domingo, 30 de outubro de 2011

Jacques Derrida, Giorgio Agamben e... «a vida nua»


 Francis Bacon, Untitled, 1946.

The Lives of Animals, do sul-africano John Maxwell Coetzee, é um extraordinário exercício de ponderação, posto na forma do ensaio-ficção, não apenas sobre aquilo que a nossa forma de tratar os animais implica, do ponto de vista dos seus pressupostos, mas também sobre o que nela se indicia, no âmbito mais alargado da nossa construção do lugar do outro. Aí podemos, pelo espelho da sua ficção observar, não apenas a convergência (a cumplicidade da tradição) da filosofia e a realidade de uma certa prática, muito disseminada, de exclusão, mas também a linguagem como espaço de acolhimento, abertura de uma certa transgressão do limite que conferirá, de resto, nas palavras da sua personagem principal, um lugar especial ao que releva da literatura.

No interior de
The Lives of Animals - mediado pela sua protagonista, a escritora sul-americana Elizabeth Costello - há, portanto, um debate filosófico. E ele desdobra-se em torno, não apenas dos pressupostos do pensamento Ocidental, acerca do que se tem chamado «o animal» - como se fosse possível reduzi-lo, na sua complexa heterogeneidade, a essa espécie de zoográfica ficção de uma animalidade pensada, simplesmente, como «vida nua» (e é precisamente uma noção de Heidegger e, depois, de Walter Benjamin; embora a relação de Heidegger com o biologismo moderno seja criticamente complexa a internamente diferenciada), a noção de uma «vida sem mais», pré-conceito que, como se sabe, trabalha, também, no interior da descrição que, Giorgio Agamben, (nos seus três livros dedicados ao «holocausto», mas sobretudo em O Poder Soberano e a Vida Nua) como o título deixa claro, herda de Walter Benjamin - mas também do tipo de pensamento que os sustenta.

Ora, ainda acerca dessa espécie de ficção teórica - bastante eloquente, quanto à nossa forma de construção do lugar do outro, que é sempre a da postulada ausência de uma «forma» que nele indicie a virtude (ou a intenção) de uma diferenciação «interna» (o outro como natureza sem lei, ou como as leis de uma natureza sem escolha e, portanto, sem consciência, etc., etc.) - eis o que nos observaria Jacques Derrida, em
L'animal que donc je suis:


L’être des animaux n’est qu’un exemple (zum Beispiel). Mais c’est un exemple fiable, pour Heidegger, de ce qu’il appelle le «Nur-lebenden», ce qui serait «vivant sans plus», la vie à l’état pur et simple. […] Je me demanderai toujours si cette fiction, ce simulacre, ce mythe, cette légende, ce phantasme, qui se donne pour un pur concept (la vie en état pur: Benjamin fait aussi confiance à ce qui n’est sans doute lá qu’un pseudo-concept), n’est justement pas la pure philosophie devenue symptôme de l’histoire qui nos occupe ici. Cette histoire, n’est-ce pas celle que se raconte l’homme, l’histoire de l’animal philosophique, de l’animal pour l’homme‑philosophe? (DERRIDA, Jacques, L'animal que donc je suis, Paris, Galilée, 2006, p. 42)

Não seria pois difícil imaginar o tipo de crítica a que, em contrapartida, em reacção às invectivas de Giorgio Agamben, Jacques Derrida recorreria, procurando situá-lo nessa sua acusação.
A crítica da mesma distinção, enfim, em que incorrem também Heidegger e Walter Benjamin, a propósito desse pseudo-conceito. E essa primeira crítica seria, talvez, a seguinte: os pretensos cuidados filológicos de que Agamben se rodeia tê-lo-iam feito assentar todo O Poder Soberano e a Vida Nua na retransmissão de uma ficção, uma distinção forçada, uma descriminação de termos opostos, respeitantes a um par antonímico e antinómico que, no entanto, nunca funcionou inteira e verdadeiramente como tal, na língua grega. Jacques Derrida di-lo em vários lugares, sem que todavia, se refira sempre a Agamben. Um desses lugares é La bête et le souverain I:



Toute la stratégie démonstrative de Agamben, ici et ailleurs, mise sur une distinction ou une exclusion radicale, claire, univoque, chez les Grecs, et chez Aristote en particulier entre la vie nue (zôê), commune à tous vivants (animaux, hommes et dieux), et la vie qualifié comme vie individuelle ou vie de groupe (bios: bios theôrêtikos, par exemple, vie contemplative, bios apolaustikos: vie de plaisir, bios politikos: vie politique). Le malheur, c'est que cette distinction n'est jamais si claire et assurée, et que Agamben doit lui-même admettre qu'il y a des exceptions, par exemple dans le cas de Dieu qui mène, dit la Métaphysique d'Aristote, une «zôê aristê kei aidios», une vie noble et éternelle; une distinction sémantique si peu assurée ne saurait servir à déterminer une périodisation historique, celle qui fait dire à Agamben [... que] «ce qui charactérise la politique moderne [...] est plutôt que, parallèlement au processus en vertu duquel l'exception devient partout la règle, l'espace de la vie nue, situé à l'origine en marge de l'organisation politique, finit progressivement par coïncider avec l'espace politique, où exclusion et inclusion, extérieur et intérieur, bios et zôê, droit et fait, entrent dasn une zone de indifférentiation irréductible». (DERRIDA, Jacques, La bête et le souverain - I (2001-2002), Paris, Galilée, 2008, pp. 420-421). 

Portanto, em primeiro lugar, se essa distinção nunca foi segura, custa a Derrida compreender como se pode sustentar uma tese que sobre ela assente. Mas, em segundo lugar, é também tão difícil de compreender a sua afirmação de que haja aí alguma coisa de novo, quanto Agamben,
«levando a sério a ideia foucauldeana de uma bio-política especificamente moderna, se atém a lembrar que ela é tão antiga quanto possível, imemorial e arcaica» (Ibidem, p. 421).

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Avulsos 20: Antonin Artaud





















Antonin Artaud

A figura de Artaud é, parece-nos, insuficientemente conhecida em Portugal. O vasto conjunto dos seus escritos contém aspectos que, na sua densidade de formulação e na sua sagaz intuição, antevidente dos nossos entraves político-ideológicos de hoje, marcam a sua mais candente actualidade. Era senhor de um poderosíssimo verbo e de uma consciência agudíssima dos problemas que, afectando-o a ele em particular, se alinhavam já, perante si, como problemas de uma época vindoura. Algumas das coisas que escreveu prefiguraram formulações do que hoje consideramos ainda do mais urgente a pensar.

Não é possível evitar uma extrema admiração (e uma infinita ternura, diga-se) pela figura a vários títulos absolutamente notável de Antonin Artaud. Nem deixar de lhe admirar a coragem e a lucidez - com todos os senãos, evidentemente, que uma certa declinação e recuperação de um pensamento da presença, nele também se faz sentir. Veja-se, tirada quase ao acaso, em Artaud, le Moma, como testemunho do interesse e do peso da sua aventura, por exemplo a seguinte passagem, a propósito de um retrato desenhado por Artaud, intitulado La mort et l'homme:

Il s'agit par le dessin de changer l'oeil, d'inventer ou d'ajouter un nouvel oeil ou, par la violence d'une prothèse paradoxale, de restituer l'oeil perdu. Par cette opération chirurgique, par le traumatisme ophtalmologique qu'y produit une sorte de feu ou de laser virtuel (et Artaud nomme alors la virtualité), le dessin procéderait ainsi à un décollement de la retine. Mais ce décollement permetterait d'instaler la chose représentée, le squelette de la mort, dans l'oeil même, sans support. Détachée de la page, prélevé sur un subjéctil qui figure ce dont la rétine est ainsi décollée, le corp de la chose même, la mort en sa représentation squelettique viendrait se planter dans le regard. Plus précisement, grâce au décollement de la rétine, ce corps mort viendrait trouver sa «place», là où enfin il aurait lieu, à savoir «dans mon oeil». (DERRIDA, Jacques, Artaud le Moma: interjections d'appel, Paris, Galilée, 2002, p. 27).

Eis, portanto, a função do desenho: produzir o «descolamento da retina» em relação à coisa representada, fazendo-a (re)ingressar no meu olho, enquanto forma ou representação, relação mimetológica ou alucinação do presente como presença. Ou ainda, dito de outro modo: descolar a retina daquilo a que ela adere, a que ela se cola na condição presente, sob a forma de uma sua fascinação impotente e condicionadora; ou ainda, pôr a morte no seu lugar, uma morte que é precisamente também a do sujeito. Qual é o seu lugar? É o da forma desabitada, dissociada da força, do movimento ou do devir, da temporalidade. O lugar da morte é o da FORMA como MORTE, o da imobilidade e o da inanidade da forma, o do recorte estável e perene, abstraído da sua relação dinâmica, da abertura da sua historicidade, do movimento e dos imprevistos da sua vitalidade. Eis como Artaud no-lo diz:

Je voudrais en le regardant de plus près qu'on y trouve cette espèce de décollement de la rétine, cette sensation comme virtuelle d'un décollement de la rétine qui j'ai eue en détachant le squelette d'en haut de la page, comme mis en place pour un oeil. Le squelette d'en haut sans la page avec sa mise en place dans mon oeil. (ARTAUD, Antonin, Oeuvres complètes, XXI, pp. 232-233)

A morte e o homem (re)alojam-se, assim, por virtude de um desenho cuja função é, então, a da operação paradoxal e simultaneamente protética e restitutiva (ou antes que reenvia para o suprimento), nos seus próprios olhos. Ficando eles - morte e homem - sem outro suporte exterior... A morte, enquanto forma, posto que a forma é a morte no presente, pertence a uma vista alienada da memória e da vida. O subjéctil de «o homem e a morte» é também o nosso olhar. Intervenção ou restituição, devir e apelo de um olhar novo, ou simplesmente convocação ou regresso de um antigo, tal como agora é retroprojectado, pouco importa, neste caso. Trata-se aqui de fazer comparecer o homem à «imagem» da sua própria cegueira: ela tem precisamente o seu nome. Chama-se «o homem». E chama-se «imagem».

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Avulsos 19: Luís Carlos Patraquim

Luís Carlos Patraquim:

Metamorfose

Ao Poeta José Craveirinha

quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento do mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade

os jacarandás explodiam na alegria secreta de serem vagens
e flores vermelhas
e nem lustro de cera havia
para que o soubesse
na madeira da infância

sobre a casa
a Mãe não era ainda mulher
e depois ficou Mãe
e a mulher é que é a vagem e a terra
então percebi a cor
e metáfora
mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
das mambas cuspideiras nos trilhos do mato
falemos dos casacos e do medo
tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes
e as espigas de bronze
as rótulas já não tremulam não e a sete de Março
chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia
de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando
a natureza e o chão no parnaso das balas
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo
enquanto os tocadores de viola
com que latas de rícino e amendoim

percutem outros tendões da memória
e concreta
a música é o brinquedo
a roda
e o sonho
das crianças que olham os casacos e riem
na despudorada inocência deste clarão matinal
que tu
clandestinamente plantaste

AOS GRITOS

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Avulsos 15: Deleuze - a linha quebrada do devir...
















Gilles Deleuze


«Quando se trabalha está-se forçosamente numa solidão absoluta. Não se pode fazer escola, nem fazer parte de
uma escola. Há apenas trabalho nas trevas, e clandestino. Só que é uma solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, de fantasmas nem de projectos, mas de encontros. Um encontro, é talvez o mesmo que um devir ou umas núpcias. É do fundo dessa solidão que se pode dar qualquer encontro. Encontram-se pessoas (e por vezes sem as conhecer nem as ter jamais visto), mas também movimentos, ideias, acontecimentos, entidades. Todas estas coisas têm nomes próprios, mas o nome próprio não designa de modo algum uma pessoa ou um sujeito. Designa um efeito, um ziguezague, alguma coisa que passa ou que se passa entre dois como sob uma diferença de potencial: «efeito Compton», «efeito Kelvin». Dizemos o mesmo a propósito dos devires: não é um termo que devém o outro, mas cada um encontra o outro, um único devir que não é comum aos dois uma vez que não têm nada a ver um com o outro, mas que está entre os dois, que tem a sua direcção própria, um bloco de devir, uma evolução a-paralela [...] sempre «fora» e «entre». (DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire, Diálogos, trad. de José Gabriel Cunha, Lisboa, Relógio d'Água, 2004, p. 17)

Portanto, 1. O nome próprio designa um «devir». Não designa, nem uma pessoa, nem um sujeito, como ali se lê. Mas um «devir» não é, por sua vez, uma «transformação» - entre dois seres, por exemplo de x em y - nem uma identificação entre dois termos de uma relação, no espaço ou no tempo. Em suma, o devir não é uma «assimilação» a alguma coisa ou a algum sujeito, uma assimilação na qual «alguém ou alguma coisa» pudesse vir a
tornar-se em outro «alguém ou alguma coisa». O devir não é, portanto, um desenvolvimento moldado por um telos.

«Devir nunca é imitar, nem fazer como, nem uma sujeição a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de que se parte, nem um ao qual se deva chegar. Também não há dois termos intermutáveis. A questão «o que é que tu devéns» é particularmente estúpida. Porque à medida que alguém devém muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenómenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução a-paralela, de núpcias entre dois reinos. As núpcias são sempre contra-natura. As núpcias são o contrário de um casal. Já não há máquinas binárias: questão-resposta, masculino-feminino, homem-animal, etc.» (ibidem, p 12)



2. Assim, um encontro é uma relação não binarizada, aberta e capaz de suscitar um movimento que tende a escapar à estrutura da binaridade (passe o pleonasmo), que é própria das relações de dominação: o devir é um movimento de dupla captura, e essa sua assimetria e esse seu carácter a-paralelo, é uma das características da sua linha de fuga. A sua destinação desloca-se, portanto, na medida da sua própria mudança, do seu próprio movimento, porque esse seu movimento é lateral ou desviante em relação a si mesmo, isto é, em relação a qualquer destinação pré-estabelecida, a qualquer orientação, de desenvolvimento, ou de abertura e expansão, de um predicado matricialmente inscrito na sua origem.

3. Não sendo dirigido por uma destinação específica pré-terminada, o devir é, também, inantecipável, visto que encerra em si uma alteridade, que é já propriamente
imanente a todo o acontecimento do encontro e ao movimento que ele supõe já. E no entanto, para Deleuze, o movimento do «devir» não é completamente desprovido de sentido, de orientação ou de direcção. Simplesmente, o que o afecta é uma espécie de direcção subtractiva ou privativa de si mesma. Mesmo não sendo moldado por um telos, ele possui uma finalidade imanente - dirá Deleuze, noutros textos - que é a de fugir à rostidade e, portanto, também ao telos que ela pressupõe.

4. Digamos, então, que não é possível pensar o devir nos termos de uma história, uma vez que esta se limitaria a desdobrar o
telos de uma potência já dotada de um sentido específico, a desenvolver a dimensão de uma orientação matricialmente inscrita, ou uma direcção prévia e imaginariamente originária. Neste sentido, o «devir» pressupõe, nada mais nada menos que uma «des-figuração»: um «devir-menor», um «devir-imperceptível» - uma demarcação de toda a «figura» e, portanto, da relação binária que constrói a ilusão da plenitude presente da sua forma. Ele representa uma linha de fuga em relação à rostidade, à significação ou à «forma» imobilizadas.

5. Ele representa, enfim, dito ainda de outro modo, talvez mais simples, uma
fuga ao «modelo da maioria» ou à aceitação do princípio dominante da existência do seu limite estanque, e uma demarcação da relação de dominação que, inevitavelmente, os sustenta (a esse modelo e aos limites que ele implica). O devir-impercetível é, assim, numa palavra, uma fuga em relação à significação e ao «rosto», ao imperativo da revelação ou à impossibilidade de reserva ou de segredo, tal como é concebido por Deleuze. O «devir» não é, por isso, enquadrável pela história, ou pela ideia de um desenvolvimento. Ele dela se desvia, tanto quanto da «rostidade», ou de qualquer telos.

6. Ele supõe aquilo a que poderíamos aqui chamar uma «historicidade sem história» ou, retomando uma fórmula de Roland Barthes, retirada do seu ensaio sobre Eisenstein,
O Terceiro Sentido: «a história em fuga do seu próprio interior»... Assim, temos então o seguinte. Que, se a linha do «devir» é, para Deleuze, em «ziguezague» - conforme se lê em cima, na citação, isto é, se ela é «uma linha quebrada» - é, precisamente, por uma série de razões que se poderiam enumerar:

a)
porque o «devir» descola sempre de um «diferencial de potência» que está em jogo entre ambos os termos da relação de dominação estabelecida. Essa relação de dominação é sempre assimétrica e anacrónica, no seu desnível entre os seus termos marcado e não marcado, em cada processo estrutural de binarização, que a exemplaridade de «o rosto» envolve; b) porque ele supõe uma linha de fuga que é transversal em relação às linhas de delimitação estanque ou de paragem em que a binarização se traduz: o «devir» corta ou suspende as linhas-limite do que se detém, na relação binária, como paragem;

c)
porque nessa sua suspensão micropolítica do limite (binário), o devir é sempre duplo, uma vez que ele é a-dialéctico, e supõe a impossibilidade da síntese, o desvio da rostidade, etc.: o «devir» é sempre pelo menos duplo - o movimento de uma dupla captura - e são sempre pelo menos dois os devires que se traçam, em simultâneo, num bloco de devir, sem que todavia formem alguma vez par, como modos de deslocamento assimétricos e de movimento a-paralelo, respeitantes aos movimentos que afectam cada um dos termos que ele desloca, e que nele de si próprios se deslocam, ou aos movimentos nos espaços «entre», que são os espaços da vizinhança ou do encontro, que diz respeito aos termos que nele entram, e nele se diferenciam, demarcam ou deslocam de «si mesmos», sem que se possa antecipar a direcção desse seu «movimento de devir». Eis um exemplo, que nos seria aqui útil, e que vem a propósito do tema geral deste blogue:

«
Não é o homem que canta ou que pinta, o homem devém animal, mas precisamente ao mesmo tempo que o animal devém musical ou cor pura, ou linha espantosamente simples: no caso dos pássaros de Mozart, é o homem que devém pássaro, porque o pássaro devém musical. O marinheiro de Melville devém albatroz, quando o albatroz devém a extraordinária brancura, pura vibração de branco (e o devir-baleia do capitão Achab forma um bloco com o devir-branco de Moby Dick, pura muralha branca). Então será isso pintar, compor, escrever? Tudo é uma questão de linha, não há diferença considerável entre a pintura, a música e a escrita. Estas actividades distinguem-se pelas suas substâncias, os seus códigos e as suas territorializações respectivas, mas não pela linha abstracta que traçam, que passa entre elas e as arrasta para um destino comum. Quando se logra traçar a linha pode dizer-se que «é filosofia». Não porque a filosofia seja uma disciplina última, uma raiz última que conteria a verdade de todas as outras, pelo contrário. Nem tampouco por ser uma sabedoria popular. Mas, pelo contrário, porque a filosofia nasce ou é produzida do exterior pelo pintor, o músico, o escritor, cada vez que a linha melódica implica o som, ou a pura linha traçada, a cor, ou a linha escrita, a voz articulada». (ibidem, p. 93)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Fragmentos de Leitura 20: Tarkovski - o fluxo do tempo no interior do fotograma


Andrei Tarkovski:
«A imaginação é menos rica do que a vida»

Há tempos, lendo Esculpir o Tempo, expressão que provém de mais de um trecho no livro - um deles num capítulo dedicado ao «tempo, ritmo e montagem» - dei com estas passagens. Eis o que Andrei Tarkovski, para quem «o cinema é o ritmo da imagem» ali nos diz:

O factor dominante e todo-poderoso da imagem cinematográfica é o ritmo, que expressa o fluxo do tempo no interior do fotograma. [...] A imagem cinematográfica nasce durante a filmagem, e existe no interior do quadro. [...] A montagem reúne tomadas que já estão impregnadas de tempo, e organiza a estrutura viva e unificada inerente ao filme; no interior de cujos vasos sanguíneos pulsa um tempo de diferentes pressões rítmicas que lhe dão vida. [...] O tempo impresso no fotograma é quem dita o critério de montagem, e as peças que «não se montam» - que não podem ser coladas adequadamente - são aquelas em que está registada uma espécie diferente de tempo. Não se pode, por exemplo, colocar juntos o tempo real e o tempo conceptual, da mesma maneira que é impossível encaixar tubos de água de diâmetros diferentes. A consistência do tempo que corre através do plano, a sua intensidade ou «densidade», pode ser chamada pressão do tempo; assim, então, a montagem pode ser vista como a união de peças feita com base na pressão do tempo existente no seu interior. (TARKOVSKI, A., Esculpir o Tempo, 2ª ed., trad. de Jefferson Luiz Camargo, São Paulo, Martins Fontes, 2002, pp. 134-135).

[
parêntesis I: O «ritmo» é, em sentido etimológico, um movimento medido, regulado. Expressando o movimento do tempo no interior do fotograma ou do quadro (o que não é o mesmo), ele expande-se através da montagem, determinando-a a partir do que Tarkovski aqui chama «o fluxo do tempo» no interior do fotograma. E, no entanto, pensar o movimento do tempo como «fluxo» não seria ainda demasiado concessivo, em relação a um modo de conceber o tempo que seria, finalmente, o de uma linearidade sucessiva, no encadeamento narrativo de acontecimentos?

De que espécie de movimento se tratará portanto aqui, neste fluxo de tempo de que Tarkovski nos fala? Seria interessante poder dar aqui um exemplo desta espécie de tensão interna. Encontrá-la-íamos, por certo, também tratada em outros e em vários autores, de formas diferentes, mesmo que convergentes. E interessaria poder fazê-lo partindo até de autores que, sobre «o quadro» e o «fotograma», especificamente, nunca se teriam explicita e especificamente debruçado. Mais interessante seria, ainda, estudar este assunto com a insistência que lhe convém, abordando então com devida minúcia, as diferenças de tratamento que ele recebe, nesses autores. Isso ser-nos-ia aqui de todo impossível, por razões de espaço e de tempo. No entanto, aqui fica uma breve nota.

O tempo é, de uma forma geral, o que num espaço, a partir dele irrompendo ou a ele sobrevindo, o excede. O que o faz vacilar, na sua linha limite. O que o abre a uma indecisão do limite que representa o seu próprio movimento. O que o abre, finalmente, bem como à imagem que lhe dá corpo, à relação de não-simultaneidade. Embora aqui não seja o momento de mostrar o modo como esse «fluxo» se constitui como uma espécie de linha de fuga - para usar uma expressão cara a Deleuze - ou como ele pressupõe a co-ocorrência de mais de uma inscrição, num jogo de devires que se não deixam sintetizar, mesmo na imagem entendida como memória - num sentido que se aproximaria de Derrida e, por via dele, de Louis Marin - vem a propósito lembrar que Tarkovski fala, em Esculpir o Tempo, pensando nesse «fluxo de tempo», por várias vezes, em «tensão». O fluxo de tempo pressupõe uma tensão, no interior do fotograma.

A ressonância nietzscheana disso é, claro, imediata. E poderíamos, a partir dela, situá-lo, enquanto artista e autor, num plano mais abrangente, (o do que Jacques Derrida chamaria, por exemplo, «um pensamento do jogo, ou Maurice Blanchot e Michel Foucault, um «pensamento do exterior»). Nietzsche falava, por exemplo, em La volonté de puissance, do mundo como «um monstro de força», um «jogo de forças», «um mar tempestuoso de forças». O seu mundo «dionisíaco», é assim que ele no-lo apresenta, enquanto espaço da «vontade de poder», marcado por um sentido do tempo que não é nostálgico, não implica a dor da perda ou da separação, mas antes a sua contra-face: a da sua jubilosa e inocente afirmação do devir. E em Esculpir o Tempo há, também, esse sentido afirmativo de uma certa «inocência do devir» - um além «do bem e do mal», um «além» das oposições consagradas pelo pensamento metafísico: Tarkovski dirá, como veremos, um «além do espírito»... - que encontramos igualmente em Nietzsche.

Por outro lado, haveria também, nessa abordagem de maior fôlego e de mais largo espaço, bem como outro vagar e minúcia, o nexo que nos reenviaria, necessariamente, não apenas à imagem enquanto tempo e movimento - como para Deleuze - mas também à imagem enquanto clivada, como para o Roland Barthes dos textos sobre Eisenstein: o de «O Terceiro Sentido» e o de «O Fotograma, em particular, onde o «sentido obtuso» é o intruso, o visitante que não foi convidado e que insiste em ficar e, embora desprendido da estrutura da linguagem, não menos presente como limite excedido. E também em Louis Marin encontraríamos, por certo, contra a «iconologia» panofskiana, essa mesma espécie de fractura da linha-limite do sentido.

Encontrá-la-íamos, finalmente, em todos estes autores, no acentuar de uma certa dimensão sintagmática da imagem, que a dará como um campo de forças, pelo qual ela se abre ao infinito dos códigos. Louis Marin situá-la-ia naquilo que ele discerne, para a semiologia da pintura, como sendo da ordem da figurabilidade do informe - termo cuja imediata ressonância é, inequivocamente, a de Bataille. Roland Barthes, por seu lado, também já para essa dimensão sintagmática nos chamara a atenção, nos seus Elementos de Semiologia. Embora para ele não se tratasse do informe, mas antes do contínuo. Aliás, exactamente como Bataille, em quem o contínuo tem também um lugar absolutamente decisivo.

Talvez esse estudo contrastivo nos levasse também até Lyotard, a propósito de uma certa figuralidade, em Discours, Figure. E a lista não se ficaria, no entanto, provavelmente, por aqui. Seria difícil resistir à ideia de que Walter Benjamin inscrevia já, no conceito de imagem dialéctica, a dimensão de uma historicidade que poria nela a descoberto aquilo a que, nos termos de Barthes, se poderia pensar como uma certa historicidade sem a história (sobre a qual Didi-Huberman se debruçou já, atentamente, em Devant le temps). O interessante seria, assim, aprofundar e perceber, tão bem quanto possível, as nuances deste campo, pensando-as demorada, contrastiva e transversalmente. O que fica aqui é, portanto, apenas uma anotação, uma «nota de leitura», um apontamento. Ouça-se, por exemplo, a título de aproximação experimental, em relação à citação de Tarkovski, esta passagem de Roland Barthes, a propósito do sentido «obtuso»:

Por outras palavras, o sentido obtuso
não está situado estruturalmente, um semantólogo não reconhecerá a sua existência objectiva (mas o que é uma leitura objectiva?) e se ele me é evidente (a mim), é talvez ainda (neste momento) pela mesma «aberração» que obrigava o solitário e infeliz Saussure a ouvir a voz enigmática, inoriginada e obsessiva, a do anagrama, no verso arcaico. A mesma incerteza quando se trata de descrever o sentido obtuso (de dar alguma ideia de lá para onde ele vai, de lá para onde ele se vai embora); o sentido obtuso é um significante sem significado; daí a dificuldade em nomear; a minha leitura fica suspensa entre a imagem e a sua descrição, entre a definição e a aproximação. Se não podemos descrever o sentido obtuso é porque, contrariamente ao sentido óbvio, ele não copia nada: como descrever o que não representa nada? O «restituir» pictural das palavras é aqui impossível.


II - Observe-se, em primeiro lugar, a nota quanto a essa incerteza do destino do sentido obtuso. Não se pode antecipar o seu destino. Não se pode antever a dimensão e a velocidade de precipitação, ou mesmo a direcção, nessa sua abertura para outra coisa, a outro tipo de relação. Trata-se de um sentido que está de partida, em demarcação de si mesmo, sem que todavia possamos antever, prever ou ante-prever o seu lugar de repouso, o seu ponto de chegada, de precipitação ou de depósito, de satisfação plena ou, inversamente, de auto-dissipação. Essa sua tensão entre reenvios, essa tensão da força consigo mesma, essa dobragem no plural de uma não-simultaneidade (ou de uma multiplicidade heterogénea) que a imagem faz por ocultar no seu «agora» aparente, sem que todavia deixar de a fazer saltar à vista na transcendência prometida do óbvio, essa espécie de presente pleno que a camufla por uma totalidade que se furta à abertura do infinito, ao infinito como aberto e incompleto, que a faz despercebida, portanto, no que toca ao antagonismo das forças que a atravessam, esse seu aparente presente sob o qual e no que ela se desloca temporalmente, elege-o como um sentido simultaneamente actual e virtual: um sentido actu(virtu)al.

Em primeiro lugar porque, como diz Barthes, ele não é «estruturalmente situado». Ele não existe na estrutura da linguagem ou ao nível apenas da «linguagem articulada». Não faz estrutura. Não se pode encontrá-lo, de resto, em nenhum dicionário. A aproximação com os anagramas de Saussure é, aqui, também uma indicação preciosa. Alguma coisa nesse «sentido obtuso» implica uma espécie de ressonância, transposição por de contágio ou por propagação. Haverá pois uma dimensão anagramática do sentido obtuso: alguma coisa nele o cliva. Essa sua clivagem suspende nele a forma do conteúdo.

Não pertencendo à «estrutura», é um sentido que resiste à dissimetria e, por conseguinte, à disposição hierárquica que ela também pressupõe. Comparado ao anagrama, ele é bem o que, no interior do sistema, abre o desvão de um seu «exterior» que, no entanto, lhe pertence, o bolso íntimo de uma alteridade irredutível, uma espécie de loucura ou de auto-heteronomia, recolhida nas dobras do que se diria ser um seu «interior». Interior da língua, do quadro, da estrutura, do fotograma... Vê-lo-emos mais adiante... Interessa-nos aqui pensar, da forma o mais inicial e aberta possível, essa espécie de «contra-tempo», sem o qual qualquer «imagem» deixaria, para Tarkovski, necessariamente de o ser. O que é uma «imagem»? Que faz imagem, para o cinema, tal como Tarkovski o pensa? O que é o «cinemático», no «cinematográfico», segundo Tarkovski? O que é o cinemático, enquanto fluxo ou movimento temporal, no interior do quadro ou do fotograma?

Comecemos por aqueles dois aspectos - e respectivas implicações - das afirmações de Tarkovski que aqui mais nos interessarão. Primeiro aspecto: «Uma imagem» não é, para Tarkovski, apenas um eco, uma repetição, ou uma emanação [electro-mecânica, magneto-óptica ou digital, fisíco-química, etc.] do real... É antes uma memória... Uma imagem é um rasto, um sulco, uma impressão do tempo. Lembremo-nos aqui de um dos trechos da citação acima: «O tempo impresso no fotograma é quem dita o critério de montagem, e as peças que 'não se montam' - que não podem ser coladas adequadamente - são aquelas em que está registada uma espécie diferente de tempo». Portanto, «o tempo impresso» no fotograma exerce nele uma determinada pressão sobre o conjunto das peças que a montagem reúne. O que a montagem aproxima é o que, pela sua própria natureza e especificidade, se aproxima já, a partir do interior de cada quadro, de cada fotograma: isso a que tarkovski aqui chama «o tempo impresso», no seu movimento, no seu fluxo.

Alguma coisa aqui se joga já daquele mesmo sentido «obtuso» dos anagramas que seriam a obsessão do infeliz Saussure. Eles também não são, lembremo-lo, já agora, «situados do ponto de vista da estrutura». O tempo existe, no fotograma, como alguma coisa de «não situado do ponto de vista da estrutura». O tempo é, o devir e o por vir da estrutura. Mas em si mesma, ela supõe uma espécie de ocultação do tempo. Uma estrutura é uma forma de «tempo concentrado». Uma «estrutura» é «um concentrado de tempo». E essa concentração cria-nos a ilusão da simultaneidade, da homogeneidade, da ausência de qualquer dobra ou resistência, da pura extensão. A con-centração do tempo é a forma da sua ocultação. Melhor: é a própria forma como ocultação do que no tempo é dissimetria e desequilíbrio, descentramento e jogo, tensão e diferença.

Segundo aspecto das definições de Tarkovski: um estereótipo não dá origem a uma «imagem»... Porque, justamente, o que ele começa por fazer é esvaziar a imagem de qualquer tensão temporal. O que nele e com ele se reduz é precisamente uma certa actualidade e uma certa virtualidade da memória... Quer dizer, uma certa não-simultaneidade da forma do conteúdo que diz respeito á memória. Tarkovski diria talvez que, com o estereotipo, se esvaziaria, em primeiro lugar, a tensão própria ao tempo impresso, força em tensão consigo mesma, que o tempo pressupõe. O estereotipo é a própria negação do tempo impresso. A «imagem» supõe portanto a exclusão do estereótipo.

São vários os exemplos que Tarkovski nos dá desse trabalho de filtragem e de exclusão. Por exemplo: em Andrei Rubliov, há uma cena em que se pensa um homem a lançar-se de um alto com duas asas. Para evitar a conotação com a figura de Ícaro, que a tornaria num lugar comum, Tarkovski põe o homem a voar num balão. Portanto, há um trabalho de desligamento, de metonimização, de dissociação da cena, do fotograma ou já do quadro, de desprendimento, em relação aos seus diversos modos de ancoragem e de estereotipia cultural. É portanto preciso esquivar a cultura, na sua reserva de estereotipia. Ela não existe pronta a exprimir as tensões que nos atravessam. A escrita cinematográfica é, portanto, subtractiva - como diria Barthes da escrita literária. De facto, é preciso desconfiar da linguagem que falamos, assim como da imaginação que temos: porque nem uma nem outra são, simplesmente, do nosso tempo. São, em relação ao que é, para nós, o nosso actu(virtu)al, anacrónicas. São necessariamente mais antigas que nós.

A primeira consequência disto é que a de podermos agora dizer que «a imagem cinematográfica» é, ela própria, necessariamente subtractiva. «Uma imagem» nunca tem a saturação que é própria dos estereótipos. A «imagem» nunca é plena de significado. A sua significação é sempre suspensa num certo limiar. Voltemos agora ao nosso primeiro aspecto: uma imagem não é nunca uma mera repetição, um simples eco ou emanação do real. Aqui, um primeiro sentido de «tempo» se inscreve já: qualquer «imagem» é, enquanto memória, uma repetição que põe em jogo a diferença; mesmo enquanto simples marca impressa (da radiação luminosa que, reflectida por um dado corpo físico ou «objecto»), ou enquanto marca que consagre uma certa emanação do real, ela supõe já a dimensão do rasto, da memória: a dimensão de um «isto foi» que Barthes lembra ser uma fórmula da fotografia - uma marca indiciadora de um outrora presente, que agora se daria como ausente. E a essa nossa memória que a imagem é não é, nem necessariamente «subjectiva», nem exclusivamente «consciente»... Por exemplo, um apontamento escrito é, tanto quanto uma pegada, uma «memória»... Uma aparentemente mais intencional, outra aparentemente menos. «Aparentemente», porque um rastro pode, também ele, ser... simulado. E um apontamento pode, também ele, ser contra-assinado, isto é, inscrever um sujeito plural no lugar em aberto da sua enunciação.

Avancemos, agora, um pouco mais, de novo, para o segundo aspecto: o estereotipo é uma imagem «morta». Poder-se-lhe-ia chamar um rasto apagado? Porquê? Talvez porque, enquanto concentrado de tempo, ele redunde numa significação cuja plenitude traduz a naturalização do histórico, a ocultação do dinâmico. Ou ainda porque, nele, o reconhecimento anula a diferença, a especificidade do nosso encontro com o objecto, a alteridade própria ao acontecimento. Um acontecimento já antecipado não é já um acontecimento. Um acontecimento não é dado na sua previsibilidade. Uma vez antecipado ou previsto ele é saturado de uma significação que o anula ou desqualifica na sua diferencialidade. Dito de outro modo: é necessário que nessa primeira memória da imagem - constituída por essa marca impressa, decorrente dessa dita «emanação do real» - surja alguma forma de «contra-tempo», para que aí se instale algum «movimento», algum «fluxo».

É preciso que haja ali alguma forma de «resistência» (ao estereotipo, à cópia, etc.), para que a imagem se não deixe reduzir à dimensão, certamente apaziguadora, mas também redutora, de uma sua suposta transparência plena. O valor de «passado» e de «acabado», que afecta esse operador diacrónico (do tempo narrativo, pontual e fechado sobre si próprio) que é o pretérito perfeito simples deve ser contrariado e permanecer em aberto. O passado não se deve reduzir a nenhuma forma de presente modalizado, a nenhuma espécie de evacuação do tempo pela eternidade. E essa resistência aloja-se justamente na dimensão do «isto». Quer dizer, na parte desse passado que chega até nós. O passado que se nos antecipa e nos prepara. O tempo «flui», no fotograma, sob a forma de um «contra-tempo», e esse contratempo tem a forma de uma lacuna, de uma falta de sentido disponível. Ele desloca a sua «imagem», na dimensão do que nela resiste à nomeação. Desloca-a da sua acomodação à ilustração de uma ideia. A imagem é, também na acepção de Tarkovski, clivada: toda a «imagem» é clivada. Assim, entre essas duas premissas, ou aspectos, se estabeleceria uma espécie de cumplicidade.

Enquanto emanação do real, enquanto repetição, a imagem deve escapar à mera transparência do significante à significação, do significante ao estereótipo. Na imagem há uma espessura, uma materialidade, que não se reduz à ilustração da ideia. Nela o contínuo do seu significante deve resistir à descontinuidade do conceito. Todo o «contra-tempo» em que tal fluxo se desencadeia, no interior do fotograma, põe em jogo um sentido que virá a estar em demarcação de «si próprio». A imagem não é apenas subtractiva: dir-se-ia que ela é, portanto, pensativa, no sentido em que a significação nela se suspende. A imagem cinematográfica é, portanto sempre pensativa, precisamente porque esquiva à ilustração.
A
formulação de Tarkovski é, neste ponto, exactamente, note-se-o de passagem, a dos Formalistas Russos. Em particular, a que já era de Victor Shkloski, contra Potebnia e os simbolistas: o que Tarkovski, diga-se, abomina é «o pensamento em imagens». O que ele acha decadente um o cinema clássico no qual o que se pede ao espectador é «reconhecimento». E ele di-lo expressamente usando essa expressão «pensamento em imagens» que surge no livro exactamente assim, tal como se tivesse sido directamente extraída do ensaio de Shklovski. É exactamente a mesma fórmula, irónica e mordazmente retomada de Potebnia e dos seus discípulos por Shklovski, sobre o que designa por teoria do «simbolismo» em arte, o mesmo «pensamento em imagens» discutido e condenado, logo de entrada, em Art as a Device.

Esse fluxo temporal há-de ser, portanto, em Tarkovski, o de uma «memória viva», dotada de movimento, de ritmo mesmo que a sua velocidade não seja de uma medida plenamente consciente, etc. E por isso Tarkovski acha que «o primado da montagem» - na reflexão sobre o «cinematográfico» - só pode justificar-se à luz de uma teoria simbolista. Isto é, uma teoria que suponha já um a priori (hermenêutico) do sentido, um sentido prévio a exprimir.


Para Tarkovski é, portanto, preciso - para sermos justos com o nosso pensamento - que não nos esqueçamos de o situar no jogo de forças em cuja (an)economia ele se forma. Portanto, o pensamento não existe por si. A ideia não se confunde com o real. Tarkovski não é platónico, nem «simbolista», na acepção de Shklovski. No pensamento se joga a dimensão de um certo inconsciente material. A imagem cinematográfica não é, por essa razão, meramente signo. A imagem-signo não lhe interessa de todo, se ela se não abrir a uma outra dimensão que, longe de ser a do linguístico, há-de ser aquela que, na sua materialidade, a descentra desse seu suposto a priori. A corporificação da ideia é, se resumida a imagem a isso que ela pressupõe, apenas uma alegoria, quando muito. Em Esculpir o Tempo, aqui incide um dos seus finca-pés, um dos seus pontos de reiterada insistência.

III: Ora, isso supõe que: a) o que se projecta no eixo sintagmático da imagem, como enunciado, é precisamente uma sua dimensão contínua, pela qual ela mergulha numa certa materialidade, que resiste à escansão, assegurada pelo sistema e produzida pela estrutura. E o contínuo é, assim, portanto, a marca de uma suspensão do limite, uma rasura parcial do signo, tal como ele funciona na linguagem articulada, o levantamento de uma interdição, a suspensão de um barramento, abertura de uma barreira, a transgressão de uma descontinuidade discursiva, de uma dissimetria e de uma anacronia.

E ainda: b) que estamos aqui num domínio que é já o de um certo «pensamento do exterior», como lhe chama Maurice Blanchot, a propósito de Nietzsche e de Jacques Derrida, em L'Entretien infinit (título em tudo adequado a esse sentido nietzscheano do jogo do mundo). Não apenas o da desconstrução, mas também o de uma certa teoria do texto, para além do de uma certa esquizo-análise, contra os pressupostos de uma hermenêutica que, nem o marxismo, nem a psicanálise, deixaram inteiramente de ser. E o contínuo é essa espécie de linha de fuga que frustra a lei. Que a inflecte sobre si mesma e sobre a sua própria auto-heteronomia, e a suspende sobre o abismo da sua própria loucura, para aí a interrogar. Nos termos de Derrida, esse contínuo suporia a lógica do suplemento ou da dupla inscrição, no espaço diferencial de uma remarcação estratégica, na qual o outro se volve na exterioridade que constitui o Mesmo.

O contínuo é, portanto, uma certa vertigem da Forma, (mas também da Lei e da Língua, da Lei da língua e da Língua como lei, da Forma como língua da Lei e como lei de toda a Língua) naquele seu interior que abre para o absolutamente outro, como o presentemente «im-possível» da forma. Mas ele é também a experiência de uma historicidade sem história, a historicidade de uma história em fuga de si própria, do sentido obtuso de uma história situada num espaço que se abre à sua imperceptível dissociação ou divisão, à história como não-simultaneidade do espaço ou da forma, em tensão e em alteridade, no limite que assim se transgride ou se suspende. Barthes alude insistentemente a esse signo contínuo.

Já desde os seus Elementos de Semiologia, onde ele tem a preocupação de lembrar que, se há alguma coisa que transgrida «o paradigma», ela situa-se ao nível da interlocução e do sintagma. Isto é, ao nível da enunciação e do enunciado, visto que nele se projecta - contra aquilo que é a lógica que rege o eixo paradigmático, que é uma lógica da descontinuidade ou da diferenciação das unidades ditas «discretas», aquelas unidades que nele existem em escolha alternativa - justamente aquela espécie de contínuo que nele supõe a ausência ou a suspensão do limite, da estrutura, do paradigma, do modelo. O contínuo é, portanto, uma outra formulação do informe de Bataille: a transgressão da forma, da lei ou mesmo da língua - em suma, aqui o signo de uma espécie de disfunção do sistema, de deslocamento do autónomo, de oscilação heterónoma, ou de uma certa porosidade do limite. A continuidade interrompe o limite e a lei que ela própria exige e precipita.


IV: Barthes virá, de seguida, a retomar essa ideia - a do contínuo - nos seus textos sobre fotografia, em O Óbvio e o Obtuso - a fotografia é um significante contínuo, uma mensagem sem código. Ora, é bem aí da sua materialidade que se trata. A volta por esses textos ficará para um outro post. Regressemos, provisoriamente, à passagem em que, a propósito de Eisenstein, ele nos fala, em «O Terceiro Sentido», do sentido obtuso:


A consequência é que se, perante estas imagens [de fotogramas, retirados de um filme de S. M. Eisenstein] ficamos, vocês e eu, ao nível da linguagem articulada - isto é, do meu próprio texto - o sentido obtuso [não] chegará a existir, a entrar na metalinguagem do crítico. Isto quer dizer que o sentido obtuso está fora da linguagem (articulada), mas
no interior da interlocução. [...] Em suma, o que o sentido obtuso perturba, esteriliza, é a metalinguagem (a crítica). [...] É evidente que o sentido obtuso é a própria contra-narrativa; disseminado, reversível, enganchado na sua própria duração, só pode fundamentar (se o seguirmos) uma outra segmentação diferente da dos planos, sequências e sintagmas (técnicos ou narrativos); uma segmentação inaudita, contra-lógica e contudo «verdadeira».

É sobre a linha desse contínuo em que o limite vacila, e em que a forma se reverte, hesitando entre sentidos que se auto-contradizem e se contrariam, que o sentido se torna «obtuso» e vem a perturbar a metalinguagem. Situado ao nível da interlocução, ele é a indecisão da figura ou da forma: por exemplo, entre a máscara e a expressão da dor, como Barthes a lê no fotograma V, nesse texto (Ver aqui no blogue
Recapitulações - o quadro IV: o sentido obtuso (Barthes)). Essa hesitação não é, ali, redutível. Esse sentido que desvia a imagem do seu sentido óbvio (o da dor de alguém que chora).

É o sentido da sua própria reversibilidade: aquele rosto pode, na sua expressão de dor, tornar-se subitamente, por uma certa rima formal ou relação anagramática, no signo de um efeito de máscara - «a máscara da dor». Entre o rosto da dor e a máscara da dor a fronteira é, pois uma linha ténue, obtida com o cuidado de uma filtragem que segue os preceitos da escrita, que são os de uma subtracção ao sentido pleno. O significa que «o sentido obtuso» é «contra-narrativo», deslocando-se da história para o discurso, da significação para a significância, da imagem ilustrativa para a imagem que resiste à significação prévia, mergulhando na expressão matérica e«concreta» de uma certa densidade ou intensidade da força em tensão.

Trata-se de um outro aspecto para que Tarkovski chama, também, a atenção. Não se pode falar da vida procurando fazer enfileirar os acontecimentos que a marcam na ordem abstracta de uma mera sucessão. A mera sucessão é já de si abstracta, porque desqualifica os acontecimentos que nela se alinham, reduzindo-os à quantidade que neles anula na sua alteridade, a sua especificidade relativa, a sua diferencialidade temporal. Se no cinema de Eisenstein, as personagens fossem apenas ilustrações de uma certa ideia, elas seria completamente desprovidas de vida. De resto, para Tarkovski, o «naturalismo», que cultivou esta espécie de abstracção temporal, está absolutamente esgotado no cinema, tanto quanto o estariam a alegoria e o símbolo, sempre que se trata da «imagem cinematográfica».

Porque, simplesmente, a vida não é assim, embora a nossa vida prática assim se queira representar, por motivos que se prendem com a nossa própria alienação e, segundo os imperativos dela, com os limites estabelecidos no espaço discursivo dessa mesma ordem sucessiva. E se realmente a lógica do sentido obtuso tem aqui, em Barthes, que ver com as suas não-dialectizáveis, assim como auto-contraditórias oscilações (entre a máscara e o semblante da dor; entre o carrapito e o punho erguido, entre o alheamento ou a imersão nos seus pensamentos e o traçado demasiado estilizado da barbicha de Ivan o terrível, que lhe denunciaria uma atenção expressa ao seu outro, a noção de estar a ser observado, entre o estilo militar do general nazi e as unhas untuosas que nele trairiam a sua origem rural, ou entre ele e a estupidez loura do rapaz que lhe serve de porta-flechas, e que constituiria dele uma espécie de metonímia, etc, etc, etc...)...

Se o sentido obtuso ali se revela e vive num estado de erectismo perpétuo, como Roland Barthes nos diz, visto que é impossível enchê-lo ou esvaziá-lo (visto que dele se desconhece o destino) - ele seria um sentido sem depleção e, portanto, sem descanso, visto que consagraria, justamente, o que se poderia dizer ser «a forma do sentido já vazio», isto é, a forma de um sentido no qual o novo continuamente regressa e a forma, ela própria, se suspende - ele implica, então, a inscrição de um certo inconsciente do sentido. Não apenas porque o que caracteriza o inconsciente é precisamente o seu carácter compulsivo, a sua compulsão à repetição, aquilo que Freud nos diz ser próprio das pulsões... Mas também porque o inconsciente não conhece o princípio da não-contradição. O que parece acontecer justamente com o sentido obtuso... uma vez que ele não é situado, do ponto de vista da estrutura... Não acontecerá também o mesmo com uma certa dimensão da imagem, aquela a que diz respeito «o fluxo de tempo», no interior do fotograma? Vejamos uma formulação de Tarkovski:

A imagem é indivisível e inapreensível e depende da nossa consciência e do mundo real que tenta corporificar. Se o mundo for impenetrável, a imagem também o será. [...] Enquanto observação precisa da vida, a imagem nos traz à mente a poesia japonesa. Nesta o que me fascina é a recusa em até mesmo sugerir a espécie de significado final da imagem, que pode ser gradualmente decifrado como uma charada. Os haicai cultivam suas imagens de tal forma que elas nada significam para além de si mesmas [sublinhado meu], ao mesmo tempo que, por expressarem tanto, torna-se impossível apreender o seu significado final. Quanto mais a imagem corresponde à sua função, mais impossível se torna restringi-la à nitidez de uma fórmula intelectual. O leitor dos haicai deve incorporar-se a ele como à natureza, deve mergulhar, perder-se em suas profundezas como no cosmos, onde não existem nem o fundo nem o alto. (TARKOVSKI, A., op. cit., pp. 123-124)



Os itálicos são aqui todos meus. Eles sublinham: a) a dimensão do contínuo do signo como transgressão do paradigma: a imagem é «inapreensível» e «indivisível» - seria possível ser-se mais explícito? b) ela tem uma estrutura bífida ou anfibológica. Ao mesmo tempo que se recusa, presta-se àquilo que recusa. É isso que faz com que ele não possa ser «satisfeito», «esvaziado», não tenha depleção, esteja em estado de permanente erectismo, como diz Barthes: ele é já o seu próprio esvaziamento. Ele é, não só contra-narrativo, nesse sentido, como também irredutível ao sentido (narrativo) que ele mesmo recusa; c) enquanto signo clivado, ele reenvia para si mesmo, funcionando à maneira do que W. J. T. Mitchel chama de meta-imagem («metapicture»); d) nesse plano, ele afirma-se na sua obtusidade: «obtuso» significa «rombo», que se enrola sobre si próprio, que se dobra sobre si mesmo, que se retrai, etc. Ora, para Tarkovski, tudo isto os haicai consagram, exemplarmente. Curiosa coincidência, essa do gosto de ambos - Barthes e Tarkovski - pela poesia japonesa. E lá pelo meio do livro, um tanto adiante, este último tem esta citação de Pushkin: «a poesia tem que ter um quê de estupidez». Portanto, quanto à materialidade da imagem, enquanto signo contínuo (tal como os haicai o seriam) ficamos assim conversados. Eles são, não só inapreensíveis, mas também indivisíveis. Eis o que distingue a arte de qualquer outra coisa:

A interação de conceitos jamais poderá ser o objectivo fundamental da arte. A imagem está presa ao concreto e ao material e, no entanto, ela se lança por misteriosos caminhos, rumo a regiões para além do espírito - talvez Pushkin se referisse a isso quando disse que «A poesia tem que ter um quê de estupidez». [...] Vejo então que a minha tarefa profissional é criar o meu fluxo de tempo pessoal, e transmitir na tomada [no take] a percepção que tenho do seu movimento - do movimento arrastado e sonolento ao rápido e tempestuoso - que cada pessoa sentirá a seu modo. Juntar, fazer a montagem é algo que perturba a passagem do tempo, interrompe-a, e, simultaneamente, dá-lhe algo de novo. A distorção do tempo pode ser uma maneira de dar expressão rítmica. Esculpir o tempo! [...] Creio que um director [um realizador] que monta os seus filmes facilmente e de várias maneiras é superficial. (ibidem, pp. 136-144)... ]

«Elementos para uma semiologia pictural» 6: Texto de Louis Marin


«DENOTAÇÃO – CONOTAÇÃO
É para tentar, senão responder a esta questão, pelo menos torná-la mais precisa, que a distinção, trazida por Hjelmslev e desenvolvida por R. Barthes, da denotação e da conotação, parece de uma grande importância. Com efeito, se a imagem pictural – numa pintura representativa – é signo figurativo, isso significa que, para além da sua função de designação, ela possui uma função de expressão, ou melhor ainda, que o designante que essa imagem é constitui um conjunto complexo que é, em si mesmo, signo: o signo segundo Frege, exprime e designa e se a sua expressão não se reduz à sua designação, isso quer dizer que a relação de designação se torna o significante, o expressor do signo; longe de a designação ser o fim do signo pictural, em cujo caso teríamos razão em dizer com Pascal «que vaidade [vanité] a pintura atrair a admiração pela semelhança das coisas das quais não se admiram já os originais», longe de o esquema canónico da pintura ser esse esquema linear e tornado superficial, ideia-imagem-objecto, a distinção de Frege obriga-nos a desdobrá-lo na sua profundidade, na sua espessura e a perceber que a relação de designação ou referencial que definiu de uma ponta a outra a imagem pictural, deve integrar-se para se tornar signo figurativo e figura numa relação mais profunda de que ela não será senão um termo, ou de que ela não constituirá senão o plano da expressão, na terminologia de Hjelmslev – o significante. E está muito precisamente aí a definição que Hjelmslev e Barthes dão, da conotação e da semiologia conotativa:

O primeiro sistema constitui então o plano de denotação – é a relação de designação no caso da pintura «representativa» - e o segundo sistema extensivo ao primeiro, o plano da conotação. Dir-se-ia portanto que um sistema conotado é um sistema cujo plano de expressão é constituído ele próprio por um sistema de significação.

Para pegar num exemplo, o importante estudo que Hubert Damisch consagrou à nuvem, na pintura renascente e barroca, constitui uma notável análise de um sistema conotado no qual o plano de denotação reenvia tanto para o objecto natural «nuvem», quanto para o objecto simbólico, já codificado por uma mística hierofânica, enquanto que o plano de conotação revelará, segundo os pintores e as épocas, na estrutura expressiva da obra, significados diferentes, trazidos à luz com todo o rigor, pela aplicação sistemática da prova de comutação e pela constituição de séries paradigmáticas. Desenvolvendo teoricamente as análises de Damisch, poder-se-ia considerar o sistema pictural como articulação hierárquica de planos de conotação, o sistema de significação de um nível tornando-se no plano de expressão do sistema superior.
Também não é um acaso se a análise de Damisch faz aparecer a convergência da análise estrutural e da análise sociológica, se P. Bourdieu retomando a distinção de Panofsky entre o estudo pré-iconográfico, a iconografia e a iconologia, desemboca numa teoria sociológica do conhecimento adequado da obra na qual

Os diferentes níveis se articulam num sistema hierarquizado onde englobando-os se torna por seu turno englobado, o significado [tornado] por sua vez tornado significante.

A teoria do encaixe dos códigos de decifração ou introdução a uma teoria da ideologia se, como o faz notar R. Barthes, a forma dos significados de conotação é o conjunto de representações num momento determinado do mundo e da história. Longe de nós a ideia de confundir essas pesquisas, reduzindo-as, num ecletismo sem nuances, a um comum denominador semiológico. Mas o próprio de toda a teoria, e a teoria semiológica não escapa à regra, não é fornecer um jogo de conceitos suficientemente extensivos para integrar numa totalidade superior coerente, as pesquisas já efectuadas ou em curso, e suficientemente abarcadoras para ser, por seu turno, operatórias? É assim que poderão ser constituídos diversos códigos de deciframento hierarquizados que permitirão esperar uma compreensãosempre mais profunda da obra pictural. O código é, num sentido, um princípio de constituição das classes de signos figurativos, [para] que essas classes sejam organizadas segundo o estilo e segundo o sentido. Mas num outro sentido, é o próprio princípio de classificação por variações paradigmáticas que permite constituir o código. Esta circularidade metodológica não é um círculo lógico; ela corresponde a duas fases da pesquisa: a fase da pesquisa semiológica, pela qual a constituição das séries virtuais de signos figurativos permite chegar a um nível codificado; a fase da verificação do valor operatório do código autoriza a extensão diferencial da série paradigmática e conduz eventualmente a distinguir no código, subcódigos e na série subclasses. Como observa P. Bourdieu, não é este processo teórico que é de algum modo posto espontaneamente em andamento nas pesquisas de atribuição de obras picturais?

O código artístico como sistema de princípios de divisão possíveis em classes complementares do universo das representações oferecidas a uma sociedade dada a um momento dado do tempo tem o carácter de uma instituição social, escreve ele… cada época organiza o conjunto de representações artísticas segundo um sistema institucional de classificação que lhe é próprio… e os indivíduos dificilmente pensam outras diferenças que aquelas que o sistema de classificação disponível lhes permite pensar.

Ao que faz eco a nota de Damisch:

Para lá desses conjuntos organizados que são as obras, para lá dos estilos individuais eles próprios, parece-nos entrever então uma vida secreta dos estilos colectivos – ver sistemas figurativos – que aparecem como o lugar de encontro dos empreendimentos individuais.

Essas indicações teóricas são, tudo ponderado, uma especificação da noção de valor tal qual ela é definida por Saussure:

o que há de ideia ou de matéria fónica num signo importa menos que o que há, à sua volta, nos outros signos.
Um signo figurativo, uma figura tem um valor definido pela situação recíproca dos signos no sistema. Se, como R. Barthes indica no seu comentário, esta comparação dos signos se instaura no plano das reservas virtuais paradigmáticas ou dos campos associativos e se, como Saussure o nota a propósito das relações associativas, esses campos não têm uma ordem determinada, compreender-se-á então que o valor de um signo figurativo ou de uma figura possa modificar-se a cada leitura profunda, variar logo que varia a situação recíproca dos signos no sistema, e que o conceito de valor, que se encontra igualmente em Panofsky, seja um dos conceitos chave tanto para a elaboração dos códigos picturais como para a análise abarcadora das evoluções, das mudanças ou das mutações nos objectos.»

domingo, 7 de março de 2010

Avulsos 10: Rothko - uma «arte menor»?



Enquanto assistia hoje a um seminário, sobre temas da história de arte contemporânea, e depois de rever um documentário sobre Mark Rothko, assaltou-me esta ideia um pouco inesperada: e se, entre Rothko e Kafka, que são ambos judeus, houvesse mais que uma afinidade aparente e longínqua, ligada à questão da sua desterritorialização? Rothko sofreu-a mesmo em termos artísticos, uma vez confrontado com os clássicos do modernismo (Picasso, etc; a excepção teria sido Matisse).

Por exemplo, quanto à «tragicidade da imagem» e à «experiência religiosa» de uma transcendência inscrita na sua pintura, nos termos matéricos da densidade / intensidade da cor, e da linha fluida da forma indecisa de um «tremeluzente horizonte» que há nos seus quadros, experiência auroral e crepuscular, a da tentativa de expressão das «emoções básicas do ser humano», como diz Rothko... Haveria alguma coisa que com isso se pudesse parecer, que a isso pudesse corresponder, em Kafka? Haveria, em suma, um equivalente do ponto de vista da experiência dessa «tragicidade da imagem», numa «literatura» dita «menor» (como é a de Kafka, de Beckett, de joyce, segundo Deleuze?). O anterior post, aqui no blogue, sobre aquilo que Kafka nos diz das «metáforas» seria talvez já indicativo dessa talvez afinidade...


Não será a de Rothko, também ela, uma arte «menor», no sentido em que Deleuze nos fala de uma «literatura menor», justamente? Rothko judeu, acometido pelos fantasmas cossacos de uma punição e de uma castração que ecoam da sua infância e que ele associa, em 57 à sociedade de mercado e de consumo, que é justamente a sociedade que produz a clientela do Four Seasons a que ele virá a recusar os seus quadros - haverá nele alguma coisa de próximo de Kafka? Os quadros pintados para o Four Seasons (inspirados nas janelas cegas da sala Miguel Angelo, da biblioteca Laurentina, em Florença, e talvez já no Atelier rouge de Matisse: não os da primeira imagem, aqui, mas o da segunda imagem), não conterão eles essa experiência (muito kafkiana) de uma impossibilidade de chegada, de uma ambivalência da abertura / bloqueio da janela, passagem para um limiar instável que se metonimiza e afasta, no qual se difere qualquer forma de destinação ou de presença, e que levanta a mais angustiante questão, quanto à função e à efectividade da arte, do ponto de vista da sua experiência de transcendência? Será esta ideia tão «peregrina» quanto parece?