quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Avulsos 12: Derrida - literatura e filosofia

«[...] não creio que o modo «demonstrativo», nem mesmo a filosofia em geral, sejam estranhos à literatura. Do mesmo modo que há dimensões «literárias» e «ficcionais» em todo o discurso filosófico (e toda uma «política» da língua, uma política tout court aí se abriga em geral), assim também há filosofemas a operar em todo o texto definido como «literário», e já no conceito moderno, feitas as contas, de «literatura»». (DERRIDA, Jacques, «Y a-t-il une langue philosophique?», WEBER, Elisabeth (org.), Points de suspensions: entretiens, Paris, Galilée, 1992, pp. 231-232).

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Fragmentos de leitura 12: O Monolinguismo do Outro















Seja que termo for que nos sirva ainda para designar o momento actual (pós-modernidade, tardo-modernidade, etc.) e nele a crise de autoridade (ética, estética, social, política, etc.) que manifestamente o caracteriza, um pouco por todo o lado, a verdade é que esta última tem afectado também o modo de conceber a figura do autor, no seu sentido mais tradicional e talvez, em particular, pós-kantiano, o daquele que inicia ou funda, num gesto de afirmação de liberdade, um determinado discurso, obra, ou modo de criação.

Se, sobretudo a partir dos anos 50, por virtude da ressaca europeia das duas Guerras mundiais, se começa a perceber mais claramente o despontar de uma evolução histórica em que a Modernidade é, por sua vez, radicalmente interpelada e chamada a comparecer aos tribunais da sua própria razão constituinte, para aí vir a ser questionada enquanto promessa, talvez um dos mais claros sinais dessa inflexão, no que toca à vertiginosa experiência de um descentramento que atinge hoje, no seu cerne, os valores em que ela assentara, se possa encontrar num texto de Paul Ricoeur ainda datado de 1962:

«Quando descobrimos que há várias culturas em vez de apenas uma e consequentemente na altura em que reconhecemos o fim de uma espécie de monopólio cultural, seja ele ilusório ou real, somos ameaçados com a destruição da nossa própria descoberta. De repente torna-se possível que haja apenas outros, que nós próprios sejamos apenas um «outro» entre outros. Desaparecidos todo o significado e cada um dos fins, torna-se possível deambular através de civiliza-ções com se através de vestígios e ruínas.»

O que ele aí nos diz constitui uma afirmação que nos coloca face a uma clara intuição da experiência descentradora, própria de uma alteridade cultural sobre a qual, como é sabido, de outros modos, vários outros autores se debruçaram igualmente, a propósito, já não apenas da cultura mas, mais especificamente - em domínios das ciências humanas como os da história, da etnologia, da psicanálise, da literatura, etc. - face àquilo que dela resultaria, então, como interferência mais ou menos transversal, de um discurso do Outro.

Sem pretendermos estabelecer aqui, por despropositada, nenhuma espécie de genealogia, o que, entretanto, se tornaria conhecido sob as designações correntes de «pós-estruturalismo» e, mais tarde - numa fase em que a crítica da indústria cultural é já marcada pela sua deslocadora influência, em particular pelo pensamento de Michel Foucault, de Jacques Lacan e de Jacques Derrida - em outras frentes, ainda por outras denominações, como as de «estudos culturais», bem como, ainda de outro modo, e sob um outro ângulo, como a de «estudos pós-coloniais», não faria senão reforçar o que já aqui se poderia pressentir. Que esse descentramento haveria de afectar, não apenas o que passaria a estar em jogo, no limite da exclusão com a qual sempre se construiu a figura do Mesmo, mas também no sentido de uma fractura que lhe teria já, interna e constitutivamente, dito respeito desde sempre.

A descrição e a interpretação, que encontraríamos na leitura que Jacques Derrida efectua dos textos de Lévi-Strauss, em «A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas», tanto quanto ao carácter já mitomorfo do discurso etnológico sobre os mitos (e daí também o seu carácter «bricoleur»), como quanto ao carácter já histórico dos elementos que delimitam as séries históricas, chamava aí a atenção para o facto de que, se por um lado é verdade que nos continua a ser necessário conceber qualquer estrutura como dotada de um centro, também é, por outro lado, verdade que, enquanto tal, o seu centro é, ao mesmo tempo, exterior à estrutura que ele mesmo regula.

E seria precisamente o caso observado da proibição do incesto: se ela é um dado transversal a todas as culturas observadas, é precisamente por essa razão que se nos torna impossível situá-lo de forma absolutamente unívoca e unilateral, de um dos lados ou apenas num dos termos do par binário cultura/natureza, nomos/physis, etc. Posto que então ele seria, simultaneamente, cultural e natural e isso nos induziria à noção do quanto, numa tal oposição metafísica, o termo marcado - aqui, os termos «natureza», ou physis - se nos daria como uma exterioridade constitutiva do termo ali «não marcado», precisamente os termos «cultura» ou nomos, etc. Dando-se como tal, a proibição do incesto suporia, então, a necessidade de tomar tais oposições binárias, não propriamente com originárias, mas já como elas mesmas derivadas de um jogo de presença e ausência. Em «La Différance» (Marges de la philosophie) lê-se, a certa altura:

«[...] a différance mantém-nos em relação com aquilo de que necessaria-mente ignoramos [méconnaissons] que excede alternativa entre presença e ausência. Uma certa alteridade - Freud dá-lhe o nome metafísico de inconsciente [metafísico também porque funcionando numa oposição cujo termo não marcado é precisamente o de «consciente», «a consciência» como presença ou percepção da identidade a si] - é definitivamente subtraída a todo o processo de presentação pelo qual nós apelaríamos a que se mostrasse em pessoa. Nesse contexto e sob esse nome, o inconsciente não é, como se sabe, uma presença a si escondida, virtual, potencial. Ele difere-se, isso quer dizer sem dúvida que ele se tece de diferenças e também que ele envia, delega mandatários; mas não há nenhuma chance de que o mandante «exista», seja presente, seja ele-mesmo algures e ainda menos que se torne consciente». (DERRIDA, Jacques, Marges de la philosophie, Paris, Minuit, 1972, p. 21)

Poderia chamar-se-lhe «jogo», «reserva», «espaçamento e temporização», e assim por diante. E não seria aqui o inconsciente a definir a différance, mas o contrário, precisamente. Assim, se é verdade que a estrutura de qualquer cultura possui como centro, enquanto sistema de representações e de regulação de trocas ou permutações, a proibição do incesto enquanto lei originária ou fundamental - lei de todas as leis, pouco importando aqui o quanto ela é mais ou menos violada, pois a violação supõe, precisamente, o seu carácter de lei - a verdade é, afinal, que o seu centro se mostra, aqui, claramente, como duplamente situável, isto é, simultaneamente dentro e fora da estrutura que ele mesmo regula. Porque enraizada na physis, essa lei seria auto-heterónoma a si mesma, como toda a lei. O que suporia ainda a necessidade de pensar-se, do ponto de vista da abertura originária à sua inscrição, numa «alienação sem alienação», numa ipseidade pré-egológica e, portanto, tornaria necessário pensar o impensável, a passagem do limite, que toda a lei representa, para o lado de uma ipseidade anterior a qualquer «eu sou», etc.

Eis a razão pela qual, em lugar de uma «diferença» plena, em que se nos dariam os termos de tais oposições metafísicas, deveríamos antes pensá-las «com» uma différance que não se detivesse na geração dos «diferentes» - que fosse historicamente histórica, que se despedisse do rumo e da finalidade ou da principialidade, que se desfizesse do paralítico finalismo da história - e os fizesse deslizar até ao seu esgotamento; um diferendo e um diferimento que, tal como nos pares fala /escrita e diférence / différance, supõem o «termo marcado» como designador de uma exterioridade constitutiva do «termo não marcado» que nos deveria obrigar a inscrever, neste último, sob a forma de uma rasura que nele deixaria aparecer também precisamente o que, na diferença, ele oculta ou oblitera, remetendo-o para um «fora-de-si». Deveríamos então reescrevê-lo sob a forma de um palimpsesto. Sob esse traço (sobre/subposto como sinal de uma espécie de invaginação do outro suplementar) que os atravessaria, emergiria o sentido da sua não plenitude, da sua «falta», do seu descentramento, da sua temporalidade.

«É preciso que o intervalo o separe
[ao presente] do que não é ele para que ele seja ele-mesmo, mas esse intervalo que o constitui em presente deve também do mesmo golpe dividir o presente em si mesmo, fracturando [partageant] assim, com o presente, tudo o que se pode pensar a partir dele, quer dizer, todo o ente, na nossa língua da metafísica, singularmente a substância ou o sujeito. [...] Acabamos de pôr a presença - e singularmente a consciência, o ser junto a si da consciência - não já como a forma matricial absoluta do ser mas como uma «determinação» e como um «efeito». Determinação ou efeito no interior de um sistema que já não é o da presença mas aquele da différance, e que não tolera já a oposição da actividade e da passividade, não mais que a da causa e do efeito ou da indeterminação e da determinação, etc., de tal modo que a designar a consciência como efeito ou uma determinação se continua, por razões estratégicas que podem ser mais ou menos lucidamente deliberadas e sistematicamente calculadas, a operar segundo o léxico daquilo mesmo que se delimitou» (ibidem, pp. 13-14; 17-18)

Assim, em toda a cultura se descobriria o facto de ela nos remeter para uma natureza a partir de cuja exteriorização ela se haveria constituído como «idêntica a si mesma». (É o processo pelo qual Michel Foucault pensa «a loucura» como produzida pela ascensão da burguesia ao poder. O que nos serviria igualmente para pensar a «literatura», cruzando ambas «a ausência de obra»). O que a différance (o seu não-conceito) nos poria a descoberto seria, então, na síntese não simples do heterogéno, a diferenciação, a fractura que, necessariamente, dos seus termos irrompe e se lhes sobre-imprime. Neles igual e necessariamente pressuposta como «presente», em cada um dos termos plenos ou não-marcados, pertencentes a cada um dos pares binários em que se traduziria, ainda, o carácter metafísico do nosso pensamento, fazendo neles despontar, sem revelação, precisamente o que eles têm de inaudível e invisível.

Ou ainda, para voltar ao diagnóstico de Paul Ricoeur, em todo o Mesmo se descobriria, então, a presença do Outro a partir de cuja exclusão ele-Mesmo se teria constituído como tal. Ora, é do mesmo tipo de argumentação que se trata, quando, no texto de Derrida, se abordam as séries históricas. Posto que aí, nos seus limites, ou no centro em relação ao qual elas se definiriam como tal, seria ainda preciso encontrar o que dessa delimitação se daria, então, irredutivelmente, como resto: a saber, a que série pertenceria, por sua vez, o centro em função do qual precisamente elas se definiriam como tal, a partir de uma descontinuidade de que a história como pensamento estrutural deveria, então, ainda dar conta. Para pensar a série no seu fechamento, a história teria de a articular sobre uma descontinuidade, um impensado da série, o fora-de-série da série. Em outros termos, a história veria então escapar-se-lhe a instância do histórico enquanto acontecimento.

Enquanto exemplo de um pensamento da estrutura centrada, o estruturalismo encontrava então, na dimensão da estruturalidade da estrutura, precisamente o dado problemático de um irredutível descentramento, da abertura de um campo cego de iteração do signo e do «conceito» que ele expressa, para o qual não estaria ainda, «epistemologicamente», preparado. No caso dos estudos «pós-coloniais», que agora aqui nos importa, essa descentradora intuição tornar-se-ia, por exemplo, bastante patente num discurso como o de Stuart Hall, quando, reflectindo sobre as acusações marxistas de culturalismo e de subjectivismo, lançadas sobre uma «teoria pós-colonial» de que ele constitui ainda, a par de outras figuras igualmente importantes, uma das figuras mais proeminentes, afirmava, a dada altura:

«As diferenças entre as culturas colonizadora e colonizada permanecem profundas. Mas nunca operaram de forma absolutamente binária, nem certamente o fazem mais. Essa mudança de circunstâncias, [...] eu a designaria como um movimento que parte de uma concepção de diferença para outra, de diferença para différance, e essa mudança é precisamente o que a transição em série ou titubeante para o «pós-colonial» designa. [...] A própria noção de uma identidade cultural idêntica a si mesma, autoproduzida e autónoma, tal como a de uma economia auto-suficiente ou de uma comunidade política absolutamente soberana, teve que ser discursivamente construída no «Outro» ou através dele, por um sistema de similaridades e diferenças, pelo jogo da différance e pela tendência que esses significados fixos possuem de oscilar e deslizar (HALL, Stuart, «Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite», in SOVIK, Liv (org.), Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais, trad. de Sayonara Amaral et alii, Belo Horizonte, UFMG, 2006, p. 102).

No que, através desta afirmação, emerge, quanto à definição da sua posição, em termos de uma referência clara, quer ao pós-estruturalismo quer, mais especificamente, ao pensamento de Jacques Derrida, o conceito que ali ocupa um lugar de destaque é precisamente o de différance, na sua ponderação crítica dos legados do pensamento ocidental em geral e, mais em particular, os de uma Modernidade que conheceu, na Europa do século XIX, o surto do nacionalismo romântico, consagrador, não apenas da figura do autor como criador, mas também das línguas e das culturas tradicionais, tidas como património único dos seus respectivos e inalienáveis valores.

O que ele contesta, nesta leitura de Stuart Hall, enquanto conceito problematizante, por exemplo, a partir da sua crítica do binarismo e do tipo de oposições metafísicas, patente, quanto ao que aqui nos interessa, em noções como as de uma «língua nativa» e de uma «cultura própria» ou «autêntica» mais ou menos fortemente fetichizadas e ideologicamente investidas, é ainda a pressuposição cega do seu carácter imaginariamente auto-produzido, autotélico, idêntico a si mesmo, solipsística e absolutamente soberano.

Ora, em nenhum momento se nota, no discurso de Stuart Hall, qualquer espécie de preocupação, um tanto tontamente «identitária», ou reactiva e só pretensamente teórica e crítica, quanto a uma eventual submissão neo-colonial ao que, do lado menos ponderado de um certo discurso «anti-colonial», se diria ser ainda a intromissão do discurso do Outro, vindo de um pensamento a que uma razão historicista e nacionalista, por algum trejeito herdado do século XIX, por certo chamaria de pensamento «francês» (eu já ouvi chamar-lhe as mais variadas coisas. Recordo, amistosamente, um colega que uma vez me disse: o Derrida morreu - até que enfim!). Pelo contrário.

O discurso de Derrida é, ali, ainda também o seu (como em muitos casos se verificará em relação a Homi Bhabha) no sentido da sua percepção da importância desta noção da impossibilidade histórica, económica e material, crítica e filosófica, do pressuposto da auto-produção e, consequentemente, da reificação da identidade ou da propriedade, da ipseidade ou da autoridade, seja ela económica, política, linguística ou cultural, deixando ele bem claro o quanto lhe importaria o facto de que, do ponto de vista da différance e da estratégia de um discurso desconstrutor, enquanto discurso da remarcação do termo não-marcado (ou da re-marca: cf. Glas; Survivre; O monolinguismo do outro, etc.) a que eles dariam lugar, ainda a partir do interior dessa mesma relação binária:

«o Outro deixou de ser um termo fixo no espaço e no tempo externo ao sistema de significação e se tornou uma 'exterioridade constitutiva' simbolicamente marcada, uma posição marcada de forma diferencial dentro da cadeia discursiva.» (ibidem, p. 109).

Ora, é também de Jacques Derrida que nos chega, em O Monolinguismo do Outro, o testemunho de um debate em que a questão da língua e da cultura, encaradas no âmbito da posição que diria respeito, ainda no plano de uma teoria «pós-colonial»: a) não só à do escritor que, por razões históricas, culturais, económicas e políticas, se vê confrontado com a circunstância de não poder escrever na sua língua, mas também, de uma forma mais ampla: b) à posição em que se encontram, no campo de forças de que emerge, necessariamente, a noção de uma geopolítica das línguas, aquelas línguas cujos falantes se vêm, também eles, confrontados com os efeitos de uma dominação que não se refere, apenas, às situações mais evidentes de alienação colonial, mas nos remete, de modo mais abrangente, para os todos os tipos de sujeição histórica, independentemente da sua manifestação ou concretização jurídico-administrativa, em qualquer espécie de ocupação político-militar dos seus espaços. Ali comentando e reflectindo sobre elas, ele chama-nos justamente a atenção, por um lado e em primeiro lugar, para o facto de que:

«Qualquer cultura é originariamente colonial. Não tenhamos apenas a etimologia em conta para o lembrar. Toda a cultura se institui pela imposição unilateral de alguma «política» da língua. A magistralidade começa, como se sabe, pelo poder de nomear, de impor e de legitimar as designações. [...] Esta imposição soberana pode ser aberta, legal, armada ou manhosa, dissimulada através dos álibis do humanismo «universal», por vezes da hospitalidade mais generosa. Segue ou precede sempre a cultura como a sua sombra.» (DERRIDA, Jacques, O Monolinguismo do Outro ou a prótese da origem, trad. de Fernanda Bernardo, Porto, Campo das Letras, p. 55)

O que significa, por outro lado, que aquilo que, com uma justa preocupação e oportunamente, se haveria de designar, como adiante veremos, como «situação de alienação colonial» deve, observar-se, antes de mais, não exclusivamente no seu exterior, quer aqui se trate de culturas, quer de línguas presumida ou reificadamente auto-produzidas, ou tidas como idênticas a si mesmas, mas antes no seu próprio interior - no seu mais propriamente impróprio interior - e na verdade implicaria uma atenção redobrada aos processos internos pelos quais, investidas «em si mesmas» por um fetichismo de que os rituais celebratórios dos respectivos cânones, bem como a prática institucional da sua inculcação magistral são, quanto a nós, a face mais evidente, e implicam já a necessidade de se observarem as situações de uma alienação que lhes é, antes de mais, não apenas interna, mas também, necessariamente constitutiva. Em segundo lugar, e pelas mesmas razões, que:

«Se o «não-domínio de uma língua apropriada», de que fala Édouard Glissant, qualifica em primeiro lugar, mais literalmente, mais sensivelmente, situações de alienação «colonial» ou de sujeições históricas, uma tal definição conduz também, se lhe imprimirem as inflexões necessárias, muito para além destas condições determinadas: vale também para o que se designaria por língua do senhor, do hospes ou do colono. [...] Porque, contrariamente ao que somos a maior parte das vezes levados a crer, o senhor não é nada. E não tem nada de próprio.» (ibidem, p. 37).

E se «o senhor não é nada e não tem nada de próprio» é, não só porque o exercício da soberania é, evidentemente, um dado histórico (de usurpação) cultural, e não propriamente natural - ou naturalmente próprio - mas também porque ele é interna e inescapavelmente motivado por uma vontade de poder desencadeada, no que diz respeito ao Outro, pelo que se deveria, antes e necessariamente, entender, constitutivamente, como um mal de soberania, uma sua falta. Por outro lado, a relação de apropriação, de incorporação numa cultura ou de integração numa língua supõem, na constituição do sujeito a que dão lugar, a tensão persistente entre, por um lado, a imposição de um código como Lei e, por outro lado, a resistência que lhe oferece essa sua inicial e irredutível, bem como pré-originária alienação, por cuja abertura ela visa implantar-se, para a regular e conter. Também por isso, quando, no âmbito desse mesmo debate, Abdelkebir Khatibi suscita a questão da posição de excepção em que se encontra o escritor dos países que hoje se diriam emergentes, observando que:

«O escritor árabe de língua francesa está apanhado num quiasmo, um quiasmo entre a alienação e a desalienação (em todas as orientações destes termos): nem sequer possui o seu falar materno que não se escreve, nem a língua árabe escrita que está alienada e dada a uma substituição, nem esta outra língua aprendida e que lhe acena para nela se desapropriar e para nela se apagar. Sofrimento insolúvel sempre que este escritor não assume esta identidade encetada, numa claridade de pensamento que vive deste quiasmo, desta esquize» (ibidem, p. 95).

O comentário de Derrida sublinhará, no entanto, em lugar de colocar em relevo a sua «constatada» excepcionalidade, como o faz Khatibi, o carácter exemplar dessa aparente e absolutamente singular situação. Se para Khatibi, não escrevendo, nem na sua língua materna, visto que ela seria sem escrita, nem no árabe que a escola colonial teria, apenas, consentido como língua segunda e facultativa (eis uma das «suas» línguas como língua do outro, colocada ao lado do alemão, do inglês, etc., na escola francesa: unheimlich...), nem finalmente na língua francesa, de onde procederia o seu apelo à escrita, visto que esta lhe permaneceria naturalmente inatribuível e estranha, o escritor escreve ali numa língua que não é a sua, confrontado com o monologismo do outro, Derrida preferirá sublinhar, no entanto, que é, ainda aqui, a excepção que nos coloca diante da regra que a partir da sua exterioridade ou singularidade se constrói, no sentido em que a situação colonial a faria historicamente emergir, como a uma pré-condição interna, própria de toda a relação monolingue:

«Apesar das aparências, esta situação excepcional é ao mesmo tempo exemplar, sem dúvida, de uma estrutura universal; representa ou reflecte uma espécie de «alienação» originária que institui toda a língua como língua do outro: a impossível propriedade de uma língua. [...] Aí onde a propriedade natural não existe, nem o direito de propriedade em geral, aí onde se reconhece esta des‑apropriação, é possível e torna-se mais necessário do que nunca identificar, às vezes para os combater, movimentos, fantasmas, «ideologias», «fetichizações» e simbólicas da apropriação.» (ibidem, pp. 95-96).

As figuras do quiasmo e da esquize, notadas por Kathibi, são de facto bem aquelas que condizem com o movimento da excepção, quer dizer, com o movimento da dessublimação ou da dessimbolização na captação de um exterior absoluto, que seria aqui escutado já do interior das línguas, na ressonância fantasmática e pré-egológica do que nelas permanece de abertura, de intervalo de ruptura pelo qual as suas regras se surpreendem e expõem, se interrogam e suspendem como tal, abrindo-se ao jogo do seu «por vir», numa divisão descentradora.

Desse movimento interior, em direcção a um exterior da língua, que é sempre do Outro enquanto código e enquanto Lei, mesmo quando se trata de uma língua «nativa» - movimento que tem lugar numa escrita que responde ao seu apelo para dentro - seria ainda o de «uma estrutura imanente de promessa ou de desejo, uma espera sem horizonte de espera [que] informa toda a palavra» (ibidem, p. p. 35). Mas, também por isso mesmo, se deveria partir da constatação de que não existe presentemente uma língua, ou uma cultura, quando se trata de pensar o que estará em jogo, no processo da escrita. Que, enfim, a monolíngua não faz um consigo mesma.

E isso deveria fazer-nos reflectir sobre alguns dos pressupostos de designações como a de lusofonia, sem prejuízo do que, na cena geopolítica, ele investe de estratégia orientada pela disputa de um espaço que é, aqui, o da efectiva hegemonia de outras línguas, como o inglês ou o francês. Valeria mesmo a pena falar em «escritores lusófonos» ou em «escrita lusófona»? Não haverá já algo de um jogo irónico que se marca, antes de mais, na irrisória redução historicista, que aí estará sempre em questão, quanto ao que nelas se investe de um todo-outro, a que nunca seria possível senão atribuir uma língua simultânea e necessariamente por vir?

Seria aqui que precisamente interviria, ao que nos parece, aquela fulgurante intuição de Homi Bhabha de que «a textualidade colonial» haveria de ter estado presente no desencadeamento da actual crise de autoridade dos modelos europeus. Em suma, voltaríamos aqui, em sentido lato, ao diagnóstico de Ricoeur. Talvez com uma diferença: a «destruição da descoberta», não seria ela precisamente uma sua desconstrução? E «o exemplo» de Jacques Derrida seria, ele-mesmo enfim, suficientemente eloquente disso: que aquilo a que hoje se tem chamado «pós-moderno» (é um nome bastante pobre, na verdade), talvez resulte precisamente do quanto tais situações de «alienação colonial» se constituiriam como o revelador histórico de boa parte dos problemas e das «aporias» com que se defronta hoje o pensamento do Ocidente e o «projecto» da modernidade. A leitura de O Monolinguismo do Outro parece-nos poder ser precisamente um testemunho disso. Não seria inevitável lembrarmo-nos disso quando o lemos?