segunda-feira, 4 de maio de 2009

«Elementos para uma semiologia pictural» 4 - de Louis Marin

PARADIGMÁTICA PICTURAL

As possibilidades de articulação de primeiro nível abertas pela mediação ou pela redundância linguística da substância visível no sintagma do quadro conduzem a interrogarmo-nos sobre a constituição de uma paradigmática pictural. Esta questão é sempre aquela do sentido: será que um segmento relativamente autónomo do sintagma toma seu sentido em relação aos outros segmentos que teriam podido aparecer no mesmo ponto do sintagma? Ou dito de outro modo, pode-se praticar sobre o quadro, a prova da comutação? A oposição do sintagma e do paradigma foi feita – sabe-se-o – por Saussure

No discurso as palavras contraem entre elas, em virtude do seu encadeamento, relaçãoes fundadas no carácter linear da língua... essas combinações têm, por suporte, a extensão e podem ser chamadas de sintagmas... Colocado num sintagma um termo não adquire o seu valor senão porque ele se opõe ao que o precede ou o que o segue, ou a ambos. Por outro lado, fora do discurso, as palavras que oferecem alguma coisa de comum associam-se na memória e forma-se assim grupos no seio dos quais reinam relações muitos diversas... Essas coordenações não têm por suporte a extensão... elas fazem parte desse tesouro interior que constitui a língua em cada indivíduo. Nós as chamaremos relações associativas. A relação sintagmática é in praesentia... ao contrário a relação associativa une termos in absentia numa série mnemónica virtual.

E Saussure faz seguir esta definição da famosa comparação da coluna que tem, para o nosso propósito, esta assinalável vantagem de ser escolhida na subtância visível não linguística de uma arte, uma arquitectura. À relação real de contiguidade descoberta no sintagma, opõe-se ou articula-se uma relação virtual de substituição; a primeira é da ordem da fala, a segunda releva da língua como sistema. A leitura do quadro põe em funcionamento as categorias essenciais da sintagmática: percepção, realidade, presença, segmentação em sequências de leitura ou figuras ligadas por contiguidade no sintagma do quadro.

Mas a leitura do quadro é – vimo-lo – um sistema de percurso: cada figura que o percurso de leitura analítica faz aparecer chama, na memória, uma classe de figuras associadas «in absentia» - diríamos nós, em linguagem saussureana – em série virtual. Na extensão da leitura que define o nível de legibilidade primário do quadro, articula-se um espaço de leitura ou nível de legibilidade secundária no qual se abrem as séries substitutivas de figuras, espaço metafórico onde se descobre a terceira dimensão dos códigos picturais, e que, nessa mesma medida, se constitue como espaço de cultura, de leitura erudita que não implica necessariamente a consciência pessoal de um saber, tanto no pintor quanto no contenplador.

Esta possibilidade de constituir uma paradigmática pictural convoca algumas observações: a primeira diz respeito à abertura do sistema pictural, a segunda, a dupla orientação dos sentidos paradigmáticos possíveis. Com efeito, se as nossas indicações são retidas, é interessante notar que por oposição ao fechamento do sistema linguístico, que permite assim formar economicamente, por combinatória, portanto por recorrência de signos redundantes, a infinidade das mensagens linguísticas ao nível da fala, o sistema pictural é aberto. Ele não obedece, parece, ao princípio da economia que faz da língua, «esse tesouro interior», um instrumento notavelmente eficaz e adaptado à sua função.

Todavia, no que diz respeito às relações associativas, Saussure nota que «os termos de uma família associativa não se representam nem num número definido, nem numa ordem definida...» Um termo dado é como que o centro de uma constelação, o ponto onde convergem os outros termos coordenados cuja soma é indefinida. O mesmo vale para as séries paradigmáticas em pintura. Convém ainda precisar os graus de abertura do sistema. Tomemos na pintura de Poussin o exemplo de uma figura secundária, a ponte. O Möise trouvé de 1638 apresenta no plano mais recuado, uma ponte por detrás de um grupo de figuras centrais: a obra do pintor faz aparecer a mesma figura secundária em L’Ordre de 1647 e em Orphée et Eurydice.

Assim, uma leitura de Möise trouvé pode, a partir desta figura, unidade paradigmática desse quadro, abrir uma série paradigmática virtual, mnemónica, associativa com a ponte de L’Ordre e aquela de Orphée et Eurydice. Esta figura fornece ao quadro três elementos «funcionais»; aquele de uma passagem entre as regiões baixas da cena representativa, aquele de um ritmo de espaço de fundo graças aos pilares da ponte, aquele, enfim, de uma abertura-clausura do espaço, uma vez que o tabuleiro da ponte e os pilares dele realizam a ocultação enquanto os arcos permitem a escapada do olhar para o horizonte.

A figura da ponte nos três quadros de Poussin põe, por outro lado, um problema de sintaxe figurativa no interior do espaço do quadro, pela posição que ela aí ocupa: nos três casos, a ponte é uma figura de fundo paralela ao plano do quadro, mas cuja importância relativa em relação ao conjunto varia de Möise a Orphée. A variação deste último elemento nos três quadros, a constância dos dois outros provocam, de um sintagma a outro, uma articulação diferente das unidades sintagmáticas. A recordação da Ordre e de Orphée et Eurydice acerca de um elemento da sequência figurativa, pela leitura analítica de Möise trouvé, é portanto bem uma espécie de prova de substituição de um elemento «in absentia», mas no interior do sistema fechado constituído pela obra de Poussin.

Todavia, essa prova pode prosseguir-se no interior desse sistema, substituição por similaridade de sentido de outras figuras que, em relação à ponte, possuirão um ou dois elementos funcionais semelhantes e outros diferentes. Assim as colunas do templo que se encontram frequentemente no plano mais recuado dos quadros de Poussin possuirão o elemento rítmico e aquele de abertura-fechamento, mas não o elemento de passagem: elas ritmam o espaço, abrem-no e fecham-no simultaneamente, mas não permitem, de modo evidente, passar do plano baixo ao outro plano da tela. Em contrapartida, o caminho, a escada ou o pórtico apresentarão o elemento rítmico, o elemento de passagem, mas não aquele da abertura-fechamento.

Através disso e no interior do sistema pictural subjacente, a série classificatória alonga-se: ela pode estender-se à pintura contemporânea da obra de Poussin (Dois exemplos a título de ilustração: a gravura de Marc Antoine do Massacre des Innocents de Raphäel e o quadro de A. Carrache, o Concert etc....) e, mais geralmente, à pintura. Assim a ponte na paisagem de Cézanne, a Montagne de Ste-Victoire (Courtauld) etc... Nessa perspectiva, a série permanece aberta e a leitura no seu espaço paradigmático torna-se intertextual.


Sabe-se que Saussure distinguia dois tipos de relações associativas, segundo o som ou segundo o sentido; assim, o termo enseignement pode abrir as séries paradigmáticas: armement, changement, ou justement etc., que se determinam por associação sonora, ou as séries: aprendizagem, educação, instrução, etc... No exemplo tomado acima, temos uma paradigmática formal. Poderá haver uma paradigmática por analogia dos significados? Um belo exemplo de uma pesquisa desse género seria dado pelo livro de Edgar Wind Pagan Mysteries in Renaissance Art no qual o autor estuda na pintura, na gravura, na escultura da Renascença, o paradigma das três Graças segundos as semelhanças e as diferenças do significado, em particular nas variações estóica, epicurista e platónica desta figura onde o significado «dar-aceitar-tornar» reenvia àquele da castidade, do amor e da voluptuosidade, ou da inteligência, do coração, do desejo, etc.

Também nós poderíamos inferir desses trabalhos que uma dupla orientação paradigmática é possível, uma estilística, outra temática: é à primeira que R. Barthes faz alusão, a propósito da arquitectura quando opõe, a uma sintagmática cujo objecto seria o encadeamento dos detalhes ao nível do conjunto do edifício, uma paradigmática estilística que estuda as variações de estilo de um mesmo elemento do edifício, diferentes formas de cobertura, de balcões, de entradas, etc. A constituição dessas duas paradigmáticas põe um certo número de problemas: como se pode passar, de modo rigoroso, do nível de legibilidade primário de um quadro a uma paradigmática estilística ou temática?

Impressiona constatar que no domínio linguístico, Saussure observava que a indeterminação de ordem de uma série paradigmática era o seu carácter constante e sempre verificado, não sendo a regra de aparição dos termos fornecida a não ser por sugestões da memória, as associações de ideias. A passagem da expressão «relação associativa» ao termo «paradigma» indica uma vontade de rigor que a análise da noção de código pictural se esforça por pôr em funcionamento. Por outro lado, sublinhámos que o quadro não oferece uma leitura, mas um sistema de leituras. O percurso do olhar, obedecendo a certos condicionamentos – aqueles de uma «gramática pictural» - permanece aleatório.

De uma leitura a outra, aparecem diferenças na articulação do sintagma e por via disso na determinação das unidades sintagmáticas. Donde a introdução da noção de «matriz figurativa» que permite conceber a figura como um elemento gerador, como «forma simbólica» da qual cada figura, ao nível de uma leitura, é o produto. Esta ideia parece-nos essencial, porque ela deve permitir ultrapassar o que a própria noção de découpage implica: a figura é esse núcleo ou essa forma generativa, produtora no sistema de leitura. O aprofundamento das nossas primeiras análises deve fazer-se nesta dupla direcção.

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