domingo, 12 de abril de 2009

Fragmentos de leitura 16: Do testemunho e da ficção: experiência e aporia III















Roland Barthes

Do testemunho e da ficção: experiência e aporia III

2. A Arte como dessimbolização.

Com efeito, a descrição que Jacques Lacan nos fornece do momento edipiano, essencial à constituição do sujeito, implica, em ‘L’Autre et la psychose’, quer no que toca ao testemunho, quer no que diz respeito ao outro, o seguinte:

Essayons de pénétrer un peu la notion du témoignage. Le témoignage est-il lui aussi, purement et simplement, communication ? Sûrement pas. Il est pourtant clair que tout ce à quoi nous accordons une valeur en tant que communication, est de l’ordre du témoignage. La communication désintéressée n’est à la limite qu’un témoignage raté, soit quelque chose sur quoi tout le mond est d’accord. Chacun sait que c’est l’idéal de la transmission de la connaissance. Toute la pensée de la communauté scientifique est fondée sur la possibilité d’une communication dont le terme se tranche dans une expérience à propos de laquelle tout le monde peut être d’accord. L’instauraton même de l’expérience est fonction du témoignage. […] Le sujet humain désirant se constitue autour d’un centre qui est l’autre en tant qu’il lui donne son unité, et le premier abord qu’il a de l’objet, c’est l’objet en tant qu’objet du désir de l’autre.[27]

O testemunho supõe, portanto, a dissensão no inter-esse, o desejo enquanto desejo do desejo do outro e a disputa, a luta actu(virtu)al por uma posição de reconhecimento e de aceitação, o desejo como demanda, de acolhimento e de centralidade, cuja decisão envolverá sempre o terceiro, o Outro, no seu horizonte. O testemunho é sempre, simultaneamente, anterior e exterior/interior à comunicação, encarada no plano do acordo, e esta última, precisamente por isso, deve pressupô-lo, economicamente, como funcionando no seu horizonte: é essa, de resto, na versão psicanalítica, a medida do seu interesse, a sua lei, o seu princípio de funcionalidade. Com efeito, diz Lacan:

‘uma alteridade primitiva está inclusa no objecto, enquanto ele é primitivamente objecto de rivalidade e de concorrência. Ele não interessa senão enquanto objecto do desejo do outro’[28].

E a comunicação, a fala, é precisamente o que se destinaria a ultrapassá-la ou superá-la, ainda nos limites do que ela representa ou pressupõe de clivagem, no sujeito e no discurso, quer dizer, mesmo quando essa primitiva rivalidade nela deixa as suas marcas, transposta na sua própria superação. A relação narcísica, dual-agressiva, aquela que o imaginário pressupõe permanece, portanto, sempre simbolicamente reinscrita ou actu(virtu)almente presente. O testemunho é, por outras palavras, aquilo que precisamente o acordo encobre ou a que põe, transitoriamente, cobro, cobrando das partes em litígio uma partição, encontrando nelas uma sua concessiva (auto-)negação, sob o signo da imparcialidade:

Cette base rivalitaire et concurrentiel au fondement de l’objet est précisément ce qui est surmonté dans la parole, pour autant qu’elle intéresse le tiers. La parole est toujours pacte, accord, on s’entend, on est d’accord – ceci est à toi, ceci est à moi, ceci est ceci, ceci est celà. Mais le charactère agressif de la concurrence primitive laisse sa marque dans toute espèce de discours, sur le petit autre, sur l’Autre, en tant que tiers, sur l’objet. Le témoignage, ce n’est pas pour rien qui ça s’apelle en latin testis, et qu’on témoigne toujours sur ses couilles. Dans tout ce qui est de l’ordre du témoignage, il y a toujours engagement du sujet, et, lutte virtuelle à quoi l’organisme est toujours latent.[29]

Todo o discurso, mesmo o discurso comum, como diz Lacan, é da ordem do testemunho. Compreende-se, de resto, que seja assim que a psicanálise o vê: de outra forma não haveria sequer psicanálise. Mas a possibilidade de assim o conceber assinala nele, justamente, uma dimensão que, por um lado, pressupõe a reinscrição de uma irredutibilidade do imaginário naquele simbólico que, na fala, lhe daria cobertura, o encobriria ou lhe poria cobro e, por outro, nos remete para a necessidade de justaposição ou de não-dissociação daquelas duas acepções latinas de que as palavras ‘testemunho’ e ‘testemunha’ derivaram: testis e superstes.

O terceiro – terstis – é sempre, também ele, em simultâneo, aquele segundo (o qual e) em torno do qual, primeiramente, todo o sujeito humano se constitui sem que, em nenhum momento, nessa tríade, se constitua a figura de uma unidade indivisa, plenamente presente, absolutamente coincidente consigo mesma, no espaço e no tempo. Somos sempre e já, simultaneamente, mais e menos do que um – é o que o próprio testemunho implica, aquilo de que se constitui, por sua vez, como testemunho, num testemunho do testemunho. Poder-se-ia, agora, retomar o que nos diz Derrida, em Morada:

Permitam-me lembrar aqui uma espécie de generalidade essencial: não é a testemunha sempre um sobrevivente? Isso pertence à estrutura testemunhal. Apenas se a testemunha aí onde se viveu mais tempo que o que acaba de passar. Disto podem-se tomar exemplos tão trágicos ou patéticos como os sobreviventes dos campos de morte. Mas o que liga o testemunho à sobrevivência permanece uma estrutura universal, e cobre todo o campo elementar da experiência. A testemunha é um sobrevivente, o terceiro, o terstis como testis e superstes, aquele que sobrevive. Essa palavra sobrevivente deve ser tão exemplarmente insubstituível como a instância do instante a partir da qual fala, o instante da morte como insubstituível, como «a minha morte», a propósito da qual nenhum outro senão aquele que morre pode testemunhar. A minha morte, eu sou o único a poder testemunhá-la – na condição de lhe sobreviver.[30]

2.1. A morte e a sobrevivência – uma morte ao espelho da outra.

Sobreviver pressupõe, portanto, a necessidade da (im)possiblidade do testemunho a partir de um presente que nunca se deu como tal. No instante da inserção do simbólico que, na versão lacaniana, se dá como sobreposição à abertura primitiva inerente à relação dual‑agressiva que o imaginário supõe, o eu é, diz Lacan, lembremo-lo, não apenas (a)colhido na cadeia dos símbolos, mas também, ‘na vida psicológica do sujeito humano, a aparição mais próxima, mais íntima, mais acessível da morte’[31], como se viu atrás.

Por outro lado, se é a partir da ‘projecção imaginária de intenções agressivas equivalentes às suas – mas que têm como ponto de partida as suas próprias’ - que, na criança, o medo da castração tem lugar é, por outro lado, necessário – como se compreende, nesse mesmo contexto – ‘para que haja alguma coisa que faz com que a lei seja fundada no pai, […] haver o assassinato do pai. As duas coisas estão estreitamente ligadas – o pai que promulga a lei é o pai morto, isto é, o símbolo do pai. O pai morto é o Nome-do-Pai, que se constrói sobre o conteúdo [do desejo da mãe]’[32]. A sua/nossa condição seria, portanto – em Nome-do-Pai – a de um sobrevivente.

[…] no que concerne à satisfação do desejo, tudo depende do que acontece nesse ponto A[utre], inicialmente definido como lugar do código e que, já por si só, ab origine, pela simples realidade da sua estrutura significante, traz uma modificação essencial para o desejo no nível da sua transposição de significante. […] É preciso compreender que, já no nível mais radical, a partir do momento em que se fala com alguém, existe um Outro, um outro em si, como sujeito do código, e que já nos encontramos submetidos à dialéctica da «corneação» do desejo. Logo, tudo depende, como se constata, do que acontece nesse ponto de cruzamento A[utre], nesse nível de transposição.[33]

Mas uma condição de sobreviventes a uma morte e a partir de uma morte que, por um lado, nunca teve lugar (como se viu, tudo decorreu de uma fantasia reflexa) como tal e, por outro, cuja iminência se prolonga e espectralmente refaz sem cessar. Todo o sujeito se construiria, assim, a partir de uma experiência inexperienciada e, por conseguinte, também como possibilidade de ficção e ficção possível, tal como se depreende do que nos diz Maurice Blanchot e Jacques Derrida não deixa de sublinhar, citando-o a partir de L’Écriture du desastre:

[...] morrer quer dizer: morto já o estás, num passado imemorial, de uma morte que não foi a tua, que portanto, não conheceste nem viveste, mas sob a ameaça da qual te crês chamado a viver, esperando-a doravante do futuro […]. Escrever é não mais pôr no futuro a morte sempre já passada, mas aceitar sofrê-la sem a tornar presente e sem se lhe tornar presente a ela, saber que ela teve lugar, embora não tenha sido experienciada, e reconhecê-la no esquecimento que deixa e cujos traços que se apagam apelam a exceptuar-se da ordem cósmica, aí onde o desastre torna o real impossível e o desejo indesejável. Essa morte incerta, sempre anterior, atestação de um passado sem presente, não é nunca individual, do mesmo modo que transborda o todo [34].

Ora, não seria justamente a esta luz que seria preciso ler o pressuposto barthesiano de uma des‑simbolização na arte? Diz-nos Roland Barthes, em ‘Cette vieille chose, l’art…’:

Je ne veux pas, dit Rauschenberg, qu’une toile ressemble à ce qu’elle n’est pas. Je veux qu’elle ressemble à ce qu’elle est». La proposition est agressive dans la mesure où l’art s’est toujours donné pour un détour inévitable par lequel on doit passer pour rendre la vérité de la chose. Ce que le pop art veut, c’est désymboliser l’objet, lui donner la matité et l’entêtement obtus d’un fait (John Cage : «L’objet est fait, non symbole»). Dire que l’objet est asymbolique, c’est nier qu’il dispose d’un espace de profondeur ou d’avoisinement, à travers lequel son apparition puisse propager des vibrations de sens : l’objet du pop art (ceci est une vraie révolution de langage) n’est ni métaphore ni métonymie ; il se donne coupé de ses arrières et de ses entours ; en particulier, l’artiste ne se tient pas derrière son œuvre, et lui-même est sans arrière : il n’est que la surface de ses tableaux : aucun signifié, aucune intention, nulle part.[35]

Observemos, antes de mais, que a referência de Blanchot – e que, desta vez, Derrida omite, na sua citação – é, no trecho acima, precisamente a psicanalítica. Lê-se, a seguir:

fora de tudo, fora do tempo, ela [‘esta morte incerta, sempre anterior’] não poderia ser explicada, assim pensa Winnicott, somente pelas vicissitudes próprias à primeira infância, quando a criança, privado de ‘eu’, sofre de estados perturbantes [bouleversants] (as agonias primitivas) que ela não pode conhecer uma vez que ainda não existe, que se produziriam portanto sem ter tido lugar, o que conduz mais tarde o adulto, numa recordação sem recordação, pelo seu eu fissurado, a esperá-los (seja por desejá-los, seja por temê-los) da sua vida que se completa ou se abate [ou s’effondre][36].

E isto mesmo que, para Blanchot, se trate de ‘uma aplicação ficcional [fictive] destinada a individualizar o que não poderia ser ou ainda [destinada] a fornecer uma representação do irrepresentável’[37]. Essa morte transborda o todo na medida em que, por um lado, lhe é irremissivelmente anterior e exterior e, por outro lado, lhe é simbolicamente irredutível, uma vez que, sem o simbólico, o mundo perderia a sua curvatura, o contorno da sua presente e projectada inteireza, o limite uno e nu da sua ob-jectivação, a bainha do seu projectivo em-si-mesmamento, para vir a distender-se no rompimento de uma presença sem presente. Como nota Lacan:

Há uma ambiguidade fundamental no uso que fazemos do termo desejo. Ora nós o objectivamos – e temos de fazê-lo, nem que seja só para falar dele – ora, pelo contrário, nós o situamos como sendo primitivo em relação a qualquer objectivação. Na realidade, em nossa experiência, o desejo não tem nada de objectivado. […] a maior parte daquilo sobre que o sujeito crê ter [um]a certeza reflectida é para nós apenas a disposição superficial, racionalizada, secundariamente justificada, daquilo que seu desejo fomenta, que dá a curvatura essencial ao seu mundo e à sua acção.[38]

A experiência inexperienciada supõe também, por outro lado, para Blanchot, a exceptuação da ordem cosmológica, uma vez que ela não é susceptível, na sua irredutibilidade ao simbólico, de se integrar em e/ou constituir qualquer mundo, na sua integr(al)idade. Nessa medida, ela supõe ainda a abertura, o inacabamento e a insuficiência, bem como a inessencialidade que marcam um certo (real-)imaginário. Com efeito, ser-se simultaneamente ‘mais’ e ‘menos do que um’ não seria, afinal o que, por todo o lado por onde um certo pensamento do exterior, um certo ex-capere, subtende e subverte o sentido uno e nu da individualidade, encontraria os seus equivalentes naquela necessária reperspectivação do conceito psicanalítico de uma tão necessária quanto re(des)centradora articulação entre o imaginário e o simbólico se, como nos diria Philippe Lacoue-Labarthe, em ‘L’«echo du sujet»’?

Ce qu’il faudrait marquer, avec et contre Lacan, en remontant de Lacan à Reik, c’est qu’il y a un effondrement constant, mais sourd de l’imaginaire. L’imaginaire détruit au moins autant qu’il aide à construire. Plus exactement, il ne cesse de pervertir ce qu’il construit. Par où s’explique peut-être que le sujet au miroir est d’abord un sujet en ‘désistement’ (et que, par exemple, il ne regagnera jamais sur l’insuffisance mortelle à quoi le voue, selon Lacan, sa prématuration. […] La figure n’est jamais une […] pas d’essence de l’imaginaire. Ce qu’engage à penser Reik, autrement dit, c’est que le sujet ‘désiste’ d’avoir à s’affronter toujours au moins à deux figures – ou à une figure au moins double) […] partition instabilisante ou déstabilisatrice du figural (qui confond certainement la distinction de l’imaginaire et du symbolique, et entame par la même occasion la négativité ou l’altérité absolue du ‘réel’… [39]

A partir daqui, uma série de questões se poderiam desdobrar. Ensaiemos algumas. Por um lado, no âmbito da sua refracção teórica, tal como o pensamento, no século XX, se dispôs a encarar o fenómeno estético-literário. Com efeito, se, com e contra Lacan, se deve assinalar o facto de que o imaginário não cessa de perverter o que ele ajuda a construir; se o sujeito ao espelho não chega nunca a superar a sua mortal insuficiência ou a sua prematuração, não se nos tornaria necessário ver, quer no conceito de dessublimação estética, no Herbert Marcuse de A Dimensão Estética, quer no de um lugar fundacional da ‘fantasia’ em relação a todo o juízo, no Theodor Adorno de Minima Moralia, quer, finalmente, no de arte como dessimbolização, no Roland Barthes de ‘Cette vieille chose, l’art…’, formas conexas de implicar o testemunho e(m) ficção? Formas que assim se alinhariam, de resto, por aquela anterior distinção formalista de um processo de desfamiliarização que, lido à luz de um pensamento do exterior que se guiasse pela crítica deleuziana do familiarismo psicanalítico, nos deveria surgir, hoje, como uma espécie de antecipatória abertura? Lê‑se, em A Dimensão Estética:

A transcendência da realidade imediata destrói a objectividade reificada das relações sociais estabelecidas e abre uma nova dimensão da experiência : o renascimento da subjectividade rebelde. Assim, na base da sublimação estética, tem lugar uma dessublimação na percepção dos indivíduos – nos seus sentimentos, juízos, pensamentos ; uma invalidação das normas, necessidades e valores dominantes.[40].

A imediatidade de uma relação com uma realidade sem ‘o real’ é, na medida em que anterior e exterior a toda a mediação, a abertura de uma nova dimensão da experiência que, nessa medida, des-sublima, suspende ou ‘invalida’, aquelas normas, necessidades e valores já inerentes a qualquer coisa que se pudesse ter por ‘o real’. Recordemo‑nos, aqui, apenas a título de exemplo e num rápido alinhamento dos diversos lugares dessas mesmas intuição e suspensão do nome ou do símbolo, do que pela voz de Viktor Shklovsky, em ‘A Arte como Processo’, ficara, já em 1919, em anexo ao conceito de estranhamento, apontado:

E eis que para se ter a sensação da vida, para sentir que a pedra é pedra, existe aquilo a que se chama a arte. A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção […]; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se «tornou», não interessa à arte[41]

Do mesmo modo, a constatação adorniana – por exemplo em Minima Moralia – do carácter fundacional da ‘fantasia’, no tocante à relação em que, incondicionalmente, assenta todo o juízo, alertava já para a necessidade da ponderação do seu lugar central:

A fantasia, hoje atribuída ao recinto do inconsciente e proscrita no conhecimento [...] é a única que entre os objectos funda a relação em que incondicionalmente se origina todo o juízo : se for excluída, exorciza-se ao mesmo tempo o juízo, o próprio acto do conhecimento. Mas a castração da percepção mediante a instância de controlo que lhe nega toda a antecipação desejante, impele esta ao esquema da repetição impotente do já conhecido[42]

E, coincidentemente, em Teoria Estética, a afirmação do quanto a obra supõe uma descentração:

A subjectividade, condição necessária da obra de arte, não é enquanto tal a qualidade estética. Só se torna esta através da objectivação; nessa medida a subjectividade na obra é exterior a si mesma [43].

Neste sentido, a arte e a literatura suporiam, portanto, como nos diz Blanchot, a aceitação de sofrer a morte sem a tornar presente, saber que ela teve lugar embora não tenha sido experienciada, que é, precisamente, também o que estará em jogo na arte enquanto passagem para o exterior, sublinhada por Michel Foucault, nela indissociável do conceito de neutro:

Tem-se o hábito de pensar que a literatura moderna se caracteriza por um redobra-mento que lhe permitiria designar-se a si própria; […] de facto trata‑se muito mais de uma passagem para o exterior. […] A literatura não é a linguagem aproximando-se de si própria até ao ponto da sua manifestação ardente, é a linguagem pondo-se maximamente longe de si própria; e se nesta posição de ‘fora-de-si’, desvela o seu ser próprio, essa súbita claridade revela mais um afastamento que um retraimento, mais uma dispersão que um retorno dos signos sobre si próprios. O sujeito da literatura (o que nos fala nela e aquilo de que ela fala) não seria tanto a linguagem na sua positividade como o vazio onde ela encontra o seu espaço quando se enuncia na nudez do ‘eu falo’. O espaço neutro caracteriza nos nossos dias a ficção ocidental (é por isso que esta já não é nem uma mitologia nem uma retórica).[44]

O movimento, na literatura moderna seria, portanto o da descentração, o da excepção de si (ex capere: literalmente, captar [d]o exterior), o de uma dispersão do signo que se organiza em torno do seu próprio vazio (do vazio enquanto regresso do novo, como dirá Barthes, em O Grão da Voz: ‘o vazio é, mais do que o novo, o regresso do novo (que é o contrário da repetição)’[45]), do neutro que ele supõe, na sua diferencialidade.

Seria possível lê-la, a essa posição de ‘fora-de-si’ da linguagem no espaço literário, sem ter em conta a contribuição de uma reflexão psicanalítica em que se viria, gradualmente, a depositar, naquelas margens em que a lingüística estrutural e a antropologia, a estética e a filosofia, a religião e a política se cruzam, a noção de um sujeito que pressupõe, em si mesmo, constitutivamente, a instância de um outro tomado na sua irredutibilidade? A esse pensamento do exterior poderíamos ainda encontrá-lo, de resto, formulado, por exemplo, em ‘L’absence de livre’, de Maurice Blanchot. Com efeito, pode, em L’Entretien infinit ler-se:

‘[...] dessa escrita ausente do livro e no entanto em relação de alteridade com ele, pode dizer-se que ela permanece estranha à legibilidade, ilegível na medida em que ler é necessariamente entrar pelo olhar em relação de sentido ou de non‑sens com uma presença. A escrita, (pura) exterioridade, estranha a toda a relação de presença, como a toda a igualdade. […] A Lei é a própria escrita que renunciou à exterioridade do entre-dizer para designar o lugar do interdito.’[46].

Em segundo lugar, outra das consequências da observação de Philippe Lacoue-Labarthe, em ‘L’«echo du sujet»’ seria a de se nos tornar necessário, antes de mais, ter retrospectivamente presente que a exterioridade de que aqui se fala não se reduz àquela que para si reivindicaria ainda o pressuposto do todo. Dirá Barthes:

Romance e História mantiveram estreitas relações no primeiro século que assistiu ao seu maior desenvolvimento. A sua ligação profunda, que permite compreender simultaneamente Balzac e Michelet, é, num e noutro, a construção de um universo autárcico, que fabrica ele próprio as suas dimensões e os seus limites, a sua população, a sua colecção de objectos e os seus mitos. Esta esfericidade das grandes obras do século XIX exprimiu-se através dos longos recitativos do Romance e da História, espécies de projecções planas de um mundo curvo e unido, cuja imagem degradada é apresentada nas suas espirais pelo romance-folhetim, aparecido na altura.[47]

A exterioridade do mundo ficcional, em relação ao mundo real tal como a História o pensa, seria, aqui, cortada, segundo Roland Barthes, pelo pacto formal entre o escritor e a sociedade, aquele que, para a justificação do primeiro e a serenidade da segunda, a Narrativa consigo traz, por intermédio, quer do pretérito perfeito simples, quer da terceira pessoa, quer ainda, na descrição, do imperativo realista de um verosímil referencial que pressupõe, como Barthes nos mostrava, em O Efeito de Real, uma regressão[48]. Nesse caso, o elo de ligação entre o mundo fora do mundo, o mundo enquanto o objecto imaginário e aquele de que ele se exteriorizaria, enquanto objecto estético, re‑emergiria como relação neutralizada:

[...] no Ocidente, como acabámos de ver, não há nenhuma arte que não aponte para a sua máscara. A terceira pessoa, tal como o pretérito perfeito simples, presta este serviço à arte romanesca e fornece aos seus consumidores a segurança de uma fabulação crível e no entanto incessantemente manifestada como falsa[49].

Esse apontar da sua máscara – gesto silenciosamente eloquente de re-flexão que se deveria supor bem enquadrado pelos imperativos realistas de quem igualmente renuncia a dizer «eu» – deveria ali articular-se, a partir da inscrição de uma distância estética a observar, como mostra Blanchot, com a ‘intrusão’ da personagem no «ele» que fora a cobertura de uma narrativa que se quer contar a si mesma:

Très vite, le ‘il’ mystérieux de l’institution épique se divise : le ‘il’ devient la cohérence impersonnelle d’une histoire (au sein plein et comme magique de ce mot) ; l’histoire se tient toute seule, préformée dans la pensée d’un démiurge et, existant par elle-même, il n’y a plus à raconter. Mais l’histoire bientôt se désenchante. L’expérience du monde désenchanté […] est celle qui dissipe l’histoire en lui opposant la banalité du réel – par où le réalisme se saisit pour longtemps de la forme romanesque qui devient le genre efficace de la bourgeoisie en progrès. [...] En même temps – et d’une manière visible – le ‘il’ marque l’intrusion du personnage: le romancier est celui qui renonce à dire ‘je’, mais délègue ce pouvoir à d’autres ; le roman se peuple de petits ‘ego’ tourmentés, ambitieux, malheureux, quoique satisfaits dans leur malheur.[50]

O desencantamento da história vai aqui de par com o surgimento de um «ele» que, longe de se isentar de qualquer intromissão, representa o espaço da intrusão da personagem. Ora, não poderia, aqui, neste «ele», tratar-se já, nem do lugar de alguma espécie da reverência (ou de delicadeza) que Benveniste lhe reservava, no âmbito das formas de majestade: a personagem que conduz a focalização é uma de entre várias. O lugar que se lhe concede é já tributário de uma reserva, de uma retracção, de um «pas au‑delà».

Ao mesmo tempo, ao dar-se-lhe, na narrativa, lugar, trata-se, ainda, de consagrar aí o lugar do testemunho pela via singular da exemplaridade do exemplo e pretensamente universal da confirmação (da abertura à ‘identificação’) e, por conseguinte, de tudo menos de a ultrajar, de pura e simplesmente a aniquilar: convocá-la não é, portanto, também, simplesmente rebaixá-la ou desprezá-la, mas reconhecer-lhe uma existência, mesmo que a perder de vista... Não significará pois, essa intrusão, já a irrupção do neutro na instância do terceiro dito excluído? De que se trata, no neutro[51]? Ou, como diria, por seu lado, Blanchot:

Le «il» narratif, qu’il soit absent ou présent, qu’il s’affirme ou se dérobe, qu’il altère ou non les conventions de l’écriture – la linéarité, la continuité, la lisibilité – marque ainsi l’instrusion de l’autre – entendu comme neutre – dans son étrangeté irréductible, dans sa perversité retorse. L’autre parle. Mais quand l’autre parle, personne ne parle, car l’autre, qu’il faut se garder d’honorer d’une majuscule qui le fixerait dans un substantif de majesté, comme s’il avait quelque présence substantielle, voire unique, n’est précisément jamais seulement l’autre, il n’est plutôt ni l’un ni l’autre, et le neutre qui le marque le retire des deux, comme de l’unité, l’établissant toujours au de-hors du terme, de l’acte ou du sujet où il prétend s’offrir. La voix narrative (je ne dis pas narratrice) tient de là son aphonie.[52]

Portanto, por um lado, se a história se desencanta ela permanece, contudo: a) por um lado, como curso do mundo dito pelo indivíduo – mesmo quando se trata de uma personagem que, embora se não nos dê como narrador, se constitui como ‘[...] o centro a partir do qual a perspectiva do relato se organiza: tudo é visto desse ponto de vista. Há então um «eu» privilegiado, mesmo que seja o de uma personagem evocada na terceira pessoa, que toma muito cuidado para não ultrapassar as possibilidades do seu saber e os limites da sua colocação: é o reino dos embaixadores de James [...]’[53].

Mas por outro lado: b) esse desencantamento coincide com o estilhaçamento ou a explosão do homem essencial no plural da sua histórica contingência, designando, então, a narrativa romanesca, nesse seu gesto ostensivo de auto-referência como ficção, a sua própria e necessária impossibilidade.[54] Ela cometeria ou incorreria, então, num auto‑desmentido ou numa auto-denúncia que parece inflectir o sentido da ancoragem daqueles seus anteriormente pressupostos imperativos, ditos ‘realistas’.

Quando o outro fala ninguém fala, verdadeiramente, porque «ele» não é nunca apenas ‘o outro’, mas precisamente o que o neutraliza e mantém em aberto, na sua intrusão. O gesto da voz narrativa deve, agora, na deposição ou designação da sua máscara, ser interpelativo daquele discurso que, mesmo na História, não prescinde da Narração. Como observará ainda Blanchot:

Nous voyons donc que le ‘il’ s’est scindé en deux : d’une part, il y a quelque chose à raconter, c’est le réel objectif tel qu’il se donne immédiatement sous un regard intéressé et, d’autre part, ce réel se réduit à être une constellation de vies individuelles, de subjectivités, ‘il’ multiple et personnalisé, ‘ego’ manifeste sous le voile d’un ‘il’ d’apparence. Dans l’intervalle du récit s’entend, avec plus ou moins de justesse, la voix du narrateur, tantôt fictif, tantôt sans masque. Qu’est-ce qui a cédé dans cette construction remarquable ? Presque tout.[55]

E isto porque, por um lado, o que nesse intervalo do relato se insinua é o facto de o gesto ‘objectivo’ da renúncia à auto-referência – a dizer(-se) «eu» – se ver, por sua vez, arrastado, acolhido e preso, na historicidade, na posicionalidade e na difracção pressupostos por uma rede ou uma constelação das subjectividades. O que por ele irrompe é, portanto, a insustentação da coerência impessoal de uma história que a si mesma se quisesse contar.

Com efeito, se todo o «ele» é afinal um «eu» no exercício da sua própria distância, não seria, então, por um lado, necessário pôr a descoberto o «eu» que deveria haver em todo o «ele» e, por outro, o que haveria de «ele» em todo o «eu»? Eis, pois, no que se traduz a intrusão da personagem: o que ela assim nos diz, pela organização da perspectiva narrativa feita a partir do seu olhar, prende-se com a foraclusão daquela distância que a ‘terceira pessoa’ prometia e se diria que garantiria:

‘[...] nos clássicos – e sabemos que para a escrita o classicismo se prolonga até Flaubert – o afastamento da pessoa biológica atesta uma instalação do homem essencial’[56].

Se não há «eu» que não seja, mesmo tido a sós consigo mesmo, no silêncio do seu auto-‑recolhimento ou no seu pressupostamente irredutível ensimesmamento, já cindido pela sua susceptibilidade de expressão (e pela idealidade da sua separação, da sua redução do mundo) ou pela estrutura testamentária do signo[57], na ‘il’ – imitação bem como na i-limitação do limite que destaca ou dissocia o ‘presente vivo’ do sentido da sua limitação viva, como também nos diria Blanchot...

Se a história como saber absoluto de si na presença imediata a si se retrai e afasta, naquela sua morte que o signo também pressupõe, sem contudo a poder tornar presente, não será também isso, o sentido dessa necessária impossibilidade que aquela ostensão da sua própria máscara, protagonizada, como nos diz Roland Barthes, pela arte, nos traz?

O Romance é uma Morte; faz da vida um destino, da recordação um acto útil, e da duração um tempo dirigido e significativo. Mas esta transformação só se pode realizar aos olhos da sociedade. É a sociedade que impõe o Romance, isto é, um complexo de signos, como transcendência e como história de uma duração. É pois pela evidência da sua intenção, apreendida na clareza dos signos romanescos, que se reconhece o pacto que liga com toda a solenidade o escritor à sociedade. O pretérito perfeito simples e a terceira pessoa do Romance não são mais que esse gesto fatal pelo qual o escritor aponta a dedo a máscara que usa.[58]

Perspectivada, pois, a modernidade como época metafisicamente marcada pelas aporias da filosofia do sujeito (e de uma psicanálise que, em Véus... ‘à vela’, Derrida lhe reúne[59]), ser-nos-ia, aqui, oportuno observar o modo como, do ponto de vista do romance, elas têm lugar, no espaço daquilo que Maurice Blanchot designará por voz narrativa e, em particular, por uma insituável instância do neutro que faria entrar a linguagem em ‘uma possibilidade de dizer que diria sem dizer o ser e já não o negaria [...], aquela que se realiza ordinariamente em toda a forma de expressão. A voz narrativa é, nesta relação, a mais crítica que se pode, inaudita [inentendue], dar a escutar’[60].

A mais crítica, quanto mais não fosse, porque uma simples ‘negação do ser’ se veria também colhida pela afirmação daquilo de que, como tal se, ela própria constituiria como negação. Aquele gesto fatal pelo qual o escritor aponta a dedo a máscara que usa realiza-se, pois, duplamente, fora de qualquer horizonte puramente negativo: por um lado, pelo pretérito perfeito porque, não designando já um tempo, ele assinala uma criação, no sentido onto(teo)lógico do termo, graças à qual a realidade se enfraqueceria e a narrativa, pelo verosímil, escaparia ao terror de uma fala sem limite. É o que nos dirá Roland Barthes, em ‘A Escrita do Romance’:

O pretérito perfeito simples significa uma criação: isto é, assinala-a e impõe-na. Mesmo empenhado no mais sombrio realismo, ele tranquiliza, porque, graças a ele, o verbo exprime um acto fechado, definido, substantivado, a Narrativa tem um nome, escapa ao terror de uma fala sem limite: a realidade enfraquece-se e familiariza-se, entra num estilo, não excede a linguagem; [...]. Percebe-se, então o que o pretérito perfeito simples do Romance tem de útil e de intolerável: é uma mentira evidente; traça o campo de uma verosimilhança que deve desvendar o possível no próprio tempo em que o designa como falso. A finalidade do Romance e da história narrada é alienar os factos: o pretérito perfeito simples é o próprio acto de posse da sociedade sobre o seu passado[61] e o seu possível. Institui um contínuo crível mas cuja ilusão é ostentada, é o termo último de uma dialéctica formal que veste o facto irreal com as roupagens sucessivas da verdade e depois da mentira denunciada. [...][62]

A constatação desse enfraquecimento da realidade poderia também ser seguida em Le Différend, de Jean-François Lyotard, logo que se trata de ver a narrativa como ‘género do discurso no qual a heterogeneidade dos regimes de frases e mesmo aquele dos géneros dos discursos melhor se fazem esquecer’[63] e em que os diferendos aparentemente se reduzem, graças à imposição de um fim ao tempo da diegese: ‘o seu termo faz sentido, organiza retroactivamente os acontecimentos contados. A função narrativa é redentora por si mesma. Ela faz como se a ocorrência, com a sua potência de diferendos, possa completar-se, como se houvesse uma palavra final’[64].

A conhecida crítica de Lyotard é a de que não há presentemente, «última palavra». Se a narrativa nos dá essa ilusão, fá-lo graças à intervenção dos seus ‘operadores diacrónicos de sucessividade’ na ‘domesticação do des-encadeamento do agora’[65]. Por outro lado, esse gesto realiza-se também pela «terceira pessoa» porque, não sendo agora susceptível de ser tomada por uma forma estritamente denotativa de isenção e de ausência, ela designa, afinal, a suposição dessa mesma possibilidade como falsa e ilusória, ao associar-se à irrupção daquela constelativa dispersão de egos de que o romance dito realista, gradualmente, se povoará, num processo de dispersão focal e de extenuação que o nouveau roman contra ele levaria ao seu limite.[66].

Entre pretérito perfeito e terceira pessoa, atravessando-os e, ao mesmo tempo, desconstituindo-os, é precisamente a morte que virá a inscrever-se na narrativa e dar-se, enquanto experiência «inexperienciada», como o impossível necessário[67]:

Talvez se deva insistir neste ponto difícil e sem dúvida decisivo, neste lugar de decisão passiva e apaixonada. Porque na hipótese […] até de uma ficção literária pura e simples, pois bem, o acontecimento descrito, o acontecimento de referência terá tido lugar, mesmo que na sua estrutura de experiência «inexperienciada», como morte sem morte que não se poderia dizer nem entender de outro modo, isto é, através de uma fantasmaticidade, portanto segundo uma espectralidade (phantasma é espectro em grego) que é a sua própria lei. Essa lei espectral constitui e estrutura simultaneamente o referente que subsiste [demeure] dessa narrativa; ela excede a oposição entre o real e o irreal, o actual e o virtual, o efectivo e o fictício. […] Essa estrutura constituinte é uma fractura desestruturante. É a condição comum à literatura e à não literatura, à paixão pela literatura bem como essa paixão sem mais à qual uma literatura não pode deixar de se referir. Aí, em todo o caso, a fronteira entre a literatura e o seu outro torna-se indecidível.[68]

Dessa experiência «inexperienciada», dessa morte que teve já lugar, e de que resulta, por outro lado, a sua transposição, como morte (im)possível para a própria vida que lhe sobrevive, dessa criança que se matou para que pudesse viver, acendendo à linguagem e ao pensamento que a não podem acolher a não ser sob a forma do esquecimento, do conceito ou da frase, dessa condição comum à literatura e à não literatura, comum ‘à paixão da literatura e à paixão sem mais à qual uma literatura não pode deixar de se referir’, como acentua Derrida, não nos resta ou é acessível senão o que releva do espectro e da espectralidade, da ‘phantasmaticidade’ que se afirma, ao mesmo tempo e constitutivamente, enquanto lei, lugar de indecidibilidade entre a literatura e o seu outro, entre a ficção e a efectividade, o real e o irreal, o actual e o virtual. É ‘essa paixão, tal como é descrita no instante da minha morte[69] que sustenta a filosofia’[70]. É, de resto, através do discurso da psicanálise que Blanchot, com alguma insistência, a procura:

La pensée ne peut accueillir cela qu’elle porte en elle et qui la porte, sauf si elle l’oublie. J’en parlerai sobrement, utilisant (peut-être en les falsifiant) des remarques fortes de Serge Leclaire. [...] Cet enfant, où est-il ? Selon le vocabulaire de la psychanalytique […] il y aurait lieu de l’identifier à la «représentation narcissique primaire», ce qui veut dire qu’elle a statut de représentant à jamais inconscient, et par conséquent pour toujours indélébile. D’où la difficulté à proprement parler «folle» : pour ne pas rester dans les limbes de l’infans et de l’en-deçà du désir, il s’agit de detruire l’indestructible et même mettre fin (non pas d’un coup, mais constamment) à ce à quoi on n’a pas, n’a jamais eu, ni aura accès – soit la mort impossible nécessaire. [...] Il reste que si la mort, le meutre, le suicide sont mis en oeuvre et que si la mort s’amortit elle-même en devenant puissance impuissante, plus tard négativité, il y a, à chaque fois qu’on avance à l’aide de la mort possible, la nécessité de ne pas passer outre à la mort sans phrases, la mort sans nom, hors concept, l’impossibilité même.[71]

Seria precisamente por aí irredutível e necessariamente permanecermos, nessa morte sem frases, sem nome, fora de todo o conceito, que é, contudo, a sua condição de possibilidade, de cada vez que avançamos graças à ‘morte possível’ – visto que é essa espectral possibilidade, enquanto possibilidade de um fim e de um limite que, fechando a série dos acontecimentos, confere também sentido a todo o ‘avanço’ – que todo o testemunho participa da ficção, sem a ela, necessariamente, pertencer, dado que isso equivaleria a afirmar um valor de verdade que a crise do fundamento se encarregou de desmentir, assim como toda a ‘ficção’ o pressupõe, sem a ele se reduzir:

Eu acrescentaria uma nota, uma interrogação: a criança de Serge Leclaire, o infans glorioso, terrífico, tirânico, que se não pode matar na medida em que se não acede à vida e a uma fala senão não cessando de a enviar à morte, não seria ela precisamente a criança de Winnicott, aquela que antes de viver, sossobrou no morrer, a criança morta que nenhum saber, nenhuma experiência poderia fixar no passado definitivo da sua história?’[72].

Com efeito, esse passado é definitivo e definitivamente infixável também em todo e qualquer passado definitivo da história de algum conceito que o buscasse, de qualquer saber que o procurasse, porque insusceptível, na medida em que é sua condição de possibilidade, de rememoração plena. O que levará, por exemplo, José Saramago, a propósito da metaficção historiográfica e da sua relação com a História, bem como, em particular, a propósito daquela espécie de narrador a que, no seu caso, se deveria, no romance histórico, dar prioridade, a afirmar:

Reside aqui a meu ver a questão essencial. Conhecemos o narrador que procede de maneira imparcial, que vai dizendo o que acontece, conservando sempre a sua própria subjectividade fora dos conflitos de que é espectador e relator. Há, porém, um outro tipo de narrador muito mais complexo, um narrador a todo o tempo substituível, que o leitor reconhecerá ao longo da narrativa, mas que muitas vezes lhe dará a impressão de ser outro. Este narrador instável poderá mesmo ser o instrumento ou o sopro de uma voz colectiva. Será igualmente uma voz singular que não sabe de donde vem e se recusa a dizer quem é, ou usa de arte bastante para levar o leitor a identificar-se com ele, a ser de algum modo, ele.[73]

Enquanto tem, para si próprio, presente a condição de possibilidade da negatividade e do acesso à linguagem, esse narrador situar-se-ia e ao mesmo tempo (des)constituir-se-ia, assim, no que se daria, necessariamente, como um seu limite transcendental. Diz-nos Blanchot: ‘o que perfaz o enigma é que, precisamente matando-‑me, «eu» não «me» mato, mas, revelando de algum modo o segredo, alguém (ou alguma coisa) se serve de um eu a desaparecer – na figura de Outro – para lhe revelar e revelar a todos o que no mesmo instante escapa: a saber […] o passado imemorial da morte antiga. Não há morte agora ou futura (num presente a vir)’[74].

E não a há não só porque ‘nós não vivemos e não falamos senão porque a morte teve já lugar, acontecimento insituado, insituável, que, para se não tornar mudo no próprio falar, confiamos ao trabalho do conceito (a negatividade) ou ainda ao trabalho psicanalítico […]’[75], mas também porque toda a morte se volve, através dela, na iminência da morte, segundo a lei de uma espectralidade que nos reenvia sem cessar a essa morte antiga.

A diferença entre um e outro dos narradores de Saramago estaria precisamente nisto: ao passo que o primeiro, sob os imperativos da História e, presuntivamente, do terceiro excluído, nos não dá conta de se representar a si mesmo a sua própria condição, mantendo-se, nos mais estreitos limites da sua própria alienação, afastado, afinal de qualquer possibilidade de identificação com os seus leitores, o outro bem poderia dizer, como o autor da História do Cerco de Lisboa:

Não podendo reconstituí-lo, somos tentados – sou-o eu, pelo menos – a corrigi-lo. Quando digo corrigir o Passado não é no sentido de emendar os factos da História (não poderia ser essa a tarefa do romancista) mas sim, se se me permite a expressão, introduzir pequenos cartuchos que façam explodir o que até aí permanecera indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. Argumentar-se-á que se trata de um esforço inútil, uma vez que o que hoje somos não resultou do que poderia ter sido, mas do que efectivamente foi. No entanto, se a leitura histórica provocada pelo romance for uma leitura crítica, essa operação poderá provocar uma instabilidade, uma vibração temporal, uma perturbação, causadas pelo confronto entre o que sucedeu e o que poderia ter sucedido, como se saudavelmente, os factos começassem a duvidar de si próprios…[76]

O que poderia ter sido, seria, pois, uma das coisas que está ‘hoje’, no nosso horizonte (sempre em aberto) – o de uma sociedade dita da informação – a partir dessa experiência «inexperienciada» que é já condição de possibilidade de todo o verdadeiro. Nesse possível instalar-se-ia, pelo desdobramento focal inerente à experienciação de um sujeito ficcionalmente declinado na sua (mais ou menos fluida e/ou descontinuamente) histórica posicionalidade, uma vibrante temporalidade. Ela des-integra, politicamente, o passado instituído, nele induzindo aquela suspeita que nele encontra a suspensão de uma presença cujo presente nunca teve lugar como tal.

O diferendo e o diferimento que uma tal vibração temporal supõe, e que toda a ‘correcção’, imposta por um sujeito assim temporalmente desconstituído arrasta, trazer-nos-iam (num tempo em que o problema central da democracia e da incansavelmente dita sociedade de mercado parece ser, precisamente, o da relação com o outro, o da experienciação do acontecimento ou experiência do ‘propriamente’ inapropriável) um dos modos de pensar o romance como investido de um valor de testemunho e de exemplum – o de uma especulativa experienciação da abertura do sentido do passado, tomada como necessidade política do presente e presente condição necessária do político. Ele encena, no e a partir do passado, a sua própria e irredutível hiância... E fá-lo-ia ‘crítica’ e ‘saudavelmente’, para dela e nela reflectir e pressentir a nossa contemporaneidade...

[27] LACAN, Jacques, ‘L’Autre et la psychose’, Le séminaire – livre III : les psychoses – 1955-1956, op. cit., pp. 49-50.
[28] Ibidem, p. 50.
[29] Ibidem (sublinhado nosso).
[30] DERRIDA, Jacques, Morada: Maurice Blanchot, op. cit., pp. 43-44 (sublinhado nosso). [31] LACAN, Jacques, ‘Au-delà de l’imaginaire, le symbolique : ‘questions à celui qui enseigne’’, Le séminaire – livre II : Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, op. cit., p. 286.
[32] LACAN, Jacques, ‘A Lógica da Castração : ‘A Foraclusão do Nome-do-Pai’’, As Formações do Inconsciente: o Seminário – livro 5, op. cit., p. 152 (sublinhado nosso).
[33] Ibidem.
[34] BLANCHOT, Maurice, L’écriture du désastre, Paris, Gallimard, 1980, pp. 108-109, cit. in DERRIDA, Jacques, Morada: Maurice Blanchot, op. cit., pp. 50-51 (os primeiros sublinhado são nossos).
[35] BARTHES, Roland, ‘Cette vieille chose, l’art…’, in MARTY, Éric (org.), Roland Barthes : œuvres complètes – III (1974-1980), Paris, Seuil, 1994, p. 1223 (sublinhados nossos).
[36] BLANCHOT, Maurice, L’ècriture du désastre, op. cit., p. 109.
[37] Ibidem.
[38] LACAN, Jacques, ‘Do Pequeno ao Grande Outro’, O Seminário – Livro 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise, 1985, trad. de M. Christine Penot e António Luiz Quinet de Andrade, pp. 282-283.
[39] LACOUE-LABARTHE, Philippe, ‘L’«echo du sujet»’, citado em DERRIDA, Jacques, ‘Désistance’, Psyché où l’invention de l’autre, Paris, Galilée, 1987, pp. 631-632 (sublinhados nossos).
[40] MARCUSE, Herbert, A Dimensão Estética, trad. de Maria Elisabete Costa, Lisboa, Edições 70, 1999, p. 20.
[41] SHKLOVSKY, Viktor, ‘A Arte como Processo’, in TODOROV, Tzvetan, Teoria da Literatura – II, trad de Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, p. 1987, pp. 81-82 (sublinhados nossos).
[42] ADORNO, Theodor, Minima Moralia, trad. de Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 2001, p. 124.
[43] ADORNO, Theodor, Teoria Estética, trad. de Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1982, p. 193 (sublinhado nosso).
[44] FOUCAULT, Michel, O Pensamento do Exterior, trad. de Miguel Serras Pereira, Fim de Século, [s. l.], 2002, p. 12 (sublinhado nosso).
[45] BARTHES, Roland, ‘Digressões’, O Grão da Voz: entrevistas (1962-1980), op. cit., pp. 113-114.
[46] BLANCHOT, Maurice, ‘L’absence de livre’, L’Entretien infinit, Paris, Gallimard, 1969, pp. 631-632 (sublinhado nosso).
[47] BARTHES, Roland, ‘A Escrita do Romance’, O Grau Zero da Escrita / Elementos de Semiologia, trad. de Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1981, p. 31 (sublinhado nosso).
[48] E essa ‘regressão’ manifestar-se-ia naquela colusão entre o significante e o referente, que isolava o realismo de uma modernidade cuja questão fundamental era já a da des-integração do signo, decorrente do abissal sem-fundo instaurado pela mesma crise do fundamento, que estará, a certa altura, para Barthes, – lembremo-lo, mesmo que, a determinado momento, em BARTHES, Roland, ‘Fazer o ponto de Robbe-Grillet?’, Ensaios Críticos, trad. de António Massano e Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 1977, p. 285, se faça a crítica das posições de Robbe-Grillet que decorrem da sua leitura de Heidegger: ‘[…] o erro (teórico) de Robbe-Grillet era apenas julgar que havia um estar aí das coisas, antecedente e exterior à linguagem, que a literatura estava encarregada, pensava ele, de encontrar num último impulso de realismo’- no horizonte do nouveau roman como ‘romance de extensão’, em que a profundidade simbólica se quereria abolida e o sujeito desconstituído.
[49] BARTHES, Roland, ‘A Escrita do Romance’, O Grau Zero da Escrita / Elementos de Semiologia, op. cit., p. 35.
[50] BLANCHOT, Maurice, ‘La Voix narrative (le ‘il’, le neutre)’, L’Entretien Infinit, op. cit., p. 559 (sublinhado nosso).
[51] BARTHES, Roland, ‘Le Neutre’, Le Neutre : cours au collège de France (1977-1978), Paris, Seuil/Imec, 2002, p. 261 (sublinhado nosso) : ‘definiu-se como relevante do Neutro toda a inflexão que esquiva ou frustra [déjoue] a estrutura paradigmática, oposicional, do sentido, e visa, por consequência, a suspensão dos dados conflituais do discurso’ (sublinhado nosso). Ne uter, portanto…
[52] BLANCHOT, Maurice, ‘La Voix narrative (le ‘il’, le neutre)’, L’Entretien Infinit, op. cit., p. 564-656 (sublinhado nosso).
[53] Ibidem, p. 561.
[54] LACAN, Jacques, ‘A Dialética do Desejo: ‘Os Circuitos do Desejo’’, As Formações do Inconsciente: o Seminário – Livro 5, op. cit.,p. 475. Esse estilhaçamento lembra-nos, precisamente, aquela observação de Lacan, segundo a qual: ‘O Outro não é, pura e simplesmente, o lugar desse sistema perfeitamente organizado. […] O Outro, o Pai, no caso, o lugar onde se articula a lei, está submetido, ele mesmo, à articulação significante e, mais do que submetido à articulação significante, é marcado por ela, com o efeito desnaturalizante que a presença do significante comporta’. Não deixa de ser interessante verificar a observação de Lacan que vem logo a seguir: ‘Aquilo de que se trata está longe de haver chegado a um estado de conceituação perfeita […]’. E Jean-Claude Malevale nota, em ‘Construction et évolution du concept : ‘la pluralisation du Nom-du-Père’’, La Forclusion du Nom-du-Père : le concept et sa clinique, Paris, Seuil, 2000, pp. 112-113 : ‘Tout porte à croire que la pluralisation du Nom-du-Père annoncé en 1963 aurait été corrélée à un rapprochement de sa fonction avec celle des objets a, afin de souligner que jouir selon la loi implique d’accepter un sacrifice de la jouissance’ e, nas pp. 157-158, em ‘La forclusion restreinte’ :’ Au-delà des élaborations des années cinquante, fondées sur une conceptualisation du Nom-du-Père devenue caduque, aucunne perspective d’ensemble concernant la structure de la psychose n’a été développée par Lacan’.
[55] BLANCHOT, Maurice, ‘La Voix narrative (le ‘il’, le neutre)’, L’Entretien Infinit, op. cit., p. 561 (sublinhado nosso).
[56] BARTHES, Roland, ‘A Escrita do Romance’, O Grau Zero da Escrita / Elementos de Semiologia, op. cit. p. 36 (sublinhado nosso).
[57] Estrutura testamentária que, a partir do vestígio retencional, o torna funerária e constitutivamente legível na sua ausência, legível como em memória de e, consequentemente, ainda em vida, como forma de sobrevivência, e portanto, ainda, como forma de morte.
[58] Ibidem, p. 38 (sublinhado nosso).
[59] DERRIDA, Jacques; CIXOUS, Hélène, Véus... ‘à vela’, trad. de Fernanda Bernardo, Coimbra, Quarteto, 2001, pp. 72-73. Pronunciando-se a favor de ‘um pensamento do acontecimento sem verdade desvelada ou revelada, sem [o] falogocentrismo do véu grego-judaico-islamo-freudo-heideggereano-lacaniano, sem faloforia, [...] sem velamento-desvelamento do phallus’. ‘O phallus é o conceito, não seremos capazes de nos opor a ele, assim como a uma ‘teoria sexual‘ [...]. O que justamente o saber não sabe, é o que acontece. Eis o que acontece’.
[60] BLANCHOT, Maurice, ‘La Voix narrative (le ‘il’, le neutre)’, L’Entretien Infinit, op. cit., p. 567 (sublinhado nosso).
[61] BARTHES, Roland, ‘A Escrita do Romance’, O Grau Zero da Escrita / Elementos de Semiologia, op. cit., p. 31: ‘[...] retirado do francês falado, o pretérito perfeito simples [...] não tem já a função de exprimir um tempo. O seu papel é o de reduzir a realidade a um ponto, e de o abstrair da multiplicidade dos tempos vividos e sobrepostos a um acto verbal puro, livre das raízes existenciais da experiência e orientado por uma ligação lógica com [...] um movimento geral do mundo: [ele] visa manter uma hierarquia no império dos factos.’
[62] Ibidem, pp. 33-34 (sublinhados nossos).
[63] LYOTARD, Jean-François, ‘Le signe d’histoire’, Le différend, Paris, Minuit, 1983, pp. 218-219.
[64] Ibidem.
[65] Ibidem.
[66] BARTHES, Roland, ‘Literatura objectiva’, Ensaios Críticos, trad. de António Massano e Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 1977, p. 92: ‘o romance de Robbe-Grillet permanece, pois, perfeitamente exterior a uma ordem psicanalítica: não se trata de modo nenhum, aqui, de um mundo da compensação e da justificação, onde certas tendências seriam expressas ou contra-expressas por certos actos; o romance anula deliberadamente todo o passado e toda a profundidade, é um romance da extensão, não da compreensão. [...] Essa recusa da psicanálise pode, aliás, ser expressa de uma outra maneira ao dizermos que, em Robbe‑Grillet, o acontecimento nunca é focalizado’.
[67] DERRIDA, Jacques, Morada: Maurice Blanchot, op. cit., pp. 45-46 : ‘a morte é de uma só vez, a «impossível necessária», a impossibilidade e a necessidade atribuem-se e co-implicitam-se uma à outra, ao mesmo tempo sujeito e atributo uma da outra em definitivo’.
[68] Ibidem, pp. 100-101 (sublinhado nosso).
[69] Ibidem, p. 21: ‘«paixão» conota a finitude, certamente […], mas também uma certa passividade na relação heteronómica com a lei e com o outro; como esta relação não é simplesmente passiva e incompatível com a liberdade e com a autonomia, trata-se de uma passividade da paixão aquém e além da oposição entre passividade e actividade’.
[70] Ibidem, 99.
[71] BLANCHOT, Maurice, L’Écriture du désastre, op. cit., pp. 112 (sublinhado nosso).
[72] Ibidem (sublinhado nosso).
[73] SARAMAGO, José, ‘Contar a vida de todos e de cada um’, Cadernos de Lanzarote – III, Lisboa, Caminho, 1996, pp. 186-187 (sublinhado nosso).
[74] BLANCHOT, Maurice, L’Écriture du désastre, op. cit., p. 113-114.
[75] Ibidem.
[76] SARAMAGO, José, ‘Contar a vida de todos e de cada um’, Cadernos de Lanzarote – III, op. cit., p. 185.

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