domingo, 19 de abril de 2009

Fragmentos de Leitura 17: Acerca do (auto-)retrato I (entre «A Besta de Lascaux» e a arte contemporânea: nota 1)



















Marcel Duchamp, With my tongue in my cheek, 1959

A expressão «auto-retrato» designa correntemente aquela prática artística iniciada, na Renascença, sob a espécie pictórica do que Omar Calabrese designou, em L'Art de l'autoportrait, por «cripo-retrato» ou «retrato in assistenza». «Cripto-retrato» por se tratar de um retrato escondido, anichado ou encriptado, inserido no seio de um retrato de grupo, no qual o artista figurava como espectador presente - «in assistenza» - mas ainda assim mais ou menos dissimulado, por entre as várias personagens também ali representadas. «Presente» aos acontecimentos, da história religiosa ou profana, a que o seu tempo conferia importância e que eram, nesse sentido, «acontecimentos do seu tempo». Eis um exemplo, que cremos suficiente eloquente. Ele é-nos fornecido por este afresco de Benozzo Gozzoli, onde a figura do seu autor se perde, no conjunto, por entre o mar de cabeças da multidão à esquerda:















Benozzo Gozzoli, O Cortejo dos Reis Magos, 1459-60.

Aproximemo-nos, no entanto, um pouco mais do afresco e descortiná-lo-emos aqui, de gorro vermelho, sobre o qual se inscreve a indicação da sua autoria: aqui está ele, olhando na nossa direcção:













O auto-retrato do artista emerge inicial e discretamente aí, e com cada vez maior insistência a partir de meados do século XV em diante, ascendendo, depois, ao estatuto de género autónomo e legítimo, a par do retrato propriamente dito. Ele constitui, no entanto, no «retrato in assistenza» uma das formas do «admonitor», tal como o descrevera Alberti, em 1436, no seu Tratado della Pittura, (publicado em italiano depois de uma primeira versão em latim, o De Pictura, datad0 do ano anterior) e cuja função deixaremos para um post posterior.



















Seja como for, no «ritratto in assistenza», o pintor olha na direcção do espectador, interpelando-o, convocando-o para a cena que o quadro representa, e orientando, pela sua posição corporal e gestual, para o centro da acção narrada, ao mesmo tempo que a sua expressão representa uma espécie de comentário. Um outro exemplo de retrato «in assistenza» poderia ser o do quadro de Bellini que mostramos a seguir, e onde se vê no extremo direito do quadro, a figura do seu autor olhando na nossa direcção e comunicando-nos, pela seriedade do olhar, a noção da solenidade do acontecimento representado.















Giovanni Bellini, A Apresentação no Templo, 1460-1464.

Um outro exemplo poderia ser este, de um afresco de Luca Signorelli, neste Sermão e Cometimentos do Anti-Cristo, onde se o vê, no canto inferior esquerdo, em destaque pelo facto de envergar um traje escuro e de semblante carregado, ao lado de uma outra figura também trajada de escuro, a olhar na nossa direcção:















Luca Signorelli, Sermão e Cometimentos do Anti-Cristo, 1499-1502.

São inúmeros os exemplos dos pintores que, de Giovanni Bellini, Filippino Lippi, Luca Signorelli, Jan van Eyck, Raphael - a lista prolongar-se-ia indefinidamente - vão estabelecendo uma tradição que, passando por Rembrandt, Velázquez, Caravaggio, Gump, Chardin, Charles Lebrun, Henri Fantin-Latour, Courbet, etc. se prolongará até ao século XX, onde encontraríamos os exemplos de Tatlin, Chirico, Kirchner, Max Beckman, Dalí, Frida Khalo, Jackson Pollock, Marcel Duchamp, Bacon ou Lucien Freud, para citar apenas uma pequeníssima fracção dessa imensa série, verdadeiramente imensa...


















Lucien Freud, Cabeça de homem (auto-retrato I), 1963.

No entanto, como observa Omar Calabrese, em L'Art de l'autoportrait, parece necessária, a respeito do retrato em geral, uma observação inicial. Ela prende-se com a aparente bipolaridade o atravessa, quer na sua prática, quer na sua teoria. Por um lado, do ponto de vista dos modos pelos quais se procurou entendê-lo ao longo dos séculos, figuram, de entre os mitos de origem associados ao nascimento da pintura em geral, e ao retrato em particular, a lenda da origem da pintura que nos chega de Plínio, o Velho, na sua Historia Naturalis, (glosado depois por Quintiliano, Plutarco, Vasari, Leonardo da Vinci e Alberti e) cujo processo de produção se mostraria afim, como notará Philippe Dubois, em O Acto Fotográfico, das práticas reportadas por George Bataille, quer dos aborígenes da Austrália de hoje, quer da forma de produção pressuposta nas marcas impressas nas paredes das grutas de Lascaux.

Por outro lado, é também do mito de Narciso (e do de Perseu, como veremos), narrado por Ovídio, nas suas Metamorfoses, e retomado mais tarde por Leon Battista Alberti, no tratado que sistematiza as aquisições da perspectiva, descoberta por Brunnelleschi, que se trata. Esses «mitos de origem» correspondem, de certo modo, a duas linhagens semânticas distintas, inerentes aos dois vocábulos que, em diferentes grupos de línguas, servem para designar o retrato.

Assim, por um lado, ao italiano «ritratto» correspondem as formas - homógrafas entre si - do português e do espanhol «retrato», derivando elas do latim re-traho, com o sentido de «retraçar», - traho: «traçar uma linha». Veremos que ela é conforme à narrativa de Plínio. Por outro lado, ao termo francês «portrait» correspondem os termos «portrait», «Porträt», «portret», em inglês, alemão e russo, respectivamente, todos eles, desta vez derivados do latim pro-traho e implicando, segundo Omar Calabrese, a ideia de uma substituição: «pro-traho: dito de outro modo - eu desenho alguma coisa no lugar de alguma outra coisa». A esta duplicidade da sua origem etimológica e das suas implicações semânticas corresponderia um certo «binarismo», na sua concepção.

Os antecedentes do «retrato» (do «ritratto», portanto), no sentido metonímico (veremos em que é que ele se mostra afim da história contada por Plínio) podem encontrar-se, por exemplo, na antiga prática romana de cunhagem de moedas comemorativas, ou com função mnemónica, representando o perfil de certas figuras, em reconhecimento público do seu mérito. O retrato de perfil afecta, sobretudo, a ideia de uma estratégia referencial (própria do que Gombrich chama «modelo cartográfico») na qual a verosimilhança tem - distintamente do que se passa no retrato frontal - um lugar de destaque. Ele é «parecido» com o seu referente. Como se a visão de perfil pressupusesse uma neutralidade e uma objectividade que a visão frontal exclui e se prestasse, por isso, mais à história do que ao discurso, para usar a distinção de Émile Benveniste, ao que passo que o retrato frontal, inversamente, se prestaria mais ao discurso do que à história.

No retrato frontal é o sentido metafórico, o do «portrait», que ganha relevo, segundo paradigma especular da imagem reflectida (pelo espelho, natural ou artifical, associando-se, portanto, ao mito de Narciso), e a verosimilhança ser-lhe-á, por longo tempo, um atributo meramente secundário, o que de resto confere com o facto de, no mito, Narciso se não reconhecer na sua imagem. O que no retrato frontal está em jogo é mais a ideia do que a existência ou a realidade, mais o cargo ou a função do que a aparência física, mais o espírito ou a força da interpelação, do que a forma reportada a um referente. «O retrato de frente - diz Calabrese - é o do homem reinante, quer ele seja laico quer religioso».

1. A história de Plínio o Velho, acerca da origem da pintura: ele refere-se-lhe em dois momentos da sua História Natural. Um deles diz o seguinte:










À direita: Joseph Benoît Suvée, The Invention of the Art of Drawing, 1791. À esquerda, impressão de mão, nas grutas de Lascaux.

«Conviria tratar também da arte da modelagem. Trabalhando com a terra, Butades de Sícion, um oleiro, foi o primeiro a inventar, em Corinto, a arte de modelar retratos em argila, graças a sua filha. Ela, apaixonada por um jovem que partia para o estrangeiro, traçou na parede o contorno da sombra de sua face à luz de uma lamparina. Seu pai, aplicando-lhe argila, confeccionou um modelo e o colocou ao fogo para endurecer junto com outros vasos de barro; dizem que teria sido conservado no Santuário das Ninfas até Múmio destruir Corinto. [...] É invenção de Butades acrescentar terra vermelha ou modelar com argila vermelha, e ele foi o primeiro a colocar máscaras nas extremidades dos telhados, a que de início chamou prostypa [em baixo relevo]; depois ele mesmo as fez ectypa [em alto relevo]. Daqui surgiram também os ornamentos nas cumeeiras dos templos. Foi por sua causa que os artistas plásticos [plastae] foram assim denominados. [...]»
(Plínio, História Natural - Livro 35, in LICHENSTEIN, Jacqueline (dir.), A Pintura: textos essenciais - Vol. 1: O mito da pintura, São Paulo, Ed. 34, 2004, p. 86)

A descrição de Plínio, reenvia-nos de imediato para o auto-retrato de Marcel Duchamp, com que abrimos este post - com o título de With my Tongue in my Cheeck, de 1959. Trataremos dele futuramente, num post independente. Ela é posta, em O Acto Fotográfico, de Philippe Dubois, em paralelo com a seguinte descrição de George Bataille, referente imagens nas grutas de Lascaux.













Joseph Wright of Derby, The Corinthian Maid, 1782-1784.

«Os homens da idade da rena, particularmente em Lascaux, utilizaram certamente um procedimento que usam os australianos de hoje e que consiste em introduzir uma poeira colorida num tubo oco, e soprar. Foi assim que se procedeu para obter as mãos em molde que em todo o conjunto das grutas são bastante numerosas: assentava-se a mão na parede e soprava-se à volta. Em Lascaux, o uso deste procedimento foi generalizado pelas tintas fluidas»
(DUBOIS, Philippe, O Acto Fotográfico, Lisboa, Relógio d'Água, 2000, p. 110).

Que há então de comum entre ambas as descrições? Comecemos por Plínio. Acerca da sua descrição, comenta José Gil: «aparentemente, a narrativa não conta senão a origem da cerâmica e do desenho. Que a tradição tenha retido da descrição de Plínio que o princípio da pintura nasce do desenho, e que era mesmo aquele e não este último que surgia no contorno da sombra, não levanta problemas de maior. Podemos supor que a cerâmica constitui o suporte para traços e cores que vão completar o perfil desenhado. [...] O próprio Plínio define o bom contorno como aquele que cria a ilusão do volume: «porque a extremidade [do desenho do corpo ou de uma pintura em geral] deve rodear e terminar de maneira a dar a impressão que há outra coisa por detrás dela, e mesmo dar a ver o que ela esconde». (GIL, José, «O Retrato», «Sem Título». Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio d'Água, 2005, pp. 17-18).



















Vitaly Komar, The Origin of Socialist Realism (1982)

O que na descrição de Plínio funcionaria como suplemento (ou suprimento do vazio circunscrito pelo contorno da sombra: suplemento portanto, também, em relação ao espaço circunscrito recorte figural patente no processo, descrito por George Bataille, para as mãos em molde das grutas de Lascaux) é precisamente a outra coisa que, como ele diz (agora citado por José Gil), há por detrás da boa extremidade, do bom contorno (que é neste caso da sombra). O oleiro de Corinto supre essa lacuna enchendo o vazio circunscrito pelo contorno da sombra com um modelo em argila. Suprimento que responde ao apelo já inscrito no (bom) contorno. Digamos que ele liberta, assim, o que poderíamos chamar o volume que seria já fantasmaticamente próprio à sua sombra, o que haveria já de virtualmente contido no seu contorno, assim suprindo o enigma do seu vazio, com a convocação à presença do que ela, enquanto tal, se diria que esconde.

Mas aqui, parece-nos que é toda uma série de implicações que se joga: 1. esse enchimento - que segue o processo de uma «fictio» - acrescentando uma dimensão icónica que esse contorno, por si mesmo, ao menos concebido no momento e no processo da sua produção, não possuiria. Com efeito, se retomarmos as distinções semióticas de Charles Sanders Peirce, verificamos o gesto da filha do oleiro parece deter-se, a princípio, no que ele designa por índice.

«Chamo índice ao signo que significa o seu objecto somente em virtude do facto de ele estar realmente em conexão física com o seu objecto. [...] Defino um índice determinado pelo objecto dinâmico em virtude da relação real que ele estabelece com o objecto. [...] Um índice é um signo que reenvia ao objecto que ele denota porque é realmente afectado por esse objecto. [...] Os índice são signos cuja relação com os seus objectos consiste numa correspondência de facto (cit. in DUBOIS, Philippe, O Acto Fotográfico, Lisboa, Vega, p. 56)

Se, portanto, Plínio considera o bom contorno como contendo já o apelo do seu preenchimento suplementar, acontece, no entanto, que o oleiro lhe parece responder com convocação metafórica da presença do objecto com o qual ela estabelecera, metonimicamente, uma correspondência de facto, uma conexão realmente física, passando então da metonímia à metáfora, da relação de contiguidade à relação substituição, na qual o modelo que enche o volume de sombra deveria agora representar analogicamente o jovem por quem sua filha se apaixona, e que na história de Plínio partia em viagem. A história de Plínio não seria, assim, apenas uma história de amor. Seria também a de um romance familiar e, em simultâneo, a de uma história de luto (sobre a questão do luto, enquanto convocação à presença ou à «produção» cf. Jacques Derrida, em Chaque fois unique, la fin du monde, Paris, Galilée, 2001).

Primeira conjectura: dir-se-ia, pois, que a pintura se jogaria aí como suprimento de uma semelhança que falta ao índice enquanto tal, operando a sua passagem ao ícone. (Note-se, entre parêntesis, que o auto-retrato de Duchamp, cuja imagem aqui publicamos, na abertura deste post, inverte estes termos. Nele é o molde que constitui a sua dimensão indicial e o desenho a sua dimensão icónica). Se ela fôra uma invenção de Butades de Sícion, é porque este se possivelmente apercebe dessa relação que se instaura entre a sombra e o modelo de argila...

E todavia, as coisas não são assim tão simples. E elas complicam-se precisamente no momento dessa passagem. Vejamos a definição de ícone que Peirce (para ele os ícones podem ser imagens, diagramas ou simplesmente metáforas) nos dá:

«Um ícone é um signo que reenvia ao objecto que ele denota simplesmente em virtude dos caracteres que possui, quer este objecto exista ou não. [...] Chamo a um signo que substitui alguma coisa, simplesmente porque ele se lhe parece, um ícone (DUBOIS, Philippe, op. cit., p. 57)

Ora, no contorno da sombra, a semelhança é, aparentemente, um dado relativamente secundário, em relação à presença de um objecto que resultaria dessa conexão física. A única explicação plausível para o seu enchimento parece, portanto, ser de ordem iconográfica. Mas com isso, muda-se de plano de percepção. Porque: o que interessa à filha de Butades será mesmo a semelhança? Que é que está em jogo nessa mudança? A segunda implicação do gesto do oleiro consiste no seguinte. O gesto de contornar a sombra é também o da cópia por decalque.

Neste sentido, nele se apaga a figura do autor, tal como a partir do século XVIII ela se viria a conceber. No contorno da sombra é precisamente a sombra que comanda o gesto, cuja consumação se orienta pela necessidade de não lhe acrescentar nenhum desvio, nenhum modo próprio, nenhuma outra sombra, uma vez que o que se pretende é reter, numa espécie de paragem ou congelamento do índice temporalmente evanescente que a sombra é, a presença fixa de que ela constitui uma emanação temporária. Ora, o gesto da fixação abre ali para uma dupla dimensão, uma duplicidade irredutível: a do índice e a do ícone.

Sombra gráfica de uma sombra real, o contorno da sombra é, ainda em processo do seu traçado, um índice em segundo grau - a extensão de um índice natural - uma sua extensão que a prolonga espácio-temporalmente (fixando-a no tempo e no espaço) e segue aqui a imposição de uma lei, de uma paixão do real pelo significante (para usar aqui uma expressão de Lacan). Porque é a paixão que dita esse gesto: poderíamos pressentir nele a fórmula que, derivada da poesia, a psicanálise reserva à sua descrição da fase do espelho e do Imaginário do sujeito: a do «J' est un autre» de Rimbaud.

Se é verdade que o nosso desejo é sempre «desejo do desejo do Outro», como nos diz Lacan, o contorno da sua sombra é ainda o gesto de um desejo que se coloca na dependência, não estritamente da sua presença como semelhança (o jovem parte em viagem, e a sua presença poderia, mesmo não partindo, ser-lhe indiferente, ou mostrar-se indiferente), mas da sua presença como correspondência do seu desejo. A presença que ali se investe, nesse contorno da sombra, não é portanto, simplesmente analógica, como o daria a entender o gesto do oleiro de Corinto. Ela é, em vez disso, e em primeiro lugar, antes indiciária e produz um objecto fétiche. Philippe Dubois chama-nos justamente a atenção para esse facto:

«As circunstâncias amorosas em que se desenrola esta história do nascimento da pintura, e que a motivam directamente, não são, evidentemente, inocentes. Particularmente, isso indica uma evidente congruência entre desejo e índice. O que a fábula nos diz afinal é que, ante o olhar do desejo a representação não vale tanto como semelhança do que como vestígio. Para a amante que procura conjurar a ausência daquele que ama o importante é encontrar um signo que emane directamente dele, que seja o testemunho da presença real do corpo referencial. A proximidade física que define o estatuto do índice corresponde perfeitamente às exigências da relação amorosa. A lição da fábula é esta: a mimesis está depois da contiguidade, o desejo passa primeiro pela metonímia e a pintura nasce como índice porque é fundada pelo desejo». (DUBOIS, Philippe, op. cit, p. 117)

Ora o testemunho da presença real não supõe inevitavelmente a semelhança. A lógica da marca e do vestígio, do sulco ou do traço, não é essencialmente a da analogia: o sintoma da febre não se parece com a febre, nem a pégada deixada na terra se parece com quem lá a deixou, o céu nublado com a chuva que dele depois desaba, ou a marca de um copo de vinho sobre a toalha com o copo que lá a deixou. Do mesmo modo, o contorno da sombra não é forçosamente, ao menos no seu processo, «semelhante» à pessoa de que ela emana. Em apoio do carácter indiciário do contorno da sombra, acrescentemos aqui um exemplo, que nos é trazido por Philippe Dubois, citando um texto de 1843, uma carta escrita por Elizabeth Barrett à sua amiga Mary Russel Mitford:

«Eu desejaria tanto possuir qualquer coisa que me lembrass tudo o que pode ser-me querido neste mundo. Não é simplesmente a semelhança que é preciosa neste caso - mas as associações e o sentimento de proximidade que impõe esse objecto... o facto de a própria sombra da pessoa estar aqui fixa para sempre! É por isso qe os retratos me parecem de algum modo santificados - e eu não creio que seja nada monstruoso dizer, enquanto os meus irmãos protestam com veemência, que preferia, a tudo o que um artista pôde produzir de mais nobre, guardar uma tal lembrança de alguém que tivesse encarecidamente amado.» (DUBOIS, Philippe, ibidem.)

Uma sombra graficamente fixada, ou uma madeixa de cabelo, dentro de uma caixa, ou entre as páginas de um livro... Diríamos, portanto, que o que falta às mãos impressas nas grutas de Lascaux é precisamente essa dimensão icónica que o modelo de cerâmica vem suprir, na história de Plínio? As coisas são mais complexas, como acima observámos. Porque, a fixação espácio-temporal do contorno (da sombra ou da mão: a história de Plínio é, em primeiro lugar, a do nascimento do desenho pela mão da sombra; em Lascaux, pela sombra da mão em negativo) instala uma retenção (uma memória, portanto) e uma protenção propiciadoras da dimensão do ícone. Dubois observa aí:

«Mas se a imagem-índice assim produzida tenciona permanecer, fixar-se como memória, isso significa que a imagem quer superar [a efemeridade de] o seu referente, eternizá-lo, congelá-lo, na representação, substituir-se, como vestígio fixo, à sua inelutável ausência. Esta imagem perde então uma parte do que era a sua pureza indicial, perde a sua conexão temporal. O índice autonomiza-se parcialmente. Abre-se à iconização, quer dizer, à morte. A fixação iconizante, matando a indiciação do tempo referencial, assinala o início do trabalho de morte da representação. Mumifica (DUBOIS, Philippe, op. cit., p. 116).

Eis a fictio que essa fixação supõe: a retenção indicial abre caminho à «função defuncta» própria da representação icónica. O proto-retrato é, já em vida do seu retratado e do seu autor (que aqui desaparece sob a força com que a sombra do amado se impõe), prenunciador da sua morte. Ele antecipa-a nessa sua eternização do efémero, na fórmula do isto esteve aqui. Isto se ela tenciona permanecer, claro, pois ele pode ser apagado.

Mas mesmo sendo apagado, ele é eterno enquanto dura. Quer dizer, o proto-retrato, na instância do contorno gráfico (aqui de uma sombra real, isto é: na instância da sombra gráfica de uma sombra real), mesmo na sua forma ainda em processo de imagem-índice, é já promessa de um futuro a vir, situado: a) no tempo, como signo para além da morte, e b) no espaço, para além da sua contingente presença, que ele graficamente fixa, alterando-a no seu carácter evanescente. A definição de índice proposta por C. S. Peirce utiliza como exemplo a fotografia:

«As fotografias, em particular as fotografias instantâneas, são muitas vezes instrutivas porque sabemos que elas se parecem exactamente com os objectos que representam. Mas esta semelhança é devida às fotografias que foram produzidas em circunstâncias tais que fisicamente foram forçadas a corresponder ponto por ponto à Natureza. Deste ponto de vista, portanto, elas pertencem à segunda classe dos signos: os signos por conexão física.» (DUBOIS, Philippe, op. cit., p. 59).

Ora a parecença exacta, a correspondência ponto por ponto não é necessariamente a semelhança. A prová-lo estariam, por exemplo, os «fotogramas» (ou «luminogramas») de Làzlò Moholy-Nahagy, em 1922, as «rayografias» de Man Ray, desde 1921, as schadografias de Christian Schad, de 1918, os «fotogenic drawings» de Fox Talbot, de 1834-1840, ou as silhuetas de Thomas Wedgwood, em 1802, ou as experiências de produção de «silhuetas automáticas» do físico francês Hypolite Charles, em 1780. Poder-se-iam, de resto, acrescentar a esta lista, as Sculptures involontaires de Brassai. Eis dois exemplos de «rayografias» (nome construído a partir do nome do seu autor, Man Ray, nome elíptico em relação ao seu nome de baptismo: Emmanuel Radnitzky):














A tese de Philippe Dubois é a de que a imagem pictórica começa por ser, na sua origem, uma imagem-índice. Tal seria, segundo Dubois, conforme, não apenas ao testemunho de George Bataille, mas também à tese de Rosalind Krauss, que nos falará de uma arte contemporânea como arte da indicialidade. O que abrirá, nos posts a seguir, em continuação deste, para uma série de questões. Elas são, no entanto, já aqui avançadas pela ironia contida no auto-retrato de Duchamp com que abrimos este post (que não releva da «pintura», como se vê, mas antes do desenho e da moldagem). Rosalind Krauss dirá dele, em Le photographique:

«A representação está dividida entre o molde do corpo, ou índice, e o signo figurativo desenhado, ou ícone. Em baixo desta assemblage as palavras «with my tongue in my cheek, Marcel Duchamp» formam um texto de indicação ou uma legenda. Embora essas palavras descrevam, com toda a evidência, a ironia que caracteriza a arte de Duchamp em geral, é também possível dar-lhes um segundo sentido mais literal, um sentido que elas nomeiam e encarnam simultaneamente. Ter «a língua na bochecha», é ser irónico, mas é também evidentemente perder o poder da palavra, quer dizer, abandonar a linguagem e ser abandonado por ela. Duchamp encarna esse abandono no molde que fez da sua própria face. Mas essa sensação mais profunda e perturbante de que alguma coisa foi abandonada, deixada aí, é incarnada pela própria presença da legenda, dessas palavras em baixo do retrato, porque ela define o estatuto geral do índice como inarticulado e portanto como dependente da adição de um texto.» (KRAUSS, Rosalind, Le photographique: pour une théorie des écarts, trad. de Jean Kempf et alii, Paris, Macula, 1990, pp. 86-87).

É que, enquanto o ícone se abre ao símbolo, o índice furta-se-lhe. Em resumo, primeira nota necessária, antes de retomarmos as questões dos mitos de origem, de que nos falava acima Omar Calabrese: a sombra e o reflexo, são índices. E Krauss propor-nos-á, como se disse, na sua interpretação da arte contemporânea, aquilo que ela definirá como uma arte do índice, segundo um veio de leitura que passará pela noção de um inconsciente óptico, consonante com uma das orientações do surrealismo: precisamente a que se afasta de Breton, na senda de Bataille, Max Ernest e outros. Vê-lo-emos proximamente. De resto, em Le photographique, ela sublinha a importância do conceito lacaniano de «imaginário» para a compreensão de várias das suas obras. Blanchot, em A Besta de Lascaux, dizia a propósito de um poema de René Char, «A Besta Inominável» - que seguir se cita:

A Besta inominável encerra o
desfile do gracioso rebanho,
como um ciclope burlesco.
Oito esgares são o seu adorno,
dividem a sua loucura.
A besta arrota devotadamente no
ar campestre.
O ventre inchado e pendente está
dorido, vai esvaziar-se da
sua prenhez.
Dos cascos às presas inúteis
ela está envolta em fedor.

Assim me aparece no friso de
Lascaux, mãe fantasmaticamente
mascarada,
A Sabedoria de olhos cheios de
lágrimas.

... O seguinte, referindo-se, por um lado, ao facto de René Char se sentir intimamente próximo de Heráclito e, por outro, a dois dos pensamentos deste último: ««O Senhor cujo oráculo está em Delfos não exprime nem dissimula nada, mas indica». O termo «indica» regressa aqui à sua força de imagem e faz da palavra o dedo silenciosamente orientado, não dizendo nada, não escondendo nada, abre o espaço, abre-o a quem se abre essa vinda. [...] A linguagem em que fala a origem é essencialmente profética. Isso não significa que ela dite os acontecimentos futuros, mas quer dizer que não se apoia em nenhuma coisa já existente [...]. Ela indica o futuro porque não fala ainda, linguagem do futuro na medida em que é ela própria como uma linguagem futura, que sempre se antecipa, não tendo o seu sentido e a sua legitimidade senão diante de si, quer dizer fundamental-mente injustificada. (BLANCHOT, Maurice, A Besta de Lascaux, trad. de Silvina Rodrigues Lopes, Lisboa, Vendaval, 2003, pp. 9 e 20-22).

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