sua responsabilidade; o uso concretiza, por seu lado, o que a primeira explica – ele limita-se a actualizar; mas a actualização não pressuporá já o movimento de uma diferença estrutural que seria preciso pensar?

Se, contudo, o movimento de desdobramento que Benveniste opta por seguir não parte dos usos – talvez por eles lhe parecerem ser particulares – para procurar explicar ou pensar a estrutura, o que se constata é, de facto, que aquela posição simultaneamente estrutural e particular da 3ª pessoa lhe acaba, afinal, por trazer talvez mais problemas do que seria de esperar. Ela consagrará, finalmente, a necessidade de pensar-se a posição, não apenas de uma certa impessoalidade, mas também de uma certa idealidade como extensivas – é o que gostaríamos de começar por mostrar – ao funcionamento dos restantes pronomes pessoais enquanto signos tidos por indicativos, complicando assim uma das distinções fundamentais da fenomenologia transcendental.

Trata-se da mesma idealidade que, no Husserl das Recherches logiques (que parece ser o ponto de partida de Benveniste), diz respeito ao sentido objectivo do que apelida de expressões. A este respeito, valeria a pena começar por registar uma daquelas observações de fundo que sustenta a crítica derridiana da fenomenologia. Diz Derrida:

«Notons seulement, pour préciser ici notre intention, que la phénoménologie nous paraît tourmentée sinon contestée de l’intérieur par ses propres descriptions du mouvement de la temporalisation et de la constitution de l’intersubjectivité. Au plus profond de ce qui lie ensemble ces deux moments décisifs de la description, une non‑présence irréductible se voit reconnaître une valeur constituante, et avec elle une non-vie ou une non-présence ou non-appartenance à soi du présent vivant, une indéracinable non-originarité[13]. [...] Ce rapport à la non-présence, encore une fois, […] il détruit radicalement toute possibilité d’identité à soi dans la simplicité. […] Cette intimité de la non-présence et de l’altérité à la présence entame en sa racine l’argument de l’inutilité du signe dans la rapport à soi[14]

No momento da constituição da inter-subjectividade, na relação de co-presença, uma não-presença irredutível (uma não-vida, uma não presença e uma não pertença a si, uma impropriedade do presente vivo, uma inerradicável não-originaridade…) ganha ali um valor constitutivo. Eis um primeiro ponto de referência, para observar, quanto à 3ª pessoa, dada como não-pessoa ou pessoa ausente na medida em que forma de ausência de pessoa, precisamente o contrário (sem que se trate, simplesmente, do oposto ou do contraditório) daquilo que Benveniste nos parece ter e dar por certo.

Com efeito, nas Recherches logiques de Husserl, qualquer expressão[15] que contenha um pronome pessoal é já desprovida de um sentido objectivo. Que se quer dizer com isto? Precisemos em primeiro lugar, quer a noção de sentido objectivo, quer a de expressão, tal como elas são, segundo Derrida, usadas por Husserl: «Suponhamos que se exclui a indicação. Resta a expressão. Que é a expressão? É um signo carregado de Bedeutung. [...] As expressões são signos que «querem-dizer»»[16]. O sentido ob-jectivo seria, portanto, para Husserl, aquele que é inerente às expressões: «dizemos que uma expressão é objectiva quando a sua significação depende ou pode depender simplesmente do seu suporte [teneur] fonético, e quando, consequentemente, ela pode ser compreendida sem que se tenha, necessariamente, que tomar em consideração a pessoa que se exprime nem as circunstâncias em que ela se exprime»[17].

Ou, agora nas palavras de Husserl:

«Des signes indicatifs, nous distinguons les signes signifiants, les expressions. [...] A fin de nous entendre provisoirement, posons que tout discours et toute partie de discours, ainsi que tout signe essentiellement du même genre, est une expression, sans qu’il importe ici que le discours soit réellement prononcé, donc qu’il soit ou non adressé à une personne quelconque dans une intention de communication. […] Qu’un autre puísse interpréter nos extériorisations spontanées (par exemple les «mouvements expréssifs») et apprendre par elles bien des choses sur nos pensées intimes et nos mouvements affectifs, cela ne change rien à la question. Elles «signifient» (bedeuten) quelque chose pour lui en tant précisément qu’il les interprète (deutet); mais, pour lui non plus elles n’ont pas de signification au sens prégnant des signes linguistiques, mais seulement d’indices. »[18]

Toda a ex-pressão é, portanto, portadora de um querer‑dizer. As indicações são, pelo contrário, para Husserl, desprovidas de significação em sentido próprio: ««Expressões» deste género não têm, falando com propriedade, significação»[19]. Ora, os pronomes são «expressões» que se comportam como «indicações». A intrusão do pronome pessoal (em particular, a do pronome eu) perturba, pois, a possibilidade do sentido objectivo: «toda a expressão contendo um pronome pessoal é já desprovida de sentido objectivo. A palavra eu nomeia, conforme os casos, uma pessoa diferente, e fá-lo por meio de uma significação sempre nova. O que de cada vez constitui a sua significação não pode ser tirado senão do discurso vivo e dos dados intuitivos que dele fazem parte»[20].

Um pronome pessoal não é, pois, uma expressão objectiva. Para além de, nos pronomes pessoais, se tratar daquilo a que Husserl chama uma expressão essencialmente subjectiva e ocasional[21] a sua significação diria precisamente respeito àquela situação que constitui, por si mesma, a negação da condição do signo, o seu limite enquanto expressão. É, observa ele, «essencial para esta expressão o orientar de cada vez a sua significação actual segundo a ocasião, segundo a pessoa ou a sua situação»[22]:

«Dans le discours solitaire, la signification du je se réalise essentiellement dans la représentation immédiate de notre propre personnalité, et c’est là que réside donc aussi la signification de ce mot dans le discours communicatif. Chaque interlocuteur a sa représentation du moi (et par suite son concept individuel de je) et c’est pourquoi la signification de ce mot diffère avec chaque individu. Mais comme toute personne, quand elle parle d’elle-même, dit je, ce mot possède le caractère d’un indice universellement efficient pour désigner cette situation. C’est au moyen de cette indication que se réalise pour l’auditeur la compréhension de la signification, il saisit désormais la personne qui se trouve en face de lui, intuitivement donnée, non pas simplement comme étant la personne qui parle, mais aussi comme étant l’objet immédiat de son discours.»[23]

O discurso solitário é, pois, para Husserl, aquele que melhor nos revela o funcionamento dos pronomes e, em particular, do pronome «eu», como indicação, no plano da representação ou da presença imediata a si mesmo. Mas, aqui, as observações de Benveniste, acerca daqueles «usos particulares» da 3ª pessoa, parecem, inesperadamente, começar a poder levantar-nos alguns problemas. Retomemo‑las, passo a passo. Notemos, em primeiro lugar, que esses usos particulares não se limitam à 3ª pessoa. Vai, portanto, ser-nos necessário observar esses usos a par daqueles com os quais, na sua particularidade, eles entram em relação.

Posso, com efeito, substituir «tu» por ele, como acima se observou. Mas o contrário parece também ser possível: o uso do «tu» ou do «vós» em vez do que, antes de mais, parece relevar de um dos traços fundamentalmente distintivos da «terceira pessoa», pensada a partir da situação interlocutiva, tem, também, segundo Benveniste, o seu lugar, no âmbito dos usos particulares. Este último uso particular atestará, de resto, a diferença, no interior das categorias de pessoa – «eu» / «tu» – entre a forma subjectiva («eu») e a não subjectiva («tu»). Diz-nos Benveniste, antes de precisar a sua observação, a propósito dessa diferença e, em particular, da forma não‑subjectiva:

«É preciso e é suficiente representar uma pessoa diferente de «eu» para que se lhe aponha o índice «tu». […] O «tu» («vós») pode, pois, definir-se: «a pessoa não-eu». Há, portanto, possibilidade de se constatar uma oposição de «pessoa-eu» à «pessoa não-eu». Em que base se estabelece? É própria do par eu/tu uma correlação especial a que chamaremos, à falta de melhor, correlação de subjectividade. […] Podemos, pois, definir o «tu» como a pessoa não subjectiva, perante a pessoa subjectiva que «eu» representa; e estas duas «pessoas» opor-se-ão conjuntamente à forma de «não-pessoa» (=«ele»)»[24].

Dito isto, Benveniste concretiza o critério «linguístico» de diferenciação que opera no interior dessa correlação de subjectividade, observando que podemos utilizar a 2ª pessoa fora da alocução e fazê-la entrar numa variedade de «impessoal», [aproximando-a, assim, do terceiro ausente]. Por exemplo, ‘vous’ funciona em francês como anafórico de ‘on’ (ex: ‘on ne peut pas se promener sans que quelqu’un vous aborde’)[25].

Portanto, não apenas se verifica que a 3ª pessoa («ele») pode substituir, em certos contextos, a 2ª pessoa («vós»/ «tu»), mas também que esta última pode entrar numa variedade de impessoal... O que quer dizer que o «não-eu» oscila ali no limite entre o «não-eu» e a «não-pessoa» e o que quer também dizer, mais em particular, que o tu se situa, tendencialmente, numa posição tão limítrofe quanto indecidível. E isso acontece, como nota Benveniste, numa série de línguas:

«Em muitas línguas tu (vós) utiliza-se como substituto de on: lat. memoria minuitur nisi eam exerceas [= lit. «a memória diminui a não ser que a exercites»]; crederes, «on croirait» (julgar-se-ia); gr. eipoiV an, «on dirait» (dir-se-ia); gr. moderno leV, «on dit» (diz-se), paV, «on va» (vai-se); em russo, nas locuções formulares ou proverbiais: govoris s nim – on ne slusaet, «on lui parle, il n’écoute pas» («falam-lhe, ele não ouve»); podumaes, cto on bolen, «on croirait qu’il est malade’ (julgávamo-lo doente) (Mazon, Gramm. russe, § 157).»[26]

Também em português ocorre a já notada substituição pela forma tu da forma (não reflexa, nem condicional) se (equivalente, em certos contextos, ao «on» francês). De resto, não é só isso: em português verifica-se que essa variedade de impessoal é também extensiva à «primeira pessoa», nos casos em que, para usar de uma expressão corrente, «quem diz eu diz toda a gente».

Teríamos, então, a possibilidade de enunciados como, por exemplo, «eu não posso conduzir, se não tenho carta de condução», enquanto substituível a «não se pode conduzir, se não se tem carta de condução», da mesma forma que «tu não podes conduzir se não tens carta de condução» o seria, igualmente, em relação ao mesmo tipo de enunciado «impessoal». E aqui, o campo das substituições possíveis leva-nos já a pressentir certa vacilação daquilo que, a princípio, nos poderia ter parecido, no seu desenho aparentemente nítido, a oposição entre os lugares daquela estrutura que é objecto do seu ensaio.

Tratar-se-á, aqui, simplesmente de oposições? Essa indecisão sugere-nos, quanto às correlações de subjectividade e de pessoa propostas por Benveniste, que alguns problemas se poderiam levantar a uma distinção demasiado estrita que pressupusesse uma fronteira intransponível, um limite estanque, uno e nu, entre as categorias que nelas intervêm. Vejamos, então, mais em pormenor, como Benveniste as distingue:

«O que diferencia «eu» de «tu» é, em primeiro lugar, o facto de ser, no caso do «eu», interior ao enunciado e exterior ao «tu», mas exterior de um modo que não suprime a realidade humana do diálogo; pois a 2ª pessoa dos exemplos citados em russo, etc., é uma forma que presume ou suscita uma «pessoa» fictícia e institui por isso uma relação vivida entre «eu» e essa quase-pessoa; além disso, «eu» é sempre transcendente em relação a «tu». Quando saio de «mim» para estabelecer uma relação viva com um ser, encontro, ou coloco necessariamente um «tu», que é, além de mim, a única «pessoa» imaginável. Estas qualidades de interioridade e de transcendência são próprias do «eu» e invertem-se no «tu». Poderemos, pois, definir o «tu» como a pessoa não subjectiva, perante a pessoa subjectiva que «eu» representa; e estas duas «pessoas» opor-se-ão conjuntamente à forma de «não-pessoa» (= «ele»)».[27]

O que distingue, pois, «eu» de «tu»? «Eu» é interior ao enunciado e, simultaneamente, exterior ao «tu». Será, no entanto, exacta e resumidamente assim? Em que plano se deveria pensar essa sua exterioridade? Para além de, numa perspectiva dialógica, a exterioridade do eu em relação ao tu ser de imediato questionável, notemos, ainda, a ressalva de Benveniste: essa exterioridade não é total, visto que ela não suprime «a realidade humana do diálogo» – seja o que for que por isso, nesta passagem, se entenda. O que poderia ser, com efeito, a realidade humana do diálogo? Em que instância(s) se articulará ela, necessariamente, se, ao mesmo tempo, se trata de qualquer coisa que diz respeito a toda e qualquer relação interlocutiva?

Dir-se‑ia assim que, na sua transcendência, se o eu não suprime a «realidade humana do diálogo» deveria, pelo menos, na sua pressuposta anterioridade e exterioridade, estar sempre em condições de suspendê-la. Entre mim e essa realidade humana, a fronteira deve, por conseguinte, na correlação de subjectividade e no interior das relações de pessoa no verbo, ser aquela em que se operaria a redução fenomenológica.

Somos levados a pensá-lo precisamente nos termos da formulação de Benveniste: «quando saio de «mim» para estabelecer uma relação viva com um ser, encontro, ou coloco necessariamente um «tu»»… Ora, não significará isto que, nesse momento de saída, ao encontro com um ser: 1. não é já, apenas, de mim que se trata; 2. alguma coisa me fará, aí, nesse ser ao encontro do qual vou – quer dizer, no seu infinitivo – pressentir a presença de um terceiro?

Arrisquemos, então, mais um passo. Atentemos, ainda, nos pressupostos que nos são fornecidos por Benveniste: a) se, como nos diz, «[...]uma característica de «eu» e «tu» é serem invertíveis: aquele que «eu» defino por «tu» pensa-se e pode inverter-se em «eu» , e «eu» (eu mesmo) torna-se um «tu»[28]; b) se, por outro lado, como se viu já, «tu» é, em situação de diálogo, substituível por «ele» - sempre que se trata, ou de «elevar o interlocutor acima da condição de pessoa e da relação de homem para homem», ou de «rebaixar aquele que nem sequer merece que se lhe dirijam ‘pessoalmente’»[29]; c) se, por fim, «tu» é susceptível de entrar numa certa «variedade de impessoal» pela qual ele equivale ao on francês… teríamos, agora, por um lado, que perguntar: não deveria, igualmente «eu» poder ser, coerente e consequentemente, antecipável mesmo a partir da minha posição desse «tu(-ele)», (tomado tu(-ele) na sua qualidade de pessoa fictícia, ou de quase-pessoa, na relação vivida do que vai ao seu encontro, tal como ela deveria ser dialogicamente pensável) num «eu(-ele)»? Não seria, com efeito, precisamente a esta inscrição do terceiro na primeira e segunda pessoa que deveria conduzir-nos a já observada invertibilidade entre «eu» e «tu»?

Por outras palavras, ainda: não será «eu» igualmente afectado, na situação que diz respeito à «realidade humana do diálogo», de uma negatividade ou de um «não-eu», de uma não-identidade consigo mesmo e/ou de uma não-pertença e não-presença a si que nele inscreveria, afinal, a dobra de uma alteridade? Em resumo: não seria justamente essa possibilidade – em («eu»/)«mim» – da antecipação da ausência/negação da presença viva, que traz já consigo a morte, que é já uma forma de différance da presença a si do presente vivo, que nos poderia ajudar a compreender o funcionamento do «nós», por um lado quer inclusivo, quer exclusivo, por outro, relativamente indiferenciado, ou «diverso da junção de elementos definíveis», a que Benveniste se referirá? A esse respeito, o que podemos ler em «Estrutura das relações de pessoa no verbo» é o seguinte:

«O «não-eu», implícito e necessário em «nós», tem nitidamente a possibilidade de receber, em línguas muito diferentes, dois conteúdos precisos e distintos. «nós» diz-se, por um lado, para «eu+vós», e por outro, para «eu-eles»[30]. [...] O plural exclusivo («eu»+«eles») consiste numa junção das duas formas que se opõem como o pessoal e o não pessoal devido à correlação de pessoa. Mas o «nós» indiferenciado das outras línguas, por exemplo das línguas indo-europeias, deve ser encarado numa perspectiva diferente. Em que consiste aqui a pluralização da pessoa verbal?

«Este «nós» é qualquer coisa diversa da junção de elementos definíveis; o predomínio do «eu» é aí tão forte que, em certas condições, este plural pode ocupar o lugar do singular. Disto resultam, fora do plural vulgar, dois empregos opostos, mas não contraditórios. Por um lado, o «eu» amplifica‑se em «nós» numa pessoa mais massiva, mais solene e menos definida; é o «nós» de majestade. Por outro lado, o emprego de «nós» esbate a afirmação demasiado marcada de «eu» numa expressão mais ampla e difusa: é o «nós» de autor ou de orador.»[31]

Há, portanto, em mim um não-eu que o nós inclusivo (eu+vós/tu) já manifesta – e que se recorta sobre a anteriormente aludida «exterioridade» de «eu» em relação a «tu», como que interpondo-se-lhe - e o nós exclusivo (eu+eles) acentua – visto que engloba, precisamente, o terceiro excluído – «numa junção das duas formas que se opõem como o pessoal e o não pessoal devido à correlação de pessoa», diz Benveniste. E dessa «junção de elementos [ainda] definíveis» passa-se mesmo, quando se trata do «nós indiferenciado das outras línguas, por exemplo as indo-europeias», quer «a uma pessoa mais massiva, mais solene e menos definida; é o nós de majestade», quer ao esbatimento da «afirmação demasiado marcada de «eu» , numa expressão mais ampla e difusa: é o nós de autor».

Ora, víramos já que «tu» funcionava ali como expressão de uma categoria limite – uma categoria em que o limite, por um lado, se ‘il’-imita e, por outro lado e por isso mesmo, se i-limita e que parece, pois, fazê-la esquivar-se à sua própria definição – numa posição que o dá, não apenas: a) como respeitante a um não-sujeito, tal como acontece com «ele», visto que, mesmo que ainda interior à realidade humana do diálogo, esse «tu» continuaria, para Benveniste, a ser exterior à enunciação (o que, insistamos, do ponto de vista dialógico não seria, simplesmente, defensável), numa supostamente indivisa unicidade do instante da fala; mas também: b) como não-pessoa, quer dizer, como mais e/ou menos que uma pessoa, na medida em que susceptível, não apenas, de «entrar numa variante de impessoal», mas também de ser substituído, nas locuções, quer de reverência, quer de desprezo, por «ele».

O que poderia significar, se estamos certos nisto, que: 1. a terceira pessoa, encaradas as coisas ainda do ponto de vista da «realidade humana do diálogo», bem poderia constituir-se, aí, como insuspeitado elo de ligação, quer entre os usos inclusivo e exclusivo do «nós», quer entre estes e o uso indiferenciado, de amplificação e esbatimento, que engloba, também, o «autor»; 2. a possibilidade da ausência do referente, no momento da enunciação – sirvo-me do nós exclusivo na ausência daqueles a quem, a partir do enunciado ou do que enuncio, me junto ou junto a quem, tendencialmente, me dissolvo, entre os quais tendo a fazer-me desaparecer e entro numa espécie ou variedade de impessoalidade – antecipa já, no funcionamento dos pronomes pessoais, uma característica do signo em geral; 3. que ele, o terceiro ausente se faria, então, estruturalmente, presente em cada um dos «presentes», enquanto forma de uma não-presença e de uma não-pertença a si que é preciso ter em conta, no que ela presumirá de uma certa impessoalidade e idealidade: o que haveria, então, na realidade humana do diálogo, seria sempre um nós, um eu(-ele(s)/-tu ou vós) e um tu(-ele(s)/eu), cada um deles simultaneamente mais e menos do que um só.

Mais do que um, porque cada um deles pressupõe, na dobra da sua alteridade, a presença daquele de que se diz que nos é exterior e/ou ausente. Menos do que um, porque se constituem, então, cada um deles, também como formas da não-identidade a si ou consigo mesmos e supõem, portanto, a possibilidade de uma radical não-presença a si, no instante supostamente uno e indiviso da fala. Tratar-se-ia, então e sempre, na correlação subjectiva, simultânea e irredutivelmente, quer da presença de uma ausência, quer da ausência de uma presença una e nua. Antes de mais porque, como nos diria Derrida:


«La possibilité du signe est ce rapport à la mort. […] L’apparaître du Je à lui-même dans le Je suis est donc originairement rapport à sa propre disparition possible. Je suis veut donc dire originairement je suis mortel. […] Le mouvement qui conduit du Je suis à la détermination de mon être comme res cogitans (donc comme immortalité) est le mouvement para lequel l’origine de la présence et de l’idéalité se dérobe dans la présence et l’idéalité qu’elle rend possibles[32]

A morte, a ausência ou o desaparecimento pertencem à estrutura do signo em geral e, portanto, também à dos pronomes, em particular. Ou, nos limites impostos pelas observações de Benveniste, a impessoalidade ou a ausência parecem poder afectar, afinal, necessariamente, cada uma das pessoas intervenientes na relação de co-presença que a interlocução pressupõe. Por outro lado ainda: b) seria, aqui, necessário perguntarmo-nos em que poderia consistir uma transcendência como a de «eu» que, mantendo-se, embora, exterior a todo o não-eu e, em particular, ao tu-ele, que se deve, todavia, manter, tal como acontece com «eu» , na esfera da realidade humana do diálogo – uma vez que é com essa «pessoa» fictícia, essa «quase-pessoa» que o «tu» é, nos termos de Benveniste, que o «eu» entra numa relação viv(id)a – dela se não deveria, também, simplesmente subtrair.

Procurando sublinhar aquela manifesta filiação fenomenológica das distinções de Benveniste, em particular no que diz respeito, quer à transcendência do «eu» em relação ao «tu», quer à sua relação com o presente dito vivo, por oposição ao ausente dos gramáticos árabes, retomemos o que nos diz Husserl, nas Recherches logiques II:


«Toute expression contenant un pronom personnel est déjà dépourvue d’un sens objectif. Le mot je nomme, suivant les cas, une personne différente, et il le fait au moyen d’une signification toujours nouvelle. Ce qui constitue chaque fois sa signification ne peut être tiré que du discours vivant et des données intuitives qui en font partie. Quand nous lisons ce mot sans savoir qui l’a écrit, nous avons un mot, sinon dépourvu de signification, du moins étranger à sa signification normale. Sans doute donne-t-il une impréssion différente de celle que créerait en nous un arabesque quelconque ; nous savons qu’il est un mot, et un mot par lequel toute personne qui parle se désigne elle-même. […] La fonction de signification universelle du mot je est de désigner chaque fois celui qui parle, mais le concept par lequel nous exprimons cette fonction n’est pas le concept qui constitue immédiatement et par lui-même la signification[33]

Os pronomes pessoais são signos que se diriam indicativos. Dissociados dos dados intuitivos que são relativos ao contexto da sua produção e neles projectam o seu (sempre inferencialmente incerto) sentido, esvaziam-se de toda a significação normal. É precisamente o problema de Sócrates, no Fedro de Platão:

É isso precisamente, Fedro, o que a escrita tem de estranho e que a torna muito semelhante à pintura. Os produtos desta apresentam-se na verdade como seres vivos, mas, se lhes perguntares alguma coisa, respondem-te com um silêncio cheio de gravidade. O mesmo sucede também com os discursos escritos. E uma vez escrito cada discurso […] não sabe, por outro lado, a quem deve falar e a quem não deve. Além disso, maltratado e insultado injustamente, necessita sempre da ajuda do seu autor, uma vez que não é capaz de se defender sozinho[34].

Derrida dará, aqui, largas ao seu espanto. Para ele, os pronomes pessoais são, antes de mais, signos e a presença do signo deveria supor já, enquanto elemento de mediação da ausência, a não-imediatidade da presença a si e, portanto, também no seu valor testamentário, o funcionamento da idealidade, da Bedeutung que Husserl lhes parece recusar, observando neles um estatuto ambivalente que exclui, precisamente, a possibilidade de um querer‑dizer que lhes atestasse um «sentido objectivo»: sem dúvida, diz Husserl, que o pronome pessoal nos dá uma impressão diferente da que nos seria causada por um arabesco – sem sentido – e, todavia, ele não chega a possuir uma significação… Ele não quer dizer. A sua significação é estranha à significação normal do signo. Nota Derrida:

«Husserl parece pensar que, para quem fala, esta Bedeutung, como relação ao objecto (Eu, aqui, agora) é «realizada». [...] Não podemos deixar de nos espantarmos perante este conceito individual e esta Bedeutung que difere de indivíduo para indivíduo. E o espanto é aqui encorajado pelas próprias premissas husserlianas»[35].

Por um lado: 1) porque tal representação imediata, inscrita pelo uso de «eu», segundo Husserl, supõe, por definição, a necessária possibilidade da sua anterioridade-exterioridade ao signo e/ou ao discurso:

«La présence à soi doit se produire dans l’unité indivise d’un présent temporel pour n’avoir rien à se faire savoir par procuration du signe. Une telle perception ou intuition de soi par soi dans la présence serait non seulement l’instance dans laquelle la «signification» en général ne saurait avoir lieu, elle assurerait également la possibilité d’une perception ou d’une intuition originaire en général, c’est-à-dire la non-signification comme «principe des principes».» [36]

Por outro lado porque: 2) se há coisa não inteiramente redutível ao individual, ou ao específica e contingentemente ocasional, para retomar os termos, quer de Husserl, quer de Benveniste, ela é precisamente a Bedeutung ou o querer-dizer que afecta, contrariamente ao que acontece com a indicação, a expressão: «Confirmar-se-á assim rapidamente que, para Husserl, a expressividade da expressão – que supõe sempre a idealidade de uma Bedeutung – se prende irredutivelmente com a possibilidade do discurso falado. [...] Poder-se-ia talvez sem forçar a intenção de Husserl definir, senão traduzir, bedeuten por querer-dizer simultaneamente no sentido em que um sujeito falante, «exprimindo-se», como diz Husserl, «sobre qualquer coisa», quer dizer, e em que uma expressão quer dizer; e estar seguro de que a Bedeutung é sempre o que alguém ou um discurso querem dizer: sempre um sentido de discurso, um conteúdo discursivo»[37].

O «espanto» é, em suma, aqui motivado não só pelo facto de que a representação imediata deve dispensar, no silêncio fenomenológico da presença a si, a interposição de uma mediação, de um discurso ou de um signo, mas também pelo facto de que, implicando já uma idealidade, ela aqui se ver, no entanto, dissociada do sentido objectivo e, presa à relação deíctica, estritamente reduzida ao conceito dito individual:

«Est ce sûr? À supposer même qu’une telle représentation immédiate soit possible et actuellement donnée, est-ce que l’apparition du mot Je dans le discours solitaire (supplément dont on ne voit pas en autre la raison d’être si la représentation immédiate est possible) ne fonctionne pas déjà comme une idéalité ? Est-ce que, par conséquent, elle ne se donne pas comme pouvant rester la même pour un je-ici-maintenant en générale, gardant son sens même si ma présence empirique s’efface ou se modifie radicalement ? Est-ce que lorsque je dit Je, fût-ce dans le discours solitaire, je peux donner sens à mon énoncé autrement qu’en y impliquant, comme toujours, l’absence possible de l’objet du discours, ici de moi-même ? Lorsque je me dis à moi-même «je suis», cette expression, comme toute expression selon Husserl, n’a le statut de discours que si elle est inteligible en l’absence de l’objet, de la présence intuitive, donc ici de moi-même. C’est d’ailleurs ainsi que l’ergo sum s’introduit dans la tradition philosophique et qu’un discours sur l’ego transcendantal est possible. »[38]

A questão, para Husserl, estará, todavia, em que o conceito desta auto-referência e/ou desta função de auto-designação não é o conceito que constitui, imediatamente e por si mesmo, a sua significação – porque a ocorrência de eu supõe, para ele, a intuição, a representação imediata – na relação da presença a si. Diz-nos ele: «a representação conceptual assim despertada não é a significação da palavra eu», caso contrário deveria ser possível substituir «eu» pelo seu conceito: «toda a pessoa que, falando se designa a si mesma», o que geraria, numa frase como «eu estou contente», coisas tão insólitas como: toda a pessoa que, falando, se designa a si mesma está contente[39].

Ora, objectará Derrida: «as permissas de Husserl deveriam autorizar-nos a dizer exactamente o contrário. Assim como não tenho necessidade de percepcionar para compreender um enunciado de percepção, também não tenho necessidade da intuição do objecto Eu para compreender a palavra Eu. A possibilidade da não-intuição constitui a Bedeutung enquanto tal, a Bedeutung normal como tal. Quando surge a palavra Eu, a idealidade da sua Bedeutung, enquanto distinta do seu «objecto», põe-nos na situação que Husserl descreve como anormal: como se Eu fosse escrito por um desconhecido» [40]. É precisamente aqui que parece, pois, residir o fulcro da questão. Porque, para Derrida, na sua leitura de Husserl, isto é, dentro dos limites que lhe são impostos pelas premissas da fenomenologia transcendental:

«Cela seule permet de rendre compte du fait que nous comprenons le mot Je non seulement quand son «auteur» est inconnu mais quand il est parfaitement fictif. Et quand il est mort. L’idéalité de la Bedeutung a ici une valeur structurellement testamentaire. Et de même que la valeur d’un énoncé ne dépendait pas de l’actualité ni même de la possibilité de la perception, de même la valeur signifiante du Je ne dépend pas de la vie du sujet parlant. Que la perception accompagne ou non l’énoncé de perception, que la vie comme présence à soi accompagne ou non l’énoncé du Je, cela est parfaitement indifférent au fonctionnement du vouloir-dire. Ma mort est structurellement nécessaire au prononcé du Je. Que je sois aussi «vivant» et que j’en aie la certitude, cela vient par-dessus le marché du vouloir-dire. Et cette structure est active, elle garde son efficience originale même quand je dis «je suis vivant» au moment précis où, si cela est possible, j’en ai l’intuition pleine et actuelle. […] L’énoncé «je suis vivant» s’accompagne de mon être-mort et sa possibilité requiert la possibilité que je sois mort ; et inversement. Ce n’est pas là une histoire extraordinaire de Poe, mais l’histoire ordinaire du langage. [...] L’anonyme du Je écrit, l’impropriété du j’écris est, contrairement à ce que dit Husserl, la «situation normale».»[41]

Quais serão as implicações de tal necessidade estrutural, no que diz respeito ao pronunciar do eu, para a própria fenomenologia, enquanto projecto de uma ciência das ciências, uma teoria da essência e uma crítica do conhecimento em geral? Se se diz, como Benveniste: «quando saio de «mim» para estabelecer uma relação viva com um ser, encontro ou coloco um «tu», que é, além de mim, a única «pessoa» imaginável»[42] isso não pode deixar de colocar-nos ainda a questão da relação entre a «pessoa» e a «imagem». Ora, em que condições poderia eu sair de mim ao meu próprio encontro, quer quando me penso, por exemplo, no plano de um nós, no qual o eu se amplifica, mais indefinidamente massivo e solene, quer no plano daquele nós autoral em que a auto-referência se esbate, se torna mais difusa e mais ampla? Em que diferem ambas as amplitudes, a solene e a difusa?

Poderei, alguma vez, por outro lado, sair de mim mesmo ao meu próprio encontro, na minha irredutível singularidade sem que me dê, de imediato, no plano da imagem e do quase-fictício da segunda pessoa? Que ela (eu) seja imaginável isso pressupõe já nela (em mim) uma alteridade que afecta, na dimensão da imagem, a presença da sua (minha) ausência, uma presença da não-presença e/ou da não-pertença a si – a presença de um outro/Outro, diria, também, a psicanálise – que corta e divide a simplicidade e/ou a imediatidade da presença a si da «pessoa» e/ou do «sujeito»: «Quando me vejo, quer seja porque uma região limitada do meu corpo se oferece ao meu olhar, quer seja pela reflexão especular, o não-próprio entrou já no campo desta auto-afecção que, a partir de então, deixou de ser pura»[43]:

«[...] cette différence pure, qui constitue la présence à soi du présent vivant, y réintroduit originairement toute l’impureté qu’on a cru pouvoir en exclure. Le présent vivant jaillit à partir de sa non-identité à soi, et de la possibilité de la trace rétentionnelle. Il est toujours déjà une trace. Cette trace est impensable à partir de la simplicité d’un présent dont la vie serait intérieure à soi. Le soi du présent vivant est originairement une trace. La trace n’est pas un attribut dont on pourrait dire que le soi du présent vivant l’«est originairement». Il faut penser l’être-originaire depuis la trace et non l’inverse. Cette archi-écriture est à l’œuvre à l’origine du sens. […] La sortie «dans le monde» est elle aussi, originairement impliquée par le mouvement de la temporalisation. Le «temps» ne peut être une «subjectivité absolue» précisément parce qu’on ne peut le penser à partir du présent et de la présence à soi d’un étant présent[44]

A diferença «pura» a que se refere Jacques Derrida prende-se, pois, não apenas com uma espécie de clivagem, com uma não-identidade a si do sujeito, mas também, na possibilidade da retenção, com aquilo que, em todo o vestígio, se diria que é a presença do propriamente impróprio: «o vestígio é a relação de intimidade do presente vivo com o seu exterior, a abertura à exterioridade em geral, ao não-próprio»[45]. É isso que Husserl não chega a ter em conta, quando se trata de pensar a presença a si como imediatidade, ou a representação imediata pressuposta no uso do pronome «eu» .

A continuidade entre o agora da percepção, ou da impressão, e o ainda da retenção – na unidade, por um lado, sintética, por outro não-simples, do «lapso de tempo» que corresponde ao «durante», ou à duração do fluxo de consciência, em que o agora e o ainda se in(/ex)cluem – inscreve a descontinuidade, a alteridade que produz a presença do presente, na medida em que é sobre o fundo da retenção que o agora, na sua novidade, por um lado, se destaca e advém ao seu ser de presença do presente, por outro determina, retrospectivamente, a modificação peculiar da sensação que, ao invés de permanecer inalterada na retenção, se lhe ajustaria. Que nos importa esta reflexão, em se tratando do testemunho? A sua importância prende-se, no que diz respeito à idealidade, com o carácter aporético de todo o testemunho:

«Uma testemunha e um testemunho devem ser sempre exemplares. Devem ser, em primeiro lugar, singulares, daí a necessidade do instante: eu sou o único a ter visto essa coisa única, a ter ouvido, ou a ter estado na presença disto ou daquilo, num instante determinado, indivisível; e é preciso acreditar em mim porque é preciso acreditar em mim – esta é a diferença essencial ao testemunho, entre crença e prova – é preciso acreditar em mim porque eu sou insubstituível. […] O exemplo não é substituível; mas ao mesmo tempo, e é sempre a mesma aporia que subsiste, essa insubstituibilidade deve ser exemplar, isto é substituível […] O singular deve ser universalizável, essa é a condição testemunhal. Simultaneamente, no mesmo instante, no «juro-o, é preciso acreditar em mim», pretendo, exijo, postulo, a universalização possível e necessária dessa singularidade: não importa quem em meu lugar, etc., confirmaria o meu testemunho, que é por isso, ao mesmo tempo, infinitamente secreto e infinitamente público, e é por essa razão que me comprometo antecipadamente a repetir, e começo por repetir.»[46]

Pensar, portanto, o testemunho implica ter-se em conta este duplo carácter de singularidade e de universalidade, inerente ao exemplo e à exemplaridade do discurso testemunhal, que se reporta ao instante único de um presente e de uma presença da primeira pessoa que deve, ao mesmo tempo, poder ser comutável por «não importa quem em meu lugar» e abrir-se, assim, à sua confirmação, ao seu reconhecimento ou à sua publicidade. Ora, esse não importa quem em meu lugar deve, justamente pelo facto de inscrever em simultâneo a presença e a ausência no lugar do eu e, com isso, nele envolver a sua não-identidade consigo próprio, pressupor, nos termos de Benveniste, não apenas uma terceira pessoa que começaria por se dar, precisamente, como a negação da pessoa ou como a marca da impessoalidade, mas também, nos termos de Husserl, como a idealidade.

A partir da crítica de Derrida à fenomenologia, o não importa quem em meu lugar deveria, pois, inscrever, também, na suposta indivisibilidade do presente e na já avançada imediatidade da presença a si, a necessária possibilidade, não apenas da morte, do desaparecimento ou do desconhecimento de quem escreve/diz «eu», mas também, quer a questão da técnica, por um lado, quer a questão da ficção, por outro. O eu, tal como o instante da sua singular presença e da presença do seu singular, divide-se:

«O que digo pela primeira vez, se é um testemunho, é já uma repetição, ou pelo menos uma repetibilidade; é já uma iterabilidade, mais que uma vez numa vez, mais que um instante num instante, ao mesmo tempo; assim sendo, o instante divide-se sempre no seu próprio extremo, no extremo da sua escrita. Ele está sempre na iminência de se dividir, daí o problema da idealização. O instante singular, na medida em que é repetível, torna-se um instante ideal. Aí reside a raiz do problema testemunhal da tékhné. […] E insinua-se aí talvez, com o tecnológico, simultaneamente como idealidade e como iterabilidade protética, a possibilidade da ficção e da mentira, do simulacro e da literatura, na própria origem do testemunho verídico, da autobiografia de boa fé, da confissão sincera, como sua co-possibilidade essencial[47]

Não se pode pensar o problema do testemunho na sua raiz, bem como o problema da ficção como sua co-possibilidade essencial sem, ao mesmo tempo, se ter em conta, no plano da sua projecção num nós simultaneamente massivo e difuso, ao mesmo tempo atenuante e amplificante, este regresso da idealidade e da ausência, da não-identidade e da não-pertença a si mesmo, da morte e/ou do desaparecimento – que se prendem, de resto, com a questão do desinteresse e da justeza, bem como da decisão e da justiça – no próprio momento em que o discurso na primeira pessoa, o discurso autobiográfico e de boa fé, se abre à repetição e essa primeira pessoa se expõe, no seu exemplo, ou na exemplaridade do seu vivido, à sua comutação com um outro, no não importa quem que, em seu lugar, a viria confirmar, por um lado, na sua veridição, por outro, na sua irredutível alteridade.

A questão poderia, em se tratando do discurso ou da imagem, da imagem no discurso, tal como do discurso através da imagem, também equacionar-se do lado da psicanálise. Questão, portanto, da memória, tanto quanto a de um imaginário a partir do qual o simbólico se constitui. Mas de um imaginário que, como veremos, se não reduz nunca à imagem total, que permanecerá, portanto, em aberto e se constituirá como fractura des-estruturante, momento no qual a morte se transpõe para a vida na sobrevivência.


(continua em Do testemunho e da ficção: experiência e aporia II)

[1] DERRIDA, Jacques, Morada: Maurice Blanchot, trad. de Silvina Rodrigues Lopes, Lisboa, Edições Vendaval, 2004, ibidem, p. 22.
[2] Veja-se MEILLET, A.; ERNOUT, A., Dictionnaire étymologique de la langue latine – Histoire des mots, 4ième ed., Paris, Klincksieck, 1967, p. 488, para a entrada patior: «[...] passio: rare et tardif; c’est surtout un mot du latin ecclésiastique pour traduire le gr. πάθοζ dans le sens de «passion» du Christ; et de «passion» mouvement de l’âme (correspondant à classique affectus) avec une nuance péjorative».
[3] AGAMBEN, Giorgio, Ce qui reste d’Auschwitz : l’archive et le témoin – Homo sacer III, trad. de Pierre Alfieri, Paris, Payot & Rivages, 1999, pp. 17-18.
[4] Ibidem, p. 18.
[5] DERRIDA, Jacques, Morada: Maurice Blanchot, op. cit., pp. 43-44.
[6] AGAMBEN, Giorgio, Ce qui reste d’Auschwitz : l’archive et le témoin – Homo sacer III, op. cit., (sublinhado nosso), p. 18.
[7] Ibidem, pp. 18-19 (o primeiro sublinhado é meu).
[8] DERRIDA, Jacques, «Artefactualités», in STIEGLER, Bernard ; DERRIDA, Jacques, Echographies de la télévision : entretiens filmés, Paris, Galilée/Institut national de l’audiovisuel, 1996, p. 19 (o sublinhado é nosso).
[9] DERRIDA, Jacques, «La vérité, le témoignage, la preuve», op. cit., p. 107.
[10] DERRIDA, Jacques, Morada: Maurice Blanchot, op. cit., p. 28 (sublinhado meu).
[11] Ibidem, p. 40.
[12] BENVENISTE, Émile,«Estrutura das relações de pessoa no verbo», O Homem na Linguagem, trad. de Isabel Pascoal, Lisboa, Vega, [s. d.], p. 23 (sublinhado meu).
[13] DERRIDA, Jacques, «Introduction», La Voix et le phénomène, Paris, PUF, 1967, p. 5.
[14] DERRIDA, Jacques, «Le signe et le clin d’œil», La Voix et le phénomène, op. cit., pp. 73-74 (sublinhado nosso).
[15] Husserl, embora não forneça nenhuma definição do signo em geral, distingue duas ordens de signos: a das expressões e a dos indícios, como nos lembrará Jacques Derrida, na obra anteriormente citada.
[16] DERRIDA, Jacques, «Le vouloir-dire comme soliloque», La Voix et le phénomène, op., cit., p. 34.
[17] Ibidem, p. 93.
[18] HUSSERL, Edmund, «§ 5. Expressions en tant que signes signifiants. Exclusion d’un sens du terme d’expression ne relevant pas de ces recherches», Recherches Logiques – II: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance, tome 2, trad. de Hubbert Elie et alii, Paris, PUF, 1969, pp. 35-36.
[19] Ibidem, p. 36.
[20] HUSSERL, Edmund, «§ 26. Expressions essentiellement occasionelles et expressions objectives», op. cit., p. 94.
[21] Ibidem, 93 (sublinhado nosso).
[22] Ibidem (sublinhado nosso).
[23] Ibidem, p. 95 (sublinhado nosso).
[24] BENVENISTE, Émile, «Estrutura das relações de pessoa no verbo», O Homem na Linguagem, op. cit., pp. 23-24.
[25] Ibidem.
[26] Ibidem.
[27] Ibidem, p. 24; (os sublinhados são meus).
[28] Ibidem, p. 22.
[29] BENVENISTE, Émile, «Estrutura das relações de pessoa no verbo», op. cit., p. 23. Nas locuções de reverência e/ou de desprezo, como vimos, assinalando, essa comutabilidade, uma oscilação valorativa ou topo-axiológica entre o além e/ou o aquém, o mais e/ou o menos, o acima e/ou abaixo do que ‘a pessoa’ significaria.
[30] Lê-se, a seguir: «São formas inclusiva e exclusiva que diferenciam o plural pronominal e verbal da 1ª pessoa na maior parte das línguas ameríndias, australianas, em papua, em malaio-polinésio, em dravidiano, em tibetanto, em manchu, em tunguz, em nama, etc.»
[31] Ibidem, p. 26.
[32] DERRIDA, Jacques, «Le vouloir-dire et la représentation», La Voix et le phénomène, op. cit., pp. 59-61 (o último sublinhado é nosso).
[33] HUSSERL, Edmund, «Expressions essentiellement ocasionnelles et expressions objectives», Recherches Logiques – II: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance, op. cit., pp. 94-95 (o terceiro sublinhado é nosso).
[34] PLATÃO, Fedro, trad. de Jose Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 122
[35] DERRIDA, Jacques, «Le supplément d’origine», La Voix et le phénomène, Paris, PUF, 1967, pp. 105-106.
[36] DERRIDA, Jacques, «Le signe et le clin d’œil», op. cit., p. 67.
[37] DERRIDA, Jacques, «Le signe et les signes», op. cit., p. 18 (sublinhado nosso).
[38] Ibidem, p. 106.
[39] HUSSERL, Edmund, «Expressions essentiellement ocasionnelles et expressions objectives», Recherches Logiques – II: recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance, op. cit., p. 94.
[40] DERRIDA, Jacques, «Le signe et les signes», La Voix et le phénomène, op. cit., p. 107.
[41] Ibidem, pp. 107-108 (sublinhados nossos).
[42] BENVENISTE, Émile, «Estrutura das relações de pessoa no verbo», O Homem na Linguagem, op. cit., p. 24.
[43]DERRIDA, Jacques, «La voix qui garde le silence», La Voix et le phénomène, op. cit., p. 88.
[44] Ibidem, p. 95.
[45] Ibidem, p. 96.
[46] DERRIDA, Jacques, Morada – Maurice Blanchot, op. cit, pp. 38-39.
[47] Ibidem, p. 39.

Fragmentos de leitura 10: Mito e personagem III (R Krauss; Cindy Sherman; Lacan; Derrida; Barthes; L. Mulvey; Solomon-Godeau)















Cindy Sherman, Untitled film still, #147 (1985)

I. - 1. Em Fragmentos de leitura 9: Mito e personagem II pudemos observar já dois elementos importantes que entram na construção das «horizontais» (i. e. nas imagens, não apenas de formato horizontal, mas também organizadas, do ponto de vista do significante, já não pela primazia da forma, segundo as disposições produzidas pela fetichização da verticalidade, mas por uma sua disposição horizontal, não hierarquizada e, portanto, resistente à pregnância) de Sherman.

2. Nelas opera um ponto de vista que, enquanto novo significante, rebaixa esse olhar vertical. O Untitled film still 147# é aí , no entanto, o testemunho de um efeito que nos importa ter conta, no seu contraluz. Será agora, por sua conta, Rosalind Krauss a socorrer-se de Lacan, para mostrar de que modo aí se constrói o olhar enquanto objecto a (numa relação especular referida a um estrato da subjectividade em que o sujeito não é ainda «o sujeito», já constituído como dotado de um superego, mas apenas termo ou elemento de uma relação dual-agressiva, de uma relação de mútua e conflituante suplementaridade, em que ele vai e vem do seu outro, na sua reivindicação fálica, sem o limite estável de uma auto-certificação nele implantado pela lei ou pelo simbólico). Eis uma primeira descrição de Rosalinda Krauss:

«Uma outra instância de luz selvagem [wild light] é o Untitled #147 (1985), onde a cabeça e o torso superior [nos são] dados num enorme plano aproximado [«close-up»] são mergulhados na obscuridade apenas violada pelos fragmentos de luz traseira de um pouco de cabelo e de um ombro, e - construindo a sinistra significação da obra - o brilho reflectido de uma pupila que emerge da obscuridade do resto da face como um mármore escuro, acentuadamente [utterly] opaco. Este contraste entre a opacidade do aspecto da figura e a qualidade da luz irradiando para fora por sobre o espectador, a partir de diversas partes do resto da imagem estabelece uma condição que pode ser generalizada a outras partes desta série a que estou a chamar Brilhos e Reflexos.» (KRAUSS, Rosalind, «Cindy Sherman, Untitled», Bachelors, Cambridge / Massachussets / London, MIT, 2000, p. 137).

3. A horizontalidade não é, portanto, aqui apenas a do formato da imagem. Ela pressupõe uma dispersão (uma des-hierarquização) distributiva da luz que, na sua não-homogeneidade (Roland Barthes lembrava em Elementos de Semiologia que todo «o excesso», deslocador do paradigma, se joga no eixo do sintagma, numa continuidade que corta a sua distinção, o carácter discreto das suas unidades e, portanto, suspende o seu limite ou a sua lei), resiste à pregnância. Assim, a horizontalidade esquiva-se, aqui, à projecção fetichizada da visão vertical comum (mimética e ideal, simbolicamente controlada e imaginariamente unificada), pelo olhar, da forma/significado que suporia, em primeiro lugar, a exterioridade (a distância objectivante em figura) do que é visto, em relação ao espectador. Essa dispersão destaca, numa espécie de sinistra flutuação, um olho brilhante sobre o rosto obscurecido da figura, uma pérola ou uma jóia nas trevas do rosto que se abisma nessa insondável obscuridade.

4. Ora, é precisamente esse olho que, voltado na nossa direcção e destacado da formal-ideal da sua ligação com o rosto, se nos torna inquietante: ele é o lugar do olhar enquanto «objecto a». Alguma coisa nele deixa «o lugar do que é visto», para vir a ocupar «o lugar do que vê», e nos confronta com o nosso próprio olhar: vejo-me outro a ver-me, em mim outro, por fora de mim. O poeta António Machado tem uma formulação que parece aqui bastante apropriada à descrição desta esta relação. Dizia ele, nos seus Proverbios y Cantares (a citação é de memória e, portanto, aqui com a inexactidão esperável): «El ojo que ves no es / ojo porque tú lo veas; es ojo porque te ve». Diz Rosalind Krauss:

«É uma condição que gostaria, agora pela minha vez, de iluminar usando a obra de Lacan; embora de modo diferentemente da teoria do olhar masculino, esta condição do olhar ameaçadoramente estranho [uncanny gaze], que Lacan qualifica como «o olhar enquanto objecto a» opera contra os efeitos da sublimação. Estabelecendo o modelo deste olhar como objecto a, Lacan especificamente o contrasta com o modelo do ego, ele próprio ligado ao ponto de vista do diagrama perspéctico, através do qual o «Sou eu!» [como na interpelação mítica] do sujeito, escapando da condição dispersa do Simbólico (a cadeia de significantes) para entrar na gestalt unificada do Imaginário, se projecta a si mesmo como todo. Esta projecção, como nos lembramos, é usada pela teoria do olhar masculino para ligar a instituição do fetiche às próprias condições da visão, compreendida como mapeada pela pirâmide óptica da perspectiva. (ibidem).

4. Que pressupõe este olhar ameaçadoramente estranho (olhar enquanto «objecto a»)? Na verdade o lugar geometral do sujeito apenas se pode equacionar a partir da sua constituição como tal: como sujeito, dotado já de um superego (de um Simbólico, dirá Lacan). E o enunciado «sou eu!» só a partir daí é possível, enquanto interiorizado a partir da interpelação do olhar em que o sujeito é colhido, para ser determinado pela «lei» social. Imaginário e Simbólico entram assim quase ao mesmo tempo, no sujeito que somos. Mas, se por um lado, eles se coordenam entre si, no sentido de que o imaginário supõe o Uno de si que à parte da lei nos supomos ele é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade do advento do simbólico e de unidade que a determinação simbólica visa controlar. Isto supõe uma ambivalência fundamental no modelo lacaniano. Como frisaria P. Lacoue-Labarthe:

«O que seria preciso marcar, contra e com Lacan, remontando de Lacan a Reik, é que há um ruir constante, mas surdo do imaginário. O imaginário destrói ao menos tanto quanto ele ajuda a construir. Mais exactamente, ele não cessa de perverter o que ele constrói. Isto é por onde se explica que o sujeito ao espelho seja primeiro um sujeito em 'desistência' ['en désistement'] (e que, por exemplo, não recuperará nunca da insuficiência mortal a que o vota, segundo Lacan, a sua pré-maturação). [...] A figura não é nunca una [...] não há essência do imaginário. O que nos leva a pensar em Reik, dito de outra maneira, é o facto de que [nele] o sujeito «desiste» por ter de afrontar sempre pelo menos duas figuras - ou com uma figura pelo menos dupla) partição instabilizante ou desestabilizadora do figural (que confunde certamente a distinção entre o imaginário e o simbólico, e enceta nessa mesma altura a negatividade ou a alteridade absoluta do «real»...» (LACOUE-LABARTHE, Philippe, «L'écho du sujet», cit. in DERRIDA, Jacques, «Désistance», Psyché: Inventions de l'autre, Paris, Galilée, 1987, pp. 631-632).

5. Parece necessário ter em conta esta dimensão de uma (des)constituição do sujeito em jogo na ambivalência do imaginário. Para que se possa fazer sentido com o que se acaba de citar, de Rosalind Krauss, à luz do que também dela se citou, no post anterior, em Fragmentos de leitura: O mito e a personagem II, e se possa assim compreender que o ego tanto é conforme ao social (todo o x é função do falo) como lhe é excêntrico (existe um x que não é função do falo) e que isso suporia um «de»-sistere, um prolongamento e uma divisão especular, uma de-sistência que deveria deslocar, constantemente, o que aí se dá como lei construíndo-o e, ao mesmo tempo, arruinando-o.

Uma captação do seu exterior, em suma, ou uma excepcionalidade que lhe seria, na verdade, materialmente constitutiva. Regressando ao olhar enquanto objecto a, ter-se-ia aqui o descentramento do sujeito que olha, tornado visível a partir da sua exterioridade, a invadir e ocupar ali uma posição que, habitualmente tida por posição do objecto, lhe é devolvida em posição de alteridade irredutível, voltando-se contra o si próprio que seria correlato da forma/significado do quadro e, portanto, contra o seu próprio saber. O olhar enquanto «objecto a» cinde o olhar geometral, idealizado, cartesiano, exterior ao seu objecto, para o vir a confrontar com a materialidade (e já não com a imunidade e a tranquilizadora certeza) dessa sua exterioridade. Diz Lacan:

«O que me determina profundamente no visível é o olhar que me é exterior. É pelo olhar que entro na luz, e é do olhar que recebo o seu efeito. De onde se tira que o olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna, e pelo qual - se me permitem que me sirva de um termo, como o faço frequentemente, decompondo-o - sou foto-grafado. [...] Partimos por nossa parte, do facto de que há algo que instaura uma fractura, uma bipartição, uma esquize do ser, à qual este se acomoda, a partir da natureza. Este facto é observável na escala diversamente modulada do que é, afinal, susceptível de ser inscrito sob a forma de mimetismo. É o que entra em jogo, tanto na união sexual, como na luta até à morte. [...] Sem dúvida alguma, é por intermédio de máscaras que o masculino e o feminino se encontram de maneira mais aguda, mais ardente.» (LACAN, Jacques, Livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychannalyse, Paris, Seuil, 1973, p. 121)

E Krauss cita Lacan, a propósito desta espécie da indecidibilidade, dessa réplica inversora em que a sua posição de saber é afastada, numa passagem logo a seguir ao pequeno apólogo que Lacan ali, em Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, conta da sua própria experiência quanto a este olhar enquanto «objet a[utre]». Regressando sobre o que haveria a deduzir da sua pequena história, diz Lacan. (Estenderemos aqui a citação, primeiro, um pouco mais aquém e, depois, mais além do que Rosalind retira de Lacan, para que se possa ter uma visão mais ampla do argumento a que ela recorre):

«O essencial da relação da aparência ao ser, da qual o filósofo, conquistando o campo da visão, se torna tão facilmente no mestre, está algures. Não está na linha recta [da geomteria e da sua representação da propagação da luz ou dos raios luminosos], está no ponto luminoso - ponto de irradiação, de jorro, de fogo, fonte brotante de reflexos. A luz propaga-se, sem dúvida em linha recta, mas refracta-se, difunde-se, inunda, enche (não nos esqueçamos dessa taça que é o nosso olho) ela transborda-a também, ela convoca em torno da taça ocular, toda a uma série de órgãos, de aparelhos, de defesas. Não é simplesmente à distância que a íris reage, é também à luz, ela tem de proteger o que se passa no fundo da taça [ocular], que poderia, em certas conjunturas ser por ela lesado - e a nossa pálpebra, também ela, frente a uma luz demasiado intensa, é chamada a piscar [cligner] primeiro e recerrar-se depois numa careta bem conhecida. [...].» (ibidem, pp. 108-111)

Portanto, a luz é, simultaneamente, anterior e exterior-interior ao sujeito. É a leitura que Lacan faz de Merleau-Ponty e de que se apropria. O que há de próprio na luz para o sujeito é este seu estar já nela lançado. Nascer, não será necessariamente ser lançado na luz que nos entrará entrará pelos olhos adentro, sob a forma do olhar, do corpo luz e da interpelação? O sujeito deveria ser pensado na mesma luz que, nele, desencadeia a visão. E na sua constituição de sujeito, é a partir da interpelação de um olhar encarnado que ele entra na luz. Se a visão é o correlato da civilização, da verticalidade e da beleza para Freud, ela flutua, aqui, na sua materialidade, enquanto encarnação da luz.

É em relação a ela - à luz, à matéria, à matéria luminosa que banha o sujeito - que, entre o olho, como órgão foto-sensível, tomado estritamente como órgão da visão, (na relação essencial pressuposta no seu aparelho óptico: sistema de focagem e de refracção, bem como de estimulação, na superfície da retina, dos seus foto-sensores: córnea (e câmara anterior)+cristalino +humor vítreo +retina (cones e bastonetes)), e outros órgãos vizinhos ou adjacentes (a íris, por exemplo, reage à quantidade de luz, e a pupila é um diafragma de diâmetro variável, abertura dessa espécie de abismo ou de fosso, de túnel ou de furo que o sujeito é e pelo qual a luz entra), como a pálpebra e, finalmente, toda musculatura do rosto, mobilizada na careta provocada por uma exposição a uma intensidade excessiva, se estendem os seus efeitos, é preciso encontrar a materialidade do sujeito: a sua penetrabilidade, a sua vulnerabilidade; mas também a sua agressividade, a sua camuflagem e a sua luta.

Ora, isto significa, por um lado, que é preciso, à visão, inseri-la no plano da materialidade do sujeito. Dito de outro modo, o sujeito não é exterior e anterior àquela luz graças e através da qual ele «vê». Pelo contrário, a luz é já o sujeito que nela (se) vê e se constitui. Há, portanto, neste plano, necessidade de pensar o essencial da relação entre o ser e o parecer como exterior e irredutível ao ponto geometral que a perspectiva lhe reserva: «O essencial da relação da aparência ao ser, da qual o filósofo, conquistando o campo da visão, se torna tão facilmente o mestre, está algures», como se lê, logo na abertura da citação anterior. A função do sujeito em relação à luz e ao visível é, por isso, começará por notar Lacan, ambígua:

«A função do sujeito em relação ao que há de próprio na luz parece portanto anunciar-se já como ambígua. [...] Tomo aqui a estrutura no nível do sujeito, mas ela [essa estrutura] reflecte algo a encontrar na relação natural que o olho inscreve a respeito da luz. Não sou simplesmente esse ser punctiforme a ser situado no ponto geometral a partir de onde é apreendida a perspectiva. Sem dúvida, nas profundezas do meu olho, o quadro pinta-se. O quadro está certamente no meu olho. Mas eu, Eu estou na pintura. O que é luz olha-me [diz-me respeito, interpela-me, me regarde], e graças a essa luz no fundo do meu olho, alguma coisa se pinta, que não é simplesmente a relação construída, o objecto sobre o qual o filósofo se demora - mas que é impressão [e não simplesmente um objecto], que é jorrar de uma superfície que não é, de antemão, situado por mim na sua distância.» (LACAN, Jacques, op. cit., pp. 110-111).

O que faz aqui aparecer o quadro (que se pinta no fundo do olho) como sujeito, mostra que o sujeito é, enquanto estrutura, sempre quadro (coisa que já a propósito de Louis Marin e da Vanitas de Champaigne, se tinha dito aqui no blogue, em Recapitulações - o quadro V: o fundo):

«É aí que alguma coisa que faz intervir o que é elidido na relação geometral - a profundidade de campo, com tudo o que ela apresenta de ambíguo, de variável, nada controlável por mim. É o que muito pelo contrário me apreende, me solicita a cada instante, e faz da paisagem outra coisa que não uma perspectiva, outra coisa a que chamei quadro [visto que me abarca]. O correlato do quadro, a situar no mesmo espaço que ele, quer dizer no exterior, é o ponto do olhar. Quanto ao que de um ao outro faz mediação, o que é entre os dois, é qualquer coisa de uma outra natureza que não o espaço da óptica geometral, alguma coisa que desempenha aí um papel exactamente inverso, que opera, não por ser atravessável, mas por ser opaco. No que se me apresenta como espaço da luz, o que é olhar é sempre algum jogo entre a luz e a opacidade. [...] Para dizer tudo, o ponto do olhar participa sempre da ambiguidade da jóia. E eu, se sou alguma coisa no quadro, sou sob esta forma do écrã, que designei há pouco a mancha.» (LACAN, Jacques, op. cit., p. 111)

Eis, então, a opacidade do écrã. Porquê opacidade? Porque um écrã é uma operação de desvio, uma operação de iluminação desviante, de cobertura e promoção, à nossa atenção, de qualquer coisa que, pela sua presença, não deixa ver mais, ou não nos deixa ver outra coisa: o efeito de écrã é o da nossa absorção no que ele mostra, e de afastamento do que ele esconde. Lembremo-nos aqui dos souvenir-écrã de que nos fala Freud, a propósito das recordações de infância, em A Psicopatologia da Vida Quotidiana, (cf. aqui no blogue Recapitulações - o quadro III: o souvenir-écrã) num texto cuja tradução portuguesa, feita por José Marinho, nos dá «recordações de cobertura» por «recordações-écrã» (ou «souvenir-écrã»).

Eis, portanto, a jóia no écrã, a jóia como écrã, a estrutura de écrã da jóia, na sua opacidade, a envolver-se no seu íntimo com a secreção desencadeada pela minha labilidade, a minha fragilidade, a partir de uma profundidade de campo não controlável - a profundidade de campo é, assim, o correlato de uma distância não controlável, o correlato da instabilidade do limite entre «eu» e «fora» de mim, que a penetração da luz, na qual sou luz incorporada, tornada carne, assinala; uma profundidade de campo que é tudo menos o que a relação geometral me daria, na sua abstracção, como se diz acima.

Olhando o Untitled #147 é, indecidível, fantasmática e espectralmente o meu olho que vejo, o olhar que me é devolvido, suspenso das suas/minhas próprias trevas. O que mo torna inquietante é a indecidibilidade em que ele se me torna inatribuível e assim me traz ao pressentimento da minha morte, da minha anulação-dispersão, do limite do meu limite, pela suspensão do meu recalcamento.

Alguma coisa da pulsão escópica ali se exterioriza, a partir do lugar suposto feminino-passivo - bem longe iria ele, já - no ameaçador pressentimento da minha incontrolada ou incontrolável extroversão ou transbordo, do meu vacilante campo de profundidade. Eis o que nenhuma geometria, nenhuma gestalt, nenhum eidos, nenhum «objecto» a não ser o «objecto a» (o «objet autre») poderia «dar», no ponto de irradiação da luz que transborda, se difunde, e pode queimar. Nessa dualidade agressiva de uma relação imaginária em que nunca se chega à posição de domínio estável, em que nenhuma distância, nenhuma profundidade de campo me pode valer:

«Tal é a relação do sujeito com o domínio da visão. Sujeito não é aqui a entender-se no sentido corrente da palavra sujeito - essa relação não é de modo nenhum uma relação idealista [a relação de um sujeito transcendental, deduzido à maneira cartesiana, por exemplo, na sua inferida existência de sujeito exterior e «necessariamente» anterior ao mundo]. Esta sobre-apropriação [a palavra que está no texto de Lacan é «survol», que se traduziria imediatamente por «sobrevoo»; mas é preciso também recordar que «vol» podia designar, em simultâneo, não apenas «roubo», mas também, pela mesma altura, igualmente a perseguição e a preensão em voo, na caça - «Le faucon, le héron, le lanier, l'autor volent le lièvre, la perdrix, etc», como diz o diccionário mas também, ainda num sentido clássico, «elevação e complicação do pensamento»: «mais son vol est si haut, que presque à tous moments je me trouve en défaut»] a que eu chamo o sujeito, e que eu tenho como dando consistência ao quadro, não é uma sobre-apropriação simplesmente representativa. Há mais do que uma maneira de nos enganarmos a respeito da função do sujeito no domínio do espectáculo. [...] Há factos que não podem articular-se senão a partir da dimensão da sobre-apropriação [survol] pela qual eu me situo no quadro como mancha - são os factos do mimetismo.» (ibidem, p. 112-113).

E o ponto de apoio de Lacan é Roger Caillois, em Méduse et compagnie: «Caillois põe em relevo as três rubricas que são efectivamente as dimensões maiores em que se desdobra a actividade mimética», animal e humana. São elas «o travestimento, a camuflagem, a intimidação». «É nesse domínio, diz Lacan, que se apresenta a dimensão pela qual o sujeito se deve inserir no quadro». Qual é, então, a função do mimetismo, senão a da representação ou da imitação dissimuladora de qualquer espécie? Vejamos em que consistem essas três funções:

«o efeito do mimetismo é a camuflagem, no sentido técnico propriamente dito. Não se trata de se colocar de acordo com o fundo [isso relevaria da re-presentação do «fundo», fosse qual fosse o acordo], mas em sobre um fundo sarapintado, tornar-se às pintas [o que releva, não de um acordo, mas de uma subtracção ou um desaparecimento do fundo, por sobre-apropriação do seu modo à superfície] - exactamente como se opera a técnica da camuflagem nas operações de guerra humana. Quando se trata do travesti, uma certa finalidade sexual é visada. A natureza mostra-nos que essa intenção sexual se produz por todos os efeitos que são essencialmente de disfarce, de mascaramento. Aqui se constitui um plano distinto da própria visée sexual e que se dá o caso de desempenhar um papel essencial, e que é preciso não nos precipitarmos em distinguir demasiado depressa como sendo o do engano [la tromperie]. A função do logro, nessa ocasião, é outra coisa [...]. Enfim, o fenómeno da intimidação comporta, também ele, essa sobrevalia que o sujeito tenta sempre atingir na sua aparência. [...] Imitar é sem dúvida reproduzir a imagem. Mas fundamentalmente é, para o sujeito, inserir-se numa função cujo exercício o apreende». (LACAN, Jacques, op. cit., pp. 114-115).

Assim:

«A função do quadro - em relação àquele a quem o pintor, literalmente, dá a ver - tem uma relação com o olhar. Essa relação não é, como pareceria a uma primeira apreensão, a de ser a armadilha do olhar. Poder-se-ia crer que, como um actor, o pintor visa o viste-me, e deseja ser visto [regardé]. Não o creio. Creio que há uma relação com o olhar do amador, mas que ela é mais complexa. O pintor, àquele a que deve estar diante do seu quadro, dá qualquer coisa que, em toda a parte, pelo menos na pintura, poderia resumir-se assim - Tu queres ver? Pois bem, vê então isto! Ele dá qualquer coisa a pastar ao olho, mas convida aquele a quem o seu quadro é apresentado a depor aí o seu olhar, como se depõem as armas. É aí que se produz o efeito pacificante, apolíneo, da pintura. Algo é aí dado não tanto ao olhar como ao olho, algo que comporta um abandono, uma deposição do olhar.» (ibidem, p. 116).

II. - 1. Como é que este percurso se constitui, em Rosalind Krauss, como necessário para mostrar a inadequação ou a improdutividade da leitura de Laura Mulvey? O que é que está em causa, no confronto com a teoria do olhar masculino? Note-se, a deposição do olhar é, para Lacan, um resultado do efeito do quadro que poderíamos descrever como uma rendição, uma deposição das armas, uma cedência. O Untitled #147 é, para Rosalind Krauss, recordemo-lo, o lugar de uma condição que pode ser reencontrada em outros lugares da mesma série. Observa ela:

«O desejo despertado pela impossibilidade da ocupação de todos esses múltiplos pontos da projecção luminosa do olhar é um desejo que funda o sujeito na realização de um ponto de vista que é dele retido, um [ponto de vista] que ele ou ela não podem ocupar. E é a própria fragmentação desse «ponto» de vista que evita este olhar invisível e não situado [unlocated] de ser o lugar de coerência, de sentido, de unidade, da gestalt, do eidos. O desejo não é aqui mapeado como o desejo da forma, e assim da sublimação (o vertical, a gestalt, a lei); o desejo é modelado em termos de transgressão contra a forma. É a força investida na dessublimação. Em nenhum lugar a noção de se ter tornado «a imagem» é mais dolorosamente abrasadora [«ponto de irradiação, de jorro, de fogo, fonte brotante de reflexos», dizia Lacan mais acima, onde «a relação essencial entre o ser e a aparência» reside] evocada do que no Untitled Film still #167 (1986) de Sherman.» (KRAUSS, Rosalind, «Cindy Sherman, Untitled», op. cit., p. 140).














Cindy Sherman, Untitled Film still #167 (1986).

Não é já aqui a luz (o contraluz) o único indutor da dispersão do ponto de vista e da desintegração do rosto-identificação:

«A figura, agora absorvida e dispersada no fundo-chão, pode apenas ser apanhada em alguns restos ainda visíveis, embora escassamente, na sarapintada superfície do escuros detritos que enchem a imagem. Discernimos a ponta de um nariz, o emergir de um dedo com uma unha pintada, a careta arrancada de uma dentadura. Horizontalizada, a vista para baixo mapeada pela imagem põe o significante na dissolução da gestalt em funcionamento. Mas quando atinge o extremo inferior da imagem, a visão do espectador encontra o olhar que se projecta a partir de dentro desta matriz de quase invisibilidade na sua direcção. Reflectido no pequeno espelho de um kit atirado fora, esse olhar não pode ser identificado com nenhum origem na imagem. Em vez disso parece juntar-se a todos os outros brilhos e pontos reflectidos de luz na imagem para constelar o significante de /ilocalizável/, e assim para a transgressão da gestalt.» (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 140).

Rosalind Krauss faz, antes de se aproximar desta série, todo aquele percurso de que em Lacan, deixámos acima registo. Eis que nos diz:

«Lacan volta-se para o modelo da imitação animal, que o seu velho amigo Roger Caillois tinha descrito anteriormente nos anos 1930 como o efeito do espaço no sujeito (-insecto) que, cedendo à força do olhar generalizado do seu espaço, perde os seus limites orgânicos e se mistura com o que o cerca num acto de imitação quase psicótico. Tornando-se ele próprio numa camuflagem sem forma, este sujeito mimético agora torna-se uma parte do «quadro» do espaço em geral: «torna-se uma mancha, torna-se um quadro, está inscrito no quadro», insiste Lacan. [...] O deslizar para a frente e para trás entre o insecto de Callois e o «Eu» de Lacan nesta discussão da imitação é importante para aquilo a que Lacan pretende chegar através desta noção do olhar. [...] Passamos antes para dentro do «quadro» como mera «mancha», o que quer dizer enquanto matéria física, enquanto corpo. E aqui, Lacan refere-se também à posição de Merleau-Ponty em Fenomenologia da Percepção segundo a qual a nossa relação com o espaço - na medida em ela que é o alvo do olhar constituído pelo ambiente luminoso, uma luz que nos captura no seu raio por detrás tal como pela frente - funda a nossa percepção, não na transparência de uma apreensão conceptual do espaço, (como no espaço geometral) mas na espessura e na densidade do corpo que simplesmente intercepta a luz. É neste sentido que 'estar no quadro' não é sentir-se interpelado pelo sentido [meaning] da sociedade - «sou eu!» - não é sentir-se, digamos, pleno [whole]; é sentir-se dispersado, sujeito a uma imagem organizada não pela forma mas pelo informe [formlessness]». (KRAUSS, Rosalind, op. cit., p. 140).

Os Untitled #147 e #167 seriam assim bem a ilustração da impossibilidade de uma preensão predatória, nada convidativos a uma interpretação da mulher como falta-sintoma do que, de algum seu exterior masculino, imunizado e distanciado, controlador, se dispusesse ao comprazimento regulado pela mesma lei que, na teoria do olhar masculino, seria a de uma repartição demasiado simplificadora, entre masculino-activo e feminino-passivo. Pelo contrário, a nossa radical e irredutível inconsistência entra aí em jogo, nessa cisão ou nessa esquize do olhar de que fala Lacan, na qual a máscara ou a camuflagem descolam o ser da aparência e constituem o seu instrumento, não redutível simplesmente ao logro. O processo de des-mitificação em jogo, na obra de Cindy Sherman, faz dessa descolagem uma exigência contra o logro, acentuando o embuste, ou o barrete do natural e do analógico do mito - o mito do sujeito/objecto, ou do activo/passivo, por exemplo - a emergência do significado através de um significante necessariamente, nesse caso, concebido como um envelope transparente. Ele poder-se-ia ainda acompanhar na série dos «Mestres», de que Rosalind Krauss também falará, mais adiante.













Cindy Sherman: Untitled #211; Untitled #214, 1989.