sábado, 18 de abril de 2009

«Elementos para uma semiologia pictural» 1 - de Louis Marin

ELEMENTOS PARA UMA SEMIOLOGIA PICTURAL

Os segredos da natureza são ocultos; embora ela aja sempre, não se descobrem sempre os seus efeitos: o tempo revela-os de época para época... As experiências que nos dão dela a inteligência multiplicam-se continuamente. (Pascal)

Estas observações que faz Pascal, no alvor da ciência física poderiam, parece, aplicar-se integralmente à obra pictural, na sua dupla relação com aquele que a faz e aquele que a contempla. Os segredos da acção da obra e do pintor não são dados na própria obra: completa, esta dissimula-os aquém ou além da superfície pintada. O que aparece deles sobre essa mesma superfície, a maneira pela qual, de uma certa maneira, eles se entregam ao olhar também não institui uma evidência. Não se descobrem sempre os seus indícios, mas ao longo da história de uma obra, de uma história que não é necessariamente temporal ou cronológica, eles revelam-se ao olhar, como outras tantas aparições ligadas entre si: historialidade surda e misteriosa, silenciosa, que não exclui no entanto as experiências do olhar e da fala conduzidas sistematicamente, que provocam a obra para multiplicar, amplificar, diversificar ressonâncias, para o conduzir a uma confissão sempre retomada no próprio momento em que ela se dá. Na mesma frase, Pascal reunia a física antiga à escuta do murmúrio confuso do mundo, na expectativa das suas revelações, e a física que o interroga segundo um plano racional e que dá voz às suas respostas num discurso universalmente inteligível; uma física a decifrar um mundo que sussura na sua própria linguagem, e uma física que lança sobre esse mundo, mediante a experiência científica, a rede das suas hipóteses, dos seus conceitos acessíveis a todos.

Uma semiologia pictural está na mesma situação e a sua pretensão à cientificidade compromete imediatamente a sua própria existência e a natureza dos seus fundamentos: a sua existência, na medida em que ela é linguagem de alguma coisa – a pintura – que não é talvez linguagem ou, em todo o caso, que o é de outro modo, na medida em que ela é linguagem sobre o que deve necessariamente permanecer fora do campo da linguagem, e que se apresenta, desde o início, como um desafio à linguagem. Estas interrogações liminares, o seu aprofundamento reiterado não são de modo nenhum preocupações propedêuticas; elas constituem a própria tentativa semiológica, a propósito da pintura. Também a questão da existência da semiologia pictural se confunde com aquela dos seus fundamentos, como ciência da arte pitórica, quer dizer como corpo coerente e suficiente de princípios, de conceitos operatórios, de modelos explicativos que permitem alcançar descobertas universalmente admitidas. Mas uma ciência da arte, será ela possível? O próprio objecto que é a pintura não se oculta ele, por essência, ao que constitui a essência de todo o projecto científico? Esta questão, ao mesmo tempo inicial e fundadora – originária – que o acordo pascaliano entre uma revelação natural e a vontade provocadora da explicação racional punha à física, é-nos necessário colocá-la na sua origem, com um texto de [Ferdinand de] Saussure no Cours de linguistique générale:

A língua é um sistema de signos exprimindo ideias e nisso comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de cortesia, aos signos militares, etc. Ela é somente o mais importante desses sistemas. Pode portanto conceber-se uma ciênia que estuda a vida dos signos no seio da vida social... Nós nomeá-la-emos semiologia (do grego σημείου : signo). Ela nos ensinaria em que consistem os signos, que leis os regem. Uma vez que ela não ainda existe, não se pode dizer o que ela será, mas ela tem direito à existência, o seu lugar está de antemão determinado.

A colocação do problema da semiologia moderna como ciência geral dos signos descobre, no seu fundador, uma ambiguidade que é não somente o signo de um tateamento metodológico ou conceptual, mas se sustenta também dessa mesma ciência: a linguística não pode constituir-se como ciência, pensa Saussure, a não ser que ela se integre numa ciência geral dos signos, mas esta ciência geral dos signos não poderá constituir-se senão sobre o modelo da linguística como ciência:

Se se quer descobrir a verdadeira natureza da linguagem, é preciso começar por tomá-la no que ela tem de comum com todos os outros sistemas da mesma ordem... mas é considerando os ritos, os trajes, etc. como signos – quer dizer sobre o modelo da linguagem – que se sentirá a necessidade de os agrupar na semiologia.

Há nestas observações um círculo lógico? E poder-se-á sair desse círculo? A semiologia tem bem por objecto todo o sistema de signos, qualquer que seja a substância, quaisquer que sejam os limites, como escreve R. Barthes. Mas na medida em que os quadros, os gestos, as melodias não são objectos linguísticos, a constituição da semiologia – e em particular da semiologia pictural – implica a mediação necessária da linguagem em todo o sistema semiológico. Claro que esta dificuldade é bem conhecida e foi ultrapassada pela distinção entre a linguagem-objecto e a metalinguagem. O discurso que tenho sobre um discurso não se instaura a um mesmo nível que o seu objecto: ele tem um outro estatuto, uma outra estrutura, e como Hjelmslev o definiu rigorosamente:

A semiologia é uma metalinguagem uma vez que ela toma a seu cargo, a título de sistema segundo, uma linguagem primeira que é o sistema estudado e esse sistema-objecto é significado através da metalinguagem da semiologia.

Assim o discurso semiológico possível sobre a pintura. Mas o problema que ele põe é somente o problema da metalinguagem? Não é esquecer, na pressa de o constituir, o próprio nível do sistema semiológico não linguístico onde no entanto a linguagem intervém constantemente, para dobrar o que é visto pelo que é dito, onde a imagem, o visível é sem cessar refractado nas e pelas categorias da linguagem? Uma indicação preciosa é-nos fornecida sobre esse problema por um outro fundador da semiologia, Freud que, na Metapsicologia, escreve:

A representação de objecto consciente cinde-se em representação de palavra e representação de coisa... Essas duas representações não são... inscrições diferentes do mesmo conteúdo em lugares psíquicos diferentes, nem estados de investimentos funcionalmente diferentes no mesmo lugar: a representação consciente compreende a representação de coisa – mais a representação de palavra que lhe pertence.

No comentário que ele fez deste texto, J-F. Lyotard assinalava que o discurso se sustentava de algum modo na articulação destes dois eixos do legível e do visível: nós vemos a coisa à distância do olhar e introduzimos a coisa num campo teórico coerente. Esta análise que Freud faz a propósito da nevrose ou da esquizofrenia deve chamar a nossa atenção sobre o problema essencial de uma semiologia da pintura, a saber a lexicalização ao mesmo tempo imediata e necessária da representação que a análise da pintura deverá simultaneamente utilizar e desenvolver. O objecto pictural é, desde logo, esse texto figurativo no qual o visível e o legível se atam um ao outro, segundo uma trama contínua na qual a análise deverá distinguir e contar os fios, notar os nós e a sua natureza específica, numa palavra articular, graças à linguagem, o tapete sem malhas soltas do quadro. Essas observações nisso mesmo nos dão a nossa primeira proposição teórica.

(continua)

Sem comentários:

Enviar um comentário