quarta-feira, 29 de abril de 2009

«Elementos para uma semiologia pictural» 2 - de Louis Marin

A LEITURA DO QUADRO

O quadro é um texto figurativo e um sistema de leitura: seria desejável, para compreender a importância desta primeira afirmação, que os termos texto e leitura não fossem metafóricos, mas apenas apreendidos a partir da metáfora tão frequentemente utilizada da leitura. O que é ler? É percorrer pelo olhar um conjunto gráfico e é decifrar um texto; cindamos provisoriamente para benefício da análise, essas duas operações: o quadro é primeiro um percurso do olhar. Uma carta de Poussin a Chantelou a propósito do seu quadro La Manne, ajudar-nos-á a precisar os dois princípios essenciais desta ideia: o primeiro é o da unidade plástica da representação ou ainda o da unidade da visão do quadro:

Quando tiverdes recebido o vosso quadro, suplico-vos, se o achardes bom, que o orneis com um pouco de cornija, porque ele precisa dela, a fim de que considerando-o em todas as suas partes os raios do olho sejam retidos e não dispersados pelo exterior recebendo as espécies de outros objectos vizinhos que vindo juntamente com as coisas pintadas confundem o dia.

Um quadro vê-se globalmente todo de uma só vez, como uma totalidade que implica não apenas um ponto de vista que eventualmente (mas eventualmente apenas) um código perspéctico pode determinar, segundo uma construção mais ou menos rigorosa, mas que se deve entender mais profundamente como a distância e a orientação de um olhar situado «hic et nunc» num espaço existencial de comportamento, mas também, o recorte do espaço do quadro desse espaço existencial, espaço outro que, anulando, de modo interno, o espaço vivido, se constitui num lugar essencial que chamaremos utopia. Que o quadro se torne afresco, que ele invada a arquitectura, que ele invista de todos os lados o contemplador nada muda: é sempre o espaço vivido que se anula no espaço existencial da pintura; é o espaço vivido que se torna festa utópica: é o contemplador que vê no centro da pintura e que a pintura olha. Poussin acrescenta – como complemento necessário do primeiro princípio – um princípio de «narratividade» ao qual dá uma conotação psicológica, mas que pod ser generalizada como discurso do olhar:

De resto, se vos lembrais da primeira carta que eu vos escrevi respeitante aos movimentos das figuras que eu vos prometia aí fazer e de que a todo o conjunto vós consideraríeis como sendo o quadro, creio que facilmente reonhecereis quais são aquelas que enlanguescem, que admiram, aquelas que têm piedade... e outras, porque as sete primeiras figuras do lado esquerdo vos dirão tudo o que aqui é escrito e tudo o resto é do mesmo estofo: lede a história e o quadro, a fim de conhecer se cada coisa é apropriada ao assunto.

O que Poussin indica a Chantelou sob a aparência de uma história, é uma leitura plástica do quadro. O acto de leitura desenrola assim um tempo, uma sucessão no interior do instante de visão, desdobra uma multiplicidade na totalidade oferecida à unidade do olhar, uma sucessão englobada, integrada no instante de unidade de visão. O problema, para dizer a verdade, que se põe à análise semiológica é o de analisar a articulação desses diferentes tempos e mais particularmente o de perguntar-se como é que a unidade de visão será articulada e recortada pela discursividade da leitura sem cessar de ser uma. A unidade de visão do quadro é uma totalidade estruturada, organizada por movimentos do olho, uma estrutura de olhares e o quadro é o escalonamento da superfície plástica por um conjunto de signos ao mesmo tempo tópicos e dinâmicos destinados a guiar o olhar, a fazê-lo realizar um circuito, a ultrapassar obstáculos, a retardar, a diferir numa diferença ao mesmo tempo temporal e espacial, a realização da unidade da visão como totalidade estruturada.

É preciso distinguir aqui uma tópica de uma dinâmica do olhar, ou ainda as direcções ou orientação, os marcos, pontos estratégicos, manchas e nós de direcção. Num sentido, o recobrimento ou a conjugação da tópica e da dinâmica do quadro reenvia à organização do espaço do quadro dada por inteiro, mesmo se ela é sempre dissimulada e está no desdobramento da força criadora que é, na sua origem, é de algum modo distendida e em repouso, qualquer que seja a violência do seu conteúdo. Donde este recurso necessário para tentar repreendê-la – recurso sempre votado ao fracasso – nos esboços, nos desenhos que permitem – mas de longe e aí ainda no completamento – reencontrar a intenção dinâmica de que o quadro não exibe senão o fim.

Além disso, e está aí um ponto essencial, esse circuito do olhar sobre a superfície plástica é no lugar do quadro, um circuito aleatório: ele não é nunca necessário. Os marcos plásticos são signos de movimentos virtuais e comportam possibilidades de escolha. E é a forma aleatória do circuito que faz aparecer – na sucessão temporal de percursos possíveis – o carácter sincrónico da unidade da visão como totalidade estruturada de olhares. Com efeito, a relativa liberdade de percurso implicando hesitações, regressos, diferenças, ela não compromete nunca o olhar num movimento linear irreversível.

O tempo de leitura espacializa-se através disso mesmo, estende-se ou radia em torno de pontos estratégicos do quadro. Ele converte-se em espaço dinâmico e qualitativo nas modulações e nos acordos dos valores e das cores. Assim a soma aberta dos percursos possíveis realizados ou virtuais forma sistema. Em termos fenomenológicos, poder-se-ia dizer que cada percurso é um perfil parcial descolado da visão unitária, que implica a colocação em jogo simultânea de três actividades perceptiva, estruturante e memorizante, sendo cada perfil colocado «em perspectiva» na visão unitária.

Esta análise arrasta duas consequências: a primeira é a de que o objecto pictural para o estudo semiológico é constituído pelo conjunto indissociável do quadro e da sua leitura entendida como totalidade encadeada e aberta de percursos possíveis. Estes descobrem-se desde logo duplamente solidários: entre eles e na totalidade do texto figurativo. Ou, numa outra terminologia, o quadro forma uma «matriz» de percursos do olhar a partir da qual são geradas as figuras do quadro, definindo cada geração uma leitura.

A segunda consequência é a de que o quadro como sistema de leitura comporta na liberdade aleatória dos circuitos do olhar, diversos graus de condicionamento. Este ponto parce-nos muito importante: como conceber um sistema – quer dizer um conjunto de elementos ligados pelos condicionamentos de uma coerência interna, orgânica – que admita «jogo», o jogo livre do olhar, que implica o jogo dos elementos de leitura? Cada percurso é livre, mas é a sucessão aberta, indefinida dos percursos que os torna solidários uns dos outros, que os articula uns aos outros, por elementos ou direcções privilegiadas.

Para dizer a verdade, esses graus de condicionamento da leitura do quadro são bastante diversos de um quadro para outro, de um nível a outro de leitura. Assim, na pintura representativa fundada sobre um sistema analógico que comporta notoriamente uma organização ilusionista do espaço plástico, o grau de condicionamento é particularmente forte: em certas paisagens de Poussin, organizadas em torno do eixo ziguezagueante de um caminho a religar o primeiro plano à grande superfície plana de um lago, o olhar é ligado no quadro a esse percurso imaginário de que se pode dificilmente libertar, da mesma forma que a construção legítima torna obrigatório um ponto de vista situado a uma certa distância da tela.

Mas mesmo nesse caso são sempre possíveis liberdades, escolhas, paragens; eles formarão somente o contraponto da melodia soberana dos eixos de construção do quadro. Em contrapartida, uma pintura fundada num sistema não analógico será libertada desse tipo de condicionamento, mas para reencontrar outros mais profundos e mais elementares, mais internos à leitura do quadro.

A outra vertente da noção de leitura é aquela de uma decifração ou da interpretação. Nós distinguimo-la do percurso do olhar, por razões operatórias, mas esta distinção é abstracta: se o quadro é efectivamente um conjunto significante, um signo ou um sistema de signos, é no percurso do olhar que se deve efectuar a interpretação. Todavia, a metáfora da leitura arrisca-se, se ela fosse prosseguida até ao fim, a incitar a enganadoras analogias, porque na leitura, os caracteres gráficos são atravessados num movimento instantâneo para a significação: ler e decifrar são duas operações bloqueadas na apreensão imediata do sentido. No quadro se institui, ao contrário uma dissociação que torna problemática, se não a interpretação, pelo menos a aplicação sem discernimento do modelo da leitura e para além desse modelo, do próprio modelo linguístico. Segundo Saussure, a teoria do signo linguístico enriqueceu-se com o princípio da dupla articulação...:

entre os signos linguísticos, é preciso com efeito separar as unidades significativas cada uma das quais é dotada de sentido (as «palavras»...) que formam a primeira articulação, as unidades distintivas que participam da forma, mas não directamente um sentido (os sons antes os fonemas) e que constituem uma segunda articulação.


De onde a primeira questão prévia a toda a aplicação do modelo linguístico a um objecto não linguístico como a pintura: há na pintura, alguma coisa que possa ser posta em correspondência com o princípio da dupla articulação? A segunda questão também primordial reenvia à distinção saussureana entre língua e fala. A língua

é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo que, por si só, não pode nem criá-la, nem modificá-la... ela é um objecto bem definido no conjunto heteróclito dos factos de linguagem... ela é um sistema homogéneo de signos onde nada há de essencial senão a união entre o sentido e a imagem acústica.

Ela é instituição social e sistema de valores, o que quer dizer, segundo Saussure, que ela é constituída por elementos, por signos

dos quais cada um é ao mesmo tempo um «valendo por» e o termo de uma função mais alargada em que têm lugar diferencialmente, outros valores correlativos. A fala é pelo contrário um acto de vontade individual e de inteligência no qual convém distinguir: 1º as combinações pelas quais o sujeito falante utiliza o código da língua com vista a exprimir o seu pensamento pessoal; 2º o mecanismo psicológico que lhe permite exteriorizar essas combinações.

A fala é uma combinação de elementos seleccionados no código da língua e actualizados no discurso. A distinção da língua e da fala, fundamental para definir o processo do sentido, será ela transponível no domínio pictural? Poder-se-á falar, fora que toda a metáfora, da língua do pintor? Há um código ou códigos picturais? Enfim, poderá haver para a pintura o equivalente do sintagma linguístico que mantém, com a fala, uma relação de proximidade estrutural, para falar como Barthes? Todas estas questões tem já sido postas e respostas negativas frequentemente vigorosas lhes têm sido dadas por Dufrenne ou por exemplo por Francastel. É preciso, parece-me, retomá-las ainda, porque delas depende o estatuto de uma semiologia da pintura.

domingo, 19 de abril de 2009

Fragmentos de Leitura 17: Acerca do (auto-)retrato I (entre «A Besta de Lascaux» e a arte contemporânea: nota 1)



















Marcel Duchamp, With my tongue in my cheek, 1959

A expressão «auto-retrato» designa correntemente aquela prática artística iniciada, na Renascença, sob a espécie pictórica do que Omar Calabrese designou, em L'Art de l'autoportrait, por «cripo-retrato» ou «retrato in assistenza». «Cripto-retrato» por se tratar de um retrato escondido, anichado ou encriptado, inserido no seio de um retrato de grupo, no qual o artista figurava como espectador presente - «in assistenza» - mas ainda assim mais ou menos dissimulado, por entre as várias personagens também ali representadas. «Presente» aos acontecimentos, da história religiosa ou profana, a que o seu tempo conferia importância e que eram, nesse sentido, «acontecimentos do seu tempo». Eis um exemplo, que cremos suficiente eloquente. Ele é-nos fornecido por este afresco de Benozzo Gozzoli, onde a figura do seu autor se perde, no conjunto, por entre o mar de cabeças da multidão à esquerda:















Benozzo Gozzoli, O Cortejo dos Reis Magos, 1459-60.

Aproximemo-nos, no entanto, um pouco mais do afresco e descortiná-lo-emos aqui, de gorro vermelho, sobre o qual se inscreve a indicação da sua autoria: aqui está ele, olhando na nossa direcção:













O auto-retrato do artista emerge inicial e discretamente aí, e com cada vez maior insistência a partir de meados do século XV em diante, ascendendo, depois, ao estatuto de género autónomo e legítimo, a par do retrato propriamente dito. Ele constitui, no entanto, no «retrato in assistenza» uma das formas do «admonitor», tal como o descrevera Alberti, em 1436, no seu Tratado della Pittura, (publicado em italiano depois de uma primeira versão em latim, o De Pictura, datad0 do ano anterior) e cuja função deixaremos para um post posterior.



















Seja como for, no «ritratto in assistenza», o pintor olha na direcção do espectador, interpelando-o, convocando-o para a cena que o quadro representa, e orientando, pela sua posição corporal e gestual, para o centro da acção narrada, ao mesmo tempo que a sua expressão representa uma espécie de comentário. Um outro exemplo de retrato «in assistenza» poderia ser o do quadro de Bellini que mostramos a seguir, e onde se vê no extremo direito do quadro, a figura do seu autor olhando na nossa direcção e comunicando-nos, pela seriedade do olhar, a noção da solenidade do acontecimento representado.















Giovanni Bellini, A Apresentação no Templo, 1460-1464.

Um outro exemplo poderia ser este, de um afresco de Luca Signorelli, neste Sermão e Cometimentos do Anti-Cristo, onde se o vê, no canto inferior esquerdo, em destaque pelo facto de envergar um traje escuro e de semblante carregado, ao lado de uma outra figura também trajada de escuro, a olhar na nossa direcção:















Luca Signorelli, Sermão e Cometimentos do Anti-Cristo, 1499-1502.

São inúmeros os exemplos dos pintores que, de Giovanni Bellini, Filippino Lippi, Luca Signorelli, Jan van Eyck, Raphael - a lista prolongar-se-ia indefinidamente - vão estabelecendo uma tradição que, passando por Rembrandt, Velázquez, Caravaggio, Gump, Chardin, Charles Lebrun, Henri Fantin-Latour, Courbet, etc. se prolongará até ao século XX, onde encontraríamos os exemplos de Tatlin, Chirico, Kirchner, Max Beckman, Dalí, Frida Khalo, Jackson Pollock, Marcel Duchamp, Bacon ou Lucien Freud, para citar apenas uma pequeníssima fracção dessa imensa série, verdadeiramente imensa...


















Lucien Freud, Cabeça de homem (auto-retrato I), 1963.

No entanto, como observa Omar Calabrese, em L'Art de l'autoportrait, parece necessária, a respeito do retrato em geral, uma observação inicial. Ela prende-se com a aparente bipolaridade o atravessa, quer na sua prática, quer na sua teoria. Por um lado, do ponto de vista dos modos pelos quais se procurou entendê-lo ao longo dos séculos, figuram, de entre os mitos de origem associados ao nascimento da pintura em geral, e ao retrato em particular, a lenda da origem da pintura que nos chega de Plínio, o Velho, na sua Historia Naturalis, (glosado depois por Quintiliano, Plutarco, Vasari, Leonardo da Vinci e Alberti e) cujo processo de produção se mostraria afim, como notará Philippe Dubois, em O Acto Fotográfico, das práticas reportadas por George Bataille, quer dos aborígenes da Austrália de hoje, quer da forma de produção pressuposta nas marcas impressas nas paredes das grutas de Lascaux.

Por outro lado, é também do mito de Narciso (e do de Perseu, como veremos), narrado por Ovídio, nas suas Metamorfoses, e retomado mais tarde por Leon Battista Alberti, no tratado que sistematiza as aquisições da perspectiva, descoberta por Brunnelleschi, que se trata. Esses «mitos de origem» correspondem, de certo modo, a duas linhagens semânticas distintas, inerentes aos dois vocábulos que, em diferentes grupos de línguas, servem para designar o retrato.

Assim, por um lado, ao italiano «ritratto» correspondem as formas - homógrafas entre si - do português e do espanhol «retrato», derivando elas do latim re-traho, com o sentido de «retraçar», - traho: «traçar uma linha». Veremos que ela é conforme à narrativa de Plínio. Por outro lado, ao termo francês «portrait» correspondem os termos «portrait», «Porträt», «portret», em inglês, alemão e russo, respectivamente, todos eles, desta vez derivados do latim pro-traho e implicando, segundo Omar Calabrese, a ideia de uma substituição: «pro-traho: dito de outro modo - eu desenho alguma coisa no lugar de alguma outra coisa». A esta duplicidade da sua origem etimológica e das suas implicações semânticas corresponderia um certo «binarismo», na sua concepção.

Os antecedentes do «retrato» (do «ritratto», portanto), no sentido metonímico (veremos em que é que ele se mostra afim da história contada por Plínio) podem encontrar-se, por exemplo, na antiga prática romana de cunhagem de moedas comemorativas, ou com função mnemónica, representando o perfil de certas figuras, em reconhecimento público do seu mérito. O retrato de perfil afecta, sobretudo, a ideia de uma estratégia referencial (própria do que Gombrich chama «modelo cartográfico») na qual a verosimilhança tem - distintamente do que se passa no retrato frontal - um lugar de destaque. Ele é «parecido» com o seu referente. Como se a visão de perfil pressupusesse uma neutralidade e uma objectividade que a visão frontal exclui e se prestasse, por isso, mais à história do que ao discurso, para usar a distinção de Émile Benveniste, ao que passo que o retrato frontal, inversamente, se prestaria mais ao discurso do que à história.

No retrato frontal é o sentido metafórico, o do «portrait», que ganha relevo, segundo paradigma especular da imagem reflectida (pelo espelho, natural ou artifical, associando-se, portanto, ao mito de Narciso), e a verosimilhança ser-lhe-á, por longo tempo, um atributo meramente secundário, o que de resto confere com o facto de, no mito, Narciso se não reconhecer na sua imagem. O que no retrato frontal está em jogo é mais a ideia do que a existência ou a realidade, mais o cargo ou a função do que a aparência física, mais o espírito ou a força da interpelação, do que a forma reportada a um referente. «O retrato de frente - diz Calabrese - é o do homem reinante, quer ele seja laico quer religioso».

1. A história de Plínio o Velho, acerca da origem da pintura: ele refere-se-lhe em dois momentos da sua História Natural. Um deles diz o seguinte:










À direita: Joseph Benoît Suvée, The Invention of the Art of Drawing, 1791. À esquerda, impressão de mão, nas grutas de Lascaux.

«Conviria tratar também da arte da modelagem. Trabalhando com a terra, Butades de Sícion, um oleiro, foi o primeiro a inventar, em Corinto, a arte de modelar retratos em argila, graças a sua filha. Ela, apaixonada por um jovem que partia para o estrangeiro, traçou na parede o contorno da sombra de sua face à luz de uma lamparina. Seu pai, aplicando-lhe argila, confeccionou um modelo e o colocou ao fogo para endurecer junto com outros vasos de barro; dizem que teria sido conservado no Santuário das Ninfas até Múmio destruir Corinto. [...] É invenção de Butades acrescentar terra vermelha ou modelar com argila vermelha, e ele foi o primeiro a colocar máscaras nas extremidades dos telhados, a que de início chamou prostypa [em baixo relevo]; depois ele mesmo as fez ectypa [em alto relevo]. Daqui surgiram também os ornamentos nas cumeeiras dos templos. Foi por sua causa que os artistas plásticos [plastae] foram assim denominados. [...]»
(Plínio, História Natural - Livro 35, in LICHENSTEIN, Jacqueline (dir.), A Pintura: textos essenciais - Vol. 1: O mito da pintura, São Paulo, Ed. 34, 2004, p. 86)

A descrição de Plínio, reenvia-nos de imediato para o auto-retrato de Marcel Duchamp, com que abrimos este post - com o título de With my Tongue in my Cheeck, de 1959. Trataremos dele futuramente, num post independente. Ela é posta, em O Acto Fotográfico, de Philippe Dubois, em paralelo com a seguinte descrição de George Bataille, referente imagens nas grutas de Lascaux.













Joseph Wright of Derby, The Corinthian Maid, 1782-1784.

«Os homens da idade da rena, particularmente em Lascaux, utilizaram certamente um procedimento que usam os australianos de hoje e que consiste em introduzir uma poeira colorida num tubo oco, e soprar. Foi assim que se procedeu para obter as mãos em molde que em todo o conjunto das grutas são bastante numerosas: assentava-se a mão na parede e soprava-se à volta. Em Lascaux, o uso deste procedimento foi generalizado pelas tintas fluidas»
(DUBOIS, Philippe, O Acto Fotográfico, Lisboa, Relógio d'Água, 2000, p. 110).

Que há então de comum entre ambas as descrições? Comecemos por Plínio. Acerca da sua descrição, comenta José Gil: «aparentemente, a narrativa não conta senão a origem da cerâmica e do desenho. Que a tradição tenha retido da descrição de Plínio que o princípio da pintura nasce do desenho, e que era mesmo aquele e não este último que surgia no contorno da sombra, não levanta problemas de maior. Podemos supor que a cerâmica constitui o suporte para traços e cores que vão completar o perfil desenhado. [...] O próprio Plínio define o bom contorno como aquele que cria a ilusão do volume: «porque a extremidade [do desenho do corpo ou de uma pintura em geral] deve rodear e terminar de maneira a dar a impressão que há outra coisa por detrás dela, e mesmo dar a ver o que ela esconde». (GIL, José, «O Retrato», «Sem Título». Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio d'Água, 2005, pp. 17-18).



















Vitaly Komar, The Origin of Socialist Realism (1982)

O que na descrição de Plínio funcionaria como suplemento (ou suprimento do vazio circunscrito pelo contorno da sombra: suplemento portanto, também, em relação ao espaço circunscrito recorte figural patente no processo, descrito por George Bataille, para as mãos em molde das grutas de Lascaux) é precisamente a outra coisa que, como ele diz (agora citado por José Gil), há por detrás da boa extremidade, do bom contorno (que é neste caso da sombra). O oleiro de Corinto supre essa lacuna enchendo o vazio circunscrito pelo contorno da sombra com um modelo em argila. Suprimento que responde ao apelo já inscrito no (bom) contorno. Digamos que ele liberta, assim, o que poderíamos chamar o volume que seria já fantasmaticamente próprio à sua sombra, o que haveria já de virtualmente contido no seu contorno, assim suprindo o enigma do seu vazio, com a convocação à presença do que ela, enquanto tal, se diria que esconde.

Mas aqui, parece-nos que é toda uma série de implicações que se joga: 1. esse enchimento - que segue o processo de uma «fictio» - acrescentando uma dimensão icónica que esse contorno, por si mesmo, ao menos concebido no momento e no processo da sua produção, não possuiria. Com efeito, se retomarmos as distinções semióticas de Charles Sanders Peirce, verificamos o gesto da filha do oleiro parece deter-se, a princípio, no que ele designa por índice.

«Chamo índice ao signo que significa o seu objecto somente em virtude do facto de ele estar realmente em conexão física com o seu objecto. [...] Defino um índice determinado pelo objecto dinâmico em virtude da relação real que ele estabelece com o objecto. [...] Um índice é um signo que reenvia ao objecto que ele denota porque é realmente afectado por esse objecto. [...] Os índice são signos cuja relação com os seus objectos consiste numa correspondência de facto (cit. in DUBOIS, Philippe, O Acto Fotográfico, Lisboa, Vega, p. 56)

Se, portanto, Plínio considera o bom contorno como contendo já o apelo do seu preenchimento suplementar, acontece, no entanto, que o oleiro lhe parece responder com convocação metafórica da presença do objecto com o qual ela estabelecera, metonimicamente, uma correspondência de facto, uma conexão realmente física, passando então da metonímia à metáfora, da relação de contiguidade à relação substituição, na qual o modelo que enche o volume de sombra deveria agora representar analogicamente o jovem por quem sua filha se apaixona, e que na história de Plínio partia em viagem. A história de Plínio não seria, assim, apenas uma história de amor. Seria também a de um romance familiar e, em simultâneo, a de uma história de luto (sobre a questão do luto, enquanto convocação à presença ou à «produção» cf. Jacques Derrida, em Chaque fois unique, la fin du monde, Paris, Galilée, 2001).

Primeira conjectura: dir-se-ia, pois, que a pintura se jogaria aí como suprimento de uma semelhança que falta ao índice enquanto tal, operando a sua passagem ao ícone. (Note-se, entre parêntesis, que o auto-retrato de Duchamp, cuja imagem aqui publicamos, na abertura deste post, inverte estes termos. Nele é o molde que constitui a sua dimensão indicial e o desenho a sua dimensão icónica). Se ela fôra uma invenção de Butades de Sícion, é porque este se possivelmente apercebe dessa relação que se instaura entre a sombra e o modelo de argila...

E todavia, as coisas não são assim tão simples. E elas complicam-se precisamente no momento dessa passagem. Vejamos a definição de ícone que Peirce (para ele os ícones podem ser imagens, diagramas ou simplesmente metáforas) nos dá:

«Um ícone é um signo que reenvia ao objecto que ele denota simplesmente em virtude dos caracteres que possui, quer este objecto exista ou não. [...] Chamo a um signo que substitui alguma coisa, simplesmente porque ele se lhe parece, um ícone (DUBOIS, Philippe, op. cit., p. 57)

Ora, no contorno da sombra, a semelhança é, aparentemente, um dado relativamente secundário, em relação à presença de um objecto que resultaria dessa conexão física. A única explicação plausível para o seu enchimento parece, portanto, ser de ordem iconográfica. Mas com isso, muda-se de plano de percepção. Porque: o que interessa à filha de Butades será mesmo a semelhança? Que é que está em jogo nessa mudança? A segunda implicação do gesto do oleiro consiste no seguinte. O gesto de contornar a sombra é também o da cópia por decalque.

Neste sentido, nele se apaga a figura do autor, tal como a partir do século XVIII ela se viria a conceber. No contorno da sombra é precisamente a sombra que comanda o gesto, cuja consumação se orienta pela necessidade de não lhe acrescentar nenhum desvio, nenhum modo próprio, nenhuma outra sombra, uma vez que o que se pretende é reter, numa espécie de paragem ou congelamento do índice temporalmente evanescente que a sombra é, a presença fixa de que ela constitui uma emanação temporária. Ora, o gesto da fixação abre ali para uma dupla dimensão, uma duplicidade irredutível: a do índice e a do ícone.

Sombra gráfica de uma sombra real, o contorno da sombra é, ainda em processo do seu traçado, um índice em segundo grau - a extensão de um índice natural - uma sua extensão que a prolonga espácio-temporalmente (fixando-a no tempo e no espaço) e segue aqui a imposição de uma lei, de uma paixão do real pelo significante (para usar aqui uma expressão de Lacan). Porque é a paixão que dita esse gesto: poderíamos pressentir nele a fórmula que, derivada da poesia, a psicanálise reserva à sua descrição da fase do espelho e do Imaginário do sujeito: a do «J' est un autre» de Rimbaud.

Se é verdade que o nosso desejo é sempre «desejo do desejo do Outro», como nos diz Lacan, o contorno da sua sombra é ainda o gesto de um desejo que se coloca na dependência, não estritamente da sua presença como semelhança (o jovem parte em viagem, e a sua presença poderia, mesmo não partindo, ser-lhe indiferente, ou mostrar-se indiferente), mas da sua presença como correspondência do seu desejo. A presença que ali se investe, nesse contorno da sombra, não é portanto, simplesmente analógica, como o daria a entender o gesto do oleiro de Corinto. Ela é, em vez disso, e em primeiro lugar, antes indiciária e produz um objecto fétiche. Philippe Dubois chama-nos justamente a atenção para esse facto:

«As circunstâncias amorosas em que se desenrola esta história do nascimento da pintura, e que a motivam directamente, não são, evidentemente, inocentes. Particularmente, isso indica uma evidente congruência entre desejo e índice. O que a fábula nos diz afinal é que, ante o olhar do desejo a representação não vale tanto como semelhança do que como vestígio. Para a amante que procura conjurar a ausência daquele que ama o importante é encontrar um signo que emane directamente dele, que seja o testemunho da presença real do corpo referencial. A proximidade física que define o estatuto do índice corresponde perfeitamente às exigências da relação amorosa. A lição da fábula é esta: a mimesis está depois da contiguidade, o desejo passa primeiro pela metonímia e a pintura nasce como índice porque é fundada pelo desejo». (DUBOIS, Philippe, op. cit, p. 117)

Ora o testemunho da presença real não supõe inevitavelmente a semelhança. A lógica da marca e do vestígio, do sulco ou do traço, não é essencialmente a da analogia: o sintoma da febre não se parece com a febre, nem a pégada deixada na terra se parece com quem lá a deixou, o céu nublado com a chuva que dele depois desaba, ou a marca de um copo de vinho sobre a toalha com o copo que lá a deixou. Do mesmo modo, o contorno da sombra não é forçosamente, ao menos no seu processo, «semelhante» à pessoa de que ela emana. Em apoio do carácter indiciário do contorno da sombra, acrescentemos aqui um exemplo, que nos é trazido por Philippe Dubois, citando um texto de 1843, uma carta escrita por Elizabeth Barrett à sua amiga Mary Russel Mitford:

«Eu desejaria tanto possuir qualquer coisa que me lembrass tudo o que pode ser-me querido neste mundo. Não é simplesmente a semelhança que é preciosa neste caso - mas as associações e o sentimento de proximidade que impõe esse objecto... o facto de a própria sombra da pessoa estar aqui fixa para sempre! É por isso qe os retratos me parecem de algum modo santificados - e eu não creio que seja nada monstruoso dizer, enquanto os meus irmãos protestam com veemência, que preferia, a tudo o que um artista pôde produzir de mais nobre, guardar uma tal lembrança de alguém que tivesse encarecidamente amado.» (DUBOIS, Philippe, ibidem.)

Uma sombra graficamente fixada, ou uma madeixa de cabelo, dentro de uma caixa, ou entre as páginas de um livro... Diríamos, portanto, que o que falta às mãos impressas nas grutas de Lascaux é precisamente essa dimensão icónica que o modelo de cerâmica vem suprir, na história de Plínio? As coisas são mais complexas, como acima observámos. Porque, a fixação espácio-temporal do contorno (da sombra ou da mão: a história de Plínio é, em primeiro lugar, a do nascimento do desenho pela mão da sombra; em Lascaux, pela sombra da mão em negativo) instala uma retenção (uma memória, portanto) e uma protenção propiciadoras da dimensão do ícone. Dubois observa aí:

«Mas se a imagem-índice assim produzida tenciona permanecer, fixar-se como memória, isso significa que a imagem quer superar [a efemeridade de] o seu referente, eternizá-lo, congelá-lo, na representação, substituir-se, como vestígio fixo, à sua inelutável ausência. Esta imagem perde então uma parte do que era a sua pureza indicial, perde a sua conexão temporal. O índice autonomiza-se parcialmente. Abre-se à iconização, quer dizer, à morte. A fixação iconizante, matando a indiciação do tempo referencial, assinala o início do trabalho de morte da representação. Mumifica (DUBOIS, Philippe, op. cit., p. 116).

Eis a fictio que essa fixação supõe: a retenção indicial abre caminho à «função defuncta» própria da representação icónica. O proto-retrato é, já em vida do seu retratado e do seu autor (que aqui desaparece sob a força com que a sombra do amado se impõe), prenunciador da sua morte. Ele antecipa-a nessa sua eternização do efémero, na fórmula do isto esteve aqui. Isto se ela tenciona permanecer, claro, pois ele pode ser apagado.

Mas mesmo sendo apagado, ele é eterno enquanto dura. Quer dizer, o proto-retrato, na instância do contorno gráfico (aqui de uma sombra real, isto é: na instância da sombra gráfica de uma sombra real), mesmo na sua forma ainda em processo de imagem-índice, é já promessa de um futuro a vir, situado: a) no tempo, como signo para além da morte, e b) no espaço, para além da sua contingente presença, que ele graficamente fixa, alterando-a no seu carácter evanescente. A definição de índice proposta por C. S. Peirce utiliza como exemplo a fotografia:

«As fotografias, em particular as fotografias instantâneas, são muitas vezes instrutivas porque sabemos que elas se parecem exactamente com os objectos que representam. Mas esta semelhança é devida às fotografias que foram produzidas em circunstâncias tais que fisicamente foram forçadas a corresponder ponto por ponto à Natureza. Deste ponto de vista, portanto, elas pertencem à segunda classe dos signos: os signos por conexão física.» (DUBOIS, Philippe, op. cit., p. 59).

Ora a parecença exacta, a correspondência ponto por ponto não é necessariamente a semelhança. A prová-lo estariam, por exemplo, os «fotogramas» (ou «luminogramas») de Làzlò Moholy-Nahagy, em 1922, as «rayografias» de Man Ray, desde 1921, as schadografias de Christian Schad, de 1918, os «fotogenic drawings» de Fox Talbot, de 1834-1840, ou as silhuetas de Thomas Wedgwood, em 1802, ou as experiências de produção de «silhuetas automáticas» do físico francês Hypolite Charles, em 1780. Poder-se-iam, de resto, acrescentar a esta lista, as Sculptures involontaires de Brassai. Eis dois exemplos de «rayografias» (nome construído a partir do nome do seu autor, Man Ray, nome elíptico em relação ao seu nome de baptismo: Emmanuel Radnitzky):














A tese de Philippe Dubois é a de que a imagem pictórica começa por ser, na sua origem, uma imagem-índice. Tal seria, segundo Dubois, conforme, não apenas ao testemunho de George Bataille, mas também à tese de Rosalind Krauss, que nos falará de uma arte contemporânea como arte da indicialidade. O que abrirá, nos posts a seguir, em continuação deste, para uma série de questões. Elas são, no entanto, já aqui avançadas pela ironia contida no auto-retrato de Duchamp com que abrimos este post (que não releva da «pintura», como se vê, mas antes do desenho e da moldagem). Rosalind Krauss dirá dele, em Le photographique:

«A representação está dividida entre o molde do corpo, ou índice, e o signo figurativo desenhado, ou ícone. Em baixo desta assemblage as palavras «with my tongue in my cheek, Marcel Duchamp» formam um texto de indicação ou uma legenda. Embora essas palavras descrevam, com toda a evidência, a ironia que caracteriza a arte de Duchamp em geral, é também possível dar-lhes um segundo sentido mais literal, um sentido que elas nomeiam e encarnam simultaneamente. Ter «a língua na bochecha», é ser irónico, mas é também evidentemente perder o poder da palavra, quer dizer, abandonar a linguagem e ser abandonado por ela. Duchamp encarna esse abandono no molde que fez da sua própria face. Mas essa sensação mais profunda e perturbante de que alguma coisa foi abandonada, deixada aí, é incarnada pela própria presença da legenda, dessas palavras em baixo do retrato, porque ela define o estatuto geral do índice como inarticulado e portanto como dependente da adição de um texto.» (KRAUSS, Rosalind, Le photographique: pour une théorie des écarts, trad. de Jean Kempf et alii, Paris, Macula, 1990, pp. 86-87).

É que, enquanto o ícone se abre ao símbolo, o índice furta-se-lhe. Em resumo, primeira nota necessária, antes de retomarmos as questões dos mitos de origem, de que nos falava acima Omar Calabrese: a sombra e o reflexo, são índices. E Krauss propor-nos-á, como se disse, na sua interpretação da arte contemporânea, aquilo que ela definirá como uma arte do índice, segundo um veio de leitura que passará pela noção de um inconsciente óptico, consonante com uma das orientações do surrealismo: precisamente a que se afasta de Breton, na senda de Bataille, Max Ernest e outros. Vê-lo-emos proximamente. De resto, em Le photographique, ela sublinha a importância do conceito lacaniano de «imaginário» para a compreensão de várias das suas obras. Blanchot, em A Besta de Lascaux, dizia a propósito de um poema de René Char, «A Besta Inominável» - que seguir se cita:

A Besta inominável encerra o
desfile do gracioso rebanho,
como um ciclope burlesco.
Oito esgares são o seu adorno,
dividem a sua loucura.
A besta arrota devotadamente no
ar campestre.
O ventre inchado e pendente está
dorido, vai esvaziar-se da
sua prenhez.
Dos cascos às presas inúteis
ela está envolta em fedor.

Assim me aparece no friso de
Lascaux, mãe fantasmaticamente
mascarada,
A Sabedoria de olhos cheios de
lágrimas.

... O seguinte, referindo-se, por um lado, ao facto de René Char se sentir intimamente próximo de Heráclito e, por outro, a dois dos pensamentos deste último: ««O Senhor cujo oráculo está em Delfos não exprime nem dissimula nada, mas indica». O termo «indica» regressa aqui à sua força de imagem e faz da palavra o dedo silenciosamente orientado, não dizendo nada, não escondendo nada, abre o espaço, abre-o a quem se abre essa vinda. [...] A linguagem em que fala a origem é essencialmente profética. Isso não significa que ela dite os acontecimentos futuros, mas quer dizer que não se apoia em nenhuma coisa já existente [...]. Ela indica o futuro porque não fala ainda, linguagem do futuro na medida em que é ela própria como uma linguagem futura, que sempre se antecipa, não tendo o seu sentido e a sua legitimidade senão diante de si, quer dizer fundamental-mente injustificada. (BLANCHOT, Maurice, A Besta de Lascaux, trad. de Silvina Rodrigues Lopes, Lisboa, Vendaval, 2003, pp. 9 e 20-22).

sábado, 18 de abril de 2009

«Elementos para uma semiologia pictural» 1 - de Louis Marin

ELEMENTOS PARA UMA SEMIOLOGIA PICTURAL

Os segredos da natureza são ocultos; embora ela aja sempre, não se descobrem sempre os seus efeitos: o tempo revela-os de época para época... As experiências que nos dão dela a inteligência multiplicam-se continuamente. (Pascal)

Estas observações que faz Pascal, no alvor da ciência física poderiam, parece, aplicar-se integralmente à obra pictural, na sua dupla relação com aquele que a faz e aquele que a contempla. Os segredos da acção da obra e do pintor não são dados na própria obra: completa, esta dissimula-os aquém ou além da superfície pintada. O que aparece deles sobre essa mesma superfície, a maneira pela qual, de uma certa maneira, eles se entregam ao olhar também não institui uma evidência. Não se descobrem sempre os seus indícios, mas ao longo da história de uma obra, de uma história que não é necessariamente temporal ou cronológica, eles revelam-se ao olhar, como outras tantas aparições ligadas entre si: historialidade surda e misteriosa, silenciosa, que não exclui no entanto as experiências do olhar e da fala conduzidas sistematicamente, que provocam a obra para multiplicar, amplificar, diversificar ressonâncias, para o conduzir a uma confissão sempre retomada no próprio momento em que ela se dá. Na mesma frase, Pascal reunia a física antiga à escuta do murmúrio confuso do mundo, na expectativa das suas revelações, e a física que o interroga segundo um plano racional e que dá voz às suas respostas num discurso universalmente inteligível; uma física a decifrar um mundo que sussura na sua própria linguagem, e uma física que lança sobre esse mundo, mediante a experiência científica, a rede das suas hipóteses, dos seus conceitos acessíveis a todos.

Uma semiologia pictural está na mesma situação e a sua pretensão à cientificidade compromete imediatamente a sua própria existência e a natureza dos seus fundamentos: a sua existência, na medida em que ela é linguagem de alguma coisa – a pintura – que não é talvez linguagem ou, em todo o caso, que o é de outro modo, na medida em que ela é linguagem sobre o que deve necessariamente permanecer fora do campo da linguagem, e que se apresenta, desde o início, como um desafio à linguagem. Estas interrogações liminares, o seu aprofundamento reiterado não são de modo nenhum preocupações propedêuticas; elas constituem a própria tentativa semiológica, a propósito da pintura. Também a questão da existência da semiologia pictural se confunde com aquela dos seus fundamentos, como ciência da arte pitórica, quer dizer como corpo coerente e suficiente de princípios, de conceitos operatórios, de modelos explicativos que permitem alcançar descobertas universalmente admitidas. Mas uma ciência da arte, será ela possível? O próprio objecto que é a pintura não se oculta ele, por essência, ao que constitui a essência de todo o projecto científico? Esta questão, ao mesmo tempo inicial e fundadora – originária – que o acordo pascaliano entre uma revelação natural e a vontade provocadora da explicação racional punha à física, é-nos necessário colocá-la na sua origem, com um texto de [Ferdinand de] Saussure no Cours de linguistique générale:

A língua é um sistema de signos exprimindo ideias e nisso comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de cortesia, aos signos militares, etc. Ela é somente o mais importante desses sistemas. Pode portanto conceber-se uma ciênia que estuda a vida dos signos no seio da vida social... Nós nomeá-la-emos semiologia (do grego σημείου : signo). Ela nos ensinaria em que consistem os signos, que leis os regem. Uma vez que ela não ainda existe, não se pode dizer o que ela será, mas ela tem direito à existência, o seu lugar está de antemão determinado.

A colocação do problema da semiologia moderna como ciência geral dos signos descobre, no seu fundador, uma ambiguidade que é não somente o signo de um tateamento metodológico ou conceptual, mas se sustenta também dessa mesma ciência: a linguística não pode constituir-se como ciência, pensa Saussure, a não ser que ela se integre numa ciência geral dos signos, mas esta ciência geral dos signos não poderá constituir-se senão sobre o modelo da linguística como ciência:

Se se quer descobrir a verdadeira natureza da linguagem, é preciso começar por tomá-la no que ela tem de comum com todos os outros sistemas da mesma ordem... mas é considerando os ritos, os trajes, etc. como signos – quer dizer sobre o modelo da linguagem – que se sentirá a necessidade de os agrupar na semiologia.

Há nestas observações um círculo lógico? E poder-se-á sair desse círculo? A semiologia tem bem por objecto todo o sistema de signos, qualquer que seja a substância, quaisquer que sejam os limites, como escreve R. Barthes. Mas na medida em que os quadros, os gestos, as melodias não são objectos linguísticos, a constituição da semiologia – e em particular da semiologia pictural – implica a mediação necessária da linguagem em todo o sistema semiológico. Claro que esta dificuldade é bem conhecida e foi ultrapassada pela distinção entre a linguagem-objecto e a metalinguagem. O discurso que tenho sobre um discurso não se instaura a um mesmo nível que o seu objecto: ele tem um outro estatuto, uma outra estrutura, e como Hjelmslev o definiu rigorosamente:

A semiologia é uma metalinguagem uma vez que ela toma a seu cargo, a título de sistema segundo, uma linguagem primeira que é o sistema estudado e esse sistema-objecto é significado através da metalinguagem da semiologia.

Assim o discurso semiológico possível sobre a pintura. Mas o problema que ele põe é somente o problema da metalinguagem? Não é esquecer, na pressa de o constituir, o próprio nível do sistema semiológico não linguístico onde no entanto a linguagem intervém constantemente, para dobrar o que é visto pelo que é dito, onde a imagem, o visível é sem cessar refractado nas e pelas categorias da linguagem? Uma indicação preciosa é-nos fornecida sobre esse problema por um outro fundador da semiologia, Freud que, na Metapsicologia, escreve:

A representação de objecto consciente cinde-se em representação de palavra e representação de coisa... Essas duas representações não são... inscrições diferentes do mesmo conteúdo em lugares psíquicos diferentes, nem estados de investimentos funcionalmente diferentes no mesmo lugar: a representação consciente compreende a representação de coisa – mais a representação de palavra que lhe pertence.

No comentário que ele fez deste texto, J-F. Lyotard assinalava que o discurso se sustentava de algum modo na articulação destes dois eixos do legível e do visível: nós vemos a coisa à distância do olhar e introduzimos a coisa num campo teórico coerente. Esta análise que Freud faz a propósito da nevrose ou da esquizofrenia deve chamar a nossa atenção sobre o problema essencial de uma semiologia da pintura, a saber a lexicalização ao mesmo tempo imediata e necessária da representação que a análise da pintura deverá simultaneamente utilizar e desenvolver. O objecto pictural é, desde logo, esse texto figurativo no qual o visível e o legível se atam um ao outro, segundo uma trama contínua na qual a análise deverá distinguir e contar os fios, notar os nós e a sua natureza específica, numa palavra articular, graças à linguagem, o tapete sem malhas soltas do quadro. Essas observações nisso mesmo nos dão a nossa primeira proposição teórica.

(continua)

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Fragmentos de Leitura 18: «o que é um rosto?»





















Man Ray, André Breton, c. 1930.

I - O que é um «rosto»? Diz-nos Giorgio Agamben, em Moyens sans fins:

«Todos os seres vivos estão no aberto, manifestam-se e resplendem na sua aparência. Mas apenas o homem quer apropriar-se dessa abertura, apreender a sua própria aparência, o seu próprio ser manifesto. A linguagem é essa apropriação que transforma a natureza em rosto. Assim a aparência torna-se para o homem um problema, o lugar de uma luta pela verdade. [...] O rosto não coincide com a face. Por toda a parte onde qualquer coisa chega à exposição e tenta apreender o seu próprio ser exposto, por toda a parte onde um ser que aparece soçobra na aparência e a esgota, há um rosto. (Assim, a arte pode dar um rosto mesmo a um objecto inanimado, a uma natureza morta. [...] E é possível hoje que toda a terra, transformada em deserto pela vontade cega dos homens se torne num único rosto)». (AGAMBEN, Giorgio, Moyens sans fins: notes sur la politique, trad. de Paris, Rivages, 1995, pp. 103-104)

Ora, todo o problema do retrato (e do auto-retrato, embora de formas diferentes) se concentra no rosto - responsável pelos seus sucessos, mas também pelos seus dilemas e fracassos. O que é pois um rosto? Deleuze e Guattari têm esta observação, a propósito do rosto, em Mil Planaltos:





















Rembrandt, Retrato de um Velho.

«O rosto não é o tegumento exterior àquele que fala, que pensa ou que sente. A forma do significante na linguagem, as suas próprias unidades ficariam indeterminadas se o ouvinte eventual não guiasse as suas escolhas no rosto daquele que fala («olha, parece estar zangado...», «ele não pode ter dito isso...», «olha para mim quando te falo», olha-me bem...»). Uma criança, uma mulher, uma mãe de família, um homem, um pai, um chefe, um professor, um polícia não falam uma língua em geral, mas uma língua em que as tonalidades significantes estão indexadas em características específicas de rosto». (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix, Mil Planaltos, Lisboa, Assírio & Alvim, p. 220).














R. Magritte, Les amants, 1932.

O rosto não seria, simplesmente, um invólucro exterior de cobertura, uma capa ou um biombo, por detrás do qual desapareceria todo o suporte de «determinação» indexante, toda indicação antecipadora e/ou retroactiva do que, pela sua tonalidade diferencial, se dá como «significativo» na situação de comunicação, ou se constitui aí como «forma do significante». Neste sentido, ele é já um espaço cartográfico de orientação, de indicação ou sinalização, que guia a escuta.

Aprender uma língua deve ser, também, aprender a compreender a reconhecer a função indexante das características dos rostos daqueles que a falam: aprendê-la, portanto, enquanto indexada a uma série de expressões de rosto, ou de funções de rostificação. A imagem do quadro de Magritte que aqui se vê sugere-nos precisamente a suspensão do rosto na sua função de determinação indexante. Enquanto tal, o rosto supõe, portanto, um refreamento ou um balizamento da inarticulação do índice, uma ancoragem de toda a flutuação perceptiva que ele suscitaria, em situação comunicativa. Em resumo, o rosto seria, portanto, funcionalmente um dissimulador ou corrector tácito do significante rebelde, um aplacador dos ressaltos do sentido, um indicador ou orientador frequencial.

Assim, o «rosto» é também uma superfície de que o significante tem necessidade, não apenas para que se possa fazê-lo «desaparecer», tornando-o transparente ao sentido, ou marcando-se pela sua relação com o seu significado provável, mas também para que ele possa «aparecer» e, assim, pelo contrário, «saltar» para fora do seu écrã ou enquadramento. Daí que o rosto se afigure, por um lado, como independente do corpo e resulte, na sua ligação corporal, numa instância de sobrecodificação do corpo e, por outro lado, como condição do salto do significante, para o plano de uma linguagem que escapa à intenção. O que o dissocia do corpo, no primeiro dos sentidos em que o entende Deleuze, é precisamente o seu efeito de máscara:

«A cabeça está compreendida no corpo, mas não o rosto. O rosto é uma superfície: traços, linhas, rugas do rosto, rosto longo, quadrado, triangular, o rosto é um mapa, mesmo se se aplica e se enrola num volume, mesmo se rodeia e limita as cavidades que já só existem como buracos. A cabeça, mesmo humana, não é forçosamente um rosto. O rosto só se produz quando a cabeça deixa de fazer parte do corpo, quando deixa ela própria, de ter um código corporal polívoco multidimensional - quando o corpo, incluindo a cabeça, se encontra descodificado e tem de ser sobrecodificado por algo que se chama Rosto». (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix, op. cit., p. )

Assim, para retomarmos, o que acaba de ser dito, conforme a expressão do rosto, ou a sua sobrecodificação se diria, em caso de dúvida, «ele não pode ter dito isso» ou, pelo contrário, «ele parece estar zangado», parece ter dito algo mais do que se podia ter entendido apenas pelas suas palavras. É neste sentido que os autores de Mil Planaltos acrescentam que, «nas suas características específicas», «os rostos não são, antes de mais, individuais, [mas antes] definem zonas de frequência ou de probabilidade» do sentido, e nesse aspecto, eles «limitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes à significações conformes», pois «o rosto é ele próprio redundância».

Em outros termos, enquanto operadores de determinação indexante, os rostos são também agenciadores do sentido provável, balizadores da predominância antecipativa e retro-projectiva do sentido, de que eles assimilam ou reduzem o pregueado, aplanam o ressalto ou esbatem o sobressalto, limitam a imprevisibilidade. Ora, é aqui que entra o aspecto que nos parece mais interessante, do ponto de vista do retrato: é que, nesse caso, «o rosto» constitui «a parede que o significante tem necessidade de saltar, constitui a parede do significante, enquadramento ou o écrã». Mas é também por isso que o rosto (ou a «rostificação do corpo»), torna(m) o retrato difícil, velando o acesso às impressões do espírito. Diderot, por exemplo - citado por José Gil - diz de um retrato seu, realizado por Michel Van Loo (trata-se do retrato mostrado a seguir à citação) dirigindo-se a ele, como se se tratasse de alguém com quem falasse :

««Meu bonito filósofo [...], que dirão os meus netos, quando compararem as minhas tristes obras com este sorridente, lindinho, efeminado velho amaneirado? Meus filhos, previno-vos de que não sou eu. Eu, num só dia, era sereno, triste sonhador, terno, violento, apaixonado, entusiasmado; mas nunca fui como vocês me vêem ali. [...] Tenho uma máscara que engana o artista; ou porque há nela demasiadas coisas misturadas; ou porque as impressões da minha alma se sucedem muito rapidamente e aparecem todas na minha cara [...]»» (GIL, José, op. cit., p. 30).



















Luis-Michel Van Loo, Denis Diderot, 1767.

Ele funciona, portanto, como dissolução do significante polívoco e rebelde, como «máscara que engana o artista», ou como retardador, limitador e dissipador do carácter volátil e múltiplo das «impressões da minha alma». Digamos que tal como nos sugere a natureza dos mapas, que são representações abstractas de uma topografia esvaziada da sua indicialidade, ou de uma indicialidade simbolicamente estabilizada, o seu carácter abstracto também pode desorientar, na sobrecodificação que ele opera do corpo, ou na articulação de sobreposição entre iconicidade e indicialidade.

Por isso: a «parede» que o rosto funcionalmente forma - de conformidade ou de dissimulação - é a mesma que o quadro, enquanto significante, tem de transpor ou saltar, para o levar até ao ponto limite do seu «só lhe falta falar». Digamos, enfim, que nessa sua função, o rosto implica uma espécie de alisamento e, ao mesmo tempo, de camuflagem, de devir-espaço-envolvente ou paisagem, num mimetismo espacializante do corpo que elege, tácita e estrategicamente, certos traços por detrás dos quais outros desaparecem. Por isso acrescenta José Gil:

«O retrato fixa uma percepção necessariamente flutuante. É verdade que o rosto possui infinitas expressões. Mas também é verdade que o retrato não oferece apenas uma expressão entre outras, mas parece revelar «o ponto de vista de todos os pontos de vista», uma espécie de objectividade absoluta da subjectividade (o que constitui sem dúvida um dos factores de atracção do pintor pelo auto-retrato). Ao mesmo tempo, essa perspectiva absoluta contém em potência as múltiplas expressões em que se pode manifestar (GIL, José, «O Retrato», «Sem Título». Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio d'Água, 2005, p. 30).


II - Em síntese, o que no «semblante» se (des)articula funciona aí no encosto, no atrito e na desfasagem de dois sistemas ou duas lógicas distintos:

«O rosto constitui uma zona corporal privilegiada de comunicação e de expressão. Ora, o que aí se exprime mostra-se dissimulando-se: porque não é directamente visível, o interior traduz-se no exterior da cara em gestos, traços, movimentos, olhares. Que também traem o que se quis «dizer»: o interior esgueira-se, o que faz com que o exterior o exprima necessariamente em equívoco - mesmo quando a expressão é parcialmente fiel ao expresso. [...] Ora, em certo sentido, a morte como acontecimento inicia o movimento contrário a essa esquiva do interior. [...] A morte inverte o processo do esgueire-equívoco, levando-o até às últimas consequências: retirando o corpo da presença, não deixa mais nenhuma possibilidade de esgueire e de expressão.» (GIL, José, op. cit., p. 22)

Não se trata evidentemente aqui simplesmente do corpo anatómico, mas antes do corpo pulsional - desse corpo que segue as próprias ideias, como dizia Barthes, num dos seus ensaios, e que aqui corresponderia ao «interior», que o rosto sobrecodifica e a morte faz desaparecer, por detrás dele. E também nesse sentido o retrato suspende o tempo que se esgueira. Ele é uma morte, na medida em que inscreve uma forma de individuação, uma síntese possível do impermanente. Mas uma morte que promete a sobrevida, uma morte em antecipação à morte, uma morte da morte na imagem como memória: «um tempo «vivo» - diz José Gil. «O que esconde a admiração pelo retrato vivo é uma obsessão estético-metafísica em sobreviver realmente à morte». E enquanto tal ele não se pode cingir à semelhança. Deve também ser lugar de uma sobrepresença.

«Ter-se-ia aqui uma primeira explicação do laço que une o retrato à morte. Tal como esta, aquele expõe à vista o interior sem equívoco; diferentemente da morte, o retrato apresenta o interior como ele é, mas através dessas mesmas mediações (traços, expressões) que no rosto natural o dissimulam. [...] A morte como passagem para um outro mundo consiste numa transformação do rosto: de um rosto que exprime equívoca e esporadidamente a alma, para um rosto da alma que é a alma individuada no além, que não a exprime mas lhe dá a consistência de uma presença singular. Por isso aqueles rostos [a que «só falta falar»] se calam e se envolvem num silêncio para dentro. Agora o rosto é tecido, compõe a própria tessitura da alma silenciosa - a morte realiza a nossa verdade». (GIL, José, op. cit., pp. 22-23).

Tomemos um exemplo, com o qual possamos seguir a descrição que José Gil nos faz. Ele analisa O Retrato de uma Jovem, de Ghirlandaio. Acerca do seu excesso de presença - ou da sobrepresença que dele emana - diz-nos José Gil:

«Chamemos a este excesso de presença determinado forma de uma força: porque é uma força, mas singular; tem forma, mas não figurável de maneira visível. [...] A forma da força não é visível, não está figurada, não é uma pura qualitas nem um puro quantum: é uma grandeza intensiva que surge com uma força determinada em movimento. [...] O que é particular na obra de arte, e muito particularmente neste quadro de Ghirlandaio, é a inexaurabilidade das forças e, assim, a constante intensidade da forma das forças. Constância não implica imobilidade, mas dinamismo incessante: a força da presença renova-se a cada instante, talvez com modulações ínfimas de intensidade (o que depende da subjectividade do espectador)». (GIL, José, op.cit., p. 55).



















Ghirlandaio, Retrato de uma Jovem.

A forma de uma força responde, portanto, a partir do «infigurável», o que pressupõe que, no rosto retratado, alguma coisa o excede enquanto «figura». Como diria Louis Marin, «o que um quadro representa não é o que ele figura». O que faz a força na figura? Onde e como pensar aí a sua forma?: «De onde vem a força que subjaz à forma (dessa força)? Sempre das pequenas percepções, dessas unidades perceptivas ínfimas, «imperceptíveis» ou «insensíveis» como dizia Leibniz, em movimento infinito, e cujos conjuntos ou associações dão origem às macro-percepções. [...] Se este retrato não tem a transparência das figuras de Boticelli, possui quase a nitidez gráfica de certos retratos de Mantegna» (ibidem).

As «pequenas percepções» - «imperceptíveis», «insensíveis» - constituem portanto o que no quadro salta o muro (do «rosto» que há nele). O facto de serem aparentemente «insensíveis» ou «imperceptíveis» dá-nos conta de um trabalho - de que o olhar comum, habituado que está à função indexante do rosto, se não dá imediatamente conta - de transposição regressiva, à primeira vista inaparente, como se observou, do significado ou do conteúdo transmitido, para a forma e, nela, para o que se não contém na figura. O que está em causa são, portanto, tensões e aberturas, desnivelamentos, passagens de sobreposição, saltos de desterritorialização. Eles devem dizer respeito, portanto, não a circunscrições fechadas de figura inteira, ou de elementos figurais macroscopicamente encaixados segundo uma estrutura de pertença e, portanto, apenas morfológica e relativamente autónomos, ou a territórios estabelecidos mas - sobre linhas de fronteira, ou de relação de participação sem pertença - a diferenciais de valor ou a retraçados de inscrição e oscilação dinâmica. Por isso nos dirá José Gil:

«Só aparentemente, porém, o Retrato de uma Jovem não contém os tais «ambientes propícios» ao aparecimento de sensações microscópicas. Na realidade, todo o quadro se organiza segundo séries de modelados: dos cabelos às sombras do pescoço: modelado de castanho, ruivo, quase rosado na maçã do rosto, loiro na orla dos cabelos. Mas também do cabelo ao rosado-ruivo dos lábios, saltando por sobre a luz da cara: e nesta, em que todas as cores coabitam, há como que uma claridade a sair do ruivo das sombras. 2º Em correspondência, do pescoço para baixo: modelado de encarnados, do colar de coral intenso à última faixa de vestido por cima dos ombros. E saltando por sobre a pele e o branco da gola, o botão de coral. [...] Estamos ao nível do visível. E, já aqui, se revelaram existir condições para o surgimento das pequenas percepções: [...] porque as gradações de cores se acompanham de gradações de formas; e sobretudo porque em cada uma das séries os vários graus constituem blocos nítidos de forma e cor, formam-se lugares privilegiados de aparecimento de percepções mínimas. São eles as linhas de descontinuidade ou de contraste que agem como um entre-dois atmosférico, abrindo na superfície da representação uma dimensão outra de profundidade.» (ibidem, pp. 56-58)

O que fará do quadro de Ghirlandaio, não apenas «o retrato de uma jovem»:

«resumamos: graças à construção de séries descontínuas de forma e cor; graças às ressonâncias criadas entre os elementos de cada série, e entre série completa superior e a inferior através de linhas de contraste (nem contornos nem limites de uma massa colorida); graças à tensão elaborada entre a estruturação dos elementos de cima e os de baixo (formas naturais livres/geometrização) - o quadro de Ghirlandaio constitui um poderoso dispositivo de produção de imagens-nuas e de pequenas percepções. [...] O quadro de Ghirlandaio não apresenta, afinal, uma jovem atenta, altiva, talvez expectante. Não ilustra só uma jovem da boa burguesia florentina. Mais do que isso, ou através disso, é um exemplo maior da construção plástica da presença, quer dizer da presença própria da imagem pictural. (ibidem, pp. 60-66)

Diz-nos José Gil, na introdução do seu A Imagem-nua e as Pequenas Percepções:

«Curiosamente Leibniz concebeu um inconsciente ao mesmo tempo separado e em prolongamento com a consciência da mónada. O contínuo infinito das pequenas percepções assegurava a passagem da clareza das macropercepções conscientes ao fundo obscuro da mónada. Fundo necessariamente obscuro (inconsciente) porque a mónada finita não pode comportar a expressão do universo infinito na sua face consciente; é o inconsciente, em que mergulham miríades de pequenas percepções que contêm o resto da expressão do mundo». (GIL, José, A Imagem-nua e as Pequenas Percepções, 2ª ed., trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio d'Água, 2005, p. 14).

Tendo pensado a passagem inconsciente-consciente da mónada Leibniz não pensou, contudo, a sua fronteira: «Mas Leibniz deixava na sombra a definição da zona de fronteira». Ora, é Freud que, no artigo sobre o Inconsciente, a pensa sob a forma da dissociação entre a imagem e a palavra. Partindo daí, diz-nos José Gil:

«Não se trata unicamente de conteúdos psíquicos tais como as imagens do sonho ou do fantasma recalcado, mas - afastando-nos agora de Freud - de todas a espécies de imagem, desde o bocado de muro cinzento que, entrevisto ao virar da esquina, nada significa, ao conjunto de formas e cores que constitui uma pintura. Chamemos a este tipo de imagem, «imagem-nua», despojada da sua significação verbal. Verificaríamos então que estamos mergulhados num mundo de imagens nuas; que a imensa maioria das percepções que preenchem os nossos dias é composta de imagens-nuas; que são elas que provocam os sonhos, como notava Freud (imagens anónimas que passaram despercebidas no fluxo das macropercepções) que a elas se associam pensamentos fugidios e imperceptíveis a que Leibniz chamava «pensamentos voadores» [...]. Enfim, como Leibniz observara já, as pequenas percepções encontram-se associadas a forças: a percepção das imagens-nuas provoca um apelo de sentido, como se estimulasse o espírito à procura da significação verbal ausente (ibidem, p. 15).

O que nestas últimas vibra é a força daquelas «pequenas percepções« em que assentam ou que elas contêm. E o seu movimento é o de uma espécie de onda ou de sobrelanço: um salto, uma saída, uma transposição por sobre as linhas de demarcação massiva de cada zona perceptiva, dentro e fora das regiões intuídas do «desenho» ou da tensão das massas de cor em jogo, que por si sós nada significam, embora estejam associados a forças. O nosso meio ambiente seria todo ele feito de uma certa densidade indicial, uma certa intensidade do dissociado da linguagem, sobre a qual se recortam dinamicamente «percepções» mais e também menos imediatas.

«[...] a cada instante, nas relações entre seres humanos, são os milhares de imagens-nuas que constituem a percepção do rosto e do corpo do outro que transportam significações mudas e informações muito mais ricas do que as mensagens verbais. Quando analisadas, estas imagens revelam características insuspeitadas: arrastam consigo conteúdos não-conscientes de sentido, de uma não-consciência que convém distinguir do inconsciente freudiano [que releva do recalcado] por um lado, e de todos os claros obscuros «subliminares» (ou «periféricos», ou «irreflectidos» ou de «horizonte») psicológicos ou fenomenológicos por outro. São produtores de pequenas percepções, o que implica toda uma semiótia particular já que não entram bem nas diferentes classificações conhecidas de signos (em particular, na de Peirce).» (ibidem, p. 15)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Exercícios do Olhar 1: o «Jardim do Interrogador» - de Paula Rego



















Paula Rego, O Jardim do Interrogador.


Há imagens inóspitas. Algumas, verdadeiramente inquietantes. Capturam-nos, com a força arrebatadora da sua voragem, como se nos absorvessem para um qualquer vórtice do seu interior, e nos precipitassem sobre os seus mais escuros abismos. Precipitam-nos aí no confronto com o «intimamente estranho».

Na iconografia de Paula Rego, essa sua indisposição para com a complacência, num mundo densamente fantasmático como o nosso, e cuja estereotipia vai formando uma camada espessa de lugares comuns, elas põem-se-nos à frente. Saem-nos ao caminho, desafiadoramente. Certas delas despertam-nos associações inesperadas.

O Jardim do Interrogador, de Paula Rego, é um título irónico. A relação entre o título e o quadro é selectiva e generalizante. E, ao mesmo tempo, inesperadamente inversora. Na sua lógica amplificante, ele coloca em posição de foco aquilo que no quadro se reduz à proporção minúscula e irrisória de um pequeno vaso, pousado sobre o chão cinzento, para se lhe referir pelo que designaria a sua multiplicação. As flores desse, no fim de contas, invisível jardim dispersam-se depois, aqui e ali, por vários lugares: flores violetas, flores brancas. Brotam, no seu despontar, quer de (perto de) um dos sacos, que ali se diriam de algum suposto adubo, quer daquele lugar invisível ao nosso olhar, por detrás da mão enluvada da figura do interrogador.

Ironia do título: não se trataria já sobretudo do «interrogador» - num jardim, por exemplo: sabe-se como os jardins podem ser o signo do poder e da opulência - mas justamente do seu jardim, o que o ressitua, imediatamente numa espécie de reversão de escala, e de torsão irónica do sentido. O interrogador é aqui abordado na sua intimidade, sob uma forma que o dissocia do exercício do seu poder. Mas o seu jardim é então uma metáfora política. Ele diz bem do seu jardineiro. Como diria Brecht, numa nota inserida no seu Diário de Trabalho: «o que faço voluntariamente é a rega do jardim. estranho como a consciência política política influi em todas essas operações quotidianas. de onde vem senão dela o medo que um pedaço de relva possa ser esquecido, que a pequena planta ali possa nada receber ou receber menos, que a velha árvore além possa ser negligenciada, tanto ela tem um ar robusto. e má erva ou não, tudo o que é verdura tem necessidade de água, e descobre-se tanta verdura em terra, a partir do momento em que se nos pomos a regar» (BRECHT, Bertolt, Journal de travail: 1938-1955, trad. de Philippe Ivernel, Paris, L'Arche, 1976, p. 325).

O sentido que a palavra «interrogador» traz, com a sua memória histórica associada à tortura, à violência e à degradação da condição humana, dá o interrogador não como reduzido, mas como ironizado. Ele é, finalmente, o jardineiro deste jardim impossível. O que nos indica, também, que o título é duplamente deslocador. Não apenas sinedóquico na relação que se estabelece, entre a referência figurativa do elemento que selecciona e extrai do quadro e o todo (do quadro) que ele nomeia - o título destaca uma parte quadro pela nomeação de um todo que ele não chega a figurar - mas também metonímico e oximorónico, na relação que se estabelece em si próprio. Não há jardim. Se há é o prodígio de uma floração invisível, detida na fantasmática projecção do que lá não está.

«O jardim» pode ser, no título, «do» interrogador em duas orientações distintas, relativamente antagónicas: a) na da posse ou relação de pertença, b) na de uma origem, ou de uma proveniência (é o jardim que o interrogador cultiva, mantém, etc); na de um sentido c) locativo - o jardim em que ele está - mas também d) espacializante, objectivador e metaforicamente constitutivo: o jardim que lhe é próprio, que representa o espaço de uma subjectividade que ali se marca, e que, por isso, o diz no que lhe é mais próprio, e não apenas o jardim dele.

Não se trata portanto apenas do «interrogador», em abstracto, figura ainda relativamente recente da nossa memória histórica portuguesa, mas do que há nele e dele projectado ou espacializado nesse «jardim» ausente que seria então o seu - qualquer coisa de mais abrangente, de exterior e envolvente, antecedente e consequente, ao mesmo tempo - o espaço circundante e, simultaneamente, originário - alguma coisa que o diz, numa metáfora espacial: o espaço em que ele foi possível ou se dá como possível, numa sua fantasmática e inusitada verdade: a de uma exígua floração, a de uma escassa criação e vida, a contrastar com os potenciadores de um crescimento que ali não se dá: adubos ensacados, fertilizantes.

Tudo ali é circunscrito. Uma ovelha presa por uma coleira e uma arreata, uma solitária e minúscula flor contida pelas margens cerces de um vaso que não é maior e que constitui ali a negação da envolvência dos jardins. Que espaço é esse, na verdade? No quadro tudo é uma espécie de inversão. As flores que ali dão-nos a impressão de rebentarem em qualquer sítio. De florirem à sua revelia. Nele há, pois, tudo menos um jardim. Ou melhor: desse jardim vêm-se apenas as flores exíguas que o escondem ou negam, que dele restam ou em que ele se resumiria.

1. Por outro lado, intersectando o campo de visão, nesse espaço qualquer, de umas quaisquer traseiras, há um muro, uma parede. A parede funciona ali como um segundo corte, oblíquo, em relação ao plano de representação. Como se do quadro descolasse uma segunda superfície, uma espécie de bastidor em rotativo, preso a um eixo vertical situado no fora-de-campo, para lá do lado esquerdo do quadro: um segundo plano, um muro a deslizar, lento como uma pesada porta, para o lado esquerdo, que nos permitisse entrever aquilo de que ela, de outro modo, por completo nos separaria.

A sugestão seria então a de um movimento: pelo seu socalco ou segundo enquadramento, o quadro de Paula Rego abre-nos para um espaço lateral apenas entrevisto. E esse espaço é o de um campo de searas, em cujo primeiro plano há uma mulher, a cruzá-lo transversalmente, na direcção do seu exterior. De comum com a figura de interrogador ela possui o facto de aparecer semi-nua, ao mesmo tempo, todavia, que parece emergir de um dos sacos que se vêem no pequeno pátio que há em primeiro plano. Como se por detrás dele, ela se evadisse do seu confinamento, ou dele emergisse. Como se desse jardim ela fosse uma floração inesperada, clandestina e invisível, sem que o jardineiro disso se pudesse dar conta.

2. Nesse seu movimento interno, determinado pela inscrição desse muro oblíquo, dir-se-ia então que somos «nós» que avançamos, no interior do quadro, para a visão de um espaço situado mais além do seu primeiro plano, o plano de representação. Mas dir-se-ia, também, que é a partir do espaço em que o espectador se encontra que ele agora entra no campo da sua própria visão. Pois o pequeno pátio oferece-se-lhe agora à sua visão, trazendo consigo a figura estranha e inesperada do interrogador. Dir-se-ia, então, que entramos no quadro à medida em que ele se desdobra no alçapão da sua profundidade de campo, e se desloca para dentro de si mesmo, abrindo, por essa sua rotação, por um lado, sobre aquele fundo campestre além dele, por outro lado sobre o que em primeiro plano se vê.

O que nos induz à noção de um descerramento. Pois aquele muro reinscreve, então, o plano de representação sob a forma de um fundo que forma a sua própria condição de possibilidade. Fundo de cena para o que se representa em primeiro plano, ele é no entanto uma superfície que atravessa a própria representação, para a dissociar em dois espaços relativamente distintos. Para cá dele estamos nós, frente à figura do interrogador. «Nós» então? «Nós» afinal, no jardim do interrogador? Nós os «interrogadores» - ou o que é o mesmo, o interrogador como uma figura da nossa própria alteridade? Eis que o quadro nos afronta, na sua súbita e momentaneamente inoponível violência, com o sentido do intimamente estranho. Posto que o olhar do interrogador nos interpela, como que ao espelho a nossa própria imagem. E nos absorve para o seu espaço, abrindo, na sua linha de olhar, o seu prolongamento para cá da tela.

Ou então no movimento reverso: o muro agregado ao chão, a rodar agora na nossa direcção, para o nosso espaço, situado aquém da tela e do campo sobre que ela abre, para nos trazer essa figura estranha, em que nos não reconhecemos. É um mundo estranho, desolado - marcado pelo enigma de que aquela mulher desensacada é o signo, no fundo para lá do muro, cruzando o espaço que por detrás dele se abre - esse mundo que se fecha sobre nós, e nos traz essa fantástica figura do «interrogador». Pois esse muro funciona também, associado ao chão que então avança até nós, e em que o interrogador nos olha, como a parede ou o fundo falso de uma espécie de palco giratório, de batente aberto para um outro cenário, coberto pelo sol que se estende pelas searas. Portanto, a sua função é dupla: ela abre, por um lado, para o espaço campestre de fundo, por outro lado, para o que a cenografia desta pintura aqui coloca em destaque, no primeiro plano da cena - ou na cena em primeiro plano - e traz até nós.

3. Nessa sua duplicidade ela é já indutora de um princípio de incerteza, ou de uma dupla implicação. Abrindo para o campo, ao fundo, ela abre também o quadro a si mesmo, cindido em quadro paisagem e em retrato. Põe nele a descoberto uma espécie de traseira, de bastidor de cena, que elege precisamente como cena. Mas na medida em que sobre aquela se fecha, vindo ao nosso encontro, corta-nos dela para nos devolver a uma espécie de segredo que esse campo longínquo esconderia. Qual é, então, a relação entre esses dois espaços? Nesse seu movimento incerto, o muro recorta-se como uma espécie de écrã ou de tela virtual, cujo desvio nos mostra, a sair por detrás dela, ao fundo, aquela mulher desensacada, em movimento para fora do campo do visível. E o elo de ligação isotópica entre palco, em primeiro plano e o fundo faz-se, aqui, creio, pelos sacos fechados, ali amontoados.

Da «ovelha» de fronte negra, encoleirada, - da ovelha que sendo branca tem o negro a marcar-lhe a fronte - ao estrume (ou aos corpos de cadáveres ensacados?), até ao saco de que, qual crisálida, sai a mulher do fundo, dir-se-ia que algum processo de metamorfose ocorre, no percurso do nosso olhar. Da mesma forma que o ancinho deposto sobre as pernas é o signo de uma mutação, posto em correlação com o casaco camuflado que veste. O de uma arma transformada em instrumento de jardinagem, na desmesura ironicamente reversora do que da História se esvaziou do seu anterior sentido. E no entanto, essa relação assim instaurada alarga-se aos restantes elementos desse espaço.

Mas também ele deveria ser legível em dois sentidos aparentemente antagónicos. Nessa espécie de alegoria da produção identitária, ele suscitaria também o seu sentido reverso: aquela mulher ao fundo dir-se-ia libertar-se. E no entanto, não sendo já a ovelha «negra», ou o informe latente do enigma sob a forma da sua vida em potência, é todavia um ser plenamente formado. Vinda das traseiras do muro, ela desloca-se para fora do campo de visão, num movimento que sugere aqui o sentido de uma evasão. Ela entra aí em correlação com a metamorfose do interrogador. Ora, é aqui que nos ocorre o seguinte. Michel Foucault, no seu A Vontade de Saber, diz-nos a certa altura, a propósito da Modernidade, que:

«a confissão de verdade inscreveu-se no coração dos processos de individua-lização pelo poder» (FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade – I: A Vontade de Saber, trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d’Água, 1994, p. 63); e se, portanto, nos tornámos «[...] então [n]uma sociedade singularmente confidente» (ibidem) – «o homem, no Ocidente, tornou-se um animal de confissão» (ibidem, p. 64) – numa conversão que se marcaria, antes de mais, na evolução semântica do próprio termo – «da «confissão» como garantia de estatuto, de identidade e de valor concedido a alguém pela sua inserção no círculo de outrem, passou-se à «confissão» como reconhecimento por alguém das suas próprias acções» (ibidem, p. 63) como forma de autentificação, já não pela sua pertença ou «pela referência dos outros e a manifestação da sua ligação a outrem (família, obediência, protecção)», mas pelo «discurso de verdade de que ele era capaz ou que era obrigado a proferir sobre si próprio» (ibidem) – a verdade é que se trata aí, para Michel Foucault, simultaneamente, do movimento de uma não menos desintegradora inapreensão. Vejamos o que ele nos diz:

«Daí, sem dúvida, uma metamorfose na literatura: de um prazer de contar e de ouvir, que estava centrado na narração heróica ou maravilhosa das «provas» de bravura ou de santidade, passou-se para uma literatura ordenada à tarefa infinita de fazer erguer do fundo de cada um, entre as palavras, uma verdade que a própria forma da confissão faz cintilar como sendo o inacessível. Daí também, uma outra maneira diferente de filosofar: procurar a relação fundamental com o verdadeiro, não simplesmente em si próprio – em qualquer saber esquecido ou num certo vestígio originário – mas no exame de si próprio, que revela, através de tantas impressões fugitivas, as certezas fundamentais da consciência». (ibidem, p. 64)

Trata-se aqui do que se assume como a face visível de uma espécie de abertura ou de transversal configuração epocal, actuante não apenas nos domínios da filosofia e da literatura – bem como, em particular, do romance – mas também nos das ciências ditas humanas em geral. E deveria afectar uma modernidade pautada, tanto no plano científico‑pedagógico e no informativo‑mediático, quanto histórico-político e jurídico, quer pelo pressuposto da inexistência de uma vida sem forma, uma vida informe, quer do pressuposto do desenvolvimento e da moldagem identitária e das formas de adestramento, quer ainda pela acentuação da necessidade de uma vigiada conformação ideológica. Continua Foucault:

O que se visa, em relação ao sujeito, é «o crescimento das suas aptidões, a extorsão das suas forças, o crescimento paralelo da sua utilidade e da sua docilidade, a sua integração em sistemas de controlo eficazes e económicos, tudo isso [...] assegurado por processos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano» (ibidem, p. 143) e, através dele, um investimento da vida «de ponta a ponta», exercido «sobre o corpo atravessado pela mecânica do vivo e que serve de suporte aos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível da saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-las variar; a sua assunção opera-se por toda uma série de intervenções e de controlos reguladores: uma biopolítica da população» (ibidem, pp. 143-144) e mantido na esfera de uma hábil gestão da sua expansão...

Pois:

«A introdução no decurso da idade clássica desta grande tecnologia de face dupla – anatómica e biológica, individualizante e especificante, virada para as possibilidades do corpo e contemplando os processos da vida – caracteriza um poder cuja mais alta função talvez já não seja agora matar, mas investir a vida de ponta a ponta. [...] Abre-se assim a era de um «biopoder». (ibidem, pp. 143-144). A mecânica do poder que persegue toda esta variedade [a da especificação identitária do sujeito na sua diferença] não pretende suprimi-la senão atribuindo-lhe uma realidade analítica, visível, e permanente: ela enfia-a nos corpos, fá-la deslizar para debaixo dos comportamentos, faz dela um princípio de classificação e de inteligibilidade, constitui-a como razão de ser e ordem natural da desordem. Exclusão dessas mil e uma sexualidades aberrantes? Não, mas especificação, solidificação regional de cada uma.»

Trata-se, disseminando-as, de as semear ou inscrever no real e de as incorporar no indivíduo. As ciências humanas, postas ao serviços das tecnologias da produção identitária do sujeito. Poder-se-ia pois perguntar se «o interrogador» não seria, então, precisamente a figura histórico-alegórica deste biopoder, destinado a arrancar do fundo do sujeito e da sua confissão a verdade da sua identidade e do seu destino, assim o submetendo a uma verdade que lhe surgiria então como vinda de «si próprio».

O que o quadro nos mostraria, nesse seu «jardim» - aqui a entender em sentido extensivo como o lugar de um fazer: o do evasamento, o do enchimento dos sacos, o da contenção do animal que a ovelha «negra» é - seria portanto, a esta luz, uma metáfora espacial dessa extorsão da identidade. Mas não só: nesse processo, alguma coisa se teria perversamente revertido numa metamorfose que atinge as instâncias do seu poder. A mulher que ao fundo se evade é agora signo da metamorfose que liberta, no interrogador, uma alteridade que o nega a si mesmo.
Essa linha de sentido deveria tornar patente o nexo que ali se constrói entre «a ovelha negra», os sacos de adubo como símbolo de um encerramento do «informe» de uma vida orgânica «em potência», de um informe respeitante à temporalidade do ser, e finalmente, numa sociedade patriarcal, o que deles emerge já marcado de uma identidade (sexual, na figura da mulher). Mas também a reversão irónica a que conduz. Tudo no interrogador resulta numa indicação irónica e corrosivamente redutora: as imensas luvas que enverga, as botas de tacão alto, o camuflado, o chapéu, são signos de uma paramentação colocada aqui em contraste com a modéstia e a domesticidade da tarefa: tratar da terra, semear ou cuidar das flores... de um jardim inexistente.

O que resultaria, então, como deliciosamente irónico, no quadro de Paula Rego, seria precisamente a figura semi-nua e semi-travestida do interrogador, cujo «traje menor» visivelmente o associa à metamorfose de que resulta a mulher que se vê ao fundo. De casaco camuflado e chapéu alto, a lembrar-nos ainda uma figura de militar que a nossa memória rapidamente associa às ditaduras (a começar pela do salazarismo, pela do nazismo hitleriano, etc. passando pelas dos generais de todas as «américas latinas» do nosso imaginário) ele posa, em cuecas, ou mesmo sem elas, com a dignidade impante, o porte triunfal e pacóvio, na desproporção da pose farta dos caçadores junto da sua presa ou do seu troféu, agora ali, nas traseiras de uma casa de campo de geografia incerta, limitado a exibir o signo do seu ínfimo biopoder.

E dir-se-ia ter incorporado, nele próprio, alguns dos traços dos mesmos seres que ele se encarrega de informar/conformar (a uma identidade moldada pelos preceitos da heterossexualidade), tornando-se, todavia, ele mesmo na figura perversa da introjecção da metamorfose que o sistema - ou a tecnologia de subjectivação que o poder moderno estabelece, como princípio de construção identitária do outro - implica, no seu manuseamento. Essa perversidade aparece ali sublinhada pelo tacão alto das botas, que lhe sublinham o «feminino», nas pernas nuas e nas luvas de plantio. E reinscreve-se no movimento interpelador do seu olhar.

Uma metáfora do Ocidente e da modernidade, em tempos de «contra-modernidade», mas também do Portugal de outrora-agora? E, com ela, esta noção de passividade / vegetalidade própria à concepção do ser pensado segundo os pressupostos desse biopoder? Mas não só: precisamente também a parede cega como reinscrição, no quadro, de um outro quadro, que ao primeiro glosa, como sua negação: aquele que nos desvendaria precisamente a nossa «verdade».

Haverá coisa mais afastada da «representação» do que esse muro que, por metonímia, nos abre para a visão de um fundo a perder de vista? A linha que demarca aquela espécie de seara /savana e se perde ao fundo, marginando a floresta densa, traça um movimento que desemboca na partição dos espaços que nos dá a ver o cenário da pose do «interrogador»: Um interrogador disseminado, portanto, por todo o sujeito? O interrogador que há em nós?

Valeria a pena pensar melhor e mais demoradamente nisto... Sobre a curva se desdobra o articulador formal do pressuposto dessa metáfora do ser em devir «a partir» de «si mesmo» e da sua morte, na sua matriz. «A ovelha negra»-«os sacos de estrume/cadáveres»-«a mulher desensacada (uma outra espécie de flor)» seriam a inscrição de um processo de mortificação e de conformação, o rasto da inscrição do trabalho de uma tecnologia da subjectividade.

E «o interrogador» aí estaria como uma espécie de operador, na sociedade patriarcal, da sua irrisória e ao mesmo tempo ameaçadora maiêutica. Moderna extorsão de uma espécie de diferença que se rebela contra si mesma... O dito «jardim do interrogador» seria, então, o que resta de uma espécie de fábrica identitária... E «o interrogador» uma figura marcada pelos efeitos da ontologia biopolítica de que ele mesmo seria agente e inadvertido paciente. Penso nisto e volto ao quadro. É preciso voltar, a todo o custo. Uma e outra vez, aos interrogadores que nos cercam, e com quem nos cruzamos todos os dias, os que há ainda algures dentro de nós.