quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Recapitulações XX: o «jogo» e o «descentramento» 2

Um segundo aspecto que merece destaque, no texto de Derrida, no seguimento do que se disse no post (Recapitulações XX: o «jogo» e o «descentramento» 1) anterior teria que ver, já não apenas com a história (e com a alternativa contida na oposição entre presença e ausência), mas também com o sujeito humano (e com a alternativa humano / não-humano (inumano)) e com a oposição entre cultura e natureza. Muitas destas oposições - presença / ausência; semelhante / diferente; o mesmo / o outro... - se analisadas em série ou postas a par umas das outras, acabam por revelar-se manifestamente contraditórias enquanto tal, uma vez que os termos que as expressam se usam também, frequentemente, de modo figurado ou extensivo, e sem que disso nos apercebamos imediatamente, para se referirem a aspectos situados no pólo oposto da «alternativa» que a oposição inscreve.



Assim, muito do que temos por «natural», na linguagem corrente é, em primeiro lugar, «cultural», embora encarado numa espécie presença perene, plena e constante, isto é, na ordem do que seria, ou permaneceria, como que exterior à mudança ou à temporalidade. O estereotipo e o mito são, por exemplo, formas de pensamento que supõem relações tidas por «naturais». Assim, dizia Roland Barthes, a respeito de «O Mito, hoje»:

O mito não nega as coisas, a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, ele purifica-as, torna-as inocentes, funda-as enquanto natureza e eternidade,
dá-lhes uma clareza que não é a da explicação, mas a da constatação: se eu constatar a imperialidade francesa sem a explicar, pouco basta para que eu a ache natural, óbvia; eis-me tranquilizado. Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: provoca a abolição da complexidade dos actos humanos, dá-lhes a simplicidade das essências, suprime toda a dialéctica, toda a elevação para além do imediatamente visível, organiza um mundo sem contradições porque sem profundidade, um mundo exibido na sua evidência, funda uma claridade feliz: as coisas têm a aparência de significar por si sós. (BARTHES, Roland, «O mito, hoje», Mitologias,
trad. de José Augusto Seabra, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 210)

Apenas nessa sua condição de naturalização, de «fixidez», como diria Homi Bhabha, poderiam funcionar como tal. Essa sua «naturalidade» é, portanto, uma forma de neles reduzir qualquer sentido de historicidade, como lembra Roland Barthes. Um pouco como aconteceria com o «habitual», que também dizemos, muitas vezes, por ser sentido como já aceite, «natural». Ora, esse sentido da redução da historicidade é importante, para a compreensão do seu funcionamento de oposições que estruturam o nosso pensamento. Quando se diz que elas estruturam o nosso pensamento, o que se quer significar é que elas são inerentes a uma subjectividade inscrita não apenas na cultura mas na própria linguagem.

Eis um exemplo: durante muitos séculos se pensou (ontológica e teologicamente) a humanidade como
excepcional. A espécie humana como situada acima das restantes espécies, dada a sua singularidade. Ora uma das questões que atravessa o pensamento contemporâneo tem que ver, precisamente, na ressaca da hecatombe demográfica das duas grandes guerras mundiais no século passado, com a questionação dessa fronteira, entre o homem e o animal. Eis um exemplo: no seminário La bête et le souverain, observa Jacques Derrida, acerca das implicações éticas dessa espécie de exclusão, e sobre certas das posições assumidas por Jacques Lacan:

L'immense risque demeure de ce qui reste néanmoins un fraternalisme du «semblable». Ce risque est double (et il vaudrait aussi pour le discours de Lévinas, soit dit en passant): d'une part, ce fraternalisme nous libère de toute obligation éthique, de toute devoir de ne pas être criminel et cruel, justement, à l'égard de tout vivant qui n'est pas mon semblable ou n'est reconnu comme mon semblable, parce qu'il est autre ou autre que l'homme. Dans cette logique, on est jamais cruel envers ce qu'on appelle un animal, ou un vivant non humain. Et quant à préciser, d'autre part, comme le fait Lacan: «C'est un semblable qu'elle [cette cruauté] vise, même dans un être d'une autre espèce», cela n'arrange et ne change rien. [...] C'est toujours l'homme, mon semblable, le même que moi, moi-même en somme, que je fais souffrir, tue, de façon coupable, criminelle, cruelle, incriminable. (DERRIDA, Jaques, La bête et le souverain I (2001-2002), Paris, Galilée, 2008, p. 154).

Assim, partir do fraternalismo mais ou menos inconsciente de uma ética do «semelhante» é, ao mesmo tempo, abrir campo à violência sobre o «outro». E partir do princípio de que o que se visa, na crueldade para com os animais, ou para com os viventes não humanos, é ainda, afinal, o humano, do qual essa violência se assim desviaria, é também sancionar o princípio inverso, o da projecção, sobre os «outros» homens (não semelhantes em algum aspecto), de uma animalidade que justifique, sobre eles, o exercício de uma violência que, apesar de ou porque desviada sobre os animais se consente ou autoriza.

Assim, se a violência sobre os animais o deixasse de ser porque se pensam os animais como seres moldados por alguma espécie de automatismo inato, logo que sobre o outro caísse o anátema de uma «animalidade» que representaria a marca da sua diferença, se encontraria justificada essa mesma violência. Aquelas relações de oposição em que entram, pelo facto de serem estruturadas por diferenças que nelas fazem (onto(teo)logicamente) a economia da sua historicidade, são também lugares de uma «moral» que é preciso interrogar. A oposição homem / animal, tal como a oposição organismo / máquina, associam-se, assim, à oposição cultura / natureza, tal como se compreenderia que gravitassem, em seu redor, oposições como semelhante / outro, irmão / estranho, nacional / estrangeiro, etc...

Essas oposições são herdadas através da língua, do senso comum ou mesmo da tradição do pensamento e permanecem no campo de uma construção ideológica em que se sedimentam os vestígios, os elementos de uma herança. Quer dizer: ao mesmo tempo que estruturam as exclusões do
jogo do mundo e da relação de suplementaridade, a exclusões da historicidade em relação ao próprio, elas são inerentes à regulação do «humano» e à sua afirmação por eliminação da alteridade. O homem é um não animal, a cultura é aquilo que escapa à natureza (ao que acreditamos ser inato, pré-programado, independente da vontade, etc.), o irmão não se confunde com um homem qualquer (mesmo que este seja da ordem do semelhante), a diferença entre raças constitui um abismo, etc, etc. A humanidade do homem estaria assim comprometida, já de início, com certos modos «ideológicos» de articulação da «diferença» nos quais os seus respectivos termos, como se observou anteriormente, não têm o mesmo valor, nem o mesmo estatuto.

E isto mesmo que, a certa altura, nos indaguemos acerca da necessidade e/ou da possibilidade de considerar então, postas as coisas nestes termos, alguma coisa de máquina no organismo animal e humano, alguma coisa de estranho (ou até de estrangeiro) no semelhante nacional (visto que, para começar, não nos conhecemos todos, nem trazemos escrita na face a nossa nacionalidade, e constituímos, como diz Benedict Anderson, uma «comunidade imaginada»), alguma coisa de maquínico no homem orgânico (ou cujo organismo pressupõe também actividades que são involuntárias ou reflexas), alguma coisa de semelhante no outro, alguma coisa de «natural» na cultura, como se viu já, e por aí a diante. No início de «A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas», o primeiro movimento aborda, através da leitura de Lévi-Strauss, a oposição cultura / natureza a propósito da questão da «proibição do incesto»:


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