terça-feira, 7 de abril de 2009

Fragmentos de leitura 15: Do testemunho e da ficção (continuação): experiência e aporia II

















Jacques Lacan

(Eis a segunda parte de «Do testemunho e da ficção: experiência e aporia» - ver começo em Fragmentos de leitura 14: Do testemunho e da ficção - experiência e aporia I, aqui no blogue. O que significa que a leitura deste texto, não devendo ser autónoma do primeiro, deve ao mesmo tempo, ser-lhe encadeada, com ele formando um todo).

Do testemunho e da ficção - experiência e aporia II

II – A arte como pensamento do exterior.

Para abordarmos a questão do terceiro excluído do lado da psicanálise, convir‑nos-ia proceder aqui a um recuo. Esse terceiro é «excluído» tal como ele se nos dá na descrição de Benveniste. O discurso psicanalítico dar-nos-á dele, pelo contrário, o seu carácter de elemento incorporado no sujeito, pela via da introjecção. E sempre que, em Lacan, se fala do «outro», uma distinção se impõe, no que resulta da sua reapropriação do legado de Freud: trata-se, por um lado, do petit autre – que é, na relação imaginária, o objecto de um desejo que se dá sempre como desejo do desejo do outro. Por outro lado, do grande Autre, enquanto instância do código.

No que toca ao primeiro momento, a constituição do imaginário, inaugurada e decorrente na e da fase do espelho, a relação com a mãe é uma relação de dualidade imediata : por um lado – a) a Gestalt recorta a figura do corpo reunido e destaca-a do contínuo de qualquer fundo; por outro lado – b) o sujeito não se dissocia ou discerne ainda distintamente desse seu outro. E será pela via dessa não‑dissociação[1] que a introjecção das primeiras verbalizações decorre, bem como, no seu decurso, a Metáfora Paterna. Uma relação de continuidade supõe ali, na relação rea-imaginária, a sua condição de possibilidade. Só se chega ao grande Autre depois de estabelecida essa relação de dualidade «imediata» com o petit autre. Lembra Roland Barthes, a esse propósito:

«[…] a criança entra, diz-nos Lacan, logo no simbólico ao descobrir a sua imagem no espelho aos seis meses de idade. É o estádio do espelho, ou seja, o momento em que pela primeira vez, ela capta a imagem do seu corpo reunido. [...] A partir desse momento começa a aventura da intersubjectividade, da construção imaginária do eu» [2].

O que pressupõe, em primeiro lugar, que aquilo que aqui se dá como «construção imaginária do eu», no decurso desse «aventura da intersubjectividade» que o seu desenvolvimento psíquico pressupõe, embora decorra no e do momento da captação da figura do corpo reunido, se desdobrará, todavia, daí em diante, a partir do não discernimento auto-referencial que precipitará no sujeito a lei que o constituirá «como tal». Ora, numa segunda etapa dessa aventurosa constituição, contudo, o movimento de um vai-vem, de um Fort-Da, de uma presença-ausência do outro, desencadeia, não apenas o que Lacan chamará, em «O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu», de «ciúme primordial» – «esse momento em que se completa o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e o drama do ciúme primordial […] a dialéctica que desde logo liga o eu a situações socialmente elaboradas»[3] – mas também a questão, por um lado: a) da significação e, por outro lado: b) da auto-certificação. Tudo aí se passaria como se, na criança, a seguinte posição se pudesse projectar: «que significa a presença-ausência da mãe ? Que(m) sou eu, para além daquela posição, por um lado, de centralidade fálica, por outro de continuidade e extensão, que a relação imaginária supõe ?»

E a descoberta que opera a constituição do sujeito na sua «normalidade» começa por ser a de que o Falo estará, imperturbavelmente, na sua isenta impassibilidade - que é, também sem mistura, algures, no horizonte desse movimento do desejo do Outro – só aparentemente fora dessa relação eu-tu, mesmo e sobretudo em se tratando aqui de um Pai simbólico, cada vez mais constituinte e desejavelmente imanente à regulação inerente às primeiras verbalizações.

«A primeira dialéctica da simbolização da relação da criança com a mãe é feita, essencialmente, com respeito ao que é significável, ou seja, ao que nos interessa. Há, sem dúvida, outras coisas além disso – há o objecto que a mãe pode representar, como portadora do seio, há as satisfações imediatas que ela pode dar à criança – mas se houvesse apenas isso, não existiria nenhuma espécie de dialéctica, nenhuma abertura no edifício. Na sequência, a relação com a mãe não é simplesmente feita de satisfações e de frustrações, mas da descoberta do que é o objecto do desejo dela. O sujeito, essa criança pequena que tem de se constituir em sua aventura humana e ter acesso ao mundo do significado, deve, com efeito, fazer a descoberta do que significa para ela o seu desejo. Ora, o que sempre criou problemas na história analítica [...] foi saber por que [razão], nesse ponto, aparece a função privilegiada do falo.»[4]

Que descoberta é essa? Enquanto desejo do desejo do outro, o desejo da criança é refém de todas as oscilações que o afectem, pela sua dependência[5] desse desejo outro. Realmente:

«[…] é a aventura primordial do que se passou em torno do desejo infantil, do desejo essencial, que é o desejo do desejo do Outro, ou o desejo de ser desejado. […] Eis o que vai ser inscrito, conforme a história do sujeito, em sua estrutura: são as peripécias, os avatares da continuação desse desejo, na medida em que ele está submetido à lei do desejo do Outro. É isso que faz do mais profundo desejo do sujeito, daquele que permanece suspenso no inconsciente, a soma, a integral, diríamos, desse D maiúsculo que é o desejo do Outro. […] O importante, com efeito, não é apenas a frustração como tal, ou seja, um mais ou um menos de real que tenha ou não sido dado ao sujeito, mas é aquilo pelo qual o sujeito almejou e identificou o desejo do Outro que é o desejo da mãe»[6].

Portanto, é pelo facto de ser desejo do desejo do outro, bem como pelo facto de este último se vir a revelar, afinal, como desejo de um Outro, que o desejo infantil se tornará, extensiva e transpositivamente, desejo de um desejo a que chamaríamos desejo Outro, cuja marca indelével implicará, no desejo infantil, um inexorável deslocamento. Retomemos então, para a questão da descoberta de que aqui se trata, no balizar a partir dos seus limites, o que Lacan nos diz acerca do estádio do espelho:

«Ce moment où s’achève le stade du miroir inaugure, par l’identification à l’imago du semblable et le drame de la jalousie primordiale (si bien mis en valeur par l’école de Charlotte Bühler dans les faits de transitivisme infantin) la dialectique qui dès lors lie le je à des situations socialement élaborées. C’est ce moment qui décisivement fait basculer tout le savoir humain dans la médiatisation par le désir de l’autre, constitue ses objets dans une équivalence abstraite par la concurrence d’autrui, et fait du je cet appareil pour lequel toute poussée des instincts sera un danger, répondît-elle à une maturation naturelle – la normalisation même de cette maturation dépendant dès lors chez l’homme d’un truchement culturel : comme il se voit pour l’objet sexuel dans le complexe d’Œdipe.»[7]

O Fort-Da constituirá, então, nesse ponto, a encenação e o jogo que sintomatiza, aos olhos de Lacan, para além daquela transposição significante que indica o acesso à linguagem e a introdução do sujeito na posição ou no lugar do agente da sua própria afecção, aquela dilaceradamente experienciada oscilação do desejo da mãe, enquanto desejo desejado[8]: entre o desejo da mãe, inicialmente tido, pela criança, como desejo que lhe fosse exclusivamente correspondente, ou desejo do seu desejo, e a crise instaurada face ao desejo da mãe tido, agora, como desejo de um Outro, é toda uma vida que se joga no limiar de uma morte que essa mesma vida se verá forçada a acolher e a em si inscrever:

«É a mãe que vai e vem. É por eu ser um serzinho já tomado pelo simbólico, e por haver aprendido a simbolizar, que podem dizer que ela vai e que ela vem. Em outras palavras eu a sinto ou não sinto, o mundo varia com a sua chegada e pode desaparecer»[9].

Iminência da morte ou da desaparição do mundo que a instaurará, em definitivo, no esquecimento e na vida que ele e ela, me possibilitam. Por um lado, a morte iminente, a iminência da morte que é, afinal, a iminência do que já terá tido lugar, por mais de uma vez: «também nós já estamos mortos em relação ao movimento da vida. […] O homem é esse animal preso e articulado num sistema significante que lhe permite dominar [a] sua imanência de vivente e perceber-se como já morto»[10]; por outro lado, do esquecimento ou do recalcamento que me assegurará a vida enquanto sobrevivência. Eis, em se tratando do testemunho, como se verá, o fulcro da questão…

«[…] o Pai, com P maiúsculo, nunca é apenas um pai, mas antes o pai morto, o pai como portador de um significante, significante em segundo grau, que autoriza e fundamenta todo o sistema dos significantes, e que faz com que o primeiro Outro, isto é, o primeiro sujeito a quem o indivíduo falante se dirige, seja, ele mesmo, simbolizado. É unicamente no nível do Outro, do Outro da lei propriamente dita, e de uma lei […] encarnada, que o mundo articulado, humano, pode adquirir [a] sua dimensão própria.»[11]

Ora, a descoberta de que aqui se trata é a de que alguma coisa mexe com a mãe, a mobiliza enquanto Outro que dá ou recusa a presença ou a ausência:

«A pergunta é: qual [é] o significado? O que quer essa mulher aí? Eu bem gostaria que fosse a mim que ela quer, mas está muito claro que não é só a mim que ela quer. Há outra coisa que mexe com ela – é o x, o significado [do seu desejo, para mim]. E o significado das suas idas e vindas é o falo»[12].

Ele imporá, nesse processo, a necessidade da inscrição da metáfora paterna e/ou do Nom-du-Père, ao mesmo tempo que abre, quer para o recalcamento, e portanto para a «formação do inconsciente» - expressão que dá título a um dos seminários de Lacan - quer, do mesmo passo, para o sujeito produzido, pela via do seu acesso à linguagem, enquanto ser barrado ou clivado: «o significante chega […] no Outro. […] O desejo […] encontra o Outro, disse-lhes eu, não como uma pessoa, mas […] como tesouro significante, como sede do código»[13]: «o pai é – portanto – um significante que substitui um outro significante», no decurso da primeira dialéctica das simbolizações da criança: «a função do pai no complexo de Édipo é [a de] ser um significante que substitui um primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno […] o pai vem no lugar da mãe», pela via da descoberta do desejo da mãe como desejo (do) Outro.

«Ora, com o falo, trata-se da função mais geral que existe. Permitam-me uma fórmula concisa, que lhes parecerá muito audaciosa, mas à qual não teremos de voltar se vocês tiverem a bondade de admiti-la por um instante por seu uso operacional. Assim como [...], no interior do sistema significante, o Nome-do-Pai tem a função de significar o conjunto do sistema significante, de autorizá-lo a existir, de fazer dele a lei, direi que, frequentemente, devemos considerar que o falo entra em jogo no sistema significante a partir do momento em que o sujeito tem de simbolizar, em oposição ao significante, o significado como tal, isto é, a significação. [...] Esse falo é velado e permanecerá velado até ao fim dos séculos, por uma razão simples: é que ele é um significante último na relação do significante com o significado. Com efeito, há pouca probabilidade de que venha jamais a revelar-se senão em sua natureza de significante, ou seja, de que venha realmente a revelar, ele mesmo, aquilo que, como significante, ele significa.»[14]

O Falo só pode ser, portanto, no momento em que vem a desempenhar a sua função de instaurador do sistema da linguagem na sua «existência», ainda e já imaginário: ele insere-se precisamente, na sua autonomia, tal como se verá já a seguir, no horizonte de uma relação projectiva. Com efeito, a descrição que Lacan nos fornece da relação de forças e da experiência em que a triangulação edipiana assenta diz-nos o seguinte: «O que é esse medo da castração? Por que vértice abordá-lo? Nós o abordamos na primeira experiência do complexo de Édipo, mas sob que forma? Como uma represália no interior de uma relação dual‑agressiva. Essa agressão parte do filho, na medida em que o seu objeto privilegiado, a mãe, lhe é proibido, e se dirige ao pai. E retorna para ele em função da relação dual, uma vez que ele projeta imaginariamente no pai intenções agressivas equivalentes às suas, mas que têm como ponto de partida as suas próprias tendências agressivas.» [15] Eis, pois, que é precisamente pela projecção (ou pelo transitivismo infantil) daquela inicial agressividade[16] inerente à relação dual-narcísica, que o Édipo atingirá, também, diz Deleuze, o ponto da sua auto-crítica. Ele será já, nesse ponto, da ordem da «ficção» como nos diria Gilles Deleuze, a propósito de Lacan:

«Mas é também aqui que o trabalho de Lacan se apresenta em toda a sua complexidade, porque ele não encerra o inconsciente numa estrutura edipiana. Mostra, antes que o Édipo é imaginário, apenas uma imagem, um mito; e que essa ou essas imagens são produzidas por uma estrutura edipianizante; que essa estrutura só actua na medida em que reproduz o elemento da castração que, esse sim, não é imaginário mas simbólico. São estes os três grandes planos de estruturação, que compreendem os grandes conjuntos molares: […] e todos os três são necessários, precisamente para levar o Édipo ao ponto da sua auto-crítica. Levar o Édipo a esse ponto foi o que Lacan fez. […] Mas o que é o ponto de auto-crítica? É aquele em que a estrutura, para lá das imagens que a preenchem e do simbólico que a condiciona na sua representação, mostra que o seu reverso é um princípio positivo de não-consistência que a dissolve.»[18]

Esse princípio positivo de não consistência poderia ver-se, em Freud, na relação que o superego mantém com o id e, em Lacan, no facto de que, se por um lado, a relação entre imaginário e simbólico é uma relação de controlo e de fixação, por outro lado, o imaginário jamais se reduzirá às determinações impostas pelo simbólico. Vê-lo-emos mais adiante. Por outro lado, se o Nome-do-Pai «tem a função de significar o conjunto do sistema significante, de autorizá-lo a existir, de fazer dele a lei», verifica-se também que, para Lacan, isso se dá no interior do sistema significante e que é tendo, também, isso em conta que se pode compreender a afirmação deleuziana de que se trata, aqui, de levar o Édipo ao ponto da sua auto-crítica. Ler-se-ia, de resto, n’O Anti-Édipo: «o inconsciente da esquizo-análise não conhece pessoas, conjuntos ou leis: imagens, estruturas ou símbolos. É órfão, anarquista e ateu. […] Não é estrutural nem simbólico, porque na sua produção e até na sua inorganização, a sua realidade é o Real. Não é representativo, mas simplesmente maquínico e produtivo»[19].

Ora, dir‑nos-ia, por seu lado, Lacan: «[…] vocês não podem absolutamente deixar de ver na célebre frase de Picasso, Eu não procuro, acho, o que é o achar, o trobar dos trovadores [...], de todas as retóricas, que toma a dianteira em relação ao procurar. É claro, o que é achado é procurado, mas procurado [já] nas vias do significante. Ora essa busca é, de alguma forma, uma busca antipsíquica [...]»[20]. Deveríamos, aqui, perguntarmo-nos: porquê «anti-psíquica»? Precisamente porque o que é procurado por essa via – a do significante – que não é senão a via daquele reenvio entre significantes a que toda a interpretação interminavelmente se abre, (pela reversibilidade do «significado» em significante: «o dicionário […só] pára em Deus»[21], como nos diria Barthes) – é, afinal, procura do que seria sempre anterior e interior, anterior e condição de possibilidade do efeito constitutivo de qualquer Significante (maiusculado).

Já anterior e interior, e em cuja abertura ele se inscreverá, irremediavelmente, no e para o sujeito clivado (que, enquanto tal, se vê, para sempre, privado de o re-encontrar, na forma do «o que»)[22]. E, nessa medida, trata-se, na arte, de uma procura des-simbolizante, projectada a partir do pano de fundo de uma certa irredutibilidade do (real-)imaginário ao simbólico que, com a nossa morte impossível necessária, se lhe imporia. Seria, também por aqui que se poderia retomar o que nos afirmaria Roland Barthes, em o Prazer do Texto: «o texto é (deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao Pai Político»[23]; há, portanto, quanto àquela relação dual-agressiva em que o simbólico surgiria como exigência e como inter-ferência, que prestar uma suplementar atenção. Como nos diz Jacques Lacan, em «Au-delà de l’imaginaire, le symbolique», em consonância com o que, a propósito da crítica derridiana do conceito fenomenológico do sentido da expressão, e da estrutura testamentária do signo em geral, observámos já:

«En fin de compte, il y a entre le sujet-individu et le sujet décentré, le sujet au-delà du sujet, le sujet de l’inconscient, une espèce de rapport en miroir. Le moi est lui-même un des éléments significatifs du discours commun, qui est le discours inconscient. Il est en tant que tel, en tant qu’image, pris dans la chaîne des symboles. Il est un élément indispensable de l’insertion de la réalité symbolique dans la réalité du sujet, il est lié à la béance primitive du sujet. En cela, en son sens originel, il est dans la vie psychologique du sujet humain l’apparition la plus proche, la plus intime, la plus accessible, de la mort.»[24]

Nestes termos, a condição de possibilidade do sujeito-indivíduo é precisamente, por um lado, a sua divisão, o seu não menos constitutivo descentramento, a sua inicial ou primitiva abertura ou a sua inaugural hiância, o espaço em que se virá inscrever a sua ob-jectivação imaginária ou a sua individuação, a partir da imagem do corpo reunido:

«O que é um sujeito? Será alguma coisa que se confunde, pura e simplesmente, com a realidade individual que está diante de seus olhos, quando vocês dizem o sujeito? Ou será que, a partir do momento em que vocês o fazem falar, isso implica necessariamente uma outra coisa? Quero dizer, será que a fala é como que uma emanação que paira acima dele, ou será que ela desenvolve, que impõe, por si só, sim ou não, uma estrutura como aquela que tenho comentado longamente, à qual os habituei? – e que diz que, quando há um sujeito falante, não há como reduzir a um outro, simplesmente, a questão de suas relações como alguém que fala, mas há sempre um terceiro, o grande Outro, que é constitutivo da posição do sujeito enquanto alguém que fala, isto é, também como o sujeito que vocês analisam»[25].

É deste ponto de vista que é necessário pensar o Édipo:

Le complexe d’Oedipe veut dire que la relation imaginaire, conflictuelle, incestuese elle-même est vouée au conflit et à la ruine. Pour que l’être humain puisse établir la relation la plus naturelle, celle du mâle à la femelle, il fallut qu’interviennent un tiers, qui soit l’image de quelque chose de réussi, le modèle d’une harmonie. Ce n’est pas assez dire – il faut une loi, une chäine, une ordre symbolique, l’intervention de l’ordre de la parole, c’est à dire du père. L’ordre qui empêche la collision et l’éclatement de la situation dans l’ensemble est fondé sur l’existence de ce nom du père. J’insiste – l’ordre symbolique doit être conçue comme quelque chose de superposé, et sans quoi il n’y aurait pas de vie animale possible pour ce sujet biscornu qu’est l’homme.[26]

Ora, que o discurso comum seja o discurso do inconsciente, isso pressupõe que uma tal sobreposição se deu já. Deveria, então, ler‑se isto no duplo sentido de que: a) por um lado, é no discurso comum que se inscreve, como quereria mostrar a experiência analítica, o que relevaria do inconsciente e/ou da descentração; por outro lado: b) de que é dele que se trata, quanto ao que pertence à ordem daquela inconsciência desse inconsciente que o simbólico arrasta consigo. Nessa relação em espelho, o sujeito do inconsciente e o sujeito da linguagem colocam‑se, pois, pela via do que aqui se dá por inconsciente, em reenvio.

Aqui chegados poderíamos, retomando o que atrás se mostrou, quanto à inscrição da morte no presente vivo, que é antecipada, do lado da psicanálise, nessa abertura inaugural do meu ser fragmentário primitivo, fazendo-o para sublinhar o que haveria, no eu puro da fenomenologia, desta vez, de um «ele» que dele erradica toda a possibilidade de qualquer certeza apodíctica e, portanto, o mostrará já refém, quer do signo (e da linguagem na sua iterabilidade), quer do que a psicanálise designaria por Nom-du-Père, enquanto elemento, não apenas determinante da linguagem na sua existência, mas também enquanto significante. Com efeito, a descrição que Jacques Lacan nos fornece do momento edipiano, essencial à constituição do sujeito, implica, em «L’Autre et la psychose», quer no que toca ao testemunho, quer no que diz respeito ao outro, o seguinte:

«Essayons de pénétrer un peu la notion du témoignage. Le témoignage est-il lui aussi, purement et simplement, communication ? Sûrement pas. Il est pourtant clair que tout ce à quoi nous accordons une valeur en tant que communication, est de l’ordre du témoignage. La communication désintéressée n’est à la limite qu’un témoignage raté, soit quelque chose sur quoi tout le mond est d’accord. Chacun sait que c’est l’idéal de la transmission de la connaissance. Toute la pensée de la communauté scientifique est fondée sur la possibilité d’une communication dont le terme se tranche dans une expérience à propos de laquelle tout le monde peut être d’accord. L’instauraton même de l’expérience est fonction du témoignage. […] Le sujet humain désirant se constitue autour d’un centre qui est l’autre en tant qu’il lui donne son unité, et le premier abord qu’il a de l’objet, c’est l’objet en tant que objet du désir de l’autre[27]

O testemunho supõe, portanto, a dissensão no interesse, o desejo enquanto desejo do desejo do outro e a disputa, a luta actu(virtu)al por uma posição de reconhecimento e de aceitação, de acolhimento e de centralidade, cuja decisão envolverá sempre o terceiro, o Outro, no seu horizonte. O testemunho é sempre, simultaneamente, anterior e interior à comunicação, encarada no plano do acordo, e esta última, precisamente por isso, deve pressupô-lo, economicamente, como funcionando no seu horizonte: é essa, de resto, na versão psicanalítica, a medida do seu interesse, a sua lei, o seu princípio de funcionalidade. Com efeito, diz Lacan, «uma alteridade primitiva está inclusa no objecto, enquanto ele é primitivamente objecto de rivalidade e de concorrência. Ele não interessa senão enquanto objecto do desejo do outro»[28].

E a comunicação, a fala, é precisamente o que se destinaria a ultrapassá-la ou superá-la, ainda nos limites do que ela representa ou pressupõe de clivagem, no sujeito e no discurso, quer dizer, mesmo quando essa primitiva rivalidade nela deixa as suas marcas, transposta na sua própria superação. A relação narcísica, dual-agressiva, aquela que o imaginário pressupõe permanece, portanto, sempre simbolicamente reinscrita ou actu(virtu)almente presente. O testemunho é, por outras palavras, aquilo que precisamente o acordo encobre ou a que põe, transitoriamente, cobro, cobrando das partes em litígio uma partição, encontrando nelas uma sua concessiva (auto-)negação, sob o signo da imparcialidade:

«Cette base rivalitaire et concurrentiel au fondement de l’objet est précisément ce qui est surmonté dans la parole, pour autant qu’elle intéresse le tiers. La parole est toujours pacte, accord, on s’entend, on est d’accord – ceci est à toi, ceci est à moi, ceci est ceci, ceci est celà. Mais le charactère agressif de la concurrence primitive laisse sa marque dans toute espèce de discours, sur le petit autre, sur l’Autre, en tant que tiers, sur l’objet. Le témoignage, ce n’est pas pour rien qui ça s’apelle en latin testis, et qu’on témoigne toujours sur ses couilles. Dans tout ce qui est de l’ordre du témoignage, il y a toujours engagement du sujet, et, lutte virtuelle à quoi l’organisme est toujours latent.»[29]

Todo o discurso, mesmo o discurso comum, como diz Lacan, é da ordem do testemunho. Compreende-se, de resto, que seja assim que a psicanálise o vê. Mas a possibilidade de assim o conceber assinala nele uma dimensão que, por um lado, pressupõe a reinscrição de uma irredutibilidade do imaginário naquele simbólico que, na fala, lhe daria cobertura, o encobriria ou lhe poria cobro e, por outro, nos remete para a necessidade de justaposição ou de não-dissociação daquelas duas acepções latinas de que as palavras «testemunho» e «testemunha» derivaram: testis e superstes.

O terceiro – terstis – é sempre, também ele, em simultâneo, aquele segundo (o qual e) em torno do qual, primeiramente, todo o sujeito humano se constitui sem que, em nenhum momento, nessa tríade, se constitua a figura de uma unidade indivisa, plenamente presente, absolutamente coincidente consigo mesma, no espaço e no tempo. Somos sempre e já, simultaneamente, mais e menos do que um – é o que o próprio testemunho implica, aquilo de que se constitui, por sua vez, como testemunho, num testemunho do testemunho. Poder-se-ia, agora, retomar o que nos diz Derrida, em Morada:


«Permitam-me lembrar aqui uma espécie de generalidade essencial: não é a testemunha sempre um sobrevivente? Isso pertence à estrutura testemunhal. Apenas se a testemunha aí onde se viveu mais tempo que o que acaba de passar. Disto podem-se tomar exemplos tão trágicos ou patéticos como os sobreviventes dos campos de morte. Mas o que liga o testemunho à sobrevivência permanece uma estrutura universal, e cobre todo o campo elementar da experiência. A testemunha é um sobrevivente, o terceiro, o terstis como testis e superstes, aquele que sobrevive. Essa palavra sobrevivente deve ser tão exemplarmente insubstituível como a instância do instante a partir da qual fala, o instante da morte como insubstituível, como «a minha morte», a propósito da qual nenhum outro senão aquele que morre pode testemunhar. A minha morte, eu sou o único a poder testemunhá-la – na condição de lhe sobreviver.»[30]


3. A morte e a sobrevivência – uma morte ao espelho da outra.

Sobreviver pressupõe, portanto, a necessidade da (im)possiblidade do testemunho a partir de um presente que nunca se deu como tal. No instante da inserção do simbólico que, na versão lacaniana, se dá como sobreposição à abertura primitiva, inerente à relação dual‑agressiva que o imaginário supõe, o eu é, diz Lacan, lembremo-lo, não apenas (a)colhido na cadeia dos símbolos, mas também, «na vida psicológica do sujeito humano, a aparição mais próxima, mais íntima, mais acessível da morte»[31], como se viu atrás.

Por outro lado, se é a partir da «projecção imaginária de intenções agressivas equivalentes às suas – mas que têm como ponto de partida as suas próprias» - que, na criança, o medo da castração tem lugar é, por outro lado, necessário – como se compreende, nesse mesmo contexto – «para que haja alguma coisa que faz com que a lei seja fundada no pai, […] haver o assassinato do pai. As duas coisas estão estreitamente ligadas – o pai que promulga a lei é o pai morto, isto é, o símbolo do pai. O pai morto é o Nome-do-Pai, que se constrói sobre o conteúdo [do desejo da mãe]»[32]. A sua/nossa condição seria, portanto – em Nome-do-Pai – a de um sobrevivente.

«[…] no que concerne à satisfação do desejo, tudo depende do que acontece nesse ponto A[utre], inicialmente definido como lugar do código e que, já por si só, ab origine, pela simples realidade da sua estrutura significante, traz uma modificação essencial para o desejo no nível da sua transposição de significante. […] É preciso compreender que, já no nível mais radical, a partir do momento em que se fala com alguém, existe um Outro, um outro em si, como sujeito do código, e que já nos encontramos submetidos à dialéctica da «corneação» do desejo. Logo, tudo depende, como se constata, do que acontece nesse ponto de cruzamento A[utre], nesse nível de transposição.»[33]

Mas sobrevivente a uma morte e a partir de uma morte que, por um lado, nunca teve lugar como tal e, por outro, cuja iminência se prolonga e espectralmente refaz sem cessar. Todo o sujeito se construiria, assim, a partir de uma experiência inexperienciada e, por conseguinte, também como possibilidade de ficção e ficção possível, tal como se depreende do que nos diz Maurice Blanchot e Jacques Derrida não deixa de sublinhar, citando-o a partir de L’Écriture du desastre:

«Morrer quer dizer: morto já o estás, num passado imemorial, de uma morte que não foi a tua, que portanto, não conheceste nem viveste, mas sob a ameaça da qual te crês chamado a viver, esperando-a doravante do futuro […]. Escrever é não mais pôr no futuro a morte sempre já passada, mas aceitar sofrê-la sem a tornar presente e sem se lhe tornar presente a ela, saber que ela teve lugar, embora não tenha sido experienciada, e reconhecê-la no esquecimento que deixa e cujos traços que se apagam apelam a exceptuar-se da ordem cósmica, aí onde o desastre torna o real impossível e o desejo indesejável. Essa morte incerta, sempre anterior, atestação de um passado sem presente, não é nunca individual, do mesmo modo que transborda o todo»[34].

Ora, não seria justamente a esta luz que seria preciso ler o pressuposto barthesiano de uma dessimbolização na arte? Diz-nos Roland Barthes, em «Cette vieille chose, l’art…»:

«Je ne veux pas, dit Rauschenberg, qu’une toile ressemble à ce qu’elle n’est pas. Je veux qu’elle ressemble à ce qu’elle est». La proposition est agressive dans la mesure où l’art s’est toujours donné pour un détour inévitable par lequel on doit passer pour rendre la vérité de la chose. Ce que le pop art veut, c’est désymboliser l’objet, lui donner la matité et l’entêtement obtus d’un fait (John Cage : «L’objet est fait, non symbole»). Dire que l’objet est asymbolique, c’est nier qu’il dispose d’un espace de profondeur ou d’avoisinement, à travers lequel son apparition puisse propager des vibrations de sens : l’objet du pop art (ceci est une vraie révolution de langage) n’est ni métaphore ni métonymie ; il se donne coupé de ses arrières et de ses entours ; en particulier, l’artiste ne se tient pas derrière son œuvre, et lui-même est sans arrière : il n’est que la surface de ses tableaux : aucun signifié, aucune intention, nulle part.»[35]

Observemos, antes de mais, que a referência de Blanchot – e que, desta vez, Derrida omite na sua citação – é, no trecho acima, precisamente a psicanalítica. Lê-se, a seguir:

«Fora de tudo, fora do tempo, ela [«esta morte incerta, sempre anterior»] não poderia ser explicada, assim pensa Winnicott, somente pelas vicissitudes próprias à primeira infância, quando a criança, privado de «eu», sofre de estados perturbantes [bouleversants] (as agonias primitivas) que ela não pode conhecer uma vez que ainda não existe, que se produziriam portanto sem ter tido lugar, o que conduz mais tarde o adulto, numa recordação sem recordação, pelo seu eu fissurado, a esperá-los (seja por desejá-los, seja por temê-los) da sua vida que se completa ou se abate [ou s’effondre]»[36].

E isto mesmo que, para Blanchot, se trate de «uma aplicação ficcional [fictive] destinada a individualizar o que não poderia ser ou ainda [destinada] a fornecer uma representação do irrepresentável»[37]. Essa morte transborda o todo na medida em que, por um lado, lhe é irremissivelmente anterior e exterior e, por outro lado, lhe é simbolicamente irredutível, uma vez que, sem o simbólico, o mundo perderia a sua curvatura, o contorno da sua presente e projectada inteireza, o limite uno e nu da sua ob-jectivação, a bainha do seu projectivo em-si-mesmamento, para vir a distender-se no rompimento de uma presença sem presente. Como nota Lacan:

«Há uma ambiguidade fundamental no uso que fazemos do termo desejo. Ora nós o objectivamos – e temos de fazê-lo, nem que seja só para falar dele – ora, pelo contrário, nós o situamos como sendo primitivo em relação a qualquer objectivação. Na realidade, em nossa experiência, o desejo não tem nada de objectivado. […] a maior parte daquilo sobre que o sujeito crê ter [um]a certeza reflectida é para nós apenas a disposição superficial, racionalizada, secundariamente justificada, daquilo que seu desejo fomenta, que dá a curvatura essencial ao seu mundo e à sua acção.»[38]

Essa experiência inexperienciada supõe também, por outro lado, para Blanchot, a exceptuação da ordem cosmológica, uma vez que ela não é susceptível, na sua irredutibilidade ao simbólico, de se integrar em e/ou constituir qualquer mundo, na sua integr(al)idade. Nessa medida, ela supõe ainda a abertura, o inacabamento e a insuficiência, bem como a inessencialidade que marcam um certo (real-)imaginário. Com efeito, ser-se simultaneamente «mais» e «menos do que um» não seria, afinal o que, por todo o lado por onde um certo pensamento do exterior, um certo ex-capere, subtende e subverte o sentido uno e nu da individualidade, encontraria os seus equivalentes naquela necessária reperspectivação do conceito psicanalítico de uma tão necessária quanto re(des)centradora articulação entre o imaginário e o simbólico se, como nos diria Philippe Lacoue-Labarthe, em «L’‘echo du sujet’»?

«Ce qu’il faudrait marquer, avec et contre Lacan, en remontant de Lacan à Reik, c’est qu’il y a un effondrement constant, mais sourd de l’imaginaire. L’imaginaire détruit au moins autant qu’il aide à construire. Plus exactement, il ne cesse de pervertir ce qu’il construit. Par où s’explique peut-être que le sujet au miroir est d’abord un sujet en ‘désistement’ (et que, par exemple, il ne regagnera jamais sur l’insuffisance mortelle à quoi le voue, selon Lacan, sa prématuration. […] La figure n’est jamais une […] pas d’essence de l’imaginaire. Ce qu’engage à penser Reik, autrement dit, c’est que le sujet ‘désiste’ d’avoir à s’affronter toujours au moins à deux figures – ou à une figure au moins double) […] partition instabilisante ou déstabilisatrice du figural (qui confond certainement la distinction de l’imaginaire et du symbolique, et entame par la même occasion la négativité ou l’altérité absolue du ‘réel’…» [39]

A partir daqui, uma série de questões se poderiam desdobrar. Ensaiemos algumas. Por um lado, no âmbito da sua refracção teórica, tal como o pensamento, no século XX, se dispôs a encarar o fenómeno estético-literário. Com efeito, se, com e contra Lacan, se deve assinalar o facto de que o imaginário não cessa de perverter o que ele ajuda a construir; se o sujeito ao espelho não chega nunca a superar a sua mortal insuficiência ou a sua prematuração, não se nos tornaria necessário ver, quer no conceito de des-sublimação estética, no Herbert Marcuse de A Dimensão Estética, quer no de um lugar fundacional da «fantasia» em relação a todo o juízo, no Theodor Adorno de Minima Moralia, quer, finalmente, no de arte como des‑simbolização, no Roland Barthes de «Cette vieille chose, l’art…», formas conexas de implicar o testemunho e(m) ficção?

Formas que assim se alinhariam, de resto, por aquela anterior distinção formalista de um processo de desfamiliarização que, lido à luz de um pensamento do exterior que se guiasse pela crítica deleuziana do familiarismo psicanalítico, nos deveria surgir, hoje, como uma espécie de antecipatória abertura? Lê‑se, em A Dimensão Estética:

A transcendência da realidade imediata destrói a objectividade reificada das relações sociais estabelecidas e abre uma nova dimensão da experiência : o renascimento da subjectividade rebelde. Assim, na base da sublimação estética, tem lugar uma dessublimação na percepção dos indivíduos – nos seus sentimentos, juízos, pensamentos ; uma invalidação das normas, necessidades e valores dominantes[40].

A imediatidade de uma relação com uma realidade sem «o real» é, na medida em que anterior e exterior a toda a mediação, a abertura de uma nova dimensão da experiência que, nessa medida, des-sublima, suspende ou «invalida», aquelas normas, necessidades e valores já inerentes a qualquer coisa que se pudesse ter por «o real». Recordemo‑nos, aqui, apenas a título de exemplo e num rápido alinhamento dos diversos lugares dessas mesmas intuição e suspensão do nome ou do símbolo, do que pela voz de Viktor Shklovsky, em «A Arte como Processo», ficara, já em 1919, em anexo ao conceito de estranhamento, apontado:

«E eis que para se ter a sensação da vida, para sentir que a pedra é pedra, existe aquilo a que se chama a arte. A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção […]; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se «tornou», não interessa à arte.»[41]

Do mesmo modo, a constatação adorniana – por exemplo em Minima Moralia – do carácter fundacional da «fantasia», no tocante à relação em que, incondicionalmente, assenta todo o juízo, alertava já para a necessidade da ponderação do seu lugar central:

«A fantasia, hoje atribuída ao recinto do inconsciente e proscrita no conhecimento [...] é a única que entre os objectos funda a relação em que incondicionalmente se origina todo o juízo : se for excluída, exorciza-se ao mesmo tempo o juízo, o próprio acto do conhecimento. Mas a castração da percepção mediante a instância de controlo que lhe nega toda a antecipação desejante, impele esta ao esquema da repetição impotente do já conhecido»[42].

E, coincidentemente, em Teoria Estética, a afirmação do quanto a obra supõe uma descentração:
«[...] a subjectividade, condição necessária da obra de arte, não é enquanto tal a qualidade estética. Só se torna esta através da objectivação; nessa medida a subjectividade na obra é exterior a si mesma»[43].

Neste sentido, a arte e a literatura suporiam, portanto, como nos diz Blanchot, a aceitação de um sofrer a morte sem a tornar presente, um saber que ela teve lugar embora não tenha sido experienciada, que é, precisamente, também o que estará em jogo na arte enquanto passagem para o exterior, sublinhada por Michel Foucault, nela indissociável do conceito de neutro:

«Tem-se o hábito de pensar que a literatura moderna se caracteriza por um redobramento que lhe permitiria designar-se a si própria; […] de facto trata‑se muito mais de uma passagem para o exterior. […] A literatura não é a linguagem aproximando-se de si própria até ao ponto da sua manifestação ardente, é a linguagem pondo-se maximamente longe de si própria; e se nesta posição de «fora-de-si», desvela o seu ser próprio, essa súbita claridade revela mais um afastamento que um retraimento, mais uma dispersão que um retorno dos signos sobre si próprios. O sujeito da literatura (o que nos fala nela e aquilo de que ela fala) não seria tanto a linguagem na sua positividade como o vazio onde ela encontra o seu espaço quando se enuncia na nudez do ‘eu falo’. O espaço neutro caracteriza nos nossos dias a ficção ocidental (é por isso que esta já não é nem uma mitologia nem uma retórica).»[44]

O movimento, na literatura moderna seria, portanto o da descentração, o da excepção de si (ex capere: literalmente, captar [d]o exterior), o de uma dispersão do signo que se organiza em torno do seu próprio vazio (do vazio enquanto regresso do novo, como dirá Barthes, em O Grão da Voz: «o vazio é, mais do que o novo, o regresso do novo (que é o contrário da repetição)»[45]), do neutro que ele supõe, na sua diferencialidade. Seria possível lê-la, a essa posição de «fora-de-si» da linguagem no espaço literário, sem ter em conta a contribuição de uma reflexão psicanalítica em que se viria, gradualmente, a depositar, naquelas margens em que a lingüística estrutural e a antropologia, a estética e a filosofia, a religião e a política se cruzam, a noção de um sujeito que pressupõe, em si mesmo, constitutivamente, a instância de um outro tomado na sua irredutibilidade?

A esse pensamento do exterior poderíamos ainda encontrá-lo, de resto, formulado, por exemplo, em «L’absence de livre», de Maurice Blanchot. Com efeito, pode, em L’Entretien infinit ler-se: «dessa escrita ausente do livro e no entanto em relação de alteridade com ele, pode dizer-se que ela permanece estranha à legibilidade, ilegível na medida em que ler é necessariamente entrar pelo olhar em relação de sentido ou de non‑sens com uma presença. A escrita, (pura) exterioridade, estranha a toda a relação de presença, como a toda a igualdade. […] A Lei é a própria escrita que renunciou à exterioridade do entre-dizer para designar o lugar do interdito»[46]. Em segundo lugar, outra das consequências da observação de Philippe Lacoue-Labarthe, em «L’echo du sujet» seria a de se nos tornar necessário, antes de mais, ter retrospectivamente presente que a exterioridade de que aqui se fala não se reduz àquela que para si reivindicaria ainda o pressuposto do todo. Dirá Barthes:

«Romance e História mantiveram estreitas relações no primeiro século que assistiu ao seu maior desenvolvimento. A sua ligação profunda, que permite compreender simultaneamente Balzac e Michelet, é, num e noutro, a construção de um universo autárcico, que fabrica ele próprio as suas dimensões e os seus limites, a sua população, a sua colecção de objectos e os seus mitos. Esta esfericidade das grandes obras do século XIX exprimiu-se através dos longos recitativos do Romance e da História, espécies de projecções planas de um mundo curvo e unido, cuja imagem degradada é apresentada nas suas espirais pelo romance-folhetim, aparecido na altura.»[47]

A exterioridade do mundo ficcional, em relação ao mundo real tal como a História o pensa, seria, aqui, cortada, segundo Roland Barthes, pelo pacto formal entre o escritor e a sociedade, aquele que, para a justificação do primeiro e a serenidade da segunda, a Narrativa consigo traz, por intermédio, quer do pretérito perfeito simples, quer da terceira pessoa, quer ainda, na descrição, do imperativo realista de um verosímil referencial que pressupõe como Barthes nos mostrava em O Efeito de Real, uma regressão[48]. Nesse caso, o elo de ligação entre o mundo fora do mundo, o mundo enquanto o objecto imaginário e aquele de que ele se exteriorizaria, enquanto objecto estético, re‑emergiria como relação neutralizada:

«[...] no Ocidente, como acabámos de ver, não há nenhuma arte que não aponte para a sua máscara. A terceira pessoa, tal como o pretérito perfeito simples, presta este serviço à arte romanesca e fornece aos seus consumidores a segurança de uma fabulação crível e no entanto incessantemente manifestada como falsa»[49].

Esse apontar da sua máscara – gesto silenciosamente eloquente de reflexão que se deveria supor bem enquadrado pelos imperativos realistas de quem igualmente renuncia a dizer «eu» – deveria ali articular-se, a partir da inscrição de uma distância estética a observar, como mostra Blanchot, com a «intrusão» da personagem no «ele» que fora a cobertura de uma narrativa que se quer contar a si mesma:

«Très vite, le «il» mystérieux de l’institution épique se divise : le «il» devient la cohérence impersonnelle d’une histoire (au sein plein et comme magique de ce mot) ; l’histoire se tient toute seule, préformée dans la pensée d’un démiurge et, existant par elle-même, il n’y a plus à raconter. Mais l’histoire bientôt se désenchante. L’expérience du monde désenchanté […] est celle qui dissipe l’histoire en lui opposant la banalité du réel – par où le réalisme se saisit pour longtemps de la forme romanesque qui devient le genre efficace de la bourgeoisie en progrès. [...] En même temps – et d’une manière visible – le ‘il’ marque l’intrusion du personnage: le romancier est celui qui renonce à dire ‘je’, mais délègue ce pouvoir à d’autres ; le roman se peuple de petits «ego» tourmentés, ambitieux, malheureux, quoique satisfaits dans leur malheur.»[50]

O desencantamento da história vai aqui de par com o surgimento de um «ele» que, longe de se isentar de qualquer intromissão, representa o espaço da intrusão da personagem. Ora, não poderia, aqui, neste «ele», tratar-se já nem do lugar de reverência (ou de delicadeza), que Benveniste lhe reservava, no âmbito das formas de majestade: a personagem que conduz a focalização é uma de entre várias.

O lugar que se lhe concede é já tributário de uma reserva, de uma retracção, de um pas au-delà. Ao mesmo tempo, ao dar-se-lhe lugar, na narrativa, trata-se, ainda, de consagrar aí o lugar do testemunho pela via singular da exemplaridade do exemplo e pretensamente universal da confirmação (da abertura à «identificação») e, por conseguinte, de tudo menos de a ultrajar, de pura e simplesmente a aniquilar: convocá-la não é, portanto, também, simplesmente rebaixá-la ou desprezá-la, mas reconhecer-lhe uma existência, mesmo que a perder de vista... Não significará pois, essa intrusão, já a irrupção do neutro na instância do terceiro dito excluído? De que se trata, no neutro[51]? Ou, como diria, por seu lado, Blanchot:

«Le «il» narratif, qu’il soit absent ou présent, qu’il s’affirme ou se dérobe, qu’il altère ou non les conventions de l’écriture – la linéarité, la continuité, la lisibilité – marque ainsi l’instrusion de l’autre – entendu comme neutre – dans son étrangeté irréductible, dans sa perversité retorse. L’autre parle. Mais quand l’autre parle, personne ne parle, car l’autre, qu’il faut se garder d’honorer d’une majuscule qui le fixerait dans un substantif de majesté, comme s’il avait quelque présence substantielle, voire unique, n’est précisément jamais seulement l’autre, il n’est plutôt ni l’un ni l’autre, et le neutre qui le marque le retire des deux, comme de l’unité, l’établissant toujours au de-hors du terme, de l’acte ou du sujet où il prétend s’offrir. La voix narrative (je ne dis pas narratrice) tient de là son aphonie.»[52]

Portanto, por um lado, se a história se desencanta ela permanece, contudo: a) por um lado, como curso do mundo dito pelo indivíduo[53] – mesmo quando se trata de uma personagem que, embora se não nos dê como narrador, se constitui como, «[...] o centro a partir do qual a perspectiva do relato se organiza: tudo é visto desse ponto de vista. Há então um «eu» privilegiado, mesmo que seja o de uma personagem evocada na terceira pessoa, que toma muito cuidado para não ultrapassar as possibilidades do seu saber e os limites da sua colocação: é o reino dos embaixadores de James» [...][54].

Mas por outro lado: b) esse desencantamento coincide com o estilhaçamento ou a explosão do homem essencial no plural da sua histórica contingência, designando, então, a narrativa romanesca, nesse seu gesto ostensivo de auto-referência como ficção, a sua própria e necessária impossibilidade.[55] A narrativa romanesca cometeria ou incorreria, então, num auto-desmentido, numa auto-denúncia que parece inflectir o sentido da ancoragem daqueles seus anteriormente pressupostos imperativos, ditos «realistas». Quando o outro fala ninguém fala, verdadeiramente, porque «ele» não é nunca apenas «o outro», mas, precisamente, o que o neutraliza e mantém em aberto, na sua intrusão. O gesto da voz narrativa deve, agora, na deposição ou designação da sua máscara, ser interpelativo daquele discurso que, mesmo na História, não prescinde da Narração. Como observará ainda Blanchot:

«Nous voyons donc que le «il» s’est scindé en deux : d’une part, il y a quelque chose à raconter, c’est le réel objectif tel qu’il se donne immédiatement sous un regard intéressé et, d’autre part, ce réel se réduit à être une constellation de vies individuelles, de subjectivités, «il» multiple et personnalisé, ‘ego’ manifeste sous le voile d’un «il»d’apparence. Dans l’intervalle du récit s’entend, avec plus ou moins de justesse, la voix du narrateur, tantôt fictif, tantôt sans masque. Q’est-ce qui a cédé dans cette construction remarquable ? Presque tout.»[56]

E isto porque, por um lado, o que nesse intervalo do relato se insinua é o facto de o gesto «objectivo» da renúncia à auto-referência – a dizer(-se) «eu» – se ver, por sua vez, arrastado, acolhido e preso, na historicidade, na posicionalidade e na difracção pressupostos por uma rede ou uma constelação das subjectividades. O que por ele irrompe é, portanto, a insustentação da coerência impessoal de uma história que a si mesma se quisesse contar.

Com efeito, se todo o «ele» é afinal um «eu» no exercício da sua própria distância, não seria, então, por um lado, necessário pôr a descoberto o «eu» que deveria haver em todo o «ele» e, por outro, o que haveria de «ele» em todo o «eu»? Eis, pois, no que se traduz a intrusão da personagem: o que ela assim nos diz, pela organização da perspectiva narrativa feita a partir do seu olhar, prende-se com a foraclusão daquela distância que a «terceira pessoa» prometia e se diria que garantiria: «[...] nos clássicos – e sabemos que para a escrita o classicismo se prolonga até Flaubert – o afastamento da pessoa biológica atesta uma instalação do homem essencial»[57].

Se não há «eu» que não seja, mesmo tido a sós consigo mesmo, no silêncio do seu auto‑recolhimento ou no seu pressupostamente irredutível ensimesmamento, já cindido pela sua susceptibilidade de expressão (e pela idealidade da sua separação, da sua redução do mundo) ou pela estrutura testamentária do signo[58], na «il»– imitação bem como na i-limitação do limite que destaca ou dissocia o «presente vivo» do sentido da sua limitação viva, como também nos diria Blanchot... Se a história como saber absoluto de si na presença imediata a si se retrai e afasta, naquela sua morte que o signo também pressupõe, sem contudo a poder tornar presente, não será também isso, o sentido dessa necessária impossibilidade que aquela ostensão da sua própria máscara, protagonizada, como nos diz Roland Barthes, pela arte, nos traz?

«O Romance é uma Morte; faz da vida um destino, da recordação um acto útil, e da duração um tempo dirigido e significativo. Mas esta transformação só se pode realizar aos olhos da sociedade. É a sociedade que impõe o Romance, isto é, um complexo de signos, como transcendência e como história de uma duração. É pois pela evidência da sua intenção, apreendida na clareza dos signos romanescos, que se reconhece o pacto que liga com toda a solenidade o escritor à sociedade. O pretérito perfeito simples e a terceira pessoa do Romance não são mais que esse gesto fatal pelo qual o escritor aponta a dedo a máscara que usa.»[59]

Perspectivada, pois, a modernidade como época metafisicamente marcada pelas aporias da filosofia do sujeito (e de uma psicanálise que, em Véus... «à vela», Derrida lhe reúne[60]), ser-nos-ia, aqui, oportuno observar o modo como, do ponto de vista do romance, elas têm lugar, no espaço daquilo que Maurice Blanchot designará por voz narrativa e, em particular, como uma insituável instância do neutro, que faria entrar a linguagem em «uma possibilidade de dizer que diria sem dizer o ser e já não o negaria [...], aquela que se realiza ordinariamente em toda a forma de expressão. A voz narrativa é, nesta relação, a mais crítica que se pode, inaudita [inentendue], dar a escutar»[61].

A mais crítica, quanto mais não fosse, porque uma simples «negação do ser» se veria também colhida pela afirmação daquilo de que, como tal se, ela própria constituiria como negação. Aquele gesto fatal pelo qual o escritor aponta a dedo a máscara que usa realiza-se, pois, duplamente, fora de qualquer horizonte puramente negativo: por um lado, pelo pretérito perfeito porque, não designando já um tempo, ele assinala uma criação, no sentido onto(teo)lógico do termo, graças à qual a realidade se enfraqueceria e a narrativa, pelo verosímil, escaparia ao terror de uma fala sem limite. É o que nos dirá Roland Barthes, em «A Escrita do Romance»:

«O pretérito perfeito simples significa uma criação: isto é, assinala-a e impõe-na. Mesmo empenhado no mais sombrio realismo, ele tranquiliza, porque, graças a ele, o verbo exprime um acto fechado, definido, substantivado, a Narrativa tem um nome, escapa ao terror de uma fala sem limite: a realidade enfraquece-se e familiariza-se, entra num estilo, não excede a linguagem; [...]. Percebe-se, então o que o pretérito perfeito simples do Romance tem de útil e de intolerável: é uma mentira evidente; traça o campo de uma verosimilhança que deve desvendar o possível no próprio tempo em que o designa como falso. A finalidade do Romance e da história narrada é alienar os factos: o pretérito perfeito simples é o próprio acto de posse da sociedade sobre o seu passado[62] e o seu possível. Institui um contínuo crível mas cuja ilusão é ostentada, é o termo último de uma dialéctica formal que veste o facto irreal com as roupagens sucessivas da verdade e depois da mentira denunciada. [...]»[63]

A constatação desse enfraquecimento da realidade poderia também ser seguida em Le Différend, de Jean-François Lyotard, logo que se trata de ver a narrativa como «género do discurso no qual a heterogeneidade dos regimes de frases e mesmo aquele dos géneros dos discursos melhor se fazem esquecer»[64] e em que os diferendos aparentemente se reduzem, graças à imposição de um fim ao tempo da diegese: «o seu termo faz sentido, organiza retroactivamente os acontecimentos contados. A função narrativa é redentora por si mesma. Ela faz como se a ocorrência, com a sua potência de diferendos, possa completar-se, como se houvesse uma palavra final»[65].

Fá-lo graças à intervenção dos seus «operadores diacrónicos de sucessividade» na «domesticação do des-encadeamento do agora»[66]. Por outro lado, esse gesto realiza-se também pela terceira pessoa porque, não sendo agora susceptível de ser tomada por uma forma estritamente denotativa de isenção e de ausência, ela designa, afinal, a suposição dessa mesma possibilidade como falsa e ilusória, ao associar-se à irrupção daquela constelativa dispersão de egos de que o romance dito realista, gradualmente, se povoará, num processo de dispersão focal e de extenuação que o nouveau roman contra ele levaria ao seu limite.[67]. Entre pretérito perfeito e terceira pessoa, atravessando-os e, ao mesmo tempo, desconstituindo-os, é precisamente a morte que virá a inscrever-se na narrativa e dar-se, enquanto experiência «inexperienciada», como o impossível necessário[68]:

«Talvez se deva insistir neste ponto difícil e sem dúvida decisivo, neste lugar de decisão passiva e apaixonada. Porque na hipótese […] até de uma ficção literária pura e simples, pois bem, o acontecimento descrito, o acontecimento de referência terá tido lugar, mesmo que na sua estrutura de experiência «inexperienciada», como morte sem morte que não se poderia dizer nem entender de outro modo, isto é, através de uma fantasmaticidade, portanto segundo uma espectralidade (phantasma é espectro em grego) que é a sua própria lei. Essa lei espectral constitui e estrutura simultaneamente o referente que subsiste [demeure] dessa narrativa; ela excede a oposição entre o real e o irreal, o actual e o virtual, o efectivo e o fictício. […] Essa estrutura constituinte é uma fractura desestruturante. É a condição comum à literatura e à não literatura, à paixão pela literatura bem como essa paixão sem mais à qual uma literatura não pode deixar de se referir. Aí, em todo o caso, a fronteira entre a literatura e o seu outro torna-se indecidível.»[69]

Dessa experiência «inexperienciada», dessa morte que teve já lugar, e de que resulta, por outro lado, a sua transposição, como morte (im)possível para a própria vida que lhe sobrevive, dessa criança que se matou para que pudesse viver, acendendo à linguagem e ao pensamento que a não podem acolher a não ser sob a forma do esquecimento, do conceito ou da frase, dessa condição comum à literatura e à não literatura, comum «à paixão da literatura e à paixão sem mais à qual uma literatura não pode deixar de se referir», como acentua Derrida, não nos resta ou é acessível senão o que releva do espectro e da espectralidade, da «fantasmaticidade» que se afirma, ao mesmo tempo e constitutivamente, enquanto lei, lugar de indecidibilidade entre a literatura e o seu outro, entre a ficção e a efectividade, o real e o irreal, o actual e o virtual. É «essa paixão, tal como é descrita no instante da minha morte[70] que sustenta a filosofia»[71]. É, de resto, através do discurso da psicanálise que Blanchot, com alguma insistência, a procura:

«La pensée ne peut accueillir cela qu’elle porte en elle et qui la porte, sauf si elle l’oublie. J’en parlerai sobrement, utilisant (peut-être en les falsifiant) des remarques fortes de Serge Leclaire. [...] Cet enfant, où est-il ? Selon le vocabulaire de la psychanalytique […] il y aurait lieu de l’identifier à la «représentation narcissique primaire», ce qui veut dire qu’elle a statut de représentant à jamais inconscient, et par conséquent pour toujours indélébile. D’où la difficulté à proprement parler «folle» : pour ne pas rester dans les limbes de l’infans et de l’en-deçà du désir, il s’agit de detruire l’indestructible et même mettre fin (non pas d’un coup, mais constamment) à ce à quoi on n’a pas, n’a jamais eu, ni aura accès – soit la mort impossible nécessaire. [...] Il reste que si la mort, le meutre, le suicide sont mis en oeuvre et que si la mort s’amortit elle-même en devenant puissance impuissante, plus tard négativité, il y a, à chaque fois qu’on avance à l’aide de la mort possible, la nécessité de ne pas passer outre à la mort sans phrases, la mort sans nom, hors concept, l’impossibilité même.»[72]


Seria precisamente por aí irredutível e necessariamente permanecermos, nessa morte sem frases, sem nome, fora de todo o conceito, que é, contudo, a sua condição de possibilidade, de cada vez que avançamos graças à «morte possível» – visto que é essa espectral possibilidade, enquanto possibilidade de um fim e de um limite que, fechando a série dos acontecimentos, confere também sentido a todo o «avanço» – que todo o testemunho participa da ficção, sem a ela, necessariamente, pertencer, dado que isso equivaleria a afirmar um valor de verdade que a crise do fundamento se encarregou de desmentir, assim como toda a «ficção» o pressupõe, sem a ele se reduzir: «Eu acrescentaria uma nota, uma interrogação: a criança de Serge Leclaire, o infans glorioso, terrífico, tirânico, que se não pode matar na medida em que se não acede à vida e a uma fala senão não cessando de a enviar à morte, não seria ela precisamente a criança de Winnicott, aquela que antes de viver, sossobrou no morrer, a criança morta que nenhum saber, nenhuma experiência poderia fixar no passado definitivo da sua história?»[73].

Com efeito, esse passado é definitivo e definitivamente infixável também em todo e qualquer passado definitivo da história de algum conceito que o buscasse, de qualquer saber que o procurasse, porque insusceptível de rememoração, na medida em que é sua condição de possibilidade. O que levará, por exemplo, José Saramago, a propósito da metaficção historiográfica e da sua relação com a História, bem como, em particular, a propósito daquela espécie de narrador a que, no seu caso, se deveria, no romance histórico, dar prioridade, a afirmar:

«Reside aqui a meu ver a questão essencial. Conhecemos o narrador que procede de maneira imparcial, que vai dizendo o que acontece, conservando sempre a sua própria subjectividade fora dos conflitos de que é espectador e relator. Há, porém, um outro tipo de narrador muito mais complexo, um narrador a todo o tempo substituível, que o leitor reconhecerá ao longo da narrativa, mas que muitas vezes lhe dará a impressão de ser outro. Este narrador instável poderá mesmo ser o instrumento ou o sopro de uma voz colectiva. Será igualmente uma voz singular que não sabe de donde vem e se recusa a dizer quem é, ou usa de arte bastante para levar o leitor a identificar-se com ele, a ser de algum modo, ele.»[74]

Enquanto tem, para si próprio presente a condição de possibilidade da negatividade e do acesso à linguagem, esse narrador situar-se-ia e ao mesmo tempo (des)constituir-se-ia, assim, no que se daria, necessariamente, como um seu limite transcendental. Diz-nos Blanchot: «o que perfaz o enigma é que, precisamente matando-me, «eu» não «me» mato, mas, revelando de algum modo o segredo, alguém (ou alguma coisa) se serve de um eu a desaparecer – na figura de Outro – para lhe revelar e revelar a todos o que no mesmo instante escapa: a saber […] o passado imemorial da morte antiga. Não há morte agora ou futura (num presente a vir)»[75].

E não a há não só porque «nós não vivemos e não falamos senão porque a morte teve já lugar, acontecimento insituado, insituável, que, para se não tornar mudo no próprio falar, confiamos ao trabalho do conceito (a negatividade) ou ainda ao trabalho psicanalítico […]»[76], mas também porque toda a morte se volve, através dela, na iminência da morte, segundo a lei de uma espectralidade que nos reenvia sem cessar a essa morte antiga. A diferença entre um e outro dos narradores de Saramago estaria precisamente nisto: ao passo que o primeiro, sob os imperativos da História e, presuntivamente, do terceiro excluído, nos não dá conta de se representar a si mesmo a sua própria condição, mantendo-se, nos mais estreitos limites da sua própria alienação, afastado, afinal de qualquer possibilidade de identificação com os seus leitores, o outro bem poderia dizer, como o autor da História do Cerco de Lisboa:

«Não podendo reconstituí-lo, somos tentados – sou-o eu, pelo menos – a corrigi-lo. Quando digo corrigir o Passado não é no sentido de emendar os factos da História (não poderia ser essa a tarefa do romancista) mas sim, se se me permite a expressão, introduzir pequenos cartuchos que façam explodir o que até aí permanecera indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. Argumentar-se-á que se trata de um esforço inútil, uma vez que o que hoje somos não resultou do que poderia ter sido, mas do que efectivamente foi. No entanto, se a leitura histórica provocada pelo romance for uma leitura crítica, essa operação poderá provocar uma instabilidade, uma vibração temporal, uma perturbação, causadas pelo confronto entre o que sucedeu e o que poderia ter sucedido, como se saudavelmente, os factos começassem a duvidar de si próprios…» [77]

O que poderia ter sido, eis uma das coisas que está «hoje», no nosso horizonte, sempre em aberto, de uma sociedade dita da informação, a partir dessa experiência «inexperienciada». Nele se instala uma «vibrante temporalidade», que desintegra politicamente o passado instituído, na experienciação de um sujeito plural. Politicamente…

Pequenos cartuchos que façam explodir «o indiscutível» na vibração temporal de um presente que, ainda em presença, no diferimento que toda a correcção imposta por um sujeito temporalmente des-constituído supõe (e cuja incomensurabi-lidade nos instala na especulativa experienciação da abertura do sentido como necessidade política e necessidade do político), nos traz – num tempo em que o problema central da democracia e da sociedade de mercado parece ser, precisamente, o da relação com o outro, o da experiência do acontecimento ou o do acontecimento como experiência do propriamente inapropriável – um dos modos de pensar o romance como investido de um valor, não apenas de testemunho, mas também de exemplaridade, face à margem de insituabilidade do tempo a vir que a nossa experiência do presente … O que ele encenaria, não seria precisamente a experiência do outro, na sua incomensurabilidade?

[1] Note-se, a este respeito, a menção de Lacan, entre parêntesis, ao transitivismo infantil, já demonstrado por Charlotte Bühler, na seguinte passagem de «Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique», Écrits – I, Paris, Seuil, 1966, p. 97 : «Ce moment où s’achève le stade du miroir inaugure, par l’identification à l’imago du semblable et le drame de la jalousie primordiale (si bien mis en valeur par l’école de Charlotte Bühler dans les faits de transitivisme infantin) la dialectique qui dès lors lie le je à des situations socialement élaborées». Veja-se também, por exemplo, em «A Lógica da Castração : «A Fantasia para além do Princípio do Prazer»», As Formações do Inconsciente: o Seminário – livro 5, trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, pp. 244-247. Aí se trata da fantasia Bate-se em uma criança, na qual quem bate se queixa de lhe haverem, aquele a quem bate, batido: «a criança que está sendo espancada […] é um parente próximo, um irmãozinho ou uma irmãzinha, em quem o pai bate. […] Estamos antes do Édipo e mesmo assim o pai presente» (sublinhado nosso). Aquele que é apontado como autor da agressão, diz Lacan, «longe de assimilá-lo ao pai, convém situá-lo no para-além do pai, isto é, naquela categoria do Nome-do-Pai que tomámos o cuidado de distinguir das incidências do pai real». Esse gesto é, pois, signo e veículo de uma relação de continuidade, de não discernimento, entre a criança e o seu Outro.
[2] BARTHES, Roland, «‘L’Express’ vai mais longe com... Roland Barthes», O Grão da Voz: entrevistas – 1962-1980, trad. de Teresa Menezes e Alexandre Melo, Lisboa, Edições 70, 1982, p. 95 (sublinhado nosso).
[3] LACAN, Jacques, «Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique», Écrits – I, op. cit., p. 97.
[4] LACAN, Jacques, «A Lógica da Castração : «A Fantasia para Além do Princípio do Prazer»», As Formações do Inconsciente: o Seminário – livro 5, trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, pp. 247-248.
[5] LACAN, Jacques, «A Dialética do Desejo e da Demanda: «Tu és Aquele a quem Odeias»», op. cit., p. 512-513: «Que temos aí, no nível do Outro primário e das primeiras demandas? Temos o fenómeno a que se chamou dependência. Tudo o que acontece com o supereu materno articula-se em torno disso. […] Na realidade, há desde sempre a estrutura em dois patamares que vemos aqui, porque é preciso admitir desde a origem que, pelo simples facto de se tratar do significante, existem dois horizontes da demanda. […] mesmo por detrás da demanda mais primitiva, a do seio e do objeto que representa o seio materno, há o desdobramento criado na demanda pelo fato de ela ser demanda de amor, demanda absoluta, demanda que simboliza o Outro como tal, que distingue o Outro, portanto, como objeto real capaz de proporcionar uma dada satisfação, do Outro como objeto simbólico que dá ou recusa a presença ou a ausência […]» .
[6] LACAN, Jacques, «O Valor de Significação do Falo: «a Menina e o Falo»», op. cit., pp. 282-283.
[7] Ibidem, p. 97 (sublinhados nossos).
[8] LACAN, Jacques, «O Valor de Significação do Falo: As Máscaras do Sintoma», op. cit., p. 342: «O que constitui a demanda? Não vou refazer a dialética do Fort-Da. A demanda está ligada, antes de mais nada, a algo que está nas próprias premissas da linguagem, isto é, à existência de uma invocação, que ao mesmo tempo é princípio da presença e termo que permite repeli-la, jogo de presença e ausência. […] O objecto de que se trata é o parêntese simbólico da presença.»
[9] LACAN, Jacques, «A Lógica da Castração : A Metáfora Paterna», op. cit., pp. 180-181 (sublinhado nosso).
[10] LACAN, Jacques, «A Dialética do Desejo: «Os Circuitos do Desejo», op. cit.,p. 476.
[11] Ibidem, p. 474 (sublinhado nosso).
[12] LACAN, Jacques, «A Lógica da Castração : «A Metáfora Paterna», op. cit., p. 181.
[13] LACAN, Jacques, «A Lógica da Castração : «A Foraclusão do Nome-do-Pai»», op. cit., p. 154.
[14] LACAN, Jacques, «A Lógica da Castração : «A Fantasia para Além do Princípio do Prazer»», op. cit., p. 248-249 (sublinhados nossos).
[15] LACAN, Jacques, «A Metáfora Paterna», op.cit., p. 175 (sublinhado nosso).
[16] LACAN, Jacques, «A Dialética do Desejo: «Os Circuitos do Desejo»», op. cit., p. 483: «Lembrem-se, no caso do Homem dos Ratos, do episódio de cólera furiosa de que ele é tomado contra o pai, aos quatro anos de idade […]. Ele se atira ao chão, chamando-o de tu guardanapo, tu prato etc. […] A litania de substantivos mobilizada na ira do menino deixa bem claro que não se trata de saber se o pai é uma lâmpada, um prato, um guardanapo, mas de fazer o Outro descer à categoria do objeto, e de destruí-lo».
[17] BAILLY, A., Abrégé du dictionnaire Grec-Français, Paris, Hachette, 1901, p. 806 : «στιγμη: «um ponto, um nada, […] um instante»»; »στιγμός: «picada»» ; «στιζω: «imprimir uma marca com um instrumento agudo ou em brasa; tatuar, marcar com o ferro vermelho; imprimir marcas a golpes»».
[18] DELEUZE, Gilles, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia-I, trad. de Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 324.
[19] Ibidem, p. 250.
[20] LACAN, Jacques, O Seminário – Livro 7: A Ética da Psicanálise, trad. de António Quinet, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, pp. 149-150 (sublinhado nosso).
[21] BARTHES, Roland, O Grão da Voz, trad. de , Edições 70, 1982, p. 100.
[22] LACAN, Jacques, «A Dialética do Desejo: Os Circuitos do Desejo», As Formações do Inconsciente: o Seminário – Livro 7, op. cit.,p. 475: «O Outro não é, pura e simplesmente, o lugar desse sistema perfeitamente organizado. […] O Outro, o Pai, no caso, o lugar onde se articula a lei, está submetido, ele mesmo, à articulação significante e, mais do que submetido à articulação significante, é marcado por ela, com o efeito desnaturalizante que a presença do significante comporta».
[23] BARTHES, Roland, O Prazer do Texto, trad. de Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 98 (sublinhado nosso).
[24] LACAN, Jacques, «Au-delà de l’imaginaire, le symbolique : «questions à celui qui enseigne»», Le séminaire – livre II : Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, op. cit., p. 286 (sublinhado nosso).
[25] LACAN, Jacques, «A Lógica da Castração : «Os Três Tempos do Édipo»», As Formações do Inconsciente: o Seminário – livro 5, op. cit., pp. 185-186.
[26] LACAN, Jacques, «La dissolution imaginaire», Le séminaire – livre III : les psychoses – 1955-1956, op. cit., p. 111 (sublinhado nosso).
[27] LACAN, Jacques, «L’Autre et la psychose», op. cit., pp. 49-50.
[28] Ibidem, p. 50.
[29] Ibidem (sublinhado nosso).
[30] DERRIDA, Jacques, Morada: Maurice Blanchot, op. cit., pp. 43-44 (sublinhado nosso).
[31] LACAN, Jacques, «Au-delà de l’imaginaire, le symbolique : «questions à celui qui enseigne»», Le séminaire – livre II : Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, op. cit., p. 286.
[32] LACAN, Jacques, «A Lógica da Castração : A Foraclusão do Nome-do-Pai», As Formações do Inconsciente: o Seminário – livro 5, op. cit., p. 152 (sublinhado nosso).
[33] Ibidem.
[34] BLANCHOT, Maurice, L’ècriture du désastre, Paris, Gallimard, 1980, pp. 108-109, cit. in DERRIDA, Jacques, Morada: Maurice Blanchot, op. cit., pp. 50-51 (os primeiros sublinhado são nossos).
[35] BARTHES, Roland, «Cette vieille chose, l’art…», in MARTY, Éric (org.), Roland Barthes : œuvres complètes – III (1974-1980), Paris, Seuil, 1994, p. 1223.
[36] BLANCHOT, Maurice, L’ècriture du désastre, op. cit., p. 109.
[37] Ibidem.
[38] LACAN, Jacques, «Do Pequeno ao Grande Outro», O Seminário – Livro 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise, 1985, trad. de M. Christine Penot e António Luiz Quinet de Andrade, pp. 282-283 (sublinhado nosso).
[39] LACOUE-LABARTHE, Philippe, «L’«echo du sujet»», citado em DERRIDA, Jacques, «Désistance», Psyché où l’invention de l’autre, Paris, Galilée, 1987, pp. 631-632.
[40] MARCUSE, Herbert, A Dimensão Estética, trad. de Maria Elisabete Costa, Lisboa, Edições 70, 1999, p. 20.
[41] SHKLOVSKY, Viktor, «A Arte como Processo», in TODOROV, Tzvetan, Teoria da Literatura – II, trad de Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, p. 1987, pp. 81-82.
[42] ADORNO, Theodor, Minima Moralia, trad. de Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 2001, p. 124.
[43] ADORNO, Theodor, Teoria Estética, trad. de Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1982, p. 193.
[44] FOUCAULT, Michel, O Pensamento do Exterior, trad. de Miguel Serras Pereira, Fim de Século, [s. l.], 2002, p. 12 (sublinhado nosso).
[45] BARTHES, Roland, «Digressões», O Grão da Voz: entrevistas (1962-1980), op. cit., pp. 113-114.
[46] BLANCHOT, Maurice, «L’absence de livre», L’Entretien infinit, Paris, Gallimard, 1969, pp. 631-632 (sublinhado nosso).
[47] BARTHES, Roland, «A Escrita do Romance», O Grau Zero da Escrita / Elementos de Semiologia, trad. de Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1981, p. 31 (sublinhado nosso).
[48] E essa ‘regressão’ manifestar-se-ia naquela colusão entre o significante e o referente que isolava o realismo, no seio de uma modernidade cuja questão fundamental era a da des-integração do signo, decorrente do abissal sem-fundo instaurado pela mesma crise do fundamento, que estará, para Barthes, no horizonte do nouveau roman como ‘romance de extensão’, em que a profundidade simbólica se quereria abolida e o sujeito desconstituído.
[49] Ibidem, p. 35.
[50] BLANCHOT, Maurice, «La Voix narrative (le ‘il’, le neutre)», L’Entretien Infinit, op. cit., p. 559.
[51] BARTHES, Roland, «Le Neutre», Le Neutre : cours au collège de France (1977-1978), Paris, Seuil/Imec, 2002, p. 261 (sublinhado nosso) : «definiu-se como relevante do Neutro toda a inflexão que esquiva ou frustra [déjoue] a estrutura paradigmática, oposicional, do sentido, e visa, por consequência, a suspensão dos dados conflituais do discurso» (sublinhado nosso). Ne uter, portanto…
[52] BLANCHOT, Maurice, «La Voix narrative (le ‘il’, le neutre)», L’Entretien Infinit, op. cit., p. 564-656 (sublinhado nosso).
[53] Segundo ‘uma ideologia’ da narração romanesca que ‘supõe que o indivíduo com as suas particularidades e os seus limites basta para dizer o mundo, quer dizer, supõe que o curso do mundo permanece aquele da particularidade individual’.Ibidem.
[54] BLANCHOT, Maurice, «La Voix narrative (le ‘il’, le neutre)», L’Entretien Infinit, op. cit., p. 561.
[55] LACAN, Jacques, «A Dialética do Desejo: Os Circuitos do Desejo», As Formações do Inconsciente: o Seminário – Livro 5, op. cit., p. 475. Esse estilhaçamento lembra-nos, precisamente, aquela observação de Lacan, segundo a qual: «O Outro não é, pura e simplesmente, o lugar desse sistema perfeitamente organizado. […] O Outro, o Pai, no caso, o lugar onde se articula a lei, está submetido, ele mesmo, à articulação significante e, mais do que submetido à articulação significante, é marcado por ela, com o efeito desnaturalizante que a presença do significante comporta». Não deixa de ser interessante verificar a observação de Lacan que vem logo a seguir: «Aquilo de que se trata está longe de haver chegado a um estado de conceituação perfeita […]». E Jean-Claude Malevale nota, em «Construction et évolution du concept : «la pluralisation du Nom-du-Père»», La Forclusion du Nom-du-Père : le concept et sa clinique, Paris, Seuil, 2000, pp. 112-113 : «Tout porte à croire que la pluralisation du Nom-du-Père annoncé en 1963 aurait été corrélée à un rapprochement de sa fonction avec celle des objets a, afin de souligner que jouir selon la loi implique d’accepter un sacrifice de la jouissance» e, nas pp. 157-158, em «La forclusion restreinte» : «Au-delà des élaborations des années cinquante, fondées sur une conceptualisation du Nom-du-Père devenue caduque, aucunne perspective d’ensemble concernant la structure de la psychose n’a été développée par Lacan».
[56] BLANCHOT, Maurice, «La Voix narrative (le ‘il’, le neutre)», L’Entretien Infinit, op. cit., p. 561 (sublinhado nosso).
[57] BARTHES, Roland, «A Escrita do Romance», O Grau Zero da Escrita / Elementos de Semiologia, op. cit. p. 36 (sublinhado nosso).
[58] Estrutura testamentária que, a partir do vestígio retencional, o torna funerária e constitutivamente legível na sua ausência, legível como em memória de e, consequentemente, ainda em vida, como forma de sobrevivência, e portanto, ainda, como forma de morte.
[59] Ibidem, p. 38 (sublinhado nosso).
[60]DERRIDA, Jacques; CIXOUS, Hélène, Véus... «à vela», trad. de Fernanda Bernardo, Coimbra, Quarteto, 2001, pp. 72-73. Pronunciando-se a favor de «um pensamento do acontecimento sem verdade desvelada ou revelada, sem [o] falogocentrismo do véu grego-judaico-islamo-freudo-heideggereano-lacaniano, sem faloforia, [...] sem velamento-desvelamento do phallus». «O phallus é o conceito, não seremos capazes de nos opor a ele, assim como a uma ‘teoria sexual‘. A menos que façamos outra coisa, não podemos senão opor-lhe outro conceito ou outra teoria, um saber como um outro. Pouca coisa. Não basta dispor de conceitos, é preciso saber como os colocar, como se põem as velas, muitas vezes, para nos salvarmos, sem dúvida, mas na condição de saber como bem apanhar o vento nas velas [...]. O que justamente o saber não sabe, é o que acontece. Eis o que acontece».
[61] BLANCHOT, Maurice, «La Voix narrative (le ‘il’, le neutre)», L’Entretien Infinit, op. cit., p. 567 (sublinhado nosso).
[62] BARTHES, Roland, «A Escrita do Romance», O Grau Zero da Escrita / Elementos de Semiologia, op. cit., p. 31: «[...] retirado do francês falado, o pretérito perfeito simples [...] não tem já a função de exprimir um tempo. O seu papel é o de reduzir a realidade a um ponto, e de o abstrair da multiplicidade dos tempos vividos e sobrepostos a um acto verbal puro, livre das raízes existenciais da experiência e orientado por uma ligação lógica com [...] um movimento geral do mundo: [ele] visa manter uma hierarquia no império dos factos».
[63] Ibidem, pp. 33-34.
[64] LYOTARD, Jean-François, «Le signe d’histoire», Le différend, Paris, Minuit, 1983, pp. 218-219.
[65] Ibidem.
[66] Ibidem.
[67] BARTHES, Roland, «Literatura objectiva», Ensaios Críticos, trad. de António Massano e Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 1977, p. 92: «o romance de Robbe-Grillet permanece, pois, perfeitamente exterior a uma ordem psicanalítica: não se trata de modo nenhum, aqui, de um mundo da compensação e da justificação, onde certas tendências seriam expressas ou contra-expressas por certos actos; o romance anula deliberadamente todo o passado e toda a profundidade, é um romance da extensão, não da compreensão. [...] Essa recusa da psicanálise pode, aliás, ser expressa de uma outra maneira ao dizermos que, em Robbe‑Grillet, o acontecimento nunca é focalizado».
[68] DERRIDA, Jacques, Morada: Maurice Blanchot, op. cit., pp. 45-46 : «a morte é de uma só vez, a «impossível necessária», a impossibilidade e a necessidade atribuem-se e co-implicitam-se uma à outra, ao mesmo tempo sujeito e atributo uma da outra em definitivo».
[69] Ibidem, pp. 100-101 (sublinhado nosso).
[70] Ibidem, p. 21: ««paixão» conota a finitude, certamente […], mas também uma certa passividade na relação heteronómica com a lei e com o outro; como esta relação não é simplesmente passiva e incompatível com a liberdade e com a autonomia, trata-se de uma passividade da paixão aquém e além da oposição entre passividade e actividade».
[71] Ibidem, 99.
[72] BLANCHOT, Maurice, L’Écriture du désastre, op. cit., pp. 112 (sublinhado nosso).
[73] Ibidem (sublinhado nosso).
[74] SARAMAGO, José, «Contar a vida de todos e de cada um», Cadernos de Lanzarote – III, Lisboa, Caminho, 1996, pp. 186-187 (sublinhado nosso).
[75] BLANCHOT, Maurice, L’Écriture du désastre, op. cit., p. 113-114.
[76] Ibidem.
[77] SARAMAGO, José, «Contar a vida de todos e de cada um», Cadernos de Lanzarote – III, op. cit., p. 185.

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