quarta-feira, 3 de março de 2010

Recapitulações XX: o «jogo» e o «descentramento» 3 - a língua como lei e a língua da lei.



















Mark Tansey, Discarding the frame.

A imagem com que abrimos esta nota de leitura pareceu-nos sugestiva do tipo de questões que aqui levantaremos, a propósito da «desconstrução» e do que nela é o seu intuito, como nos diria Rosalind Krauss, a propósito de La vérité en peinture, de «enquadramento do enquadra-mento». O quadro de Mark Tansey mostra-nos, en abyme, qualquer coisa como um enquadramento.

Nele o perfil espectral e anamórfico de uma criatura - uma mulher já de idade, é um dos perfis ali possíveis; outro uma cabeça de olhos vendados - projectada pela linha do contorno da luz, que entra por uma gruta (todo o sujeito é, de certo modo, esse abismo da interioridade) dentro da qual duas pessoas atiram pelo ar uma moldura, ao que parece ser o declive do curso interno de uma cascata que se afundasse no abismo interior da sua rocha.

O que o funcionamento alegórico do quadro nos sugere é que a vontade ou o gesto de nos libertarmos do que, já em nós, nos circunscreve, tal como nos sugere o título (Discarding the frame) acaba, fatalmente, por nos submeter ainda mais, uma vez que, tal como quadro nos mostra, descartá-lo supõe ainda incorporá-lo, interiorizá-lo ainda mais. Mesmo que isso, é claro, aconteça inadvertidamente. Que isso tenha lugar na imagem de uma mulher idosa (ou num jovem cego), talvez isso nos desdobre o sentido desse enquadramento do enquadramento: por um lado, é sabido que o enquadramento é coisa frequentemente atribuída a pessoas pensadas num presente já passado. Por outro lado, a experiência da lei é frequentemente desencadeada pelos movimentos da excepção.

Assim, por um lado, o facto da dominação é ainda muitas vezes assegurado pela experiência das tentativas de libertação: a tendência para nos libertarmos do que nos constrange é muitas vezes cumulada pela experiência da transposição dos mesmos limites que pretendemos recusar. Por outro lado, não há, realmente, enquadramento que não represente uma forma de ocultação, no próprio movimento em que nele se promove à visibilidade aquilo que ele mesmo circunscreve, visto que todo o enquadramento supõe a operação de uma separação. Roland Barthes, em «Diderot, Brecht et Eisentein» usa a seu propósito, nas instâncias do palco, da página e da tela, o termo
refoulement, também usado em psicanálise, para falar do que em português é o processo do recalcamento.

Enquadrar não é apenas «mostrar» (fazendo entrar alguma coisa no campo de visibilidade abertura pela superfície enquadrada), é simultaneamente recalcar (retirando desse espaço aquilo que lá «não cabe aparecer»). Promover à visibilidade significa também esconder, ocultar aquilo que esse gesto de mostrar deixa de fora. Tudo então se passaria como se, tentando nós desfazer-nos do que nos limita, ou desembaraçar-nos do que nos tolhe, reforçássemos em nós precisamente o mesmo limite que pretendemos transgredir ou tendemos a rejeitar. No quadro de Tansey, a sombra projectada pela moldura lançada pelo ar no interior da gruta enquadra ali, nesse momento suspenso, uma outra sombra: a sombra de quem a atira, projectada vultos que no seu interior desenham uma espécie de árvore ou alguma indistinta arborescência, sobre a parede interna dessa abertura cavada na rocha, em queda para aquele seu obscuro abismo. Atirá-la supõe, assim, recebê-la de volta.

E se isto se passa no interior do que, do ponto de vista do jogo fantasmático das formas que tendemos a projectar ou sobrepor à zona do interior iluminado da rocha, seria já a figura luminosa de uma espécie de personificação da senilidade ou da cegueira é, não só que a simples e liminar exclusão de qualquer limite é para sempre impossível, mas também que o dispositivo de enunciação do que promove à visibilidade própria da expressão umas coisas em detrimento de outras é um processo necessário à nossa sobrevivência. O sujeito é essa dobra de uma força que entra em tensão consigo mesma, essa dobra em que se funda o imaginário da sua autonomia e, também, da sua consciência como campo de que se excluiria todo o impensado. Ora, é com base nesse pressuposto que devemos compreender a inevitabilidade da incorporação de certo tipo de distinções, derivadas do solo da nossa linguagem comum, bem como também da necessidade da sua… «desconstrução». Mesmo antes de nos perguntarmos pelo que se quer dizer aqui dizendo já o «impossível». O que é «impossível»? Não será mesmo o impossível aquilo que deve justificar a desconstrução?

I - Começamos, portanto, no seguimento dos dois posts anteriores, a poder situar «o jogo» como um certo modo de funcionamento da estrutura e a poder pensar o descentramento não como privação de um centro, mas como sua divisão sobre o limite da estrutura que ele mesmo regula. Num determinado paradigma, erguido na vertical simultânea de qualquer contexto sintagmático de inscrição, para qualquer das diferenças de posição interna e correlativa entre os elementos que o constituem, se torna preciso considerar, MESMO QUE NA SUA DIMENSÃO ESPECTRAL, a acção de forças que, ou os entre-impedem, na sua disputa da sua ambicionada primazia ora, pelo contrário, os fazem avançar para a possibilidade de uma INSCRIÇÃO ou de um RASTRO que, naquele contexto, indicia ao mesmo tempo o que a sua escolha terá deixado de fora. Uma palavra é um rastro. Qualquer forma é, nesta acepção, um rastro. Um sulco, um vestígio…


Ora, finalmente, pelo contrário, os excluem ou retêm, num certo inconsciente da língua e do discurso. E aí é preciso pensar o paradigma como aberto, precisamente pela dimensão de alteridade ou de inconsciente que é necessário nele considerar. Porque nem tudo desta correlação de forças em jogo à boca de cena, ou por detrás do pano de boca do discurso, se desenvolve no plano do consciente e do cálculo. A palavra «jogo» indicar-nos-ia essa relação, quer de compossibilidade entre termos diferentes, quer de reenvio a partir do rastro que uma tal inscrição produz, quer, ainda, de suspensão da lei ou de compulsão a certo tipo de sedução ou de desvio, pela transgressão de certos limites: ou segundo certo limite desses limites.

Os
lapsus linguae que a psicanálise considerou situam-se precisamente aqui, neste plano da inscrição de um inconsciente cuja tropologia expressiva é bem a indicação de um certo trabalho operado pelas forças aí em confronto. E em português, há uma expressão deliciosa para o carácter escorregadio dessa espécie de contra-economia que abre o discurso a partir do seu interior: diz-se muitas vezes «fugiu-te a boca para a verdade». Não que se trate, evidentemente, da verdade – aqui uma verdade desertora e, seja como for, em fuga de «si mesma» – mas porque se supõe que o interdito ou o não-dito assomariam, assim, à pretensa exposição da fala. Movimento que não poderia pensar-se a não ser, evidentemente, a não ser a partir de um certo diferencial de forças, uma certa tensão da força consigo mesma, uma certa dobra, portanto, agonística e conflitiva, do curso e do cálculo de todo o discurso, no seu próprio movimento.

Qualquer escolha de uma palavra é, assim, constituída pela inscrição de um rastro que nos reenvia, em diferimento e em diferendo, para outras possibilidades, atravessadas por uma espécie de conflito e de inconsciente interno à língua, quer pelas disposições que internamente a atravessam como forças de ruptura, ou de exclusão, quer pelo que nessa correlação diferencial se supõe já, numa outra lógica, de suspensão do limite. O que supõe pensar, no paradigma assim concebido, as ressonâncias e cumplicidades, toda uma dimensão que se diria anagramática, ou de jogo no plano do significante ou da significância, a que essa lei interna dos usos da língua, na qual o conteúdo parece comandar a forma, tal como a intenção comandaria a mensagem, ou o significado determinaria a escolha do significante, permaneceria alheia ou de que ela permaneceria inconsciente. Nessa dimensão anagramática, de ressonâncias no jogo do significante, se alojaria, afinal, o Outro da língua, o seu exterior absoluto, o seu excesso na dobra que o sujeito é. Ora, parece-nos aqui oportuno lembrar uma passagem de Derrida citada no post anterior, desta série. Recordemo-lo:

Como o anteprimeiro tempo da língua pré-originária não existe, é preciso inventá-lo. Injunções, intimação a uma outra escrita. Mas que sobretudo é preciso escrever no interior, se se pode dizer, das línguas. É preciso apelar a escrita para dentro da língua dada. [...] Mas esta intimidade desconcertante, este lugar «no interior» do francês [ou de qualquer língua], eis que ele não pode deixar de inscrever na relação a si da língua, na sua auto-afecção, se assim se pode dizer, um exterior absoluto, uma zona fora da lei, o enclave clivado de uma referência apenas audível ou legível a estaabsolutamente outra anteprimeira língua, a este grau-zero-menos-um da escrita que deixa a sua marca fantasmática «na» dita monolíngua.

Essa dimensão, a que aqui chamamos anagramática, é precisamente aquela que abre, no interior da língua e da sua relação a si, ou da sua auto-afecção, para o que nela é uma sua dimensão aqui dada por «pré-originária» (uma vez que pré-distintiva e pré-presencial, pré-judicativa, numa palavra), a dimensão de um exterior absoluto ou de uma zona «fora da lei» que é anterior à legalidade das suas distinções, anterior e exterior à conceptualidade e ao código que o seu léxico e as regras do seu enunciado, a sua sintaxe e as restrições pressupostas pelo seu discurso, supõem já.
No fundo ou «no solo» da mesma «linguagem comum», aquele solo de que derivam os mesmos conceitos, as mesmas oposições, as mesmas distinções de que a ciência e a filosofia se apropriam, a língua é já heterónoma, como o é toda a LEI. Pois não há lei que não inscreva, na sua economia, precisamente aquilo de que visa constituir-se como a inibição. E a língua é, antes de mais, a própria LEI, no sentido em que é a primeira lei, a lei de todas a leis a vir, a lei em si mesma. É portanto, preciso pensar a língua como lei, no seio desta espécie de irredutível agonística, tanto quanto necessário é pensar a lei como língua.

E o que a sua língua nos diz é que ela é «monolingue», assim permanecendo, aparentemente, alheada de todo o jogo ou de todo o reenvio, de toda a dimensão anagramática, no plano da significância; assim permanecendo, portanto, aparentemente suspensa do sentido de toda a différance. Ora, a língua não é apenas experienciada como autónoma: tal é, apenas, uma projecção do nosso próprio imaginário; ela é também ou pode ser solicitada a partir do seu interior, para o sentido do sem sentido do seu jogo, do jogo que nela é a dimensão de uma espécie de pré-originária historicidade, a dimensão daquele exterior absoluto de uma língua pré-originária a que a escrita deve abrir, no modo de escuta que lhe é próprio. Eis o que Derrida nos dirá, a respeito da língua da lei, lei da língua e da lei como língua:

O monolinguismo do outro, seria em primeiro lugar esta soberania, esta lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar a própria língua da Lei. E a Lei como Língua. A sua experiência seria aparentemente autónoma, porque a tenho de falar, a esta língua, e de a apropriar para a ouvir como se eu próprio ma desse [eis o meu imaginário]; mas ela permanece necessariamente, assim o quer no fundo a essência de toda a lei, heterónoma. A loucura da lei aloja para todo o sempre a sua possibilidade no foro desta auto-heteronomia.


II-
Ser-nos-ia possível dar disto, que acabamos de dizer, uma ilustração um pouco mais concreta? A leitura de «A Estrutura, o Signo e o Jogo, no discurso das ciências humanas» parece-nos ajudar-nos nesse sentido. Voltemos a Claude Lévi-Strauss, para o seguirmos aqui pela mão de Jacques Derrida, na leitura que ali faz dos seus escritos. O que estará em jogo, no seu trabalho etnológico e antropológico será, desta vez, não o termo e o conceito de estrutura, (por sua eventual oposição a qualquer tipo de amorfia, de informe ou de inorganicidade), mas antes o par de conceitos que representa, de forma abrangente, uma outra das grandes distinções que a ciência e a filosofia, a episteme ocidental derivou, do mesmo «solo da linguagem comum»: a distinção e a oposição distintiva entre cultura e natureza.

Em síntese, Claude Lévi-Strauss depara-se ali com o que designa como um escândalo. Este marca-se na transgressão da estrutura, ou da oposição por si herdada do «solo da linguagem comum», entre cultura e natureza. Na verdade, tendemos aí a conceber que tudo o que é da ordem da lei (veremos que é da lei que se trata, uma vez mais, por oposição ao facto, numa oposição que ali se neutraliza, para Derrida, no plano de um certo «factum») é também da esfera do social e do humano. A natureza permanece o campo de onde as leis actuam por fora de qualquer consciência de si, de qualquer decisão ou deliberação prescritiva, de qualquer condicionamento voluntário: ela é o espaço onde elas surgem como «factos universais». Tendo Lévi-Strauss constatado que a proibição do incesto é um fenómeno transversalmente observável, que ele está presente
em todas as culturas, deveríamos então considerá-lo agora resultante de uma lei (um fenómeno social e cultural) ou, pelo contrário, uma disposição da natureza ou da physis, uma vez que as sociedades e as culturas são também da ordem de uma diferenciação histórica que as separa de entre si?

Em outros termos, se a proibição do incesto é observável em todas as culturas, não significará isso que teríamos então de a considerar,
em simultâneo, como «um facto» da natureza? E não seria, nesse caso, então necessário observar também que essa oposição, entre cultura e natureza, simplesmente não funcionaria, para este caso? Mas não funcionando ela neste caso, não significaria isso: a) que nada pareceria então distinguir a ordem das sociedades humanas do que lhes concebemos como exterior?
b) Que, nesse sentido, o que se verificaria seria, então, uma certa e necessária suspensão de toda a excepção humana? c) E ainda que, por essa via, seria então o próprio conceito de lei que nos seria necessário começar a interrogar, deixando-se de o considerar no plano da sua mais pura univocidade e da sua mais plena presença, tornando-se então, ela mesma, o espaço de uma heteronomia que a daria, finalmente, como de si mesma dividida? Eis como Derrida descreve esse escândalo estrutural:

Em Les Structures, ele [Lévi-Strauss] parte deste axioma ou desta definição: pertence à natureza o que é universal e espontâneo e que não depende de nenhuma cultura particular nem de qualquer norma determinada. Pertence em contrapartida, à cultura o que depende de um sistema de normas que regulam a sociedade e podem, pois, variar de uma estrutura social para a outra. Estas duas definições são de tipo tradicional. Ora desde as primeiras páginas de Les Structures Lévi-Strauss, que começou a acreditar estes conceitos, encontra o que denomina um escândalo, quer dizer, alguma coisa que já não tolera a oposição natureza-cultura assim recebida e parece requerer a um tempo os predicados da natureza e os da cultura. Este escândalo é a proibição do incesto. A proibição do incesto é universal: neste sentido poder-se-ia considerá-la natural; mas é também uma proibição [uma lei], um sistema de normas e de interdições - e nesse sentido dever-se-ia considerá-la cultural. [...] Só há escândalo, evidentemente, no interior de um sistema de conceitos que abone a diferença entre natureza e cultura. Ao abrir a sua obra ao factum da proibição do incesto, Lévi-Strauss instala-se pois no ponto em que essa diferença, que sempre se tomou por óbvia, é eliminada ou contestada. (DERRIDA, Jacques, «A Estrutura, o Signo e o Jogo, no discurso das ciências humanas», COELHO, Eduardo Prado (org.), Estruturalismo: antologia de textos teóricos, trad. de António Ramos Rosa et alii, Lisboa, Portugália, s. d., pp.108-109)

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