quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Recapitulações XX: o «jogo» e o «descentramento» 2 - ou o «pós-» de pós-estruturalismo (Lévi-Strauss; Jacques Derrida)


















Jacques Derrida

1. No seguimento do que se disse em «Recapitulações: Jogo e Descentramento 1», poder-se-ia aqui acompanhar aquilo que Derrida descreve, em «A estrutura, o signo e o jogo, no discurso das ciências humanas» como sendo o acontecimento de uma ruptura e de uma duplicação. Eles afectam precisamente o lugar daquilo que estrutura aquele pensamento filosófico e científico que, no Ocidente, vem a desembocar no estruturalismo. Esse acontecimento diz respeito ao termo e ao conceito de estrutura, que Derrida lembra serem, em si mesmos, tão antigos quanto essa filosofia e essa ciência, essa episteme que os teria, de resto, «conduzido a si», a partir de «o solo da linguagem comum».

Portanto, a
nossa primeira premissa é, pois, a de que é desse chão da dita «linguagem comum» que provêm os conceitos, as pré-disposições e/ou as relações entre conceitos fundamentais, todas as oposições metafísicas, em suma, que estruturam o que seria uma espécie de campo axiomático a priori, e de que a ciência e a filosofia se apropriam, ao conduzirem a si esses conceitos, e inadvertida e inevitavelmente incorporam. Isso implicaria, também, a necessidade de pensar já a sua inevitável historicidade. Questões como a da metáfora em filosofia, a de uma certa metáfora constitutiva, até, da filosofia, ou a da retoricidade do discurso filosófico, passariam justamente por aqui, mas para serem postas no plano de um acontecer de que nenhuma forma de antecipação se pode assegurar.

De entre esses conceitos está, evidentemente, também o conceito de «estrutura» - em relação a todos os termos que uma certa voga da cultura europeia preteriu, a dada altura, em seu benefício - cuja origem etimológica nos remete para o verbo, no latim, -struo, -struere, com o sentido de empilhar, de sobrepor. Noção que arrasta consigo, também, a de uma certa simultaneidade (na verticalidade), na qual é, precisamente, a diferença formal de posição correlativa de cada elemento da série paradigmática que há-de ser preciso pensar. Mas essa diferença articula-se nos termos de uma posicionalidade que, diríamos, deve ser pensada, não como geométrica, (isto é, no conjunto simultâneo das formas pertencentes a esse paradigma), mas sobretudo energética. Porque é uma diferença que diz respeito a uma certa relação de forças (de coacção à inscrição ou ao uso, ou de exclusão e de suspensão, ou de mesmo de cancelamento desse uso ou dessa inscrição) que, diferenciada e diferenciadoramente, aos termos ou elementos desse paradigma, os investe e os mobiliza ou, pelo contrário, os bloqueia, segundo linhas de fronteira que representam deslocamentos ou cisões profundas, tectónicas já segundo uma certa arquia, isto é, limites, dissociações ou, muitas vezes, oposições que se diriam então «arqui-tectónicas».

Para cada contexto discursivo, certos termos ocorrem quase espontaneamente como possíveis e adequados, enquanto que outros envolvem, na sua utilização, um certo risco, que pode às vezes ser até o da própria morte, pela violação das restrições semânticas exercidas pelo contexto discursivo. Quer então isto dizer que a escolha e a utilização ou inscrição dos termos nunca é um acto desprovido de consequências, quer ele seja simplesmente «conformista», quer ele seja «transgressivo», quer ainda ele seja transgressivo no seu modo de respeitar os imperativos da conformidade, como veremos ser em certo sentido o caso da desconstrução.

O que suporia que ora se é conforme ao que, na língua e na cultura, - uma na outra, nela e, todavia, também sem ela - são as suas disposições (analisáveis do ponto de vista ético-jurídico-político, mas também filosófico e psicanalítico), ora se «solicita«, como será reiterado desígnio da descontrução, (cf. por exemplo «Força e Significação») a partir do seu interior, o que nela está em jogo e, então, se produz algum abalo, algum abanão que repõe em marcha, alguma solicitação que desencadeia o movimento e a historicidade das e nas suas estruturas de fundo, deslocando as suas relações de força, bem como as relações formais em que elas aparecem histórica e presentemente absortas.

O termo solicitar vem do latim sollicitare, que resulta de sollus («o todo») + citare («forçar», «abalar»). Mas, a bem dizer, para a desconstrução, essa conformidade e a desconformidade não se dão em nenhuma espécie de «alternativa». Na verdade, a «desconformidade» joga-se já por dentro da conformidade, numa certa estratégia de repetição, ou de representação, que a deve levar até às suas últimas consequências, que a possa virar contra ela-própria. Como nos diria Derrida, em O Monolinguismo do Outro:

Como o anteprimeiro tempo da língua pré-originária não existe, é preciso inventá-lo. Injunções, intimação a uma outra escrita. Mas que sobretudo é preciso escrever no interior, se se pode dizer, das línguas. É preciso apelar a escrita para dentro da língua dada. [...] Mas esta intimidade desconcertante, este lugar «no interior» do francês [ou de qualquer língua], eis que ele não pode deixar de inscrever na relação a si da língua, na sua auto-afecção, se assim se pode dizer, um exterior absoluto, uma zona fora da lei, o enclave clivado de uma referência apenas audível ou legível a esta absolutamente outra anteprimeira língua, a este grau-zero-menos-um da escrita que deixa a sua marca fantasmática «na» dita monolíngua. (DERRIDA, Jacques, O Monolinguismo do Outro ou a prótese da origem, trad. de Fernanda Bernardo, Porto, Campo das Letras, p. 97)

Esse apelo da língua para dentro dela é, pois, a operação de uma «solicitação» do que, no entanto, no seu interior inscreve já a abertura para uma espécie de «exterior absoluto». Apelar a língua para dentro da língua dada é redobrá-la, no levantamento e no descolamento das suas dobras, e auto-afectá-la, dessa e nessa sua forma, em auto-deslocamento, do que nela se inscreve como exterior e absolutamente outro e, nela, fantasmaticamente, ressoa. A escrita é a escuta (a partir desse apelo feito do interior em que se inscreve um exterior absoluto,) desse apelo; portanto, também o acesso a uma zona fora-da-lei que é, precisamente, uma das componentes da sua própria estrutura heterónoma, da sua «razão de ser» ou da sua dimensão de Lei, da sua injunção e da sua compulsão, de uma língua outra cuja alteridade se articula nas suas próprias dobras. Ou ainda, de um outro ângulo, essa escuta supõe já que:

Dès qu’il vient à l’être et au langage, le jeu s’efface comme tel. De même que l’écriture doit s’effacer comme telle devant la vérité, etc. C’est qu’il n’y a pas de comme tel de l’écriture et du jeu. N’ayant pas d’essence, introduisant la différence comme condition de la présence de l’essence, ouvrant la possibilité du double, de la copie, de l’imitation, du simulacre, le jeu et la graphie vont sans cesse disparaissant.
Ils ne peuvent, d’affirmation classique, être affirmés sans être nié. (DERRIDA, Jacques, «La Pharmacie de Platon», Dissémination, Paris, Seuil, 1972, pp. 180-181).

Portanto, essa escuta supõe, não apenas a inexistência de um como tal da diferença, mas também a invitabilidade de uma alteridade radical de qualquer língua ou de qualquer Lei que, recebida como do exterior e como contrária aos desígnios da nossa condição ou do nosso desejo como condição, nos dobra e nos marca, para em nós vir instaurar e a constituir, ainda pré-originária e já irredutivelmente, o «enclave clivado» de uma subjectividade sem a qual não chegaria sequer a haver discurso, não chegaria sequer a haver promessa, portanto, de uma língua outra na heteronomia da Lei e da língua que nos constituem como «marcados». Enquanto tal - isto é, enquanto «marcados» - nós somos precisamente a figura da impossibilidade da figura, no sentido em que o nosso lugar é, exotopicamente, o de um limite que, não apenas em nós se marca, mas também em se suspende, justamente a partir do que na sua energia ou na sua energética, o precipita. Num certo sentido, não há sujeito que não seja «marcado». O ver-se ele representado como pelo termo «não-marcado» na agonística própria de uma língua ou de uma cultura, isso apenas significa que essa sua marca a tal o induz e, portanto, que o confundir-se ele com o indiferente supõe já uma sua relação com a diferença.


2. A respeito de uma língua (tal como a respeito de uma «forma»), dir-se-ia, então, que a sua Lei se inscreve na sua estrutura, no sentido em que ela supõe, para cada lugar contextual de possibilidade de ocorrência discursiva de um certo conjunto de termos (ou de actualização da língua ou de inscrição gramatológica), uma correlação diferente (em diferença e em diferendo / diferimento: se pudéssemos diríamos, em português: diferante em vez de diferente, para tornar sentível essa dissensão e esse espaçamento internos à correlação) e diferenciante de opções distintas (embora relativamente compossíveis ou não, segundo os limites do «solo da linguagem comum» e da cultura), em cada uma das relações estabelecidas entre os termos do paradigma, relações ou todas elas ou pertencentes a um mesmo paradigma, ou nele intersectando outros paradigmas relacionais.


Cada série paradigmática seria assim, por um lado, delimitada (ou centrada) por um termo que, em relação a determinado contexto, seria o termo «não-marcado» - isto é, o termo suposto neutro, indiferente à singularidade contextual, e por isso, por ela «não marcado». Esse termo seria, ainda, uma espécie de hiperónimo, um termo cujo sentido seria descritor de uma espécie de denominador comum dos restantes termos da série paradigmática série dos elementos que em certos contextos poderiam ocorrer. Mas acontece também que, para cada contexto, e para cada série paradigmática, uma fronteira se traça, exactamente na medida da acepção ou do sentido do seu termo não-marcado. E essa fronteira é de exclusão. Assim, em certos contextos, a ocorrência de certos termos supõe a exclusão de outros termos, que se chamam, também pelo facto de se desviarem dessa base semântica e sintáctica do termo que centra o paradigma, termos «marcados». Daremos, de seguida, um exemplo muito simples do que pode ser um termo «não-marcado», em relação a um termo «marcado» e que tipo de relação de poder essa exclusão implica, arrastando consigo a concepção da língua e da linguagem como um CAMPO DE FORÇAS.

Eis o exemplo de que de imediato nos poderíamos servir. Consideremo-lo na segunda premissa do ponto de partida de Derrida, que será a seguinte: o próprio lugar dos sujeitos que falam uma língua se dirá distinto, quer conforme as estruturas discursivas (sintactico-semânticas) são diferentes valorizadas e distinguidas (preferidas ou preteridas, ou em relação de aproximada equivalência) por um lugar mais ou menos consentâneamente representativo ou tomado por modelar, conforme a sua representação categorial no interior do léxico e da sintaxe, de tal forma que o simples facto, por exemplo, de se saber que o substantivo «Homem» antecidido de artigo definido serve também para designar a humanidade ou o género humano deve constituir uma experiência relativamente diferente, para homens e para mulheres, em suma, para diferentes categorias de género. É portanto compreensível que a língua inscreva em si traços, marcas, registos que diferem entre si pelo seu conteúdo dinâmico e pela sua amlitude de distribuição ou de uso. E que, nesse sentido, ela funcione como um campo de forças a cuja historicidade (que é preciso não confundir com diacronia), na verdade, nenhuma descrição simplesmente «sincrónica» poderia fazer justiça.

A «sincronia» é já de si o modo de represar, concentrar ou «conter» forças que se disputam entre si e se disputam por dentro umas das outras, se antagonizam ou jogam na sua tensão entre si, deixando de fora da sua FORMA (ou da sua «estrutura», se se tomar «estrutura» numa acepção que o estruturalismo vulgarizou), precisamente a diferença como princípio situado na base de toda a distinção ou de toda conceptualidade. O conteúdo de uma relação oposicional entre elementos cuja paradigmática compossibilidade é, para um determinado contexto, relativamente suspensa ou variável, segundo os contextos, - como é o caso em que o termo «Homem», antecedido de artigo definido e usado como termo designador da espécie humana, (ou designador de uma sua sub-espécie história: o homem do Renascimento, do Iluminismo, etc... Como se as mulheres tivessem permanecido por fora de toda esta história...) exclui a possibilidade de ocorrência da palavra «Mulher», para nos servirmos de um exemplo muito simplificador, mas imediata e suficientemente reconhecível por todos os falantes nativos de uma certa norma do português - para permitir apenas a ocorrência de um deles é, enfim, um facto de língua, mas também, um facto de LEI.

3. A língua é, portanto, a instância de uma certa soberania e, também, de uma certa e correspondente «excepção», da qual falaremos num outro «post». Ora, o que releva da experiência dos diversos sujeitos que, não apenas se formam segundo os seus preceitos e prescrições, mas também se vêem nela diferentemente representados, não pode deixar de ter uma consequência na sua relação discursiva. E se realmente o pós-estruturalismo foi essa espécie de dissensão interna que nele abriu uma irreversível e irredutível fissura, a sua primeira descoberta foi precisamente a de que o que o estruturalismo tendia a recalcar era, nem mais nem menos, do que a historicidade e o inconsciente, em suma, o carácter clivado das estruturas, nas quais a forma escondia atrás de si e dentro de si um campo de forças que estaria, em simultâneo, na origem de todos os processos de diferenciação. Analisar uma língua suporia então pensar nela uma agonística, essa espécie de diferencialidade que a sua FORMA poderia aparentar «conter», mas que escapa por norma à nossa consideração, não apenas porque ela nos constrói, na sua mais disseminada dogmática, mas também porque ela supõe a afirmação irredutível da sua historicidade, o que não é simplesmente o mesmo que considerar as forças em actuação nessa campo agonístico como «invisíveis».

Elas seriam «invisíveis» apenas no sentido de que qualquer que seja a forma de as capturar as perde, a partir do momento em que se pensa esta irredutibilidade da historicidade de que aqui se fala. Mas isso não as dá simplesmente como obscuras ou ocultas. O pensamento da desconstrução a respeito da historicidade (não trataremos dele aqui) pode ser acompanhado, por exemplo, em Spectres Marx e, depois, em Marx & Sons, na crítica que do modelo marxista ali se faz, chamando a atenção para o carácter pré-crítico de certas das suas pressuposições e desdobrando, ao mesmo tempo, aquilo que de uma certa relação fantasmática se inscreve, na nossa relação e na compreensão do tempo, por exemplo do tempo dito «presente», no qual, situados «perante o ente» nos colocamos perante a irredutibilidade da nossa própria constituição espectral, nossa no sentido em que somos o lugar de uma dobragem da força que nos constitui e que essa dobra de força é obtida, quer a partir de um certo confronto, quer a partir de uma certa desproporção ou diferencialidade, quer finalmente, a partir de uma certa introjecção de disposições que nos são relativamente exteriores.

E é claro que, a propósito dessa historicidade, para descrevê-la, seria necessário, em primeiro lugar, perceber que nenhuma dialéctica da história dela nos daria ou poderia dar conta. Descrevê-la seria des-(ins)crevê-la, uma vez que a sua descrição a diferenciaria de si mesma no interior de si mesma, ou da sua própria presença a si, isto é, no interior da própria relação de presença a si que a descrição já supõe, como presença a si do presente. Seria, enfim, inscrever nela um traço de deslocamento, de divisão de si a partir da presença a si. Seria enfim, em certo sentido, escrevê-la fora de qualquer possibilidade de transcrição historiográfica e, portanto, de qualquer possibilidade plena adequação a si. Descrevê-la seria, em certo sentido, repeti-la e deslocá-la, reiterá-la - «iter» significa de novo, quer no sentido da repetição, quer no sentido da diferenciação. O acto de escrever desloca o que ele descreve e, nesse sentido, produz o que ele descreve.

4. O acontecimento de que no texto de Derrida se fala tornou-se mais perceptível, segundo o seu autor, numa altura em que a certeza tranquilizadora da existência unívoca de um centro terá começado a faltar, ou a estar em dúvida. E uma vez que se trata aqui de uma apropriação do que provém da linguagem comum, de uma repetição na ciência e de uma deslocação da «estrutura» que partilhamos na linguagem comum (o que significa também que ela se divide e se reparte, e se torna a dividir, de ambos os lados das relações tensionais que percorrem e constituem o campo de forças presente nessa agonística, o campo dessas tensões cujos termos se reinscrevem uns nos outros, ao mesmo tempo os cindindo, muito à maneira ditada, quer pelo seu diferencial dinâmico, quer pela memória neles marcada dessa sua relação) e portanto que partilhamos de modo difuso, num discurso que é, ao mesmo tempo, a forma pela qual somos ditos ou falados por essa linguagem comum, convém aqui perceber em que é que, no seu compromisso com a linguagem comum, o termo «estrutura» significa também.

O outro aspecto interessante prende-se com o facto de a palavra estrutura estar tradicionalmente ligada, quer a uma certa permanência ou constância formal do movimento daquilo que se repete e, necessariamente, é também aquilo varia, quer à singularidade da única vez de um só acontecimento nos fenómenos económicos. Essa única vez é já o repetível (Derrida chamar-lhe-á o iterável, como vimos acima) e, portanto, vem a prometer a constância estrutural que lhe falta ainda, enquanto vez única. Por outro lado, o que se repete desloca-se, imperceptível e lentamente, ou talvez já a uma velocidade incalculável, abruptamente, para vir a adquirir, numa génese relativamente silenciosa e imprevista, a relativa singularidade do que se diferencia no que, algures no tempo, terá podido, também, ser ou ter sido, por sua vez, uma outra vez única. Como se, enfim, a estrutura não reduzisse a singularidade dos fenómenos que, por fora de uma certa visão de conjunto, se inscreveriam como pontas soltas de um devir (im)possível.

Ora o acontecimento de que Derrida nos vem falar afecta esta noção de estrutura que supõe, quer um certo sentido de hierarquia, ou de ordenamento interno diferenciador, de lei estrutural, quer um certo limite imposto pela ideia, metafísica e tradicional, de um centro organizador, em relação ao qual todos os fenómenos singulares se definiriam marginalmente como tal. As estruturas não são alheias aos pressupostos dinâmicos das relações de poder. Esse acontecimento, como Jacques Derrida nos mostrará, ocorrido na história de estrutura, assume a forma exterior de uma ruptura e de uma duplicação e tem a dimensão, esperamos poder mostrá-lo, de uma abertura da relação estrutural ao seu presentemente im-possível. Ele precipitará nela, a partir da sua própria abertura - que nela surgirá como o efeito de um rompimento que se refere já à heterogeneidade que lhe é afinal simultaneamente própria e irredutível - a sua alteridade ou, melhor dito ainda, aquela espécie de seu inconsciente que a sua différance é.

[...] até ao acontecimento que eu desejaria determinar, a estrutura, ou antes, a estruturalidade da estrutura, conquanto sempre activa, foi sempre neutralizada e reduzida: por um gesto que consistia em dar-lhe um centro, em reportá-la a um ponto de presença, a uma origem fixa. Esse centro tinha por função não somente orientar e equilibrar, organizar a estrutura - não se pode, com efeito, pensar uma estrutura inorganizada - mas sobretudo fazer que o princípio de organização da estrutura limitasse o que nós poderíamos denominar o jogo da estrutura. Sem dúvida que o centro de uma estrutura, dado que orienta e organiza a coerência do sistema, permite o jogo dos elementos no interior da forma total. E ainda hoje uma estrutura privada de todo o centro representa o impensável. [...] O conceito de estrutura centrada é, com efeito, o conceito de um jogo fundado, constituído a partir de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranquilizadora, ela própria subtraída ao jogo. (DERRIDA, Jacques, «A estrutura, o signo e o jogo, no discurso das ciências humanas», COELHO, Eduardo Prado (org.), Estruturalismo: antologia de textos teóricos, trad. de António ramos Rosa et alii, Lisboa, Portugália Editora, s. d., p. 102).

Peguemos em duas das pontas desta passagem e observemos que: um jogo que fosse constituído a partir de uma imobilidade fundadora ou de uma certeza tranquilizadora seria, necessariamente, um jogo constituído a partir do que escaparia, ou se subtrairia assim, a todo o jogo: seria um jogo impossível. Porque, como se viu no post anterior, de resto, o jogo do mundo pressupõe, em primeiro lugar, a oscilação e o movimento, a instabilidade angustiante do imprevisível, do fundamento que funda e se suspende no seu próprio «afundamento», antes de ser jogo «no» mundo. Portanto, alguma coisa, nesta forma tradicional de conceber o jogo na estrutura, e de representar a estrutura centrada, neste «pensamento clássico» da estrutura,
não joga. O jogo constitui-se, tal como aparece ali definido, a partir do que não é jogo: tal como a estrutura se constitui ali a partir do que, não sendo da ordem do jogo que há nela, ou não pertencendo ao que nela limita e regula esse as substituições (ou as transformações que têm lugar entre os seus elementos), ao mesmo tempo há-de estar, por isso, fora dela ou lhe há-de não pertencer inteiramente.

5. Quer isto dizer que toda a estrutura é, ela mesma, clivada. Possuindo um centro regulador das suas possibilidades de substituição interna, a verdade é que esse centro, que lhe é inerente e, portanto, interno ou interior, difere dos elementos comutáveis ou internamente substituídos pelo facto de ele mesmo se não prestar à substituição, ou ao jogo que ele contribui para limitar ou regular. Fosse ele substituível e deixaria de ser centro. Sendo ele centro, deixa ele de ser substituível e, portanto, de fazer parte da estrutura que ele próprio regula. De onde que o centro estará presente e, ao mesmo tempo, não estará presente, na estrutura que ele mesmo centra e regula:

No entanto, o centro fecha também o jogo que ele abre e torna possível. Enquanto centro, é o ponto em que a substituição dos conteúdos, dos elementos, dos termos já não é possível. No centro a permuta ou a transformação dos elementos (que podem, aliás, ser estruturas compreendidas numa estrutura) é interdita. Pelo menos sempre foi interdita (utilizo aqui esta palavra de propósito). Pensou-se sempre que o centro, que por definição é único, constituía, numa estrutura, precisamente aquilo que, impondo a estrutura, escapa à estruturalidade. Eis porque, para um pensamento clássico de estrutura, o centro pode ser considerado, paradoxalmente, dentro da estrutura e fora da estrutura. Está no centro da totalidade e, no entanto, uma vez que o centro não lhe pertence, a totalidade tem o seu centro noutro lado. O centro não é centro. O conceito de estrutura centrada, conquanto represente a própria coerência, a condição da episteme como filosofia ou como ciência, é contraditoriamente coerente. (ibidem, p. 102)

Dito de outro modo: toda a estrutura centrada possui um centro que dela e nela mesma se descentra para fora dela, na medida em que ele não joga ou em que ele se diferencia do que ela contém de comutável ou substituível, isto é, de jogo regulado. Portanto, o centro, que dela faz necessariamente parte, está, ao mesmo tempo, fora dela, se ela for tida como espaço de um jogo regulado segundo certo modo de disposição e de relação de comutação, de movimento regulado de substituições que há nela. E isso implicaria, já do interior desse pensamento clássico da estrutura, a necessidade de se observar que toda a estrutura é necessariamente e sempre aberta, no sentido em que o seu centro está sempre, simultaneamente, dentro e fora dela; um centro sempre em jogo, portanto, na estruturalidade da estrutura - diríamos agora - no sentido em que ele se assume duplamente, quer como elemento regulador, necessariamente interno ao jogo, na medida em que ele é, então, o próprio jogo que ele regula, quer como elemento fora-de-jogo, na medida em que não participa desse jogo que «ele mesmo» regula. Um outro texto de Jacques Derrida é, a este respeito, inequívoco:

Et quand même on vient à penser que l'ouverture de la structure est «structurelle», c'est-à-dire essentielle, on est déjà passé à un ordre hétérogène au premier: la différence entre la structure mineure - nécéssairement close - et la structuralité d'une ouverture, tel est peut-être le lieu insituable où la philosphie s'enracine. En particulier quand elle dit et décrit des structures. (DERRIDA, Jacques, «Genèse et structure», L'écriture et la différence, Paris, Seuil, 1967, p. 230; sublinhado nosso).

Pensar na abertura como já de si mesma «estrutural» é pensar a estrutura do ponto de vista (sempre deslocado) da estruturalidade da estrutura, numa ordem já heterogénea à primeira, aquela da significação «histórica» ou da presença a si, recusando, dessa forma, o sistema e a sua clausura. A exterioridade objectiva é, à primeira vista, o plano em que essa clausura se dá como corolário de uma distância que a sua diferença suporia e, assim, como própria do «presente». Mas com isso mais se não faria do que projectar, de modo antropomórfico, o olhar sobre o qual essa exterioridade «objectivamente» exposta recorta o outro como absorvido pelo instante, abstraído das modulações do seu incessante deslocamento. Em cada desses presentes instantâneos, uma presença central se estabelece como repetição do que, de um a outro desses momentos, se revela finalmente diferente (no sentido do diferimento e do diferendo). A história da metafísica seria, portanto, também a história do conceito de
estrutura, antes desse acontecimento da ruptura e da duplicação, no qual se deve ter começado a pensar a inexistência do centro - a inexistência de um centro uno e nu, ou de um só centro, portanto, de um centro presente a si mesmo dentro da estrutura, uma vez que ele se duplica e inscreve dentro e fora dela, para cá e para lá do limite que ele mesmo lhe imporia:

Se assim é, realmente, toda a história do conceito de estrutura, antes da ruptura de que falamos, deve ser pensada como uma série de substituições de centro a centro, um encadeamento de determinações do centro. O centro recebe sucessivamente, e de maneira regular, formas ou normas diferentes. A história da metafísica, tal como a história do Ocidente, seria a história destas metáforas e destas metonímias. A sua forma matricial seria [...] a determinação do ser como presença em todos os sentidos desta palavra. [...] O acontecimento de ruptura, a «disrupção» a que aludi ao começar [este texto], ter-se-ia produzido no momento em que a estruturalidade da estrutura deve ter começado a ser pensada, quer dizer, repetida, e eis porque eu dizia que essa «disrupção» era repetição, em todos os sentidos da palavra. Desde então deve ter sido pensada a palavra que determina de algum modo o desejo do centro na constituição da estrutura e o processo da significação que ordena os seus deslocamentos e as suas substituições segundo a lei da presença central; mas de uma presença central que nunca foi ela mesma, que sempre foi desterrada para fora de si no seu substituto. O substituto não se substituiu a nada que lhe tenha pré-existido. A partir daí deve-se ter começado a pensar que não havia centro, que o centro não podia ser pensado na forma de um sendo-presente, que o centro não tinha lugar natural, que ele não era um lugar fixo mas uma função, uma espécie de não lugar no qual se efectuavam até ao infinito substituições de signos. (ibidem, p. 104)

6. Duplicação e ruptura poder-se-iam ter começado a acompanhar, no plano dessa história da palavra e do conceito de estrutura, nessa substituição-deslocamento, de centro em centro, nesse encadeamento de determinações de centro, que a certa altura se começa, por certo, a quebrar. «Ruptura» no sentido em que ela atravessa já a estrutura e o centro da estrutura, como centro então de si mesmo dividido, entre o que dele está em jogo e o que lhe é aquele exterior a partir do qual esse jogo se regula e limita. Ruptura, portanto, como «disrupção», entre dentro e fora, no e do próprio centro, em relação à estrutura que assim o constitui. E, portanto, ruptura como disrupção ou cisão, ainda, do que, uma vez duplicado, não é já, então, da ordem do estritamente presente, ou presente a si mesmo, mas da ordem do descentrado. Cisão, ruptura, ou disrupção do centro vão assim de par com a sua duplicação, o seu deslocamento, de tal forma que, na cadeia das substituições, o substituto «não se substitui já a nada que de algum modo lhe tenha pré-existido». Pois que isso que lhe poderia ter pré-existido se dividiu e se retirou da forma ou da presença a si. Deslocamento, portanto, como disrupção em relação ao mesmo e, ainda, em relação à presença, não apenas do ser, mas também da possibilidade da sua substituição, ou da metáfora, da sua representação retórico-ontológica na história.

O «pensamento do jogo» que, neste sentido, irrompe do interior da história e contra ela, se a pensarmos na sua clausura arqui-teleo-escatológica, é também um «pensamento da estruturalidade da estrutura». Há muito que esse pensamento trabalha, diz-nos Derrida (poder-se-ia, por exemplo, rastreá-lo nos escritos de Niezsche, Heidegger, Freud e, num outro texto, «La différance», o autor estende esse labor ao pensamento de Levinas). Por essa mesma razão não faria sentido supor que se pode simplesmente opô-lo ao discurso da metafísica, uma vez que o pensamento do jogo, não sendo um pensamento da oposição (como o é o pensamento metafísico da diferença como presença plena), é um pensamento que se constitui como sua abertura e, nesse sentido, como o movimento de precipitação de um seu
im-possível.

O
jogo não se deixa, nem neutralizar, nem naturalizar: isto é, conter ou
encerrar em qualquer espécie de oposição, tal como o acontecimento, na forma que o «discurso» da história lhe reservou, ou a estruturalidade, na estrutura que o pensamento clássico concebeu centrada, ou a différance que, de ambos os termos do nexo inaparente da différence entre os seus pelo menos dois espectáculos, mantém o sentido de uma «discórdia activa». Por isso, diz Derrida:

Quando Lévi-Strauss diz no prefácio de Le Cru et le Cuit que ele «procurou transcender a oposição entre o sensível e o inteligível colocando(-se) logo ao nível dos signos», a necessidade, a força e a legitimidade do seu gesto não podem fazer-nos esquecer que o conceito de signo não pode em si mesmo ultrapassar essa oposição entre o sensível e o inteligível.
O signo é determinado por essa oposição: de parte a parte, e através da totalidade da sua história. Ele só tem vivido mercê dela e do seu sistema. Mas nós não podemos desfazer-nos do conceito de signo, não podemos renunciar a essa cumplicidade metafísica sem renunciarmos do mesmo passo ao trabalho crítico que dirigimos contra ela, sem corrermos o risco de suprimir a diferença na auto-identidade de um significado que reduz em si o seu significante. Porque há duas maneiras de suprimir a diferença entre significante e significado; uma, a clássica, consiste em reduzir ou desviar o significante, quer dizer, finalmente, em submeter o signo ao pensamento; a outra, a que dirigimos aqui contra a precedente, consiste em pôr em jogo o sistema no qual funcionava a precedente redução; e, antes de tudo, a oposição do sensível ao inteligível. Porque o paradoxo é que a redução metafísica do signo tem necessidade da oposição que ela reduzia. A oposição forma sistema com a redução. (ibidem, p. 106).

Duas são, portanto, as maneiras de «reduzir» a oposição (entre o sensível e o inteligível) que constitui o signo; uma delas é aquela que pensa o significante apenas como veículo neutro, meramente transparente, completamente desprovido de espessura e através de cuja, de resto, tão plena quanto invisível transparência se acederia, então, ao conteúdo expresso, ou ao significado trazido no seu envelope sonoro. Essa é a que presidiria a uma concepção relativamente instrumental da linguagem, que a colocaria, no âmbito da semiologia, a par de outros sistemas de significação, igualmente instrumentais. A segunda porém consiste em, nada mais, nada menos, que pôr em jogo o sistema a que pertence a própria oposição, como signo de uma axiomática e de uma dogmática próprias do discurso da metafísica. Ora, que significa esse pôr em jogo senão precisamente em abrir a oposição ao seu presentemente im-possível, a estrutura à sua estruturalidade, a diferença à sua diferencialidade, o limite, em torno do qual ela se constitui, ao seu jogo?

7. Pôr
em jogo a oposição, como a própria expressão insinua, resulta em (su-)por na oposição
um jogo (o jogo supõe a impossibilidade da oposição e, portanto, a um certo limite, do próprio conceito) cujo presente é, apenas, a face aparente e descolada, a película instantânea e desgarrada, a camada desprendida de um fluxo, de uma relação de forças que, mesmo que inaparente, a trabalha no seu interior, demorando-a e durando para além dela, remetendo-a para mais tarde, descerrando-a ao pressentimento da inconvertibilidade do seu diferendo em qualquer espécie de litígio provisório, ou de solução definitiva, sem que todavia nos possamos disso assegurar. Ora, aqui não se poderia ser mais explícito: a redução de um dos termos da oposição faz corpo com a própria oposição, no sentido em que a oposição supõe um diferenciação hierarquizante, uma distinção de ordenamento interno e preponderância: neste caso, o significado é o termo não-marcado que vem a sobrepor-se ao termo marcado, o significante, dando-o como seu suporte meramente exterior e, no fim de contas, descartável.